Recinto

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recinto


Fotografia digital, 2017. Adauany Zimovski


Dar seu espaço poético a um objeto é dar-lhe mais espaço Gaston Bachelard


Vulcรฃo La Cumbre, Galรกpagos. Fonte: ISS/NASA.


Segundo Ailton Krenak, “o nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno”1. Partindo dessa constatação, este texto é uma proposta de tatear com os olhos, um conjunto de ideias ambulantes sobre espaço/espacialidade. Considerando-o como medida ou mesmo indicador da relação do ser humano com o mundo, como podemos pensar/sentir o espaço desde uma perspectiva poética? Espaço, paisagem – palavras que talvez já não nos surpreendam tanto. Contudo , como nos diz Gaston Bachelard em A Poética do Espaço2, “as palavras mais usuais, as palavras ligadas às realidades mais comuns, não perdem por isso suas possibilidades poéticas”. Mas para isso, então, é preciso dar-lhes espaço, para que possam se deslocar um pouco, escorregar, dançar… Um tempo atrás eu tinha certa obsessão em registrar superfícies urbanas, muros, paredes que ficam com aqueles rastros expostos de uma construção que já não existe – como essa imagem da capa. Durante um período, esse motivo aparecia muito nos meus trabalhos fotográficos. Isso já faz uns 10 anos, e ainda hoje eu de vez em quando encontro uma ruína persistente que fotografei, como na altura do número 1.500 da rua Riachuelo, em Porto Alegre, e outra próxima do 677, na mesma rua. Muitas delas estão em terrenos onde havia prédios bem antigos, demolidos para dar lugar a estacionamentos.


De maneira geral, eu costumava pensar que essa obsessão tinha algo a ver com aquilo que em alemão se chama Ruinenlust : o gosto por ruínas, o gosto por caminhar pelas ruínas. Mas tenho uma outra percepção, talvez mais forte, que é a de um desejo não assumido pela completude. Um desejo pela inteireza manifesto através da falta. Um apetite óptico em reconstruir mentalmente um espaço a partir dos seus fragmentos. Em algumas dessas fotografias que produzi, dava para ver o desenho do que tinha sido uma escada e as partes azulejadas que provavelmente eram de uma cozinha ou de um banheiro. Mas são imagens fugidias, escapam facilmente, como alguém que precisa sair às pressas e não te dá muita atenção. O artista John Koenig tem um projeto chamado “The Dictionary of Obscure Sorrows” (Dicionário das Tristezas Obscuras)3. Trata-se de uma coleção de palavras inventadas por ele com o objetivo de identificar sensações e emoções para as quais normalmente não temos nome. Lá encontrei uma palavra que talvez combine com esse cenário: “Kenopsia – a atmosfera sinistra e desamparada de um lugar que geralmente está cheio de gente, mas agora está abandonado e silencioso [...] uma imagem residual emocional que o faz parecer não apenas vazio, mas hiper-vazio…”. Num sentido estrito, kenopsia diz mais respeito a lugares como escolas ou supermercados que, quando vazios, transmitem uma sensação de abandono. No caso das paredes “arruinadas”, acho que a sensação do abandono está presente. Aquela silhueta fantasmagórica no muro é a imagem de uma casa que nos abandonou.


Fotografia de autoria desconhecida. Fonte: https://redtreetimes.com/2015/01/30/the-roller-skating-house/


É possível falar sobre espaço sem falar de movimento? Talvez sim, mas aqui essas duas palavras estão sempre associadas. Ainda mais porque quero falar de coisas que andam. Em O olho e o espírito4, o filósofo Maurice Merleau-Ponty associa a visão ao movimento do corpo. Resumidamente, o autor diz que “o movimento é a visão em ato”. A partir disso, posso pensar que um simples movimento de olho, mesmo que ínfimo, já contém em si o início de um trajeto a ser percorrido. Merleau-Ponty afirma: “tudo o que vejo por princípio está ao meu alcance, pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do eu posso”. A ideia de alcance nesse trecho parece trazer em si uma dialética da distância, como se a estratégia fosse fixar um ponto qualquer nesse “mapa” como pretexto para se deslocar. Me lembro da palavra Wonderlust, do alemão (wandern: caminhar, vagar + Lust: desejo, vontade). É comum encontrar sua tradução como “desejo de viajar”. A ideia central parece ser a de uma ânsia por movimento que, segundo Rebecca Solnit, só pode ser amenizada “pelos atos do próprio corpo em movimento, não pelo movimento do carro, barco ou avião”.5 De qualquer modo, poderíamos também considerar algumas possibilidades de interpretação como “vontade de perambular” ou “desejo de ir”, porque, ainda segundo Solnit, é o movimento assim como as vistas que passam que nos interessam.


Casa se deslocando ao longo de uma rodovia no Texas, 1938. Foto: Anthony Stewart.


A primeira vez que vi uma casa viajante foi no filme The Tree (2010), dirigido pela cineasta Julie Bertuccelli. A história se passa na Austrália, onde aparentemente as casas viajantes são comuns. Não são como os motorhomes, são casas completas (geralmente feitas de madeira) que se deslocam de um lugar para outro. Antes da invenção de veículos motorizados elas viajavam à cavalo. Atualmente, elas viajam em caminhões específicos para esse fim. No filme de Bertuccelli, Peter é um motorista que trabalha numa empresa de transporte de casas. Por se tratar, muitas vezes, de uma viagem longa e delicada, o serviço é feito em dupla, para que os funcionários possam se revezar na direção. Numa dessas trocas de posto, Peter decide fazer a sua pausa dentro da casa em movimento, e não na cabine do caminhão. Na cena, Peter é filmado desde dentro da casa nômade. Ele é visto de costas, encostado no batente da porta, olhando para fora. Assim como o personagem, a casa também está contemplando as vistas, com seus “olhosjanelas”. No site de uma dessas empresas encontro uma frase bem destacada, que grita comigo em um pop-up: “Why move your house?” (Por que mover sua casa?). Obviamente, essa foi a primeira pergunta que me veio à cabeça quando decidi pesquisar esse serviço, e é provável que existam motivos razoáveis para isso, mesmo que alguns sejam questionáveis. Mas aos meus olhos esse slogan é uma certa provocação: por que mover? E por que permanecer?


Frame do filme The Tree (A Árvore). Direção de Julie Bertuccelli, 2010.


Casa sendo transportada de Creswick para Allendale, por volta de 1905. Fonte: Museums Victoria, Austrรกlia.


Eu gostaria de ter começado esse texto usando aquele método de desdobrar uma palavra, encontrando a partir da sua etimologia qualquer informação que ajude a ampliar o seu sentido. Recinto é seguramemente um bom termo para isso. Para alguns autores, é um italianismo derivado do latim (re + cinctus). Designaria o ato de cercar ou rodear algo, produzir um espaço rodeado, cercado, com o prefixo “re” indicando um refazer de maneira a intensificar a ação. Contudo, outras fontes informam que no latim clássico essa palavra dizia respeito a uma ação praticamente oposta, a de soltar, desprender. O site da Enciclopedia Italiana di Scienze explica que recinto é de fato um cercamento, mas em espaço aberto. Ainda segundo a enciclopédia, entre muitas outras definições, recinto pode ser, no campo da geografia, as formações de coral que acompanham os contornos de rochas subaquáticas das costas de mares quentes ou, ainda, no campo da geomorfologia vulcânica, seria o círculo mais ou menos preservado em torno do colapso que se forma na zona central dos maciços vulcânicos. Bom, a lista poderia continuar escorrendo feito lava, mas deixo recinto por aqui.

***


Notas [1] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [2] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. [3] https://www.dictionaryofobscuresorrows.com/. [4] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac & Naify, 2004

[5] SOLNIT, Rebecca. Wanderlust: A History of Walking. Penguin Books 2001.




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