IMAGENS MARIONETÁVEIS_artigo_Yara Baungarten

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FOTOGRAFIA, VÍDEO E TEATRO DE BONECOS EM IMAGENS MARIONETÁVEIS Por Yara Baungarten1 Falamos neste artigo do projeto Imagens Marionetáveis, uma investigação em artes plásticas que trata da possibilidade de dar caráter manipulativo à imagem estática e em movimento, seguindo conceitos do Teatro de Bonecos, da fotografia, da animação audiovisual e da edição em vídeo e que, para o formato expositivo, se desdobra em uma série de fotografias, videoartes e instalações, além de ter sido tema de pesquisas acadêmicas. Partindo de uma experiência em fotografia de espetáculo de bonecos e buscando compreender a plasticidade dos elementos do Teatro de Formas Animadas, a artista fica imbuída de um estímulo e da possibilidade em tornar-se marionetista, bonequeira, manipuladora dos objetos que domina e que surgem através das artes visuais. A perspectiva é criar narrativas próprias com as linguagens híbridas, em atos fotográficos e articulações ficcionais.

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YARA BAUNGARTEN (Caxias do Sul/RS, 1981). Vive e trabalha em Porto Alegre. É artista visual, fotógrafa, produtora cultural e jornalista, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É especialista em Poéticas Visuais, com ênfase em Gravura, Fotografia e Imagem Digital (Universidade Feevale). Mestre em Comunicação Social, pela PUC-RS. Desde 2008, coordena a Imagina Conteúdo Criativo, que presta consultoria e desenvolve projetos em artes visuais, vídeo, fotografia, música, quadrinhos, produção cultural, patrimônio histórico e comunicação. Como artista e fotógrafa, Yara se dedica à pesquisa da hibridização de linguagens e as relações entre arte e comunicação. Entre suas exposições individuais destacam-se Quadrado do Espírito - série de monotipias em papel, serigrafias em tecido, animação em vídeo e instalação - que foi exposta na Capital, em Novo Hamburgo e Caxias do Sul. A pesquisa Imagens Marionetáveis, que resulta em trabalhos artísticos de fotografia, vídeo e instalação, mescla teatro de bonecos, fotografia, animação e projeção de vídeo e teve início em 2003, percorrendo galerias de arte, salões, e projetos culturais. Ao lado do escritor e músico Rodrigo dMart, apresentou, em 2010, a mostra Duplas Pontas / Pontas Duplas, projeto com performance de corte de cabelo, música, vídeo, música e fotografia. Em novembro de 2009, foi considerada Artista do Ano na categoria “Fotografia e Cinema” no 1° Prêmio Artistas Gaúchos, promovido pelo site Artistas Gaúchos. Como jornalista do programa Estação Cultura da TVE-RS, recebeu o Prêmio Açorianos de Artes Plásticas, de 2008, na categoria Patrocínio e Apoio. Uma das obras do projeto “Imagens Marionetáveis” faz parte do acervo do MACRS.


A proposta aqui relatada teve sua origem na Especialização em Poéticas Visuais, na Universidade Feevale, com orientação da Prof. Dra. Elaine Tedesco e que, como princípio de busca por linguagens, esteve voltada à imagem digital e suas implicações e tramas tecnológicas, das manufaturas relacionadas às confecções de marionetes até à captação digital de fotografia e sua posterior edição em vídeo via computador, que utilizou a rotina da animação stopmotion, mesclada com outras técnicas de roteiro e montagem. Além de trabalhos artísticos, consequentemente, a temática foi abordada em pesquisa de Mestrado em Comunicação Social, na PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Juremir Machado da Silva. Propomos, agora, uma breve análise em alguns dos trabalhos realizados para as Imagens Marionetáveis, compartilhando referências e influências sobre as áreas do teatro e das artes, utilizando as fotografias e uma seleção de frames dos vídeos como exemplo. BONECOS E FOTOGRAFIA Os bonecos e as máscaras figuram entre as mais antigas manifestações da performance e do teatro. Eles estão classificados entre os performing objects, as imagens concretas do homem, do animal ou de espíritos criados, apresentados ou manipulados em narrativas ou espetáculos dramáticos, segundo o conceito do antropólogo Frank Proschan (1983, p. 4). Em aplicações artísticas contemporâneas, estes bonecos, formas, objetos são apresentados no Teatro de Bonecos ou Teatro de Animação (ou de Formas Animadas); e, em diferentes escalas, no cinema, na televisão, na publicidade, na animação gráfica e na arte visual, assim reafirmando suas habilidades performáticas. John Bell, bonequeiro e pesquisador norte-americano, afirma que “nós [o público e os manipuladores] escolhemos acreditar que esta combinação de madeira, argila, roupa, metal, ou plástico é capaz de contar-nos algo sobre nós mesmos e sobre os outros” (BELL, 2005, p. 11). Para a pesquisadora Ana Maria Amaral (1996), o boneco é um sujeito da ação; inanimado, é um objeto; manipulado, torna-se personagem. Sua essência é a ilusão,


(AMARAL, 1996, p. 75). A ilusão da realidade que nele se busca é “muito mais em relação aos mecanismos de manipulação do que em relação às situações que se colocam” (Ibidem, p. 29). Nas Imagens Marionetáveis, o estatuto de personagem é concedido aos bonecos, objetos e reproduções fotográficas manipuláveis. A representação do títere 2, organizada e comandada pelo envolvimento de seu manipulador, é a encenação de uma narrativa na qual interessa a identidade estética a ser constituída. Uma meta para a realização destas Imagens é a criação de identidade para um objeto que é “personagem o tempo todo” (Ibidem, p. 73), construída a partir da foto, da madeira e do movimento, investida de singularidades e reações. Uma personificação do bonecoator e uma personalização dada pelo movimento, pela experiência fotográfica transposta para a animação digital. Neste processo, infunde-se a dualidade entre o real e o virtual, porque nas Imagens Marionetáveis, o boneco relaciona-se com sua própria figura. Ele é um objeto performático palpável, que foi manipulado e esteve sob o controle de um bonequeiro real; e é ainda virtual, trazido para o ambiente digital. Não registra mais “um traço deixado por um objeto preexistente pertencendo ao mundo real” (COUCHOT, 2003, p. 164). O boneco é agora um processo, é matemática e informação. Com as características da virtualidade, a imagem do objeto tangível tornou-se neste momento uma figura passível (outra vez) de manipulação. O boneco é, dessa forma, um elemento marionetável como um todo – desde a estrutura física que pode ser tocada até as representações imagéticas no contexto da virtualidade.

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Para esclarecer o uso de nomenclaturas do Teatro de Bonecos, cito Ana Maria Amaral, que contextualiza o assunto, ao comentar que “em inglês existe o termo puppet que não se vincula ao termo doll. Em português, não temos uma palavra exclusiva para o teatro de bonecos. Títere seria a mais apropriada, mas não é usada por se aproximar muito do espanhol. E em congresso realizado pela Associação Brasileira de Teatro de Bonecos, em Ouro Preto (1979), foi decidido que a palavra boneco seria a mais apropriada” (Idem, ibidem, p. 72, nota 2). Por questões de tradução, eu uso neste trabalho as palavras títere e marionete como sinônimos de boneco, pois apesar de terem significados técnicos distintos, estas palavras são a terminologia aplicada em espanhol e francês.


Figura 01: Yara Baungarten Imagens Marionetáveis - Ato Dois, 2007 Fotografia digital, editada em vídeo Dimensões variáveis

Durante a realização das imagens, a observação da série de fotografias Mr. and Mrs. Woodman, feita por Man Ray, em 1947, foi determinante para a incorporação de calungas3 como meio representativo dos bonecos fotografados para as Imagens Marionetáveis. A percepção do uso deste objeto como um ator em cena foi uma importante contribuição, uma vez que não havia pretensão de fabricar marionetes, e sim intento de manipular sua imagem. Estabelecendo uma escolha entre fotografias pré-captadas, estas imagens foram recortadas e transformadas em máscaras e vestimentas, sendo recolocadas nos manequins de observação. Ao colocar as calungas em contato com as fotos transformadas em adereços estruturam-se outros personagens, assim criando uma narratividade de ficção.

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Calunga, segundo o dicionário Aurélio, vem da língua banta. S. f. Bras. Rel. Divindade secundária do culto banto. Bras. P. ext. O fetiche dessa divindade. Bras. Coisa qualquer de tamanho reduzido. S. m. Bras. Boneco (1) pequeno. Bras. Figuras humanas, nos desenhos infantis. Bras. Pessoa de pouca estatura. Bras. Desenho sumário, representação da figura humana, que os arquitetos fazem para dar a ideia de escala ou dimensão da obra que projetam. Bras. PE Folcl. Nos maracatus, cada uma das duas bonecas (Dom Henrique e Dona Clara) que vão calçadas nas mãos dos dançantes, e que recebem as espórtulas dos admiradores.


Figura 02: Yara Baungarten Imagens Marionetáveis - Ato Dois, 2007 Fotografia digital Dimensões variáveis

A partir desse momento, no qual o adereço foi vestido no boneco e ele foi investido de personalidade, advém a percepção de que a máscara pode exercer domínio e causar alterações em quem a usa. Quem está mascarado, está protegido e consegue representar quaisquer personagens, correndo pouco risco de ser reconhecido. O reconhecimento desta identidade passa a ser o desafio de quem é espectador. Disfarçar intenções e dissimular as ações é um dos propósitos de quem faz uso de uma máscara. Quem se oculta através dela esconde um segredo e oferece ao público o enigma da representação, não declara quem é e tenta convencer pela fantasia. E se bonecos, imagens e marionetes representam o homem, a máscara é sua metamorfose. Uma ilusão. São infinitas as possibilidades de atuação para a máscara. Cada máscara tem dois lados. Se o lado de fora exibe, o de dentro esconde. “Se o de fora envolve a cabeça, o de dentro é preenchido por ela” (AMARAL, 1996, p. 26). Um sentido é aparente, e o outro não.


Figura 03: Yara Baungarten Imagens Marionetáveis - Ato Três, 2008 Frame de vídeo Duração: 3’06”

No Teatro, encontramos as mais variadas expressões, e com bonecos, talvez haja “uma confissão discreta de si mesmo aos outros e de si para si” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 595). O dramaturgo irlandês Oscar Wilde comenta que o “homem é menos ele próprio, quando ele fala em sua própria pessoa. Dá-lhe uma máscara, e ele vai te dizer a verdade”4. Depois de mascarados e vestidos, os novos personagens/calungas foram manipulados para uma captação fotográfica digital. Assumindo outra dimensão física, tanto o boneco quanto a fotografia original atingiram o status de uma figura dramática renovada. Ao interagirem, eles tiveram suas personalidades criadas, recriadas e estabelecidas, fato motivado pela manipulação da artista.

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Do original “man is least himself when he talks in his own person. Give him a mask, and he will tell you the truth”. (Em: www.brainyquote.com)


Figura 04: Yara Baungarten Imagens Marionetáveis - Ato Um, 2007 Fotografia digital, editada em vídeo Dimensões variáveis

PROCESSOS MANIPULATIVOS E RESULTADOS VISUAIS

Mesmo não sendo completamente intencional, uma vez que no exercício da arte o acaso se faz presente, a personificação aconteceu, pelo poder interpretativo da imagem que os bonecos estão usando. E, desde os primeiros trabalhos realizados com as Imagens Marionetáveis, os bonecos constituíram de fato personalidades que chegaram a fazer antagonismos entre si. As expressões das máscaras e dos corpos dos bonecos geraram conflitos e enfrentamentos quase espontâneos, nos quais a manipulação encontra terreno fértil. A professora da ECA-USP, Ana Maria Amaral, afirma em suas pesquisas sobre as formas animadas que “a manipulação do objeto e suas relações com o personagem conferem ao objeto aspectos mágicos e inesperados” (AMARAL, op. cit. p. 202).


Figura 05: Yara Baungarten Imagens Marionetáveis - Ato Um, 2007 Fotografia digital, editada em vídeo Dimensões variáveis

A manipulação origina um elo que circula o Teatro de Bonecos e a fotografia, duas atividades artísticas que acontecem invariavelmente através dela. A condição de controle técnico é fundamental para a organização prática de um espetáculo. E para a seleção, edição e, até mesmo, a ampliação de uma imagem, tratando ainda em termos analógicos. Assim, ao fazer uma hibridação entre a arte bonequeira e a arte fotográfica para o projeto das Imagens Marionetáveis, surge a manipulação como um conceito marcante nesta realização visual. Dentro das especificações do Teatro de Bonecos, a manipulação de marionetes e objetos envolve o corpo, as mãos, os dedos, a cabeça do bonequeiro. Os fios, as varetas, as sombras, os objetos que se transformam em marionetes. Um boneco tem uma personalidade moldada pelo manipulador, aquele que é conhecedor dos movimentos da manipulação, de uma técnica de domínio e controle que estimula a imaginação. Esse é um lado da manipulação, é um controle, mas que simboliza a arte que se faz com as mãos, que as mãos transformam. Nas Imagens Marionetáveis, a manipulação é obra que se faz com as mãos e é também dissimulação e esconderijo. Os bonecos são comandados, mas não revelam


uma realidade, e sim vivem seu papel. São ações que refletem uma procura criativa do fazer plástico e visual, no encontro e conhecimento dos interesses particulares de cada artista e na construção de uma produção estética que configure estas paixões e desperte novas, traçando descobertas e aprendizados. Aqui, nas Imagens Marionetáveis, representar também é manipular uma expressão artística, dando a ela uma personalidade que é uma máscara para a artista. Essa foi uma forma de manipular ainda mais os processos de trabalho, mover o que está fixo e criar narrativas. Nesta interação, está mais uma vez a entrega na possibilidade de dominar a obra e ser dominada por ela. Na criatividade e na criação há, sobretudo, a interação de campos de conhecimentos e a hibridação de linguagens artísticas, reunião de percursos e trajetórias; como neste artigo, que foi produzido em benefício dos Editais Emergenciais de Auxílio à Cultura da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, e que abre sugestões para outras reflexões sobre as temáticas a todos os interessados.

REFERÊNCIAS CONSULTADAS AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas: máscaras, bonecos e objetos. 3.ed. São Paulo: EDUSP, 1993. 320 p. ________ . Teatro de Animação. 3.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. 128 p. BUENO, Yara Marina Baungarten. Imagens Marionetáveis: atos de manipulação e hibridação em Fotografia, Teatro de Bonecos e Vídeo. Monografia de conclusão de curso de Especialização em Poéticas Visuais: Gravura, Fotografia e Imagem Digital. Novo Hamburgo: Universidade Feevale, 2008. 91 p. BELL, John (org.). Puppets, Masks and Performing Objects. Cambridge: TDR Book, 2001. 194 p. ________. Strings, Hands and Shadows: a modern puppet history. Detroit: Wayne State University, 2000. 116 p. BERMAN, Robert; PATCHETT, Tom. Man Ray: Paris-LA. Santa Monica: Track 16 Gallery e Robert Berman Gallery, 1996. 127 p.


CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006. 996 p. COUCHOT, Edmond. A Tecnologia na Arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 319 p. PROSCHAN, Frank. The Semiotic Study of Puppets, Masks and Performing Objects. Semiotica, vol. 47, 1983. INTERNET

CIA MIKROPODIUM. Disponível em: www.mikropodium.com. Acesso em setembro de 2020. OSCAR WILDE. Citação disponível em: https://www.brainyquote.com/quotes/oscar_wilde_104298. Acesso em setembro de 2020. IMAGENS MARIONETÁVEIS no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=vihtspRpN_M


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