Mediação cultural como dispositivo de cura coletiva

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Mediação cultural como dispositivo de cura coletiva Gabi Faryas e Marina Feldens


Mediação cultural como dispositivo de cura coletiva Gabi Faryas1 e Marina Feldens2

Resumo:

Nesta pesquisa discorremos acerca do tensionamento conceitual e prático da mediação cultural, como um mecanismo de cura coletiva dos traumas coloniais. Partindo da ideia que a mediação é um encontro, um “estar entre”, um espaço de confiança, entendemos que ações anti-racistas, questões de acessibilidade múltiplas (físicas e sociais) e a pedagogia transgressora são essenciais na prática educativa descolonial, como momento de construção e desenvolvimento de subjetividades, dentro e fora de espaços expositivos. É fundamental que identifiquemos através da arte e da educação as bases coloniais que estruturam a nossa sociedade, pois em territórios onde a colonização se alastra e se renova, pensar caminhos de cura torna-se uma necessidade básica.

Palavras-chave:​ arte-educação; mediação cultural; curadoria pedagógica; pedagogia descolonial.

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Gabi Faryas ​é atroz, performer y arte educador. Estuda Licenciatura em Teatro, é bolsista pesquisador na ​ UFRGS e trabalha como mediador na Fundação Iberê. Seus trabalhos vão desde performances, atividades educativas, escritas dramáticas á poesias. É co-fundador da rede ​Espiralar Encruza!(@espiralarencruza) e do coletivo CARNEVORAZ (@carnevoraz). Pesquisa tanto no teatro, na performance, na vídeo-performance como na educação a imaginação corporal, processos de cura, e as relações étnicos raciais, partindo dos conceitos de escrevivência, afrosurrealismo, homessexualidade negra, memória y territorialidade​. 2 Marina Feldens é arte-educadora, curadora e produtora independente. Graduanda e bolsista pesquisadora do ​ curso de História da Arte da UFRGS. Nos últimos anos desenvolveu sua experiência como arte-educadora na Fundação Iberê. É co-fundadora do grupo de pesquisadores e artistas Antes Ditas criado a partir da ocupação, residência e exposição ​As coisas que são ditas antes ​(2019) na Casa Baka, premiado no XIII Prêmio Açorianos de Artes Plásticas na categoria Destaque em Exposição Coletiva. É também co-fundadora da LACUNA (@lacunaprojeto) que se pretende ser um espaço expositivo virtual de aproximação e criação artística. Sua pesquisa é interdisciplinar e incorpora a produção, curadoria e arte-educação como ferramentas descolonizadoras e interseccionais do sistema da arte.


Abstracto:

En esta investigación, discutimos la tensión conceptual y práctica de la mediación cultural, como mecanismo de sanación colectiva de los traumas coloniales. Partiendo de la idea que la mediación es un encuentro, un “estar entre”, un espacio de confianza, entendemos que las acciones antirracistas, las cuestiones de accesibilidad múltiple (física y social) y la pedagogía transgresora son fundamentales en la práctica educativa decolonial, como una forma de construcción y desarrollo de subjetividades, dentro y fuera de los espacios expositivos. Es fundamental que identifiquemos a través del arte y la educación las bases coloniales que estructuran nuestra sociedad, pues en los territorios donde la colonización se difunde y se renueva, se convierte en una necesidad básica pensar cuales son los caminos para la sanación. Contraseñas: ​Educación artística; mediación cultural; curación pedagógica; pedagogía decolonial.

Summary

In this research, we discourse about the tensioning between the concept and the praxis of cultural mediation, used as a collective healing mechanism of colonial traumas. Starting from the idea of mediation as encounter, as a “being between”, a safe space, we understand that anti-racist actions, multiple accessibility issues (physical and social) and the crossroads pedagogy are essential in decolonial educational practice, as moment of construction and development of subjectivities, inside and outside spaces of exhibition. It is essential that we identify through art and education the colonial bases that structure our society, because in territories where colonization spreads and renews, thinking about ways of healing becomes a basic need. Key-words: ​art education; cultural mediation; pedagogical curation; decolonial pedagogy.


“Se realmente queremos criar uma atmosfera cultural em que os preconceitos possam ser questionados e modificados, todos os atos de cruzar fronteiras devem ser vistos como válidos e legítimos.” - ​bell hooks


INTRODUÇÃO Todas as mudanças progressistas em nossa sociedade, seja nas maneiras de nos relacionarmos interpessoalmente ou nas políticas públicas que promovem equidade racial, de gênero e de classe, foram amplamente discutidas, tensionadas e debatidas em sociedade. Olhando para trás e para frente, podemos compreender a importância de se refletir em coletivo para que possamos caminhar para uma sociedade mais inclusiva, democrática, viva, descolonizada e equânime. A escritura deste artigo faz parte da construção de espaços seguros que são costurados em coletivo, independente da dimensão que eles ocupem, seja um país ou um espaço expositivo. Analisaremos aqui como a construção da narrativa ocidental e homogênea reflete na História da Arte e segue firmemente aos ensinamentos do colonizador. A História da Arte mantém-se na apropriação de diversas narrativas e corpos para reafirmar esse caminho único, onde (provavelmente) se tem o controle de entrada e saída das subjetividades sociais, literalmente. Por ter esse controle que a homogeneização da História da Arte dificilmente nos permite experienciar a encruzilhada de caminhos, é o receio de compreender e seguir um percurso diferente. É através da experiência coletiva e/ou colaborativa que nos permitimos deixar afetar por outros caminhos. A diferença é o que dá textura na experiência. E a experiência que vamos vivenciar e desdobrar aqui é o encontro construído na mediação cultural. A mediação é um encontro, um espaço onde coletivos se formam. Um encontro que carrega territórios, corpos, intenções, posturas e trajetórias, portanto é um lugar em que podemos observar e absorver diversos processos sociais debatidos e vigentes, assim como um lugar de fomentação de vida, de cultivo e destruição de valores, de cultura, de devaneio, de troca e de encanto. No ato mediativo temos a possibilidade de conversar tanto sobre a materialidade das cores e suas emoções quanto sobre memórias e saudades eternas. A mediação cultural no Brasil, enquanto prática nos espaços museais e institucionais de arte, existe desde meados dos anos 60. Podemos colocar em conta uns sessenta anos de encontros em torno de objetos artísticos, sessenta anos de percepções e histórias contadas, compartilhadas e inventadas. Imaginamos como estes encontros devem ter realizado mudanças em muitos visitantes, educadores e educandos de diversas idades e origens. Imaginamos quantas lágrimas, sorrisos, ideias, dores e traumas foram compartilhados,


quantas redes de amizades, de carinho ou de afeto foram criadas e desenvolvidas através destes encontros. Imaginamos a diversidade de vidas e de modos de perceber a realidade que foram cruzadas e encruzilhadas a fim de gerar conversas, experiências e ensinamentos para todas ali presentes. Dos anos 60 até então, houveram muitas transformações no mundo global e tecnológico que influenciaram mudanças diretas no fazer artístico e nas suas várias funções sistêmicas, não sendo diferente na atuação da mediação. As pesquisas interdisciplinares têm sido um vasto território de desenvolvimento no campo artístico, isso porque as obras não se valem apenas de suportes tradicionais, como quadros, telas e pregos na parede. Agora são experimentadas novas formas de construções no processo artístico, as obras ocupam grandes espaços e dimensões, são criadas numa gama diversa de dispositivos, saem da parede e vão ao chão, se mexem, podem ser mexidas, tocadas, colaboradas e colaboradoras durante a mediação. Imagine a diversidade de caminhos que as mediadoras desse meio século encontraram para mergulhar e conhecer mundos novos dentro do espaço de arte, pois aí mora a potencialidade transformadora da mediação. Então, a mediação tem a capacidade de gerar encontros que nos fazem olhar para o mundo a nossa volta, entendê-lo e modificá-lo. É um trabalho gradual e constante, visto que pensarmos educação em meio ao país que se desenvolve, material e subjetivamente, nos escombros da colonização, é uma prática que requer muita responsabilidade e confiança. Acreditamos na potencialidade da mediadora como esse corpo que tem a capacidade de refletir as obras de arte com a realidade da instituição, da rua, da cidade, do estado, do país e, principalmente, das pessoas ali presentes. Por vezes, a mediação é o espaço onde acolhemos questionamentos de diversas texturas, diálogos inimagináveis a partir de uma escultura ou uma instalação ou, até mesmo, perguntas que nos levam para lugares distantes. E é refletindo sobre as tantas possibilidades de construção de afeto, ações e questionamentos, que propomos a pesquisa de mediação cultural como espaço de cura, individual ou coletiva, visto que se estamos em tempos onde doenças e traumas se alastram, imaginar e concretizar caminhos de cura se torna uma necessidade básica.


CAPÍTULO 2 A ARTE DA VISITA - REFLEXÕES DE ACESSIBILIDADE

Quando recebemos um grupo para mediação num espaço institucional, junto da roupa, carregamos alguns marcadores que a empresa impõe, que são posturas morais e éticas a serem seguidas à risca para que “tudo ocorra bem e como previsto”. Houve nos últimos anos um levante cultural vinculado ao empreendedorismo, visto que muitas das instituições de arte e cultura estão relacionadas a essa lógica capitalista: levantar números de pessoas, para conseguir maiores números em moeda. É um jogo que aparenta ganhar dos dois lados, mas sabemos que pesa apenas para um. Não é à toa que a onda de venda dos programas educativos das instituições tem sido um tema recorrentemente debatido, conforme nos diz Andressa Borba ao escrever sobre a virada educativa dos anos 2000:

[...] também se dissemina no Brasil graças ao estímulo dos novos meios de incentivo à cultura através da isenção fiscal dada a partir da Lei Rouanet (Lei no 8.313/1991). Não apenas os museus e as megaexposições, mas há um ​boom n​ a criação de setores educativos como forma de contrapartida tributária, visto que as empresas veem profunda vantagem em atrelar suas marcas a um serviço que se torna uma verdadeira estratégia de “massificação” da cultura através da educação. Esse é o pano de fundo do fenômeno social designado como “virada educativa” — ou educational turn — que de forma resumida pode ser entendido como uma ‘tendência no campo da Arte ocidental, na qual propostas pedagógicas são adotadas em/como práticas artísticas e curatoriais contemporâneas’ (AZEVEDO; NASCIMENTO. 2017. p. 2612). (BORBA; 2019. p. 224)

Mas, afinal, o que de fato o Programa Educativo significa para as instituições? Essa é uma questão de muitas respostas, não podendo responder enquanto instituições, responderemos enquanto mediadoras. Entendemos o trabalho da mediadora como uma função de muita responsabilidade, pois além de lidar com as cobranças institucionais e estruturais potencializa momentos de reflexão e cura através da educação. Vale ressaltar a pluralidade de públicos que recebemos para desbravar tantas histórias e memórias no ato da


mediação. Levando em consideração que Brasil é o país que mais mata pessoas negras e LGBTQIA+ no mundo e que incansavelmente renova as políticas de morte da população indígena, trazemos na atual pesquisa os processos de estancar feridas criadas pela colonização e, para isso, partiremos de um ato muito simples, porém não comum: o ato de olhar pra si. Nós, enquanto mediadoras, já realizamos muitas funções diferentes pelo estímulo e facilidade em se adaptar aos públicos. Seja a pessoa que vai ao espaço expositivo com o grupo e constrói coletivamente pontes de reflexões através das obras; a pessoa que orienta o espaço para cuidado das obras; o oficineiro ou até o auxiliar de produção do setor educativo da instituição. E por se adaptar, acaba por ser ainda uma função muito híbrida. Mas vale lembrar que é um trabalho que se configura nas especificidades de cada instituição, de cada território. Atualmente, conseguimos debater mais sobre a profissionalização da mediadora, exatamente por contar com lugares onde a mediação é uma profissão empregatícia, enquanto em muitos espaços é apenas vinculado ao processo de estágio acadêmico. A mediadora está entre, está no meio de coisas e ações. Então, estamos em meio a que e a quem? A mediação é um “estar entre” muitas possibilidades de leitura de uma obra de arte, da sociedade e do mundo. A mediação é esse “estar entre” os sujeitos que éramos antes dela e os sujeitos que nos tornamos após os atravessamentos da mesma. Entre o passado e o futuro. A mediação é este encontro, essa encruzilhada que, a partir das visões de vários caminhos e ruas percorridas, seja dentro dos espaços museais ou não, constrói um momento único. É o rosto de um centro cultural. É a linha de frente nas relações com quem entra e com sai da instituição. E quando estamos prestes a entrar numa mediação nos preparamos para tal, ou seja, arrumamos a casa. Esse preparo consiste, entre tantas outras ações, em ligar as luzes do espaço expositivo, estudar acerca das obras expostas, elaborar atividades possíveis de serem realizadas, selecionar e curar obras que sejam potentes de disparar conversas, dúvidas e experimentações e, principalmente, recepcionar os grupos e construir um primeiro contato. Arrumamos a nossa casa para que as visitantes se sintam confortáveis para fruir com ideias, devaneios, memórias e sonhos, para estarem presente de corpo, ancestralidade e corações abertos. Acolhemos seus diversos ritmos, expectativas e lugares sociais com o intuito de gerarmos um momento acessível para todas ali e compartilharmos histórias. ​A memória torna-se uma ferramenta do testemunho com o outro.


Ainda neste ano de 2020, tivemos a felicidade de conhecer a pesquisadora e arte-educadora Camila Alves que muito nos inspirou em refletir e falar sobre a arte da visita. Quando recebemos uma visita cruzamos histórias que potencializam a experiência, mas para isso é necessário que o ponto de partida seja a escuta. ​Conforme diz Camila Alves, em palestra realizada ao TEDxVoltaRedonda em março de 2017, intitulada ​O perigo de pensar que as coisas existem a priori, que abordou a importância de pensarmos a acessibilidade dos espaços de arte e cultura a partir das experiências plurais que circundam esses lugares. Vale ressaltar:

Uma proposta para mim, uma proposta efetiva de acessibilidade, ela se faz pela via do contato consigo mesmo para que a gente possa entrar em contato com o outro [...] que existe uma aposta no que é experimental, e o experimental é um conceito indicador para um trabalho de acessibilidade que abre espaço para um campo cheio de possibilidades para que nós, pessoas com e sem deficiência, possamos ouvir e contar mais histórias, novas histórias a respeito dessas experiências (ALVES, 2017. 13:03”)

Para iniciarmos o encontro, é importante termos um contato que aproxime as pessoas, portanto pedimos que se forme um círculo, seja no chão, de pé ou sentados. A circularidade e o contato com o coletivo que se forma ressalta que estamos juntas de muitas, esse é um ponto fundamental para a didática que desenvolvemos, visto que o espaço de confiança se constrói através de muitas camadas de diálogos. O que nos interessa? O que temos em comum? O que não temos em comum? É a diferença que dá textura à experiência dos públicos com a obra de arte e suas narrativas. Conforme diz Henrique Leonardo Dutra “​A história é entendida como narração e a narração por sua vez, a base para a história, na medida em que se não for rememorada por meio da palavra e do corpo na experiência do trabalho, desaparece no silêncio e no esquecimento” (DUTRA, 2015, p. 27). E ​o que desejamos com certeza não é esquecer. Desejamos gerar um espaço onde possamos apresentar diferentes formas de pert​encimento para além do normativo, traçando com isso um movimento de tensionar o incômodo, soltá-lo e curar-se dele. Como vimos anteriormente a mediação é um encontro, e Camila Alves parte do encontro para pensar as deficiências e eficiências que ele cria. Ela nos diz que “​ é o encontro


que gera a deficiência” (ALVES, 2017), pois é no ato de comparar uma pessoa X com uma pessoa Y, que se constrói uma espécie de termômetro do normativo. É urgente refletirmos como e o que desenvolver nesses encontros. O que fazemos com as múltiplas vozes que dizemos escutar? O que fazemos para que neste encontro não surjam deficiências e sim diferenças que se complementam? ​Em busca de tais respostas, nos encruzilhamos com a sensibilidade estética trazida por Camila, onde ela discorre sobre a estética não ser um regime apenas visual, mas sim sensorial. Vivemos numa sociedade completamente viciada em enxergar as coisas: é através do olhar que desejamos, que julgamos, são através das imagens que sabemos das rotinas de outras, é o famoso “ver para creer”. O papel da mediadora não é “suprir” o que as obras não propõe, mas sim desdobrar os trabalhos para refletirem o acesso a eles.


CAPÍTULO 3 SABOREAR O PERCURSO Entendemos a arte-educação para além de uma ferramenta sistêmica e necessária no espaços artísticos e culturais, mas também como u​ma ferramenta do mundo, que proporciona a realização criativa no ato de educar. Assumimos que é uma maneira de estar no mundo, não estando todos iguais no mundo. A mediação torna-se um espaço de cura coletiva e uma ferramenta de subversão das narrativas coloniais. Maria Emília Sardelich em ​Dedo na Ferida Colonial ​discorre acerca do papel poderoso que as pedagogias decoloniais exercem no campo das artes visuais ao afirmar que:

Logo, são elas [educadoras e pedagogas] que têm a potência disruptiva para fissurar o modo de ver colonial. No entendimento eurocêntrico uma das funções da arte é influenciar, afetar os sentidos, emoções, inteligência, e a função da filosofia estética é entender o sentido da arte. Para as estéticas decoloniais, tanto os processos do fazer, quanto seus produtos e entendimentos começam por aquilo que a arte e estética eurocêntricas ocultam, que é a ferida colonial.​ (​ SARDELICH, 2019. p. 108)

Os espaços de arte são compostos por símbolos e signos que nos dizem os limites de onde podemos ou não chegar. Quando recebemos um grupo levamos em conta os vários marcadores que distanciam ou aproximam aquele grupo de nós, “recebedores de visita”, e do espaço em questão. Pensar o espaço de arte é contar com a porta de entrada, salas, andares, escadas, elevadores e etc. Refletindo a pedagogia decolonial, faz parte do trabalho da mediadora trazer questões que esses ​espaços oportunizam para dentro da mediação, as histórias que trocamos no encontro contam com as histórias que o lugar carrega. O que circunda a metodologia pessoal de cada mediadora é o trabalho de seleção e escuta, seja do percurso que irá traçar com o grupo, sejam os exercícios ativadores desse trajeto ou as obras que iremos nos debruçar. Nosso diálogo começa pelo próprio caminho que leva até as salas ou andares expositivos. Por valorizarmos o processo criativo enquanto finalidade, experimentamos exercícios que reflitam sobre o próprio espaço/prédio para fomentar o acervo imaginário de cada uma. A exposição em cartaz é uma narrativa construída para que possamos brincar com


as memórias e com as noções de mundo, e as obras e objetos expostos do espaço tornam-se elementos e imagens que uma casa composta por memórias carrega. Como toda boa história contada, buscamos cruzar fronteiras através do diálogo que valoriza a experiência pessoal como prática de cura, para isso estimulamos a atenção em si. O que mais te chama a atenção? Essa obra te faz lembrar algo? Despertou alguma sensação? Tem algo que você não goste nela? ​Essas questões, entre tantas outras que surgem, tornam-se necessárias para que as visitantes comecem a exercitar a sua opinião própria acerca das obras de arte, para além do senso comum, por vezes moldado por opiniões e perspectivas hegemônicas. Queremos que os imaginários das visitantes fluam de maneira autônoma, isto é, sem uma intervenção direta ou impositiva da mediadora, pois todas nós possuímos diversos saberes que nos formam enquanto sujeitos. Compreendemos a mediação como um espaço de imaginar outras maneira de nos relacionar com as pessoas, com a natureza e com a nossa subjetividade. A mediação enquanto cura dos traumas coloniais não condiz com uma educação bancária, que conta com o exercício tecnicista de decorar informações, como, por exemplo, o nome das obras e as técnicas utilizadas, na certeza de que a mediadora possui apenas informações técnicas das exposições. Como bem nos lembra Paulo Freire ao cunhar o conceito de educação bancária, no seu ensaio intitulado ​Pedagogia do Oprimido:​ A narração [...] conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. [...] ​Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. (FREIRE, 1987, p.37).

Dentre diversas experiências transformadoras que a arte-educação propõe para o corpo da mediadora, trazemos neste capítulo uma curadoria de obras e perspectivas que muito nos fomentaram a refletir pedagogias decoloniais que subvertem a lógica da pedagogia bancária. Pensar a decolonialidade conta com uma reverberação de ideias diferentes da norma ocidental, branca e patriarcal, sendo assim, construímos um espaço de conforto e confiança para nos aprofundarmos de questões tão urgentes quanto as que vamos trazer aqui.


Pretendemos que essas perspectivas sejam disparadoras para o caminho da cura coletiva. Evocamos do acervo da memória uma mediação que realizamos juntas de uma turma de pré-adolescentes e adolescentes de 10 a 15 anos da rede municipal de Porto Alegre, para isso trazemos como primeiro exemplo a série ​Maafa​ (2019) da artista Vitória Macedo. Imagens 1, 2 e 3: ​Série ​Maafa​ (2019), Vitória Macedo3

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“Maafa, é um termo em suaíli que significa "desastre", utilizado para dar nome à dor histórica da diáspora africana. [...] Abordo, de forma subjetiva, as relações entre vidas, mortes e as viagens forçadas através do Atlântico. Em Maafa, o oceano é representado como uma passagem a um território desconhecido, à uma vida de sofrimento, desconectada de suas raízes. Muitos cativos, ao depararem-se com um futuro de trabalho forçado e punições, lançavam-se ao mar na tentativa vã de retornar à sua terra natal ou fazer contato com os que lá ficaram.” Diponível em: ​https://www.behance.net/gallery/85873471/Maafa​.


Fonte: ​https://www.behance.net/gallery/85873471/Maafa

No atual artigo, propomos a pesquisa pedagógica relacionada a pesquisa curatorial, pois acreditamos que a intersecção desses dois campos se torna uma ferramenta potente de subjetivação e reflexão institucional do fazer e pensar artístico. Para contextualizarmos as obras aqui trazidas, vale lembrar que a mesma estava compondo o corpo curatorial da exposição do 12°FestFoto, intitulado Da Diáspora: identidade, hibridismo e diferença. Era quase impossível ignorar um mar vermelho que chamava a atenção de boa parte das pessoas que adentravam na sala expositiva. Os grupos logo nos indagavam: Mas por que vermelho? Esses trabalhos traziam um convite ao questionamento, são elementos comuns aos públicos: cores gritantes e representação do mar. Permeava a introdução da nossa mediação conversar com as turmas quais as relações que essas pessoas tinham com a simbologia do mar e para isso, indagamos: O que vocês veem aqui? Por ser vermelho, deixa de ser mar? Alguém já tomou banho de mar? Quando vão à praia, o que vocês fazem nele? Alguém sabe uma história de ficção ou verídica do mar? Qual a sensação, o gosto desse banho? O que a cor vermelha lembra pra vocês? O que significa o mar tomado pela cor vermelha? Sobre esse homem, o que ele representa para vocês? A nossa ação mediativa partia de um diálogo construído através de perguntas, pois dessa forma conseguíamos criar um repertório simbólico de aproximações e distanciamentos,


visto que é a partir do questionamento que voltamos atenção ao nosso repertório imaginário e nossas memórias. Pesquisávamos vínculos entre o público e a obra que poderiam ser investigados durante este momento, mares e rios para mergulharmos juntos. Levando em conta que para cada público as maneiras de diálogo se alteravam em palavras, perguntas e reflexões sobre a obra. Esse trabalho nos possibilitou construir uma extensão pedagógica escolar, abordando temas que estavam no currículo da escola para dentro do espaço expositivo. O nosso ponto cerne aqui foi trabalhar com as visitantes a história da colonização brasileira, por vezes manipulada pela historiografia tradicional de origem branca, ocidental e colonial, que muitas vezes recusa pontos de vistas descentralizados do cânone, não sendo diferente do próprio sistema da arte. Essa prática torna-se necessária diante dos traumas coloniais que estruturam o Brasil, de acordo com a Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003, que no diz:

Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. (Brasil, 2003. pg. 01).

Diante das imagens de Vitória Macedo e a partir dos questionamentos lançados por nós, mediadoras, ouvimos: Vemos o mar; Vejo um olho; É um mar que eu não conheço; Ah, na praia eu gosto de sentar na areia e ver ele; Eu gosto de brincar perto o mar; Eu gosto de nadar muito; Os portugueses vieram pelo mar, não?! Eu fico pensando como é do outro lado; Quando eu era criança, meu avô gostava de entrar no mar comigo para cantar músicas que ele inventava ali mesmo sobre o mar; Significa sangue na água; Lembra amor, sangue, o Inter [o


time de futebol], calor, etc; Ele representa escravizados; Ele representa alguém que saiu do mar e ardeu seu olho; É um banho salgado. A partir dessas respostas, tencionamos reflexões trazidas para a conversa, que nos ajudaram como ferramenta de investigação da mediação enquanto espaço de cura coletiva. Muitas visitantes presentes estavam em aprendizagem de vários elementos históricos da sociedade brasileira, isso conversou muito com o nosso encontro. Percebemos juntas, como o mar é um elemento importantíssimo dentro da história do Brasil e, consequentemente, da história de cada uma. Conversamos sobre sermos constituídos por referências que atravessaram o oceano e que formam a sociedade brasileira, composta por três matrizes que se sobressaem: indígena, africana e portuguesa. Concluímos com o grupo que foi através do mar que duas dessas matrizes chegaram no Brasil: os portugueses e africanos. Esses dois povos vieram da mesma forma? O que vocês sabem sobre isso? P ​ or que será que esse homem é negro? Por que esse homem está junto de um mar em cor vermelha? Então adentramos nas diferenças marcantes que construíram a história brasileira. Não era à toa a chegada ao assunto da colonização que, por vezes, é abordada na escola como “navegações”. É importante frisar aqui a grande diferença etimológica entre os termos navegações e colonização, foram muitos os debates que expandiram as noções até mesmo de nomenclatura diante dessa temática e as perspectivas que tais nomenclaturas reforçam ao serem utilizadas. Percebemos em coletivo que o termo ​navegações ​é uma nomenclatura que romantiza o processo escravocrata e colonial das sociedades européias, enquanto o termo ​colonização ​dá nome a um processo histórico e social de extrema importância de ser entendido, explicitado e responsabilizado. A cura, como estamos abordando neste artigo, acontece neste momento, na virada de chave, no momento em que percebemos e identificamos as bases escravocratas e coloniais que fundamentalizam a nossa sociedade. A cura diante de uma ferida sempre vem por meio de um processo: identificação da causa que nos aflige, tratamento e cura da mesma. Se curar dos traumas que a colonialidade nos traz há séculos requer identificá-los de onde vem e por onde vem para em seguida tratá-los. Esta obra agiu neste ponto! Além de darmos nomes para vários processos sociais, também construímos imagens e poesia para memórias, traumas, lembranças e questões necessariamente coletivas. Pois o trauma da escravização moderna é de responsabilidade de todas e não apenas das pessoas pretas ali presentes. É através do cuidado e da atenção ao


comunicar, como e a quem comunicar que desempenhamos esse papel transformador que o ensino propõe, levando em consideração a importância estrutural que essa temática tem para nossa noção de mundo. De acordo com isso, ver o brilho no olho de todas essas visitantes nos evidenciou o papel disruptivo que a arte e a educação possuem na construção de uma sociedade menos desigual e mais livre das amarras e das formas de agir e pensar. Assim como o acesso às nossas memórias, o compartilhamento de experiências e perspectivas propõem um entendimento de questões íntimas e sociais como um caminho para cura das feridas coloniais. O sal da água do mar intensifica a dor da ferida, fazendo-a arder com o intuito de curá-la. Não havia fisicamente um mar, mas mergulhamos na história do Brasil, no entendimento de muitos fatores que formam a base do nosso país. Defendemos que entender os fatores no âmbito macro da sociedade faz parte do processo de se entender enquanto sujeito do mundo.


CAPÍTULO 4 QUANDO SUBJETIVIDADES SE ENCRUZILHAM Cada transformação cria condições para novas transformações, em um ​processo histórico, e não natural. O fenômeno psicológico deve ser entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na relação com o mundo material e social [..] Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se confundirem. A linguagem é mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos pessoais que constituem a subjetividade. ​(BOCK, 2004. pg.6)

Através de uma metodologia que se propõe ensaística, construímos uma conversa entre duas subjetividades diferentes, isto é, dois trabalhos artísticos, duas artistas, dois corpos, duas trajetórias. Assim como aponta Bock, todo processo de transformação condiciona novas transformações, e elas contam com a relação da objetividade e subjetividade, ponto cerne no trabalho da mediação. Traremos duas obras as quais a subjetividade (a poética) não está dissociada da objetividade (a matéria). Quando consideramos duas subjetividades relacionadas presenciamos a encruzilhada delas, que é o encontro de estradas diferentes que possibilita influenciar as construções de sujeitos ali presentes, gerar trocas de saberes e perspectivas contrapostas às perspectivas coloniais. Para isso trazemos aqui a escultura ​Spider ​de Louise Bourgeois e a instalação ​The Sea and it's Raining. I Missed You So Much ​(“O mar, está chovendo. Eu sinto tanto a sua falta”, livre tradução) de Wura-Natasha Ogunji, para que possamos friccionar uma relação entre elas e tecermos um encontro único. Para iniciar essa fricção, começaremos apresentando as obras citadas: Vislumbramos então a escultura ​Spider,​ de Louise Bourgeois. Essa obra faz parte de uma série de seis (6) esculturas de aranhas gigantes elaboradas pela artista a partir de 1989. Nascida na França em 1911, Louise é uma mulher branca que teve uma longa jornada de pesquisa como artista plástica. Seus trabalhos trazem reflexões íntimas acerca de suas afetividades, feminilidades e sua relação com a maternidade. Composta inteiramente por bronze e metal, com 3,5 metros de altura e pesando mais de 700 quilos, a aranha gigante é


equilibrada entre sete patas pontiagudas e uma encurvada. Esse trabalho possui, ao mesmo tempo, uma imagem assustadora e encantadora, como forma de transbordar suas profundezas que são muito caras à artista: o cuidado e a proteção feminina. A obra ​The Sea and it's Raining. I Missed You So Much ​(“O mar, está chovendo. Eu sinto tanto a sua falta”, livre tradução) de Wura-Natasha Ogunji é uma instalação composta por fios de diversas cores suspensos por um cabo de aço que cruza o espaço expositivo. Faz parte da obra um ventilador, que ao ser acionado dá movimento para tais fios, causando diversas interpretações como sendo o movimento da chuva, de uma cachoeira, os movimentos de diversos cabelos ou até mesmo das ondas do mar. Wura é uma artista negra e norte-americana que residente em Lagos (Nigéria), seus trabalhos permeiam os campos da performance, instalação e desenho, onde ela pesquisa seus temas íntimos, como desenvolve nesta obra a partir de um sentimento pessoal: a saudade. Saudade do que? Saudade de quem? O que a água do mar ou da chuva tem a haver com essa saudade? Quais lembranças você tem com o mar e a chuva? De encontro com a metodologia proposta, refletimos a partir de um estudo que aprofunda a ideia do corpo-encruzilhada de Jarbas Siqueira intitulado ​O Corpo-Encruzilhada como Experiência Performativa no Ritual Congadeiro​,

onde ele investiga o corpo

atravessado pelos saberes que compõem o tempo-espaço em questão, afim de culminar numa construção coletiva de novas realidades. Essa é uma qualidade que observamos na experiência da mediação a partir das pessoas que a constituem (mediadoras e mediadas). Em relação a isso Jarbas diz:

Conceitualmente, o corpo-encruzilhada é um corpo-espaço atravessado, entrecruzado pelos elementos e saberes-fazeres que compõem o universo em que ele se encontra. Carrega uma noção de tempo-espaço espiralado, curvilíneo, que aponta uma gnosis4 em um movimento de eterno retorno, não ao ponto inicial, mas às reminiscências de um passado sagrado, para o fortalecimento do presente e o deslumbramento do futuro. (JARBAS, 2017. p. 297)

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Gnose ou ​Gnosis (do Γνωσις ​gnosis: 'conhecimento superior, 'conhecimento interno') é um estado mental específico, que ​ permite o contato com outros planos não físicos, como o ​plano etérico e o ​plano astral (ou espiritual), que pode ser alcançado por métodos de transe, assim como ​meditação ou privação de sentidos, além de métodos de ​hiper-excitação​, que pode ser utilizado para realizar reflexões filosóficas, ou rituais mágicos e religiosos. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gnose


É um trabalho minucioso e de responsabilidade ímpar refletir sobre o encontro de subjetividades de objetos artísticos, visto que cada um carrega suas camadas processuais, simbólicas e sociais. Construímos aqui esta encruzilhada de ideias afim de criarmos uma experiência que se propõe ser única em juntar o mar chuvoso de Wura e a aranha costureira de Louise. Convidamos a leitora a tecer um caminho de memórias subjetivas. Aqui a ideia de subjetividade não se opõe à objetividade, mas sim uma qualidade dela, ou seja, é a partir do nosso olhar sobre a matéria que identificamos significâncias e metáforas. Assim como na experiência mediativa, comecemos pelo objeto e sua materialidade, pelo qual buscamos refletir neles uma maneira de sermos ferramenta de mudança do mundo e da construção relacional. Os objetos causam sensações e ativam lembranças, fala sobre isso a história que vamos colaborar. O encontro de duas ou mais subjetividades diferentes gera afetação pelo lugar social e físico que a outra pessoa se encontra, com o intuito de construirmos um espaço de confiança e diálogo. Essas características são essenciais quando pensamos na mediação enquanto espaço de cura coletiva dos traumas coloniais, que também influenciam e moldam as nossas diversas subjetividades. Precisamos imaginar, esculpir, instalar e dar nome às nossas subjetividades e aos nossos processos íntimos. A mediação pode ser este espaço, onde dialogamos e colaboramos sobre tais subjetividades. Imaginar é um trabalho chave para a libertação das amarras e escombros da colonização. Precisamos imaginar outras saídas. Sua imaginação a leva para quais lugares? Você se permite brincar com essa imaginação? Como você se imagina ser? Em quais elementos você se enxerga no mundo?


Imagem 4: ​The Sea and it's Raining. I Missed You So Much ​(2018)​, W ​ ura-Natasha Ogunji

Fonte:​ ​http://imgs.fbsp.org.br/files/e926cade4a7f55bb75ffd61c95a42719.jpg Imagem 5: ​Spider (​ 1996), Louise ​Bourgeois

Fonte: ​https://www.otempo.com.br/diversao/os-novos-passos-da-aranha-1.2080462


A partir desses trabalhos, questionamos a nós mesmas: ​Afinal, o que há de mim nessas obras? Perspectiva 1: ​Vejo que a relação de Louise com sua mãe, representada através dessa escultura, simboliza muita força e sensibilidade de uma forma muito sutil. A escultura é monstruosa e feita em bronze, além de ser um animal que assusta muitas pessoas. Quem aqui nunca teve medo de uma aranha? As aranhas tem muitos tamanhos, pesos e venenos diferentes. A mãe dela era delicada e forte. Quantas das mães simbolizam esses dois elementos opostos? Dou um salto na memória da minha infância, lembro da proteção brutal e do cuidado genuíno que minha mãe sempre me doou por me criar sozinha. Aquela aranha tem algo de diferente, podemos visualizar agulhas nas suas patas e novelo de lã no seu corpo, a famosa costureira dos animais, que cria sua teia para segurar sua presa ou fazer o ninho de seus filhotes. Há algo na subjetividade dessa obra que oscila em figuração e abstração. Chegamos ao espaço artístico e vemos uma aranha, como não reconhecê-la, não é mesmo?! Adentramos ao figurativo com reflexões expandidas. Dona Cristina, minha mãe, aprendeu e ensinou a costurar a oralidade das histórias, minha mãe é uma professora do mundo, uma contadora de histórias, tal qual a mãe de Louise, que enquanto costureira trazia a linha e o carretel como materialização das suas histórias. Já na obra de Wura as linhas traziam uma nova conotação. Era necessário apreciar o movimento para ouvir o que aquele trabalho dizia. E por mais que não conseguisse expressar palavras figurativas, havia algum murmurinho que nos levava para muitos lugares diferentes. Era um mar? Era uma cachoeira? Era chuva? Esse murmurinho de sons são plano de fundo das lembranças. Eu gosto de ficar horas parada na frente dessa obra, analisando tudo de lindo que existe nas minhas memórias com esses lugares, é muito tranquilizante. Por requerer atenção e cuidado, o corpo parava e contemplava. Uma vez uma amiga minha me disse assim: “Quando eu era criança eu gostava de ver o mar, porque ele era a única certeza que temos de saber como voltar.” Essa fala é evocada na minha mente em muitas situações. Sabemos voltar? Costumamos voltar? Voltar de que para que? Voltar a quem? A sensação de retornar a algo implica na mudança que você carrega e se enxergar diferente. Você sabe lidar com o retorno de uma mudança? A saudade é complicada, a gente nunca sabe o que esperar. Não era à toa que essa obra me fazia ser contemplativa a alguns passados que estão longe, mas ainda presencio quando paro e observo. Será que a atenção é o elemento fundamental para refletir sobre a saudade?


Perspectiva 2: ​A Spider tem muita coisa que me afeta, mas o que me mais me atravessa é a relação que a Louise tinha com a sua mãe, no sentido de ela enxergar aquela mulher como uma deusa que a protege dos perigos da rua ao mesmo tempo que a enxerga como um ser que a qualquer momento pode atacar. A minha relação com a minha mãe é meio assim. Ela sempre foi uma mulher que se mostrava forte por não ter outra opção. Sempre gigante e armada, me protegendo de todas as coisas que ela sabia que eu poderia e iria passar. Já na criação de Wura o que me arrebata é essa nostalgia envolvendo a água, o mar… Pensar o mar, a partir dessa obra, é pensar o cuidado… o cuidado com suas memórias, com seus traumas, com suas saudades…Também sinto saudade de algo que não conheci, de muitas coisas e informções sobre mim que me foram roubadas. Sinto a obra de Wura como um tentativa de respostas, uma tentativa de preencher lacunas, de uma forma suave, leve, colorida… e cuidadosa. Queria ter conhecido a minha vó, por exemplo. Sempre escutei falar muita dela pela voz de minha mãe. Sei que ela foi uma mulher extremamente carinhosa apesar das violências sistêmicas que a atravessavam, como a sua relação com meu vô. Sinto saudade dela. Assim como também sinto saudade ou a necessidade de me sentir pertencente a um lugar… Aqui não me sinto muito em casa apesar de estar em casa. Talvez o mar seja este lugar, lugar que está em movimento, se expandindo, se retraindo. Provavelmente este espaço de trânsito e de cura seja o meu território, ou o mais próximo dele que eu consiga chegar, pensando que o mar me conecta com todas as outras pessoas pretas em diáspora do mundo… e/ou me conecta com todos os espaços e territórios que eu quiser e puder ficar… ou então me conecta comigo mesmo, não sei. Tenho várias lembranças de eu conversando comigo mesmo no mar, como sendo esse espaço de liberdade, de sinceridade a ponto de várias gotas de água salgada internas encontrarem as águas salgadas externas. Como se o sal tirasse todas as impurezas e finalmente eu conseguisse me escutar no meio daquele silêncio barulhento que é som do mar. Penso muito na minha mãe quando estou lá, no mar. Ela é a lembrança que eu tenho de um outro espaço íntimo, de confiança e de sinceridade. Também sempre lembro dela pois ela não parava de falar pra mim que água do mar não podia passar do joelho quando eu era criança pequena. Alerta que vinha em relação à água na cintura quando eu já era mais grandinho, mas ainda criança kkkkkk. Me lembro dos mesmos avisos virem quando a água já estava na cintura, no umbigo, no pescoço. Ela sempre gritava comigo quando eu não obedecia, com uma certa razão, eu


confesso. Sempre me passei um pouco, já me afoguei algumas vezes… Hoje em dia percebo que ela se armava, por pura proteção, a fim de que não me afogasse de uma maneira irreversível.

Há de nós e de você nessas obras, diferentes correntezas de ideias e pontos de costura. Através do compartilhamento das memórias, estivemos juntas de nossas mães e suas forças, delicadezas, cuidados e proteções como traz a obra de Louise. Sem percebermos, mergulhamos na subjetividade sensível e atenciosa do mar de Wura. É como se a história contada tivesse atravessado e juntado as duas obras, borrando seus limites. Não se sabe onde termina a investigação das memórias ativadas pelas obras das artistas Louise e Wura. Esse exercício contou com duas perspectivas diferentes, sabendo que são diversas as possibilidades de afetações e ativações diante das obras mostradas. Gostamos da perspectiva de que aquelas linhas coloridas que reconstroem o mar também tecem uma rede de pesca. As enormes patas da Spider são as mãos que criam essa rede de pesca que, ao ser jogada ao mar, gera o encontro, a mediação. Feridas podem ser expostas nesse espaço de encontro, principalmente quando estamos falando com sujeitos que tiveram as suas subjetividades silenciadas ao longo da história moderna e contemporânea. Temos que estar abertas e atentas afim de que possamos juntas dialogar e entender os atravessamentos para estancarmos as feridas e curarmos. E apesar de estarmos nos encaminhando para o final dessa encruzilhada, acreditamos nos ciclos de recomeço, momento em que deslocamos nosso olhar para nos enxergarmos. Já diriam Jota Mombaça e Muza Mattiuzzi (2019) “Gostaríamos de iniciar pensando a destruição do mundo como conhecemos como uma forma de cuidado. Gostaríamos de iniciar pela descolonização da matéria colonizada. Gostaríamos de iniciar com uma espada a cortar o mundo-ferida.”


CONCLUSÃO

Pensar e concretizar o cuidado na mediação cultural é construir um espaço que requer confiança, através da troca e do encruzilhar de trajetórias. Assim estaremos traçando um caminho de cura dos traumas coloniais que insistem em atravessar corpos dissidentes da norma branca, masculina e cisgênera. Conversarmos sobre as nossas subjetividades dissidentes dos cânones é um ato curativo pois estamos concretizando através das palavras, gestos e ações tais narrativas como existentes, pois é a partir das trocas que conseguimos tecer um espaço-tempo comum a nós.

A compreensão e apreciação de nossas diferentes posições foram estruturas necessárias para construção de solidariedade [...] entre nós, bem como para criação de um espaço de confiança emocional onde possam ser alimentadas a intimidade e a mútua consideração. (HOOKS, 2013. p.176)

Esse espaço de consideração que bell hooks pontua acima deve ser construído durante todo o percurso da mediação. A mediadora, assim como todas pessoas que foram levadas pela maré dessa mediação, foi atravessada por diversas imagens, memórias, subjetividades e cuidados. É indispensável um tempo de absorção de todas essas informações, pois se nos pretendemos corpos de transgressão e afeto aos públicos, devemos estar preparadas aos enfrentamentos (explícitos e subjetivos) que possivelmente acontecem no ato da mediação. São inúmeras possibilidades de opiniões diante dos discursos e das narrativas que abordamos. É fundamental compreendermos nossos corpos diante das etapas que a mediação compete: antes, durante e após. Levantamos muitos pontos pertinentes de preparação para recebermos os grupos a serem mediados. O que queremos levantar aqui é o depois. Afinal, por que pensamos o depois? Começamos então a refletir sobre o processo da pós-mediação. Realizamos uma retrospectiva na memória do que costumamos fazer após a partida dos grupos mediados para tecer nossa subjetividade pessoal enquanto mediadora. Esse processo da pós-mediação é o momento da mediadora com seu íntimo após a prática de sua função. Não significa que sempre teremos um grande momento de digestão de ideias após a mediação, mas sim que cada uma volta a atenção a si mesma de forma ímpar. É importante


lembrar que a mediadora não deixa de ser público e, para isso, também requer pensar o que foi trabalhado no encontro. Como memorizar os encontros? O que este encontro lhe transformou? O que você descobriu sobre si mesma? Algo ou alguém te despertou memórias adormecidas?

Não há um jeito certo de fazer, não se trata de uma receita de bolo onde os ingredientes são postos visando um resultado final satisfatório. Trata-se antes dos movimentos que escolhemos, dos gestos que vão surgindo, das misturas que vão sendo feitas, dos contágios, das fissuras. (SILVA, 2020. pg. 54)

E por não ter uma receita pronta, esse processo surge das necessidades do corpo da mediadora, que agora é composto também pelas memórias trazidas por outros corpos, isso por contarmos com a subjetividade também de quem media. Pois assim como também a estrutura social e colonial molda os nossos corpos e nossas subjetividades, as memórias e as intimidades, nem sempre trazidas como existentes, também são potentes para nos influenciar enquanto sujeitos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTMAYER, Guilherme. ​Notas para uma Curadoria Transviada. ​In: Revista Poiésis, vol.21, Universidade Federal Fluminense.​ ​Niterói, 2020. ALVES, Camila. ​O perigo de pensar que as coisas existem a priori, TEDxVoltaRedonda. Volta Redonda, 2017. Disponível em <https://youtu.be/y_TBLoeN8Zo>. Acessado em 14 ago. 2020. BOCK, Ana Mercês Bahia. ​A perspectiva histórica da subjetividade: uma exigência para a Psicologia atual​. In: Psicologia Para América Latina, n°1. São Paulo, 2004. BORBA, Andressa ​C. Gerlach.​. Sobre o ofício do curador pedagógico: Gênese do Termo, Virada Educativa e Desdobramentos. ​In: Revista Ícone, revista brasileira de História da Arte. Porto Alegre, 2019. BRASIL. ​Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. CANDAU, Vera Maria Ferrão. DE OLIVEIRA, Luiz Fernandes. ​Pedagogia decolonial e educação antiracista e intercultural no Brasil​. Educação em Revista, v.26. Belo Horizonte, 2010. DUTRA, Henrique Leonardo. ​Educação e cultura em tradição oral: um encontro com a Pedagogia Griô. Campinas. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação UNICAMP, 2015. ELEISON, Keyna. ​O que pode ser uma curadora descolonial? ​In: Revista Poiésis Vol. 21, Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2020. FREIRE, Paulo.​ A Pedagogia do Oprimido. ​Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1987.


KILOMBA, Grada. ​Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano​. Editora Cobogó. Rio de Janeiro, 2019

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. S​ão Paulo: Editora Martins Fontes, 2013. MARTINS, Leda Maria. ​A Oralitura da Memória​. In: Afrografias da memória. Editora Perspectiva: São Paulo, 1995.

MOMBAÇA, Jota. MATTIUZZI, Musa Michelle. Carta à Leitora Preta Do Fim dos Tempos. In: A Dívida Impagável. DA SILVA, Denise Ferreira. Gráfica Forma Certa: São Paulo, 2019. RAMOS, Jarbas Siqueira. ​O Corpo-Encruzilhada como Experiência Performativa no Ritual Congadeiro. In: Revista Brasileira de Estudos da Presença, vol. 7, n° 2. Porto Alegre, 2017. SARDELICH, Maria Emília. ​O Dedo na Ferida Colonial: Um Exercício de Curadoria Compartilhada.​ In: Arte & Ensaios, Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. Rio de Janeiro, 2019. SILVA, Mariah Rafaela. ALMEIDA, Emanuel de. PERASOLI, Lorena de Paula. ​Cura-dor: sobre contágios, fissuras e práticas anticoloniais. In: Revista Poiésis, vol. 21, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2020.


Artigo financiado pelo Edital Emergencial de Auxílio a Cultura da PMPA/2020.

Agradecemos à Luciane Farias e à Cristina Feldens, nossas mães, por tanto.

2020, em tempos de cura e isolamento social.


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