Março de 2009 Volume 168

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C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur 3 C r i s t i a n i sm o e C u l t u ra C r i st ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ul2ra C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo VOL. e C ult ura168 C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ur daistEscrita C r i s t i a n i sm o Latinização A va n ç o s e c u m énicosr ianismo eChinesa C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r istHermínio ianismo Duarte-Ramos e C ult ura C r ist ia nismo e C ult ura C r ist i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m e catolicismo e C u l t u ra C r i sJesuitismo t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ultna ura IC rRepública ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis moJosé António Ribeiro de e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Carvalho e C u l t u ra C r i st“Casamento i a n i sm o e C u lt ura Chomossexual”? r is t ia nis mo e C ult ura C r is- tIianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e CPedro Vaz ult ura CPatto r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism os Crefugiados e C u l t u ra C r i stAi aIgreja n i sm o e C uelt ura r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Domingos Lourenço Vieira e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism de Jesus e C u l t u ra C r i stJerónimo i a n i sm o e C u ltNadal ura C r is t iana nis moCompanhia e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura- IC r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t Ferdinand Azevedo, SJ ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r Março ist ianismo2009 e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C u lt ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism

Revista publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902

Brotéria


Brotéria

3 VOL. 168

Março 2009 Série Mensal Assinatura para 2009 : Portugal 47,00 E (IVA incluído); U. Europeia 90,00 E; Outros países 95,00 E Número avulso: 5,50 E (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual


ISSN 0870-7618 Dep贸sito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.


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Brotéria

3 VOL. 168

ÍNDICE

215 António Vaz Pinto, SI Democracia e comunicação social 217 Hermínio Duarte-Ramos

Latinização da Escrita Chinesa em Chinês Alfabético

229 José António Ribeiro de Carvalho

Jesuitismo e catolicismo em Portugal e a sua contestação nas vésperas da I República (1881-1910)

Breve panorâmica histórica

249 Pedro Vaz Patto

«Casamento homossexual»? Salvar o Casamento - I

279 Domingos Lourenço Vieira

A Igreja e os refugiados 297 Ferdinand Azevedo, SJ

Jerónimo Nadal, SJ: A sua importância na cultura apostólica da Companhia de Jesus - I

311 Recensões



Editorial Democracia e Comunicação Social

António Vaz Pinto SI

A

chamada «divisão dos poderes» – legislativo, executivo e judicial – é indiscutivelmente um dos grandes pilares das democracias modernas, geradas na Europa a partir dos séculos XVII e sobretudo XVIII e posteriormente nos E. U. da América. É certo que o equilíbrio relativo entre os três poderes não pode ser estaticamente compreendido e de facto, ao longo da história, tem evoluído de forma diferente nos diversos países e nas diversas épocas, procurando adaptar-se ao dinamismo da realidade social. Mas, mais certo ainda, é o facto de entretanto, do século XIX até hoje, ter crescido em quantidade e importância outro «poder», a comunicação social, por isso mesmo chamado o «quarto poder». De livros e modestas «gazetas» passou-se para o telégrafo, o telefone, a rádio, a televisão, a internet… Quer dizer, a realidade social e política, em quantidade e qualidade, surge-nos sempre mediada pela comunicação social que é «espelho» dessa realidade mas também sua construtora. Acontece que os três poderes clássicos, ao longo do tempo, foram criando limites e controles que apesar de conflitos permitem uma sã convivência… Mas, no caso da comunicação social, este controlo democrático é indiscutivelmente mais difícil: porque se «diz», o que se diz, como se diz, o que se oculta e silencia… Que «interesses», ideológicos, políticos, económicos, estão por trás? Que objectivos se pretendem alcançar? Oscilando entre a tentação da «censura» e a do liberalismo total, o estado democrático, precisamente para assegurar 215


a democracia, tem de legislar para garantir o pluralismo, o respeito pelas minorias, o bom nome de pessoas e instituições, a responsabilidade pelas afirmações feitas… Há, pois, um mínimo de normas legais indispensáveis para que o «sistema» funcione. Mas não nos iludamos: mais do que de muitas normas é a deontologia, a formação e a mentalidade dos profissionais da comunicação social, a grande garantia de uma comunicação social mais livre e construtiva.

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Latinização da Escrita Chinesa em Chinês Alfabético

Estímulo para escrever

Hermínio Duarte-Ramos *

A obra linguística do padre Joaquim Guerra, sinólogo português da segunda metade do século XX, justifica uma análise algo pormenorizada das suas contribuições para a escrita da língua chinesa com caracteres latinos. Merece especial relevo a concepção do método de romanização, que designou Chinês Alfabético, evidenciando a sua formulação geral e a respectiva aplicação ao dialecto cantonês. A propósito, esboça-se o enquadramento da língua na evolução da história dos povos da China, com vista a melhor inserir a linguagem na cultura da globalização.

O padre jesuíta Joaquim Guerra leccionou, pela primeira vez nas universidades portuguesas, no ano lectivo de 1965/66, um curso livre de cantonês, integrando um programa de língua e cultura chinesa com a duração de quatro anos, que o professor Adriano Moreira promoveu como director do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), em Lisboa. Nas suas lições usou o método «Chinês Alfabético», que desenvolvera durante três décadas de missionação na China. Tive a oportunidade de colaborar na simplificação desse sistema de representação dos caracteres chineses por intermédio das letras latinas, numa actividade estimulante de mestre-discípulo, que me levou ao caminho da linguística, em geral, a partir do dialecto cantonês. Esse fermento fez crescer o interesse por outras línguas, quer europeias quer africanas e orientais. A última foi o mandarim, já longe do saudoso Mestre, falecido num acidente rodoviário em Toronto, onde fora tratar a publicação da tradução em língua inglesa de um clássico chinês. O centenário do nascimento desse filho de Lavacolhos, próximo do Fundão, no ano passado (a 8 de Abril), despertou-me a recordação do tempo em que convivemos. Então, intensificou-se o ímpeto para rever o texto que escrevi, em 1967, e * Professor Catedrático Jubilado da Universidade Nova de Lisboa.

Brotéria, 168 (2009) 217-227

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1

Edição policopiada do ISCSPU, Lisboa, 1965.

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conservei na gaveta durante quarenta anos: uma «Gramática da Língua Chinesa (Cantonês) em Chinês Alfabético», elaborada a partir dos conhecimentos transmitidos por quem dominava realmente os dialectos chineses. O beirão partiu para Shanghai com quase trinta anos de idade, em 1937, a fim de participar na ocidentalização do povo chinês. Missionou sobretudo na histórica Missão Portuguesa de Shiu-Hing, fundada no século XVI, junto ao grande Rio do Oeste, a 200 quilómetros de Macau. E acabou por se orientalizar, profundamente, seguindo os costumes da tradição. Com base nas suas reflexões, emergentes da memória dessa vivência ao longo de três décadas, tenta-se agora traçar alguns laivos do orientalismo transmitido e assimilado. As pinceladas adiante esboçadas contêm citações das lições escritas com a designação genérica de «Estudos Chineses: A Língua de Cantão»1. E inserem-se breves apontamentos da experiência vivida, num tempo em que alguns tentavam revitalizar a tradicional cultura integrativa dos portugueses, pela convivialidade universal dos humanos de todos os continentes. Assim se perseguia, na segunda metade do século XX, o destemido caminho dos descobrimentos marítimos, aventura de séculos passados, numa perspectiva precursora da globalização. Afinal, numa prática ecuménica, onde o convívio de diferentes línguas é essencial para amenizar eventuais diferenças culturais. Na verdade, a ideia da «nova escrita chinesa», como se propalava na China maoista, perspectivava enormes consequências práticas para estreitar o entendimento entre os povos, permitindo aperceber a cultura da língua mais antiga que a história consagrou. Exactamente desde as inscrições pictóricas em carapaças de tartarugas e ossos oraculares da dinastia Shang (a partir do século XVI a.C.), conforme testemunharam achados arqueológicos em 1898, para lá das lendas e filosofias tradicionais do Oriente. Como comunicar eficazmente os pensamentos inseridos nessa escrita pictórica e tornada ideográfica?


Romanização da escrita ideográfica Surgiram várias propostas para latinizar os ideogramas da escrita chinesa. A mais seguida internacionalmente, durante todo o século XX, correspondeu à formulação moldada à língua inglesa por Wade e Giles, no século XIX. O método denominado chinês alfabético também procurou romanizar a escrita dos caracteres ideográficos por intermédio das letras latinas, mas num projecto muito mais ambicioso e contaminado pela fonética portuguesa. Pretendia estabelecer um conjunto de regras que deixasse escrever qualquer ideograma, comum na China inteira e com diferentes pronúncias nos diversos dialectos regionais, aplicando igual princípio de latinização a todas as falas locais. Esta pretensão de generalizar a escrita latinizada das várias fonéticas pelo mesmo modelo deu lugar a uma formulação bastante complexa. As palavras em cantonês resultaram impressas com excessiva extensão e um grafismo aparentemente pouco fonético, porque algumas letras serviam apenas para indicar funções tonais das sílabas. Esta desvantagem não foi certamente a principal razão para que o método tivesse sido desprezado pela governança comunista da China. O seu autor chegou a ser condenado à morte três vezes como anti‑marxista. Entretanto, o regime chinês de Mao Zedong (escrito em pinyin, ou Mao Tze-tung no estilo inglês de Wade-Giles ou ainda Maov Deogtong em chinês alfabético), sustentou a criação de um método de escrita do mandarim, conjuntamente com filólogos soviéticos, a fim de estender o seu uso em todo o país, e assim robustecer a unidade nacional 2. Veio daí a actual grafia denominada pinyin, uma romanização fonética que facilita bastante a assimilação da língua chinesa identificada no mandarim. É este o método preferido internacionalmente no presente início do século XXI. E promete expandir-se no caminho da globalização. Perante tal evolução, será expectável que um dia os caracteres ideográficos venham a ser reduzidos simples-

2

O regime comunista foi oficialmente estabelecido em 1 de Outubro de 1949 com a proclamação da República Popular da China, na Praça Tiananmen, em Pequim.

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mente a um registo histórico, sobretudo em consequência da eficácia das tecnologias de informação baseadas na latinização das linguagens.

Origem da língua cantonesa

3

A ilha de Taiwan (ou Formosa, como os portugueses denominaram, quando os navegantes aí aportaram no século XVI) refugiou os nacionalistas chineses, liderados pelo general Chiang Kai-Shek, que aí estabeleceu a sede administrativa da República da China, em Maio de 1950, depois da sua derrota na guerra civil (de 1947 a 1949) com os comunistas de Mao. Considerando-se os legítimos representantes da nação chinesa, só recentemente restabeleceram viagens aéreas com a China Continental, pouco antes dos Jogos Olímpicos de 2008, num processo de aproximação política que se tem vindo a consolidar nos últimos tempos.

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A China meridional foi anexada no ano 2124 a.C. ao «Império do Centro» por Qin Shih-huang (assim escrito no actual pinyin, embora seja vulgar a antiga forma inglesa Ch’in Shih-Huang). A expedição militar originou logo a colonização territorial. Mas a inaptidão do seu herdeiro, que se suicidou três anos depois de ter subido ao trono, provocou a desagregação administrativa do império: vários generais declararam autónomas as diversas províncias e algumas no sul tornaram-se independentes. Tal autonomia durou um século, até que o grande imperador Wu Di, da dinastia Han, integrou definitivamente esses domínios na China (embora tivesse persistido a independência do Vietname, a sudoeste). Desde então, o grande império vacilou entre a consolidação unitária e a separação consentida, como hoje prova a postura do continente chinês relativamente à ilha de Taiwan 3. A permanência das tradições nas regiões do sul representou sempre um papel decisivo na evolução histórica da grande China. «Várias dinastias chinesas, sob a pressão dos invasores do norte, haviam de refugiar-se no centro e sul, confiados no patriotismo dos meridionais, aliás nunca desmentido», assim resumia o padre Guerra a defesa do passado daquelas gentes. E esclarecia como tinham lutado nas costas do sul contra os manchus na dinastia Ming (1368-1644), em cujas derradeiras batalhas participara um contingente português, pedido a Macau e comandado por Nicolau Ferreira. O «Pai da Pátria» Sun Yatsen, herói libertador da China do domínio manchu e que promoveu, em 1911, a implantação da república (oficialmente festejada no ano seguinte), era natural de Ribeira Funda (Dsoejxhaaq, em chinês alfabético), perto de Macau. Sob o comando de Tseão Caayzyag (como escrevia


Joaquim Guerra), arrancou de Cantão, em 1925, uma expedição militar que submeteu os potentados dissidentes de Pequim e da Manchúria. Então, a capital passou para Nanquim, donde se organizou a coesão nacional, para resistir vitoriosamente ao ataque japonês na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nas migrações motivadas pela expansão territorial, a língua chinesa foi trazida do Rio Amarelo para o sul pelos colonizadores, que designaram as suas duas grandes províncias por Extensão Oriental e Extensão Ocidental. Foram eles que mantiveram a pureza da língua, ainda hoje resguardada. Segundo o sinólogo português, pode-se afirmar que «o Cantonense é o dialecto ou língua chinesa que melhor preserva a fonética do Chinês antigo, anterior à era cristã». E, pela comparação das estruturas dialécticas, justificou o conservadorismo do cantonês: «De facto, encontram-se nele dados fonéticos de que nem o primeiro dicionário fonético chinês (o Kvauqwens, do século VII) já fez menção». Na linguagem de Cantão, usada em Macau e Hongkong, diz-se pôenhdey (escrita em chinês alfabético) para significar «local» e «nativo», em contraste com o vizinho dialecto hakka. Ou seja, a ideia da raiz linguística na terra natal encontra-se impregnada na cultura do povo.

Tons da língua chinesa A distinção das palavras pelo tom dos sons constituintes da fala representa uma característica própria da língua chinesa. Significa esta particularidade que os humanos primitivos reuniam o canto e a linguagem no mesmo amplexo musical. Tudo à semelhança do que observavam nos bandos de pássaros, a esvoaçar no céu em voltas rituais, ao entardecer de cada dia. «A palavra chinesa tem corpo e alma, som e tom», querendo o padre Guerra dizer que o som é o corpo do fonema e o tom a sua alma. Uma metáfora que materializa a imagenalidade da língua na transferência cérebro-mente, ao estilo da actual ciência cognitiva. A pronúncia certa, articulada pelos órgãos vocais dos humanos, é controlada pela consciência como telonomia da mente. 221


A bem dizer, um fonema chinês só tem significado se for inserido numa escala de entoações. Portanto, a significância depende do modo como se pronunciam os fonemas-palavras. Por exemplo, o fonema tom em cantonês pode exprimir as ideias de ‘oriente’, ‘gruta’, ‘frio’ e ‘perceber’, consoante a musicalidade do som pronunciado. Por isso, o sinólogo afirmava, logo à entrada da sua análise da «Fonética do Cantonense»: «A língua chinesa é conhecida pelos seus tons: língua de sons entoados, que não se pode falar sem uma atenção quase ritual». Curiosa, esta afinidade ritualista com o rigor disciplinado da fala. Um padrão simbólico comum às várias tolerâncias dialécticas da oralidade dos diferentes povos sínicos. No cantonês existem nove tons distintos, enquanto no mandarim contam-se cinco, que a pronúncia oficial reduziu a quatro, embora o 5.º tom, oclusivo, persista na fala praticada ao longo da vasta bacia do Rio Azul, segundo a experiência do padre Guerra. O mesmo acontece noutras falas, como mostram os dialectos wu e hakka.

Tons do dialecto cantonês

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Julgo ser a primeira vez que se regista publicamente esta correspondência musical das falas chinesas, obviamente aproximada nas pronúncias singulares.

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A sistematização das tonalidades em cantonês correlaciona os níveis sonoros de maneira simétrica, pois «os 9 tons cantoneses distribuem-se em duas semi-séries convergentes de 4 tons cada uma, sobrando um tom médio», dentro da arte classificativa de Joaquim Guerra. Nesta perspectiva, os tons superiores descem para o meio, considerado 9.º tom na escala de valores tonais, e os inferiores ascendem para esse centro. Eis a tradicional origem imperial do meio a reger as duas partes, acima e abaixo, o céu (theen) e a terra (dey), afinal o um (ead) donde emergiu o dois (es) e se formou o três (saem), e por aí adiante. De modo simples, poder-se-ão estabelecer as seguintes correspondências musicais na clave de sol, que mostram a referida convergência para a altura central, mediana dos três tons oclusivos 4:


1.º tom superior: lá (destacado) 2.º tom superior: fá-sol (inflectido) 3.º tom superior: fá (longo) 4.º tom superior: lá (breve, oclusivo) 9.º tom médio: fá (longo, oclusivo) 4.º tom inferior: ré (breve, oclusivo) 3.º tom inferior: ré (breve) 2.º tom inferior: ré-dó-fá (inflectido) 1.º tom inferior: dó (destacado) A representação gráfica na pauta musical tipifica bem estas subidas tonais do nível médio para os superiores e descidas para os inferiores.

Valor musical dos tons do dialecto cantonês da língua chinesa.

Compreende-se agora que os chineses distingam os sons das palavras proferidas através da sua altura, duração e modulação. É esta variedade simbólica que o chinês alfabético procura representar 5. Convencionalmente, as letras iniciais (consoantes e vogais) das palavras romanizadas exprimem o nível do tom: os tons superiores começam por letras fortes (p, c ou k, m, q, r, s, t, a, i, u, v); e os tons inferiores iniciam-se com letras fracas (b, d, g, l, n, x, z, e, y, j, w). As duas semi-séries tonais (a superior e a inferior) possuem basicamente apenas três tons fundamentais (1.º, 2.º e 3.º tons). Por isso, o chinês alfabético especifica-os com afixos convencionais, acrescentados nas formas fundamentais: 1.º tom sem letra especificadora (ou indicado por r, se for necessário fazer alguma divisão silábica), 2.º tom com s (ou por x subsidiaria-

5

Os exemplos de palavras apresentadas a seguir são facilmente pronunciáveis com a representação musical da figura e as convenções indicadas para as letras das sílabas escritas.

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6

Informação recolhida do artigo de Joaquim Guerra, «O Chinês Alfabético», Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, Janeiro-Março 1960, pp. 61-86.

mente) e 3.º tom com t (ou z às vezes). Exemplos (respectivamente, 1.º, 2.º e 3.º tom): tons superiores, cuja inicial é forte, ca (família), cah (falso) e cas (preço); tons inferiores, com inicial fraca, zy (tempo), zyh (mercado) e zys (sim). Os restantes três tons (4.º superior e inferior e ainda o tom médio) são variantes oclusivas das séries nasais, que terminam numa nasal pura ou nas articulações de m e n. O chinês alfabético marca o 4.º tom com a letra terminal c ou g, b, d, e sufixa o 9.º tom com k, p, t. Casos exemplificativos de dois tons superiores e dois inferiores: syc (cor), zyg (comer); keab (urgente), mead (mel). Os tons oclusivos não se ouvem distintamente, constituindo «uma espécie de abafamento de som musical, quer dizer, o som médio do fonema termina bruscamente com os órgãos vocais na posição correspondente à fala das respectivas consoantes k, p, t». Surge então uma regra do chinês alfabético: «neste caso, o som nasal muda em k, o m em p e o n um t». Exemplos: tã dá tak, kim dá kip e hon dá hot. Repare-se que este fenómeno também surge na língua ‘tupi’, que foi a língua geral dos índios do Brasil, e ainda é popular no dialecto ‘guarani’ no Paraguai. É assim que se estabelecem as séries seguintes de tons inferiores (indicados pelo l inicial dos fonemas) sucessivamente do 1.º tom ao 4.º tom (indiciados pelas afixações terminais) 6: lon (eminente), lonh (rude), lons (troçar), lok (colaborar); lieme (enxoval de noiva), liemeh (recolher), liemes (coche imperial), liep (caçar); liene (lotus), lieneh (transportar), lienes (refinar), liet (ordenar). Como se vê, a final me muda na oclusiva para p e a final ne muda para t.

Escrita de palavras romanizadas A pronúncia de duas vogais na mesma emissão de voz, constituindo os chamados ditongos, faz predominar uma vogal com maior evidência e enfraquecer outra como subjuntiva. Conhece-se este fenómeno fonético em qualquer língua, 224


sendo normal na portuguesa, onde a predominante vem antes nos ditongos decrescentes (sons ai, ei, oi, ui; au, eu, iu, ou) e a fraca está depois nos ditongos crescentes (sons ia, ie, io; ua, ue). Na língua chinesa ainda aparecem ditongos nasais com alguma frequência (sobretudo os sons ãe, ão, õe). Dois exemplos de palavras com o som au (em português) e ambas no tom superior (indicado pela inicial m): mao (demónio), no 1.º tom revelado pela final o; mau (apalpar), 2.º tom expresso na desinência u. De facto, em chinês alfabético os tons dos ditongos indicam-se pela sua vogal final: na hipótese do som i convencionou-se usar e ou j no 1.º tom, i no 2.º tom e y no 3.º tom; com o som u adoptou-se a letra o ou v para o 1.º tom, u para o 2.º tom e w para o 3.º tom. Exemplos: tons superiores caaj (rua), caai (explicar), caay (limite); tons inferiores lee (pera), lei (ameixa), ley (lucro). Ao gosto da cultura chinesa, o padre Guerra atribuía nomes a tudo aquilo que precisasse de ser nomeado. Nesta perspectiva, deu a cada aluno um nome em chinês de Cantão, seguindo a análise psicológica que fazia da sua personalidade 7. Baseado no mesmo princípio, concedeu aos tons as seguintes designações alegóricas: 1.º tom: plano (bãe); 2.º tom: ascendente (zyauq); 3.º tom: viajante (xhuy); 4.º tom superior: sair (tjhod); 9.º tom médio: separar (kak); 4.º tom inferior: entrar (jub). A título de exemplo de construção de frases, com as palavras ‘tom’ (syeq), ‘superior’ (zyãw) e ‘inferior’ (xas), o padre Guerra designava o ‘2.º tom superior’ por zyãw zyauqsyeq, cumprindo a regra normal do adjectivo preceder o substantivo, equivalente a dizer ‘superior 2.º tom’. É claro que existem outras práticas correntes, como acontece na colocação dos verbos e pronomes ou complementos. Mas ficamos por aqui quanto à tecnicidade da linguagem chinesa. A aclaração destes elementos introdutórios só pretende evidenciar a ideia fundamental que presidiu à inovação metodológica do «Chinês Alfabético».

7

Também eu recebi um nome simbólico em cantonês, que lamento não conseguir recordar nem encontrar nas anotações guardadas.

225


Leitura do registo histórico

8

As descrições tentadas apenas dão alguns traços das bases fonéticas, não chegando à lei das aspiradas nem à análise dos valores do alfabeto cantonês (vogais e consoantes) e muito menos à morfologia ou sintaxe da gramática comparativa.

226

Obviamente, o chinês exibe propriedades linguísticas bem caracterizadas, que se dispensa de referir neste singelo testemunho da escrita engenhada alfabeticamente 8. Mas vale a pena referir a contagem de 414 páginas em formato A4, dactilografadas pelo próprio autor, no arquivo das suas lições de cantonês. O 1.º ano incluía a estrutura do método de latinização dos caracteres chineses, prontuário ortográfico em chinês alfabético, cantonense básico e notas estatísticas das ocorrências de fonemas no dialecto de Cantão. O 2.º ano inseria a construção de frases cantonesas, com os problemas mais importantes da fonética chinesa e uma bússula do dialéctico cantonense. A breve explanação apresentada mostra apenas os princípios do sistema concebido pelo beirão de Lavacolhos para romanizar a escrita ideográfica da China. Alguns dos livros clássicos que traduziu para português são acompanhados da transcrição fonética em cantonês usando o chinês alfabético. Deste modo, proporcionou a leitura dos ideogramas por ocidentais como se ouve em Cantão, particularmente em Macau e Hongkong. Tal acontece, por exemplo, no precioso Livro dos Cantares, tradução do clássico She Keng, que foi editada pelos Jesuítas Portugueses em Macau no ano de 1979. É muito aprazível seguir a leitura das rimas chinesas com a transcrição latinizada dos nove tons da fala cantonesa. Tudo graças à paixão do padre Guerra pela língua chinesa e à sua técnica de representação fonética. Afinal, uma arquitectura aplicável universalmente aos vários dialectos, que pronunciam de maneira bastante distinta a mesma escrita ideográfica. Entretanto, as tendências políticas apontaram no sentido de generalizar o uso do dialecto do norte, conhecido por mandarim, como língua oficial da China. Na verdade, corresponde ao sistema mais simples da romanização fonética. Estamos no século XXI, a caminho da globalização, e assim a língua mandarina poderá impor-se no mundo como sendo o chinês universalista, à semelhança da identificação internacional da língua castelhana com o espanhol. Na realidade, o pinyin


moderniza facilmente a ancestralidade linguística e já se manifesta como língua da Organização das Nações Unidas (ONU). É este o rumo certo para o necessário diálogo intercultural que deve caracterizar o presente século, colocando as diferenças em contacto por intermédio das axonias comuns. Este projecto universal recria a humanização dos humanos pelas relações fraternais em liberdade. São interligações dialogantes, assentes na linguagem entendida dos pensamentos que se entrecruzam nessas relações livres. Até à aceitação interactiva da amorização da vida, a partir da compreensão polarizada no amor terno e mútuo. Com as línguas nos entendemos uns aos outros. Daí a importância da simplificação linguística, para bem comunicar individualmente e melhor construir a sociedade universal que desejamos. Numa civilização que seja mais justa e fraterna. E que possamos perceber. Mesmo sem o uso do engenhoso chinês alfabético do padre Guerra.

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Jesuitismo e catolicismo em Portugal e a sua contestação nas vésperas da I República (1881-1910) – breve panorâmica histórica 1 «O fenómeno religioso, seja o que for que se pense das suas origens e do seu conteúdo, é um aspecto importante da vida das sociedades contemporâneas e que contribui para as especificar.» 2

Ler,

estudar, escrever, reflectir sobre a História da Igreja Católica é um exercício duplamente gratificante: permite ter a noção da História do nosso mundo, mantendo um mesmo centro de gravidade no seu percurso; e, se se é católico, tomar consciência da presença do Espírito Santo que tem sustentado a Igreja. Se não se é católico, permite procurar entender a importância e a inegável influência que a Igreja sempre teve, ao longo da História, no seio da sociedade. Este trabalho, como tantos outros de História, não pretende ser a «História» do Jesuitismo e catolicismo em Portugal e sua contestação, nas vésperas da I República, mas sim um contributo para tal. Por um lado, porque o período é bastante extenso (1881-1910), por outro, porque são frequentemente discordantes as informações que nos chegam. Mas aqui reside, também, a riqueza da História em geral e da História da Igreja, neste caso, em particular. Estando a História sujeita a todo o género de interpretações, ela terá de ser plural, de acordo com a perspectiva em que se observa, com a época e com as crenças, e diferente, ainda porque distinto é cada um dos estudiosos que empreende essa tarefa. * Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Brotéria, 168 (2009) 229-247

José António Ribeiro de Carvalho *

1

O presente estudo é uma pequena parte, ainda que com ligeiras adaptações, da dissertação de mestrado em História Contemporânea que defendi na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Maio de 2007. Carvalho, José António Ribeiro de, Os Jesuítas nas Vésperas da I República: o Novo Mensageiro do Coração de Jesus (1881-1910). Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Porto. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007. E que será publicado: Carvalho, José, Católicos nas Vésperas da I República (1881-1910), Porto. Livraria Civilização Editora, 2008. 2

Rémond, René, Introdução à História do nosso tempo. Do antigo regime aos nossos dias, Lisboa, Gradiva, 2003, p. 245. 3

Sardica, José Miguel, «O Vintismo perante a Igreja e o Catolicismo». In Penélope, 27 (2002), 127. 4

Aos Jesuítas, como é sabido, nunca faltaram inimigos que os representavam como regicidas, envenenadores ou praticantes de artes negras. «Tanto por católicos como por não católicos, foram apontados como provedores de conselhos morais absurdamente laxistas, como pervertidos sexuais, miseráveis avarentos que exploravam minas de ouro secretas e espoliavam viúvas ricas das suas heranças. Os paladinos autodidactas da liberdade intelectual caracterizavam-

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‑nos como autómatos inconscientes, cegamente leais aos seus superiores. Para os que se opunham à influência de Roma, eles foram os esbirros do Papa, inimigos jurados da autoridade secular.» Wright, Jonathan, Os Jesuítas. Missões, Mitos e Histórias, Lisboa, Quetzal Editores, 2005, p. 17. 5

Ibidem, p. 15.

6

Ibidem.

7

Caiu sobre este Papa a incumbência de destruir a Companhia de Jesus. Fê-lo, diz-nos Jonathan Wright, porque os poderes seculares da Europa católica não lhe deixaram grande alternativa. Ele protelou e eles ameaçaram. Garantir a supressão dos Jesuítas tornara-se uma prioridade. Ao que dizem os coevos, em Portugal, o Marquês de Pombal, ao receber a notícia da atitude Pontifícia, teria ordenado que as luzes da cidade ardessem toda a noite em gesto de celebração. Este mesmo autor diz-nos que a supressão da Companhia foi a vítima da «política dinástica tradicional, a altercação em curso durante séculos entre Roma e a Europa católica, produzindo muitas vítimas ao longo dos anos (...) permitiu que os embaixadores franceses e espanhóis transformassem as eleições papais em farsas diplomáticas grotescas.» Tinha também a ver com as consequências específicas de crise passadas em países como: França, Espanha, e Portugal, como os terramotos, os motins, navios perdidos no mar, falências, tentativas de assassínio. Não nos esqueçamos também da situação política da época em que vários núncios papais eram expulsos, com alguma frequência, a dissolução dos mosteiros, ou seja, um Estado que se pretendia afirmar cada vez mais perante a Igreja. Jean Delumeau vai mais longe e diz que a Companhia Inaciana não estava,

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Importa, também, referir que as temáticas aqui tratadas estão ainda pouco estudadas em Portugal. Os conhecimentos apresentados são, necessariamente, provisórios, como é apanágio de (quase) todo o conhecimento científico, sempre sujeito a rectificações suscitadas por novos estudos. Contudo, esperamos que as conclusões/pistas e resultados aqui obtidos sirvam de estímulo para investigações ulteriores. A Europa do século XIX já não era toda ela governada por reis, pelos Bons Príncipes Católicos, quando era grande a importância da Igreja; na centúria de oitocentos, essa importância parecia estar a desfalecer, década a década. No entanto, os católicos continuaram a ter de interagir com o mundo em que viviam. Em toda a Europa, a questão das relações entre a sociedade e a religião, o Estado e a Igreja, tem sido das mais duradouras a marcar a Época Contemporânea 3. As sociedades coevas em geral, e os séculos XIX e XX, português em particular, conheceram modalidades diversas de relacionamento entre a religião e o(s) poder(es) político(s). De tempos de estreita colaboração passou-se a épocas de separação militante, perseguição e mesmo de conflito aberto. E se o estado liberal funcionou como criador e impulsionador de um movimento de secularização da sociedade e da cultura, fomentando a sua dessacralização e tentando subtraí-las à influência da Igreja, utilizando para isso a escola e a imprensa, é também notório que o regime republicano, como herdeiro legítimo da ideologia liberal (embora sem esquecer as suas origens mais remotas no jacobinismo-maçónico da revolução francesa), tenha usado os mesmos meios para o mesmo objectivo, já definido anteriormente. Nesse aspecto, atente-se no caso das primeiras leis anticlericais da república – o colocar em prática das medidas do Marquês Pombal e Joaquim António de Aguiar – que motivaram a expulsão imediata dos Jesuítas. Ainda sobre a questão de que foram os liberais a provocar a luta anticlerical, nunca podemos esquecer que a legislação por eles promulgada provocou a desagregação da Igreja do Antigo Regime: o sistema liberal advogava a supremacia do poder temporal e pretendia remeter a Igreja para as funções


meramente espirituais. Por seu lado, a Igreja – Instituição – ia perdendo também a hegemonia ideológica e diminuía a sua influência, submetendo-se ao poder civil e, mais do que isso, ficando dependente deste. Apesar das oscilações da política liberal portuguesa perante a Igreja, o regalismo manteve-se ao longo do séc. XIX, sendo que a classe política nunca pôs em causa o catolicismo que se conservou como religião oficial até 1910. No panorama da historiografia portuguesa, relativa aos finais dos séculos XIX e inícios do XX, as questões político‑religiosas e sociais têm sido um campo de estudo menos trabalhado nestes últimos tempos, sobretudo se o compararmos com as questões políticas da I República e do Estado Novo, isto apesar de existirem obras de referência e estudos históricos de inegável valor. Além disso, cada vez mais está a ser feita por historiadores leigos e por não católicos; desde artigos de revista a obras de maior envergadura, até provas académicas. Este período possibilita um estudo estimulante, permitindo novos olhares para velhos problemas, antigas questões e outros problemas menos conhecidos. O nosso objectivo será, tão-somente, este: que os resultados aqui obtidos, tal como já o dissemos, sirvam de estímulo para investigações ulteriores, que permitam enriquecer a ciência histórica nacional que se encontra, actualmente, como se sabe e é reconhecido por todos, em pleno crescimento.

1 –  Jesuitismo e catolicismo em Portugal e sua contestação – breve panorâmica histórica No decurso de cinco séculos, membros da Companhia Inaciana foram acusados de conspirar contra Reis e Presidentes, viajaram na qualidade de missionários para todo o lado, fazendo amigos e defensores, mas também ferozes inimigos. Deste modo, foram idolatrados e odiados 4 como nenhuma outra Ordem. Fosse amada ou abominada, a Companhia de Jesus nunca poderia ser ignorada, ela transformaria a paisagem intelectual, cultural e devocional da Europa e imiscuir-se-ia nas

de forma alguma, em decadência, mas apenas por pressões e interesses de natureza política e ideológica, o Papa, acabaria por ceder. Delumeau, Jean, O Cristianismo vai morrer? Amadora, Livraria Bertrand, 1978, p. 41. Quanto aos Jesuítas, estes acabaram por prosseguir as suas carreiras eclesiásticas, como padres seculares ou ingressando noutras ordens. Em suma, se o objectivo seria destruir a Ordem e os seus membros, esse propósito não foi conseguido. Wright, Jonathan, op. cit., pp. 242-244. 8

Lacouture, Jean, Os Jesuítas. 2 – O Regresso, Lisboa, Editorial Estampa, 1993. 9

Em 1861, o Papado perdeu o domínio dos seus territórios e, com a retirada, em 1870, do exército francês que protegia Roma, a cidade foi absorvida pelo novo Estado Italiano. Os revolucionários tinham «roubado» ao Papa a sua independência política e ameaçavam a sua autonomia espiritual, declarando-se o Pontífice como prisioneiro no Vaticano. A relutância em aceitar as concessões oferecidas pela perda do poder temporal – pensão, domínio do Vaticano e dos palácios Lateranenses – distrairia o mundo católico e azedaria as relações entre o Papa e o Estado Italiano durante décadas. A (tentativa de) resolução deste problema apenas foi (aparentemente) solucionado em 1929, quando Pio XI assinou com o Estado Italiano, liderado por Benito Mussolini, o Tratado de Latrão, que criava o Estado da Cidade do Vaticano independente, dentro de Roma. Melgar, Luís Tomás, História dos Papas. Santidade e poder, Lisboa, Editorial Estampa, 2004, p. 391. O catolicismo vê-se num dilema. Como lidar com uma Europa de cidades e indústria? O que pensar da paixão pelas instituições demo-

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cráticas e pelo culto do individualismo? Até que ponto se deveriam envolver os católicos na vida pública em geral e na política em particular? Como responder aos problemas sociais? Se os católicos tiveram de formular respostas para os desafios do século XIX tiveram, ao mesmo tempo, de considerar uma História contínua de insultos, de perseguição e mesmo de violência, que lhe foi movida, um pouco por todo o lado. Quanto aos Jesuítas, evidentemente, que os problemas a enfrentar foram a dobrar. (No dizer de Jonathan Wright, «indignidades deveras horríveis (...) que a Companhia (...) teria de suportar durante o século XIX.» Wright, Jonathan, op. cit., p. 253). 10

Franco, José Eduardo, O Mito dos Jesuítas. Em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX), vol. 1 – Das Origens ao Marquês de Pombal, Lisboa, Gradiva, 2006, p. 16. 11

As causas desta decisão parecem encontrar-se, sobretudo, em motivos de natureza ideológica e política. A Companhia de Jesus era um obstáculo ao projecto político que se pretendia implementar, ou seja, um sistema que Carvalho e Melo considerava mais moderno, centralizado no Estado, mais fácil de controlar ad arbitrium principis. Era, de facto, o sistema absolutista e iluminista, que Pombal queria impor sem escrúpulos quanto aos meios a usar e indiferente face à resistência das forças sociais do País. Os meios usados para a expulsão foram implacáveis. No total, cerca de 1100 Jesuítas foram desembarcados nos Estados Pontifícios; morreram nas prisões portuguesas cerca de 70 e uns 40 durante as viagens. Encontravam-se ainda 45 encarcerados em S. Julião da Barra quando, em 1777, foram libertados, após a queda de Pombal. Para ver a Lei

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sucessivas controvérsias da Reforma, da construção de impérios, do Iluminismo e da Revolução 5. A disputa, para julgar a sua História, iria ser renhida. Amada e detestada, foi responsável por uma tão grande influência nos anais da humanidade em geral e, particularmente, da História Portuguesa, «que é impossível ignorar o seu papel» 6. A Companhia foi fundada por Inácio de Loyola e confirmada pelo Papa Paulo III, a 23 de Setembro de 1540, através da Bula Regimini Militantis Ecclesiae. No entanto, iria sofrer uma série de vicissitudes, dificuldades e perseguições; mas também glórias, todas elas registadas nas inúmeras páginas e mesmo livros da História da Humanidade. Assim, se no ano de 1773, no dia 21 de Julho, ocorreria a sua extinção, através do Breve Dominus ac Redemptor pela mão do Papa Clemente XIV 7, logo em 1814, no dia 7 de Agosto, através da Bula Sollicitudo Omnium Ecclesiarum de Pio VII, iria ressurgir com uma pujança até então impossível de imaginar. Renasceu numa Europa agitada pela Revolução Francesa, após as Guerras Napoleónicas, o triunfo das luzes e a emergência da racionalidade científica. E no dizer de Jean Lacouture, é neste clima de restauração monárquica e católica que reaparecem estes «regressados» que ficam, durante muito tempo, à frente da contra-revolução 8. Nesta época, a Igreja Católica estava escandalizada e aturdida com os acontecimentos das duas últimas décadas, além de preocupada com a forma como haveria de responder ao legado político-ideológico-filosófico da Revolução 9.

1.1 – Jesuítas em Portugal Seguindo a análise de Nuno Gonçalves, podemos dividir a presença Jesuítica no território nacional em quatro fases, mas apenas as três primeiras irão ocupar a nossa atenção, tendo em conta a limitação cronológica deste nosso estudo. O primeiro período compreende a época de 1540 a 1759, com a vinda dos Jesuítas para Portugal, até à sua expulsão pelo Marquês de Pombal. Aquela deveu-se à iniciativa de


D. João III, a quem o Doutor Diogo de Gouveia, responsável pelo Colégio de Santa Bárbara em Paris, indicara a existência de um novo grupo de clérigos que considerava «aptos para converter toda a Índia». Inácio de Loyola acedeu ao convite do Rei português e enviou para Portugal, em 1540, dois dos seus primeiros companheiros: o navarro Francisco Xavier e o português Simão Rodrigues. O primeiro partiu no ano seguinte para a Índia, enquanto que o segundo ficou na Europa, lançando as bases da Província de Portugal, erecta, como primeira província de toda a Ordem, em 1546. 1.1.1 – O Primeiro Período (1540-1759) Graças a numerosos benfeitores, com destaque para a Família Real, o crescimento da Companhia de Jesus em Portugal foi extraordinariamente rápido. A Companhia tornava-se grande e respeitável. Portugal acabou mesmo por ser o seu berço10, mas também seria aqui que haveria de encontrar os maiores adversários, como se verá. Assim, se podemos dizer que Portugal foi o seu berço, do mesmo modo haveria de ser a sua sepultura! Os Jesuítas portugueses foram então educadores, confessores e pregadores dos Reis e da Corte, mas dedicaram-se com igual entusiasmo a um vasto leque de outras tarefas. Ocupavam‑se dos encarcerados, visitavam os hospitais, assistiam os condenados à morte e, indiferentes aos perigos, excediam-se em generosidade por ocasião de epidemias e calamidades, sem esquecer o grande empenho missionário. Toda esta actividade foi bruscamente interrompida por decisão de Pombal, em 1759, ao ser decretada a expulsão dos Jesuítas de todos os territórios portugueses11. Dominando o sistema de ensino, em Portugal e no Ultramar, vinculados por uma ligação especial a Roma, e possuidores de um grande influxo cultural, os Jesuítas formavam um corpo facilmente visto como ameaça para um sistema absolutista que ambicionava controlar todos os aspectos da vida social, incluindo uma Igreja mais submetida ao Estado. Se a esta moldura ideológica juntarmos a apetência pelo património

de Expulsão dos Jesuítas de Portugal, na íntegra, consultar: Franco, José Eduardo; Reis, Bruno Cardoso, Vieira na Literatura Anti-Jesuítica, Lisboa, Roma Editora, 1997, pp. 147-150. 12

Para ver o Breve de Extinção da Companhia de Jesus, na íntegra, consultar: Ibidem, pp. 151-164. António Lopes chega a referir que Sebastião José de Carvalho e Melo viveu uma verdadeira obsessão para com os Jesuítas e foi a pessoa que mais contribuiu para a extinção da Companhia de Jesus. Desenvolvendo, para esse efeito, uma intensa luta diplomática em todas as frentes, incluindo a própria Santa Sé. Lopes, António, O Enigma Pombal, Lisboa, Roma Editora, 2002. 13

Franco, Vieira na Literatura Anti-Jesuítica, p. 62. 14

Olaio, Nuno, «Carlos João Rademaker (1838-1885). Percurso do restaurador da Companhia de Jesus em Portugal», Lusitania Sacra 12 (2000), 95. 15

Nestes dois Colégios organizavam-se, com frequência, viagens de observação a vários pontos do país e de Espanha, para estudar, in loco, eclipses e outros fenómenos astronómicos. Entre outros alunos que se notabilizaram nestes dois colégios, podemos mencionar Almada Negreiros, aluno de Campolide, e o médico e Prémio Nobel Egas Moniz, que estudou em S. Fiel, do qual deixou o seguinte testemunho no livro A Nossa Casa: «davam certo desenvolvimento à parte experimental, o que contrastava com a maior parte do ensino liceal desse tempo. O laboratório de química e o gabinete de física estavam suficientemente apetrechados e o ensino baseava-se em experiências sempre que isso era possível». Conclui ainda com toda a clareza: «Apraz-me deixar aqui o meu depoimento imparcial».

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Moniz, Egas, A Nossa Casa, Lisboa, Paulino Ferreira, Filhos, Lda., 1950, p. 254. Com a expulsão dos Jesuítas, em 1910, parte destes instrumentos didácticos, de física e de química, do Colégio de S. Fiel, acabariam por ser transferidos para um estabelecimento de ensino oficial de Castelo Branco, e as várias colecções de animais e plantas levadas para o Museu da Universidade de Coimbra. Quanto ao material que possuía o Colégio de Campolide foi disperso por vários estabelecimentos oficiais, não se sabendo ainda hoje o seu exacto paradeiro. Apenas se sabe, com toda a certeza, que estas colecções, de muito valor científico, foram objecto de grande polémica entre os jornais republicanos, defendendo uns que o Governo não se podia apropriar desse espólio por ser património da Humanidade, enquanto outros apoiavam o Governo. 16

Carvalho, José, A Concordata e o Acordo Missionário de Salazar, Lisboa, Via Occidentalis Editora, 2008. 17

Gonçalves, Nuno da Silva, http://www.companhiajesus.pt/intro/hist_port.htm 18

Sousa, Paulo Sérgio Graça, «Os Jesuítas e a Primeira República», História 151 (1992), 90-96. 19

Araújo, António, Jesuítas e Antijesuítas no Portugal Republicano, Lisboa, Roma Editora, 2004, p. 58. 20

Os últimos anos da Monarquia tinham sido férteis em legislação e atitudes antijesuíticas. Relembremos, a este propósito, as seguintes: em 1888 a proposta de José Luciano de Castro viria, à semelhança do decreto de 8 de Outubro de 1910, relembrar a legislação de Pombal e de Aguiar. No início de 1901, durante o Governo de Hintze Ribeiro, é produzida uma série de diplomas adversos às Congregações

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considerável na posse dos Jesuítas, teremos reunidas as condições para o desencadear da perseguição. A campanha antijesuítica, montada por Pombal, e que vamos ver um pouco mais aprofundadamente a seguir, levou à formulação de uma série de acusações publicitadas em toda a Europa, em sucessivas edições da obra Dedução Cronológica e Analítica. A luta de Pombal contra a Companhia de Jesus não se limitou aos domínios da Coroa portuguesa. Prolongou-se, em conjunto com as Cortes Bourbónicas, até alcançar o fim pretendido: a extinção da Companhia de Jesus, em 21 de Julho de 1773, por Breve do Papa Clemente XIV12. 1.1.2 – O Segundo Período (1829-1834) O segundo período vai de 1829 a 1834. A 7 de Agosto de 1814, pela Bula Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, a Companhia de Jesus foi restaurada pelo Papa Pio VII. Por iniciativa do governo de D. Miguel os Jesuítas regressaram a Portugal. Em Agosto de 1829 chegaram a Lisboa oito Jesuítas, que traziam como superior o padre belga Filipe José Delvaux. Num primeiro momento abriram um noviciado e iniciaram actividades apostólicas entre a população da capital e dos arredores. Em 1832, D. Miguel entregou-lhes o Colégio das Artes, em Coimbra13, mas devido à guerra civil as aulas só tiveram início em Fevereiro do ano seguinte. A 9 de Maio de 1834, o exército liberal ocupou Coimbra e os Jesuítas foram presos e escoltados até Lisboa. Estiveram presos no Forte de S. Julião da Barra até serem embarcados para Itália. Igual sorte tinham já sofrido os Jesuítas de Lisboa quando, em Julho de 1833, D. Pedro IV entrou na capital e os mandou embarcar em navios para Itália e Inglaterra. Para além do reinício de actividades educativas e pastorais, que não tiveram continuidade, este período de regresso efémero contou com a presença de 24 membros e ficou também marcado pelo empenho dos religiosos na assistência aos feridos da guerra civil e às vítimas da epidemia de cólera, ocorrida em 1833.


1.1.3 – O Terceiro Período (1848-1910) Chegamos então ao período de destaque da nossa pesquisa, o chamado terceiro, que compreende os anos de 1848 a 1910. O protagonista do segundo regresso dos Jesuítas a Portugal foi Carlos João Rademaker que, entrando na Companhia de Jesus, em 1846, em Itália, acabou, por força da instabilidade que lá se fazia sentir, vir para Portugal e ser encarregado de trabalhar em prol da restauração da Província Portuguesa. Nesse sentido, em 1858, deu início às actividades do Colégio de Campolide, contando com a colaboração de mais dois Jesuítas: o Irmão Martinho Rodrigues, sobrevivente da missão do tempo de D. Miguel e um Irmão espanhol. Nos anos seguintes, foram-se juntando novos elementos vindos, principalmente de Itália e abriu-se o noviciado, no lugar do Barro, perto de Torres Vedras. Em Setembro de 1863 constituiu-se oficialmente a Missão Portuguesa. No Outono desse mesmo ano os Jesuítas encarregaram-se do Orfanato de S. Fiel, na Beira Baixa, que transformaram em Colégio de renome. Em 1864 Carlos Rademaker traz para Portugal o padre Luís Prosperi, que será o introdutor do Apostolado da Oração no nosso país14. No início de 1880 a Missão contava cerca de nove comunidades com 137 elementos. Estavam reunidas as condições para que fosse restaurada a Província Portuguesa da Companhia de Jesus, o que veio a acontecer, por decisão do padre Geral Pedro Beckx, em decreto de 25 de Julho desse ano. Os dois Colégios, Campolide e S. Fiel15, além de importantes como estabelecimentos de ensino, tornaram-se também centros de intensa actividade científica. Em S. Fiel foi fundada, em 1902, a revista Brotéria16; assim denominada em homenagem ao naturalista português Avelar Brotero. Eram os professores dos Colégios que dirigiam a revista, publicando nas suas páginas artigos de investigação, com destaque para as áreas da Botânica e Zoologia. Entre esses sábios são de recordar: Joaquim da Silva Tavares, Cândido Mendes de Azevedo, Carlos Zimmermann, Afonso Luisier, Camilo Torrend e António

e Ordens religiosas. Em simultâneo os anticlericais organizam uma série de campanhas públicas. Hintze encerra várias residências religiosas, algumas delas ligadas à Companhia de Jesus (casas da Boavista no Porto; e do Quelhas em Lisboa), além dos estabelecimentos do Apostolado da Oração. Foi também o ano dos incidentes em Coimbra, a propósito das provas de Doutoramento em Teologia de Oliveira Guimarães, envolvendo o Bispo do Porto, D. António Barroso. O decreto de 18 de Abril de 1901 leva à instituição de inúmeras associações. Este decreto não passou de um equívoco, nos termos de António Araújo, porque o diploma não só não recusou o registo de nenhuma associação religiosa mas aumentou o número de Ordens religiosas que pretenderam constituir associações. Entre elas as dos Jesuítas: Associação Fé e Pátria, Associação Promotora da Instrução e Educação Popular (vocacionada para a formação das classes operárias) e a Associação Social Cristã (vocacionada para as mulheres). A batalha anticongregacionista de 1901, tendo o Caso Calmon por epicentro, deixou sequelas que se manifestaram depois nas vésperas do 5 de Outubro, sobretudo por acção da Junta Liberal e da Associação do Registo Civil. Estas, em Agosto de 1909, juntamente com o Grande Oriente Lusitano, a Associação dos Lojistas, grupos de republicanos, socialistas e a participação activa da Carbonária, promoveram a manifestação anticatólica de 2 de Agosto de 1909 em Lisboa, onde se reclama, entre outras coisas, o restabelecimento das leis antijesuíticas de Pombal e Aguiar. Já em 1908 Afonso Costa apresenta um projecto de lei em que assinala que estão em vigor as leis antijesuíticas de Pombal e Aguiar. Também a realização do I Congresso Nacional do

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Livre Pensamento, em 1908, assume uma posição claramente descristianizadora. Sem esquecer, porque directamente ligada aos Jesuítas em geral, e ao Novo Mensageiro do Coração de Jesus em particular, a questão da Voz de Santo António. O último governo da Monarquia, encabeçado por Teixeira de Sousa, mostra algum ressentimento em relação aos Jesuítas e ao Partido Nacionalista a quem responsabiliza pelos fracassos da Monarquia. Araújo, António, op. cit., pp. 65-74. Assinale-se que o Governo de Teixeira de Sousa tinha preparado, no dia 4 de Outubro de 1910, na véspera da Revolução, um decreto para encerrar as Casas dos Jesuítas. Ferreira, António Matos, «A Constitucionalização da religião». In Azevedo, Carlos Moreira de, História Religiosa de Portugal, vol. III – Religião e Secularização, Mem Martins, Círculo de Leitores, 2002, p. 53. Sousa, Teixeira de, Para a História da Revolução, vol. II, Coimbra, Livraria Editora Moura Marques & Paraísos, pp. 13-66. Martins, Rocha, D. Manuel II. Memórias para a História do seu reinado, vol. II, Lisboa, Sociedade Editora José Bastos, pp. 49-94. 21

Formosinho, Sebastião J., Ciência e Religião. A Modernidade do Pensamento Epistemológico do Cardeal Cerejeira, S. João do Estoril, Principia, 2002, p. 10. 22

Para uma visão geral destes Decretos ver: Aguiar, Joaquim António d’, A proposito da Extinção das Ordens Religiosas em Portugal. Relatório e Decreto, Porto, Typographia Central, 1899. 23

Ferreira, Manuel de Pinho, A Igreja e o Estado Novo na obra de D. António Ferreira Gomes, Porto, Fundação SPES, 2004, pp. 120-121. 24

A Casa Provincial passa, de início, para Exaten (Holanda); para Alsemberg

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de Oliveira Pinto. Outros nomes são dignos de referência pela sua acção apostólica: Carlos Rademaker, Bento Schettini, Luís Gonzaga Cabral, António de Menezes e Alexandre Castelo. No campo missionário importa lembrar, principalmente, a difícil missão da Zambézia para onde foram enviados, entre 1880 e 1910, 118 Jesuítas, dos quais 41 ali morreram. Também a Índia, Macau e Timor foram objecto do zelo missionário dos Jesuítas da Província de Portugal17, neste período. 1.1.4 – Jesuítas na I República Era inquestionável a força da Companhia, mas para quem pretendia instituir uma nova visão do mundo e da sociedade18, uma nova «moral» e uma nova «cultura», esta era uma força a abater19. Toda esta actividade foi interrompida violenta e abruptamente em Outubro de 1910, quando, pela terceira vez na sua História em Portugal, a Companhia de Jesus foi de novo expulsa e espoliada dos seus bens. O ambiente de perseguição que já se manifestara nos últimos anos da Monarquia 20, numa certa tentativa de a «republicanizar» 21, tentando, com isso, combater a oposição ao regime real, teve como corolário a decisão do governo provisório da República que, a 8 de Outubro de 1910, restaurou os decretos de Pombal e de Aguiar 22, determinando a expulsão dos Jesuítas 23. Antes de seguirem para o exílio, os religiosos ficaram presos em Lisboa: uns no Quartel de Artilharia Um e outros na prisão do Governo Civil, outros em Caxias e outros, ainda, no Limoeiro. Os membros da Província Portuguesa eram, então, 360. Desta vez, o exílio não interrompe a sucessão dos Provinciais, porquanto o governo da Província e muitas casas continuam as suas actividades no estrangeiro 24.

1.2 – Antijesuitismo em Portugal Nenhuma Ordem religiosa, como vimos, tem alimentado tantos ódios e tanta admiração como a fundada por Inácio de Loyola, tanto em Portugal como noutros países. Ordem que fez (e faz)


mobilizar e alimentar discussões, ódios, amores e intrigas 25. E, relativamente ao estudo e análise dos Jesuítas, se a ele nos quisermos dedicar, como nos diz Eduardo Franco, necessitamos de realizar dois auto-exorcismos. O exorcismo do demónio do encantamento e do encómio pela organização, eficácia e obra dos Jesuítas que nos pode possuir, veiculado pelos abundantes livros filojesuíticos. E o exorcismo do demónio da acusação e da execração da acção dita perversa dos mesmos Jesuítas, que nos pode também, facilmente, enfermar as análises, inculcado pelos mananciais de literatura antijesuítica produzida por séculos de polémicas e lutas contra a Companhia de Jesus, deixando na nossa mentalidade e na nossa cultura, arquétipos ou estereótipos, dos quais temos dificuldade de nos libertar. A figura lendária dos Jesuítas e do Jesuitismo tornou-se um dos mais fabulosos e mais significativos mitos engendrados na História da cultura portuguesa, congénere do mito internacional da Companhia de Jesus 26. Produzido pela militância propagandística do movimento antijesuítico, a génese deste processo de mitificação dos Jesuítas surge no seio da própria Igreja. Os mentores e activistas do combate contra os religiosos da Companhia foram primeiramente eclesiásticos 27. Com o evoluir da História desta Ordem, o legado antijesuítico foi sendo apropriado por outros sectores menos comprometidos com a Igreja hierárquica. No período do iluminismo, a tradição antijesuítica foi gerida e desenvolvida, empenhadamente, pelos adversários regalistas da supremacia do poder papal, para depois, no tempo do liberalismo e do republicanismo, o antijesuitismo ser herdado e recriado pelas elites culturais nacionalistas de filiação laica e anticlerical, bem como pelos intelectuais anticatólicos 28. Desde o Marquês de Pombal, particularmente, a palavra «Jesuíta» é sinónimo da maior barreira de divisão e de definição de «campos de batalha» 29. Foi ele o homem de Estado que elaborou nos catecismos antijesuíticos a imagem negra do mito. Pombal vai investir, pelos meios diplomáticos e com apoio do Estado, na tradução de obras e documentos antijesuíticos 30 das principais línguas estrangeiras. Nestes escritos, figuravam

(Bélgica), em 1911; para Tuy, em 1914; regressando ao Porto, em 1932 e a Lisboa em 1934. 25

Leroy, Michel, O Mito Jesuíta, Lisboa, Roma Editora, 1999, p. 14. 26

Franco, José Eduardo, O Antijesuitismo em Portugal. História e Mito, http:// www.triplov.com/letras/ eduardo_franco/jesuitas. html. O mito antijesuíta inscreve-se, ao que nos refere Michel Leroy, no género mais alargado dos mitos conspiracionistas da História. Acabando por desenvolver a ideia do Jesuíta como o «outro» aquele «estrangeiro» e com acepção negativa. Ainda sem esquecer a ideia sempre presente de que Jesuitismo é igual a ultramontanismo no sentido de obediência a Roma. Instituição muito poderosa e antinacional, com um excessivo peso e importância na sociedade e como a tradução clara de um Estado dentro do Estado. No caso português seria Sebastião Carvalho e Melo o principal propagandeador desta associação de ideias. Resumindo esta questão a uma declaração muito precisa: Jesuítas igual a inimigos do Estado, logo da pátria portuguesa, assim sendo, uma conclusão se retira: necessidade de destruição deste feroz inimigo, na concepção Pombalina. Leroy, Michel, op. cit., pp. 13-18. 27

Como nos refere este autor que temos vindo a seguir, Michel Leroy, o antijesuitismo engendra-se no decurso das polémicas em torno da ortodoxia doutrinal do fundador da ordem. Isto deve-se à crítica que os Jesuítas faziam à decadência do monaquismo tradicional e, além disso, pela conquista de influência que esta ordem, desde os inícios, conseguiu. Franco, José Eduardo, «Fundação Pombalina do mito da Companhia de Jesus». In Revista de História das Ideias 22 (2001), 210-

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‑221. Neste último trabalho diz-nos o seu autor que emblemática da orquestrada campanha anti-inaciana se encontra expressa nas pastorais antijesuíticas escritas e mandadas ler nas missas, citando o exemplo do Bispo do Funchal. Ibidem, p. 238. Também: Wright, Jonathan, op. cit., pp. 32, 180-184. 28

Franco, O Antijesuitismo em Portugal. História e Mito. 29

Uma chamada de atenção importante vai para o facto de que quando a palavra «Jesuíta» ou «Jesuitismo» era proferida não estava necessariamente associada aos membros da Companhia. Tinha, como diz Jonathan Wright, uma expressão geral de uma injúria, claramente anticatólica. Wright, Jonathan, op. cit., p. 269. Fala‑nos a Encyclopédie, de 1766, no artigo Jesuítas – dos vergonhosos comportamentos, tais como: tiranícidio, intriga política, a atracção pelas artes negras, etc. Isto apareceu no oitavo volume. Ibidem, p. 327. Pelo seu semantismo impreciso, o termo «Jesuíta», servia para designar qualquer adversário e, simultaneamente, para o denegrir. Estas manobras, pela diabolização semântica do adversário, revelaram-se eficazes, daí que ninguém se tenha levantado a 5 de Outubro a sair em defesa dos Jesuítas. Se quisermos tinha o mesmo efeito e significado que «fascista» aquando do 25 de Abril de 1974, ou membro da Opus Dei em pleno século XXI! 30

Apenas a título de curiosidade refira-se a célebre Dedução chronologica e analytica. Esta é claramente uma obra fundadora da matriz fundamental do antijesuitismo em Portugal. Ao que nos diz Eduardo Franco e Bruno Reis «é o caso paradigmático e o protótipo do mito do complot.» Franco, José Eduardo; Reis, Bruno Cardoso, «O Padre António Vieira na literatura antijesuítica (sécs. XVIII-XX)»,

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os Jesuítas como terrível peste, como uma doença contagiosa, como uma máquina de desavença, de intriga e de destruição dos poderes legítimos e da ordem social estabelecida. A sua leitura e comentário contribuiu para a criação da mentalidade antijesuítica, conseguindo instigar intelectuais iluministas e regalistas espanhóis, franceses, italianos, alemães, entre outros, a defender a necessidade de seguir o «bom» exemplo português de combater a poderosa Companhia de Jesus 31. O ministro de D. José I fê-lo em nome da necessidade de Portugal começar a andar ao passo da Europa iluminista, responsabilizando os Inacianos por toda a decadência e pelo atraso que Portugal sofria. Atraso este que o colocava abaixo do nível do progresso e do prestígio cultural dos países cultos da Europa. Todavia, no processo de destruição dos Jesuítas e da promoção da sua exterminação, Portugal foi o pioneiro. A Europa seguiu-lhe o exemplo. A Companhia de Jesus foi oficialmente extinta, como se viu, pelo Breve Dominus ac Redemptor do Papa Clemente XIV a 21 de Julho de 1773 32. Deste modo, Pombal obteve uma das vitórias mais paradoxalmente ambíguas e amargas da História de Portugal, no dizer de Eduardo Franco 33. Como vimos, a causa remota do antijesuitismo português encontra-se na sombra tutelar de Pombal. E, significativamente, será a recuperação da legislação pombalina o elemento central do decreto de 8 de Outubro de 1910 34. O século XIX liberal, como nos refere Eduardo Franco, é caracterizado pelo síndroma antijesuítico, pela obsessão de diagnosticar os focos de jesuítismo, e pela preocupação constante de o atacar e erradicar 35. O antijesuitismo acaba por ser, na opinião de Michel Leroy, uma atenuada versão, eufemizada, se quisermos, e até mesmo erudita, de anticatolicismo 36. Esta actualização da imagem negativa dos Jesuítas é operada por meio de artigos, libelos, romances 37, obras estoriográficas! 38, editais, manifestos 39, comícios, jornais especializados, leis, etc. sendo também enriquecida por traduções, como são exemplo as várias edições da Monita Secreta 40, do Judeu Errante 41 e de outros romances e estórias antijesuíticas feitas pelas editoras


liberais, republicanas e maçónicas. Estas traduções apoiavam a propaganda contundente dos centros republicanos e maçónicos contra a Companhia de Jesus e esta é vista como a antítese complotística perfeita do progresso nacional. Tratava-se de um ressentimento contra a Companhia que se revestia, muitas vezes, com retórica de ressonâncias nobres do espírito liberal e republicano-democrático, relativamente ao qual os Jesuítas seriam a antítese: uma regressão aos desígnios políticos medievais e teocráticos. O catolicismo em geral, e os Inacianos em particular, nada mais eram além de um sistema de trevas e escravatura mental 42. Os Jesuítas são apresentados como uma máquina de guerra e, portanto, como um inimigo invasor. Uma perigosa organização ultramontana destituída de qualquer sentimento nacional 43, e sem qualquer interesse no serviço da nação. Apenas favorecia o seu atavismo e levava a cabo o seu projecto de obscurantismo e de infantilização das consciências sob o freio de uma religião baseada no medo mais atroz e na obediência mais cega. Daí que seja defendido o uso de todos os meios para derrotar este inimigo altamente perigoso para o país. A nível dos doutrinadores e propagandistas do anticatolicismo português em geral, e do antijesuítismo em particular, desta época (fins do século XIX e inícios do XX), destacam-se, entre outros, Teófilo Braga, Alexandre Braga 44, Miguel Bombarda, José Caldas45, Manuel Borges Graínha 46, sendo este último um ex-aluno Jesuíta. Nestas individualidades nota-se, claramente, uma veia polemizante antijesuítica 47. Como nos diz o autor que temos vindo a seguir, Eduardo Franco, a campanha antijesuítica, «apesar do absurdo dos seus argumentos, não deixou de ter uma sustentação «cientificizante», dada pelos «cientistas» do positivismo, de fidelidade republicana». Caso notório é o de Miguel Bombarda, que fez um estudo científico dos Jesuítas, integrando-os nas tipologias médico-psiquiátricas que caracterizam os casos de loucura. Neste sentido, a religião é considerada, nas pessoas que a promovem, um sintoma inequívoco de loucura. Os Jesuítas, sendo considerados os promotores mais aguerridos da religião na

Brotéria 145 (1997), 501. Para uma análise e comentário geral da citada obra antijesuítica consulte-se: Franco, José Eduardo, «A visão do outro na literatura antijesuítica em Portugal: de Pombal à primeira República», Lusitania Sacra, 12 (2000), 121-142. Franco, «Fundação Pombalina do mito da Companhia de Jesus», pp. 229-234. E ainda Franco, José Eduardo, «O mito dos Jesuítas em Portugal. Literatura, História e Arte». In http://www.eventos.uevora. pt/conhecimento_proibido/contributos/23_6_2003/ Eduardo_Franco_-_ANTIJESUITISMO_EM_PORTUGAL__1_.htm 31

Leroy, Michel, op. cit., p. 9. 32

Gonçalves, Nuno da Silva, «A Companhia de Jesus em Portugal». In http://www. companhia-jesus.pt... 33

Franco, O Mito dos Jesuítas em Portugal. Mais de 1100 membros da Companhia tinham sido expulsos, mais 250 presos. Wright, Jonathan, op. cit., pp. 201‑204. 34

Araújo, António, op. cit., p. 84. 35

Ao longo do século XIX, a tradição demo-republicana antijesuítica divulgou menos a sua produção anti-inaciana no estrangeiro, que traduziu e difundiu em Portugal obras contra o jesuitismo, particularmente de língua francesa. Já com a I República e as obras saídas a lume, para sustentar, pela força da palavra escrita, as campanhas persecutórias contra os Jesuítas, verifica-se novamente um investimento na tradução, particularmente para a língua diplomática de então, o francês, de alguns livros que faziam dos Jesuítas os representantes aguerridos do velho regime deposto e os fautores do obscurantismo, do fanatismo e da ignorância que o republicanismo queria extirpar.

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O antijesuitismo do século XIX não pode ser desligado, como sabemos, da acesa questão religiosa, das conturbadas relações entre a Igreja e do Estado e da progressiva secularização da sociedade e da cultura. 36

Leroy, Michel, op. cit., p. 58. 37

Barata, António Francisco, Os Jesuítas na Corte. Romance Histórico. Reinado de Dom João V. 1877. Pires, A. de Oliveira, Os Jesuítas. Romance Histórico do Século XVIII. 1873. 38

Entre o conjunto imenso de publicações antijesuíticas podemos destacar, a título exemplificativo, as seguintes: Assumpção, T. Lino de (coord.), História Geral dos Jesuítas desde a fundação até aos nossos dias, Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1901. Caldas, José, Os Jesuítas e a sua influência na actual sociedade portuguesa, meio de a conjurar, Porto, Livraria Chardron, 1901. Ver bibliografia antijesuítica mais completa em Araújo, António, op. cit., pp. 75-82 e em Franco, José Eduardo, O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX), vol. II – Do Marquês de Pombal ao século XX, Lisboa, Gradiva, 2007, pp. 365-376. 39

Como exemplo veja-se: PERINDE AC CADAVER, Manifesto da Academia do Porto. Castro, Américo de, Últimos anos da Monarquia. Memórias, Porto, Livraria Fernandes, 1918, pp. 21ss. 40

As Instruções Secretas dos Jesuítas é a tradução mais habitual do nome do libelo editado originalmente em latim, Monita Privata Societatis Jesu, no ano de 1614, por um ex-jesuíta polaco banido da Companhia, e que depois se veio a simplificar com o título Monita Secreta. Este documento foi dos mais publicados ao longo da História nas campanhas internacionais movidas con-

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sociedade, estariam num dos patamares mais elevados da tipologia da loucura 48 e dada a gravidade da situação, na óptica antijesuítica, estes requereriam um «tratamento» que Miguel Bombarda apresenta da seguinte forma: os Jesuítas sinceros deveriam ir para o manicómio, porque sofriam de loucura religiosa em elevado grau, e os Jesuítas hipócritas deveriam ser exilados numa ilha juntamente com os criminosos comuns, de modo a serem impossibilitados de contaminarem a sociedade, com a sua doença 49. A campanha sistemática contra os Jesuítas (variante privilegiada e especializada das campanhas anticlericais) promovida pelas alas liberais, republicanas, positivistas e maçónicas 50 vai desembocar na expulsão dos Jesuítas com a República em 1910. A ideologização e mitificação que lhe esteve na base assumiu uma feição de carácter racista, promovendo a segregação social dos membros da Companhia de Jesus como se de uma raça degenerada se tratasse, mas uma raça fabricada artificialmente pela instrução Jesuítica. Esta «raça minoritária», mas poderosa, deveria merecer um tratamento mais rigoroso, isto é, a sua exterminação do tecido social, porque entendida como contaminante deste mesmo tecido. A República tirou as consequências: confiscou os bens, prendeu os Jesuítas, fez-lhe mensurações frenológicas e tentou irradicar o mal, expulsando a «peste» jesuítica do país. Depois continuou a justificar esta medida produzindo panfletos, estórias!, alguns libelos, leis e estudos para denegrir e desacreditar o trabalho dos Jesuítas, vertendo também alguns destes escritos na língua diplomática de então, o francês, para validar as razões da sua atitude51. Aqui, o republicano, o liberal e o maçon unem-se ao absolutista numa cumplicidade paradoxal e numa inesperada união de contrários ideológicos para legalizar a extirpação de um inimigo comum: os Jesuítas. A República põe em vigor as leis de Pombal e considera-o um símbolo heróico e exemplar do passado nacional, escamoteando os princípios despóticos que guiavam a sua acção política e fazendo-o percursor dos ideais de liberdade, de tolerância e de democracia.


O objectivo de fazer aumentar a campanha internacional de ódio contra a Ordem estava conseguido e a Companhia de Jesus acabaria por ser identificada com o próprio mal, isto no sentido mais incarnado e mais destrutivo do termo 52. O mito anti-inaciano, não nos esqueçamos, enquadra-se num processo de claro conflito político-ideológico que engloba uma série de questões pessoais, político-ideológico-culturais e, ainda, económicas, personalizadas na figura histórica do antijesuitismo por excelência: Sebastião Carvalho e Melo, vulgo Marquês de Pombal. Ao que vimos, até agora, o antijesuitismo era um problema particular no universo da questão religiosa. Não se confundia com anticlericalismo e, muitas vezes, era até a defesa de uma Igreja mais «pura» que levava os inimigos da Companhia Inaciana a dizerem querer combater os corrompidos sacerdotes da Companhia de Jesus. Mas, teriam sido os Jesuítas incapazes de compreender o seu tempo? E culpados das perseguições a que seriam sujeitos após o 5 de Outubro de 1910? Isto por causa dos «erros» que os seus inimigos diziam ter sido cometidos na fase final da Monarquia, particularmente com o seu envolvimento na vida política activa, que passou pela aposta no Partido Nacionalista de Jacinto Cândido 53, quando esta postura foi contestada no seio do catolicismo português, de que é exemplar o conflito com os Franciscanos da Voz de Santo António, acabando por contribuir para o isolamento Jesuíta e facilitando a vida aos antijesuítas, como principal alvo a abater? 54 1.2.1 – Antijesuitismo no ensino

tra os Jesuítas. Estas Instruções Secretas, falsamente atribuídas à Companhia de Jesus, ou em algumas edições ao padre Geral Cláudio Aquaviva, transmitem a ideia de que a acção dos Jesuítas era guiada por intenções de dominação maligna e de afirmação de um poder ilimitado. As Monita Secreta pretendiam fazer a inversão do sentido das Constituições da Companhia de Jesus, que seriam apenas um disfarce, a fim de dar uma imagem temerária da Companhia capaz de assustar, fortemente, qualquer destinatário, desde os governantes mais poderosos até ao simples indivíduo do povo, que não deixa de ser dado como alvo do monopólio dos Jesuítas no seu percurso de ascensão em direcção ao poder supremo. As Instruções Secretas foram difundidas em Portugal nos períodos cruciais das campanhas antijesuíticas como arma de arremesso privilegiada para desmoronar a boa fama da Ordem Jesuíta. Depois de circularem durante mais de um século sob a forma manuscrita em Portugal, foram publicadas primeiro, em 1767, ainda em língua latina no quadro das campanhas pombalinas contra a Companhia. Ver edição e análise crítica feita por José Eduardo Franco e Cristine Vogel, Monita Secreta. Instruções Secretas dos Jesuítas. História de um manual conspiracionista, Lisboa, Roma Editora, 2002. 41

Uma vez que a força dos Jesuítas estava, em larga medida, no tipo de ensino ministrado, o discurso antijesuítico sobre o ensino iria consistir no seu sistemático ataque 55. Destacam‑se os já citados Colégio de Campolide e S. Fiel. O primeiro é apontado como instituição de elite. Diz-nos um dos arautos do antijesuítismo português, Borges Graínha, que no Colégio se dedicavam a práticas de extorsão, ministravam um ensino caduco e, além disso, se associavam, claramente, ao Partido Nacionalista.

Podemos recordar duas traduções feitas para a língua portuguesa do romance de Sue, Eugène, O Judeu Errante, Lisboa, Typographia Lusitana, 1845-46, e O Judeu Errante, Edição Ilustrada, Rio de Janeiro, 1840. 42

Wright, Jonathan, op. cit., p. 266. 43

Ainda para mais se tivermos presente o facto de que a Companhia tem, além dos três votos tradicionais das Ordens Religiosas, um quar-

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to: de especial obediência ao Papa. Deste modo os Jesuítas eram vistos como homens de confiança de Roma, como ameaça e rival de toda a autoridade secular. Ibidem, p. 240. 44

Em Abril de 1881 falaria num discurso antijesuítico, realizado no Porto, no Teatro de S. João (o texto seria publicado: Braga, Alexandre, Discurso pronunciado no Comício anti-jesuítico, realizado no Theatro de S. João a 17 d’Abril de 1881, Porto, Typographia Occidental, 1881). Sublinhe-se o facto de este ano de 1881 ser o do início da publicação da II Série do Novo Mensageiro que vamos analisar. Tomava da palavra ainda num outro encontro antijesuítico, também realizado no Porto, no Teatro dos Recreios, em 1885 (Discurso pronunciado no comício anti-jesuítico Realizado no Theatro dos Recreios a 7 de Setembro de 1885, Porto, Typographia Occidental, 1885). 45

Caldas, José, Os Jesuítas e a sua influência na actual sociedade portuguêsa: meio de a conjurar, Porto, Livraria Chardon, 1901. Caldas, José, A Corja Negra (tosquia de um charlatão), Porto, Livraria Chardon de Lelo & Irmão, 1914. 46

Borges Graínha é aquele que, na opinião de António de Araújo, tem o discurso mais articulado. Araújo, António, op. cit., p. 95. Obras polemizantes da autoria do ex-aluno jesuíta apresentam-se: Graínha, Manoel Borges, Os Jesuítas e as congregações religiosas nos ultimos trinta annos. A proposito do Caso das Trinas. Porto, Typographia da Empreza Litteraria e Typographica, 1891. Graínha, Manoel Borges, O Portugal Jesuíta. Para uma elencagem das obras anticatólicas portuguesas em geral, e do antijesuitismo em particular, veja-se: Abreu, Luís Machado de, Ensaios Anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004, pp. 149-163.

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Relativamente ao Colégio de S. Fiel, diz-nos Pedro Ferrão, um dos elementos da encarniçada campanha antijesuíta da época, são acusados os padres dos piores vícios, de contribuírem, com o seu ensino, para o embrutecimento dos espíritos. Acusa ainda de praticarem castigos corporais e psicológicos. Os padres entregavam-se a uma vida luxuosa 56 e a sua vida privada era um verdadeiro caso de polícia, masturbação, pedofilia e assédio sexual; enfim, a mais profunda devassidão 57. 1.2.2 – Contradições do antijesuitismo Apesar do discurso antijesuíta se limitar a repetir os mesmos lugares comuns, não deixou de resvalar em profundas contradições 58. Vejamos algumas: a acusação dos prejuízos da educação Jesuíta; mas muitos dos antijesuítas e dos anticatólicos republicanos, tinham sido alunos dos Jesuítas. No entanto, também podemos ver o outro lado do problema: poderiam as suas atitudes anticatólicas serem fruto de ressentimentos contra o ensino Jesuíta ou então falavam com conhecimento de causa; mas não nos parece que assim seja, até porque de entre os milhares de alunos que por lá passaram apenas estes arautos republicanos, antijesuítas e anticatólicos tinham esta opinião sobre o ensino Jesuíta. Se referirmos o já citado caso de Egas Moniz, republicano insuspeito, julgamos ser suficiente para perceber e ilustrar esta questão. Como vimos, Egas Moniz teceu os maiores elogios ao ensino que recebeu dos Jesuítas. E então que dizer da grande maioria silenciosa de alunos que se sentaram nas cadeiras das salas dos colégios Jesuítas? Além disso, observemos a seguinte questão: se por um lado era de «bom tom» para os antijesuítas referirem as perversidades e atraso do ensino ministrado, por outro lado referia‑se que lá era ministrado um ensino de elite, declaração com o objectivo de defender o mito do complot inaciano com as altas esferas político-económico-sociais do país 59. Puros paradoxos que temos a obrigação de referir.


1.2.3 – Antijesuitismo republicano

47

A 5 de Outubro de 1910 o espantalho Jesuíta haveria de ser agitado perante uma opinião pública que precisava, urgentemente, de um bode expiatório. O «Abaixo os Jesuítas» ouve-se por todo o lado! Porém, antes da mudança de regime, como vimos, já se fazia ouvir em altos brados o terror Jesuíta, daí que se compreenda a aparente apatia, por parte da hierarquia católica nacional, mas também dos leigos, frente ao ataque vigoroso, por parte dos novos poderes, contra a Companhia de Jesus, julgando, com esta posição, que os republicanos apenas pretendiam «castigar» os Jesuítas pelo seu passado. A campanha contra os Inacianos é, para os universitários e intelectuais, um meio de preservação do monopólio e para os políticos do governo, um meio de combater a oposição de direita. Para a oposição, o meio de levar a ofensiva para o governo. A opinião pública é inflamada pela imprensa 60. Os Jesuítas acabaram por sofrer gravíssimas ofensas com a aplicação do decreto de 8 de Outubro que obrigou a totalidade deles a exilar-se em Espanha, França e Itália 61. Seria precisamente a expulsão dos Jesuítas que, após o 5 de Outubro de 1910, daria ensejo a que Afonso Costa fosse alegoricamente figurado como um novo Marquês de Pombal 62. Um aspecto a destacar, como nos diz Maria Lúcia Moura, «a esse tempo, já a questão religiosa extravasava muito para além do antijesuitismo». Quando ocorre o 5 de Outubro, a Guerra Religiosa conhecerá embates muito mais violentos do que aqueles que vimos no passado 63. Mas essa questão não cabe, de modo algum, no âmbito temático-cronológico deste trabalho.

48

Conclusão Se Portugal, nas vésperas da República, tinha 99% de católicos 64, como foi possível toda a luta anticatólica? Como é possível que, aparentemente, menos de 1% da população, conseguisse perseguir uma imensa maioria?

Franco, José Eduardo, «O Padre António Vieira na literatura anti-jesuítica», p. 512. Idem, «A visão do outro na literatura antijesuítica», p. 138. 49

Bombarda, Miguel, A ciência e o jesuitismo. Réplica a um padre sábio, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1900, pp. 178-179. 50

É unanimemente aceite por todos os historiadores que o movimento antijesuítico teve um claro apoio por parte da maçonaria, seja ele directo ou indirecto, através das suas associações – ditas para-maçónicas. Por exemplo, as manifestações populares antijesuíticas, os comícios antijesuíticos, os escritos. A este propósito refere António Araújo o facto da maçonaria alimentar a propaganda antijesuítica, ilustrando esta questão com o folhetim: A Maçonaria e o Jesuitismo. Araújo, António, op. cit., p. 202. Isto sem precisarmos de relembrar o facto dos membros do governo provisório da república, no dia 8 de Outubro de 1910, e que promulgaram o decreto antijesuítico, eram conhecidos e reconhecidos como maioritariamente pertencentes à maçonaria. Marques, António Henrique de Oliveira, A Maçonaria Portuguesa e o Estado Novo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995, pp. 52-53. Sobre a Maçonaria e o seu papel no Portugal dos séculos XIX e XX, consultar: Ventura, António, «As Sociedades Secretas em Portugal no século XIX». In Medina, João (dir.), História de Portugal, vol. XII – Monarquia Constitucional (II), A República (I), Madrid, Mateu Cromo, Artes Gráficas, 2004, pp. 247-328. E Medina, João, «A Carbonária portuguesa e o derrube da monarquia». In Medina, João (dir.), História de Portugal, vol. XII – Monarquia Constitucional (II). A República (I), Madrid, Mateu Cromo, Artes Gráficas, 2004,

243


pp. 355-390. Morais, Jorge, Com Permissão de Sua Majestade. Família Real Inglesa e Maçonaria na Instauração da República em Portugal, Via Occidentalis Editora, 2005. Almeida, Fortunato de, História de Portugal, vol. III – Instituições Políticas e Sociais de 1580-1910, reedição (2005), p. 421. 51

Por exemplo Manuel Borges Graínha traduziu para o francês, entre outras obras antijesuíticas, um trabalho sobre o mais importante colégio da Companhia de Jesus do período da sua segunda restauração: Histoire du collége de Campolide et de la Résidence des Jésuites à Lisbonne, Lisbonne, A Editora Limitada, 1914. Franco, José Eduardo, O Antijesuitismo em Portugal. História e Mito. 52

Ibidem.

53

Neto, Vítor, «O Nacionalismo Católico em Jacinto Cândido», Revista de História das Ideias 22 (2001), 395-417. 54

Araújo, António, op. cit., p. 16. 55

Ibidem, p. 103.

56

Ferrão, Pedro, A Educação Jesuítica. O Colégio de S. Fiel. Subsídios para a história contemporânea dos jesuítas, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1910. 57

Araújo, António, op. cit., pp. 104-105. 58

Ibidem, pp. 112-121.

59

Ibidem, p. 114.

60

A este propósito seria conveniente fazer um exaustivo estudo sobre a repercussão jesuitofóbica nas vésperas da república e no período imediatamente ao 5 de Outubro, na imprensa e publicações da época. 61

Serrão, Joaquim Veríssimo, «A obra legislativa de Afonso Costa». In História de Por-

244

Terá sido pela falta de envolvimento dos católicos na sua própria defesa? Com efeito, a desunião e a conflitualidade entre os católicos acabou por ser, na nossa opinião, a principal razão para essa situação. Mas também, na esteira de Gomes dos Santos e de Sena de Freitas, a falta de formação do clero e dos Bispos. Como nos diz Sena de Freitas, seria necessário um clero mais instruído e interveniente na sociedade e na cultura 65. Além disso, por paradoxal que pareça, em momentos como estes de fins do século XIX e inícios do XX, nunca, como até então, se tinha falado da necessidade de «União» católica, acabando esta por originar e trazer consigo o grave problema da «DesUnião» e da «Divisão». Grande parte da «energia católica» foi desperdiçada em guerras intestinas, em discussões e debates que não só dividiram mas, mais grave do que isso, permitiram o fortalecimento dos adversários. Veja-se o caso da Revista o Novo Mensageiro do Coração de Jesus (1881-1910) que, ao longo de milhares de páginas, sempre falou da necessidade da «União Católica» e acabou por contribuir, paradoxalmente, para a divisão no seio do movimento católico nacional, como atesta a polémica com a Voz de Santo António 66! Outras razões que devem apontar-se para a perseguição anticatólica são: a apatia do clero e dos católicos, afastamento dos católicos da Igreja tradicional, agitação social e as novas utopias. Daqui se depreende a eficácia da união e espírito de militância das forças anticatólicas e a apatia da maioria silenciosa católica, que levou a um abatimento do prestígio e influência da Igreja e do cristianismo, as quais, mais tarde, seriam recuperadas (ou tentadas recuperar!), revelando, todavia, algumas cicatrizes. Não nos parece aceitável defender, como alguns fazem, ver na desenfreada luta anticatólica uma espécie de legítima defesa desencadeada contra uma Igreja de «combate», munida do Syllabus Errorum Modernorum, da Quanta Cura, ou da Infalibilidade Pontifícia. A posição anticatólica tem uma maior profundidade que os «armamentos» desta Igreja, que surge


com Pio IX; além do mais, quando chegamos ao Pontificado de Leão XIII, a partir de 1878, esses tempos de Pio IX já há muito que tinham passado. Se, por um lado, os anticatólicos partem, no início, de uma posição defensiva, contestando os supostos desvios da Igreja, apontando alguns abusos de membros do clero, condenando as Congregações Religiosas, etc., sem colocar em causa os fundamentos do catolicismo, por outro lado, numa fase posterior, já chegavam a uma militância laica e claramente anticatólica, não admitindo a existência de Deus e os fundamentos e mesmo validade da religião católica. O culminar desta questão chega pelas posteriores declarações, de Afonso Costa, de «extermínio» da religião católica, em Portugal, em apenas duas gerações; pretendendo ir mais longe, orquestrando uma campanha, dirigida por este, que pretendia, nas suas próprias e autorizadas declarações, a erradicação do catolicismo em Portugal 67. Esta questão da declaração, ou suposta declaração, deu azo a muita polémica, até que Fernando Catroga, deu (aparentemente) o caso por encerrado. As declarações teriam sido proferidas. Embora não possamos garantir que elas tenham sido proferidas naqueles termos, existe pelo menos, na nossa opinião, uma certeza: a intenção de Afonso Costa, a sua actuação, o seu projecto político-ideológico-filosófico e pessoal, caminhava no sentido das referidas declarações. Todavia, existe, inegavelmente, uma espécie de anticatolicismo de influência liberal (profundamente anticongregacionista e anti-ultramontano, não visando a existência do catolicismo) e um outro mais radical, de linha republicanomaçónico-jacobina. A propósito do Jesuitismo, e da sua oposição, recordemos que os Jesuítas, em Portugal, encontravam-se, pelo menos desde 1901, à margem da legalidade; pois estavam em claro desvio relativamente ao regime instituído pela lei desse ano. A Casa do Quelhas, cedida pela Associação Fé e Pátria, constituía uma comunidade onde vivia um conjunto de sacerdotes (7) que redigiam as revistas o Mensageiro do Coração de Jesus e Mensageiro de Maria. Esta comunidade não tinha Estatutos

tugal, vol. XI (1995), Lisboa, Editorial Verbo, p. 58. 62

«Ressurreição irrisória d’um Marques de Pombal», Imparcial, n.º 8, Coimbra, 11 de Abril de 1912. 63

Moura, Maria Lúcia de Brito, A Guerra Religiosa na Primeira República. Crenças e mitos num tempo de utopias, Cruz Quebrada, Editorial Notícias, 2004, pp. 28, 32. 64

Ao findar a Monarquia, a grande potência religiosa de Portugal era a Igreja Católica. O censo de 1900 atribuía-lhe 5.416.204 fiéis, 99,8% da população do país. Marques, António Henrique de Oliveira, História de Portugal, vol. XI – Da Monarquia para a República, Lisboa, Editorial Presença, 1991, p. 479. 65

Santos, Gomes, O Catholicismo em Portugal, Póvoa de Varzim, Livraria Povoense Editora, 1906. Freitas, Sena de; Spalding, Jonh Lancaster, A alta educação do padre, prefácio de D. Manuel Clemente, nova edição coordenada por José Eduardo Franco, Lisboa, Roma Editora, 2003. 66

Carvalho, José António Ribeiro de, Os Jesuítas nas Vésperas da I República: o Novo Mensageiro do Coração de Jesus (1881-1910), Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007. E que será publicado: Carvalho, José, Católicos nas Vésperas da I República (1881-1910), Porto, Livraria Civilização Editora, 2008. 67

Catroga, Fernando, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, Lisboa, Editorial Notícias, 2000, pp. 357‑359. 68

Araújo, António, op. cit., p. 167. Isto porque com a legislação de Hintze Ribeiro, os Jesuítas passaram a «es-

245


conder-se» sob a designação de Associação Fé e Pátria. Esta estava autorizada pelo poder político. O Decreto determinava a superintendência do Estado sobre as Congregações e a sua obediência ás autoridades eclesiásticas nacionais, mas os Jesuítas (e as restantes Ordens religiosas) não cumpriam a legalidade, já que continuaram a subordinarse a Superiores estrangeiros e a praticar a clausura, o noviciado e os votos. Neto, Vítor, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa, INCM, p. 318. 69

Aliás, este ponto da política do Ralliement, como vimos, foi um dos mais assinalados silêncios que a Revista manteve. Outros silêncios ainda a propósito da Democracia Cristã, bem como sobre a figura do Rei D. Carlos, a não ser aquando do Regicídio de que foi vitima. A que se deveu este silêncio sobre o monarca? Fruto da sua indiferença religiosa por um lado, e liberalismo anti-congregacionista por outro? Também não esqueçamos que este foi um Rei que preferia o aplauso dos anticatólicos aos sorrisos e indiferença dos católicos. Carvalho, José António Ribeiro de, Os Jesuítas nas Vésperas da I República. O Novo Mensageiro do Coração de Jesus (18811910). 70

Silva, Manuel Isaías Abúndio da, Cartas a um abade sobre alguns aspectos da questão política e religiosa em Portugal, Braga, Cruz & C.a, 1913. 71

Carvalho, José António Ribeiro de, Os Jesuítas nas Vésperas da I República: o Novo Mensageiro do Coração de Jesus (1881-1910). 72

Volovitch, Marie-Christine, Le mouvement Catholique au Portugal a la fin de la Monarchie Constitutionelle 1891-1913, tese de Doutoramento apresentada à Fa-

246

aprovados, em flagrante violação do decreto de 18 de Abril de 1901 e da lei de 14 de Fevereiro de 1907 68. Se o antijesuitismo recolhia enormes apoios nos sectores republicanos, como vimos, não podemos esquecer que os católicos, no seio do seu movimento, também tinham alguns adversários dos Inacianos; situação de que é exemplo Abúndio da Silva. A principal razão para este facto tem a ver com questões de natureza político-militante. Abúndio da Silva, destacado militante católico, defensor claro da linha do Ralliement 69 leonino, tendo em conta o que vimos e a ligação dos Jesuítas em relação ao Partido Nacionalista, não se inibe de criticar a família Inaciana, por causa da polémica à volta da Voz de Santo António. Este militante defende que esta questão foi um dos motivos que levou a que muitos católicos se afastassem dos Jesuítas 70 e assim se poderá compreender a atitude da Igreja e dos católicos, na altura do 5 de Outubro de 1910, de alguma indiferença perante o ataque aos Inacianos portugueses. Do mesmo modo que os filhos espirituais de Santo Inácio de Loyola também viviam numa espécie de «mundo à parte», isto porque, nas páginas da sua Revista, que trabalhamos exaustivamente, não encontramos referências a outras Ordens religiosas 71. Se é certo que se trata de uma Revista Jesuíta, e tendo em conta que o Novo Mensageiro não deixou de representar a sociedade do seu tempo, não teria sido normal que referisse os Institutos, Ordens e Congregações religiosas suas contemporâneas? A que se deveu esse silêncio? Por causa do verdadeiro clima «jesuitófobo» que se fazia sentir à época? Para evitar «colar» as outras Instituições católicas aos Jesuítas? Para defender e salvaguardar as outras Ordens religiosas? Ou por puro elitismo e direito à exclusividade dos Jesuítas? As questões que se podem colocar são muitas, mas as respostas definitivas são escassas. Também não podemos deixar de referir que numa altura em que, pelo menos oficialmente, a posição da Igreja Católica tinha aceite o Ralliement, os Jesuítas, em 1908, haviam fundado, em Campolide, o Centro de Propaganda Monárquica e de Acção Social, cujo lema era «Deus, Pátria, Rei».


Do exposto deve concluir-se que os Jesuítas cometeram alguns excessos, mas também está longe de se justificar a humilhação e a perseguição a que foram sujeitos a partir de 5 de Outubro (mas também nas vésperas da revolução republicana, ainda em pleno regime monárquico, como se viu). A extensa rede de organizações Jesuítas como o popular Apostolado da Oração, a Congregação de S. Luís de Gonzaga, a Congregação de Maria, a Associação Promotora da Instrução e Educação Popular, a Associação Social Cristã, a Associação Fé e Pátria são suficientes para justificar o poderio e a influência que estes religiosos tinham na época. Marie-Christine Volovitch afirma mesmo que a Companhia era responsável pela alma do militantismo católico em Portugal 72. Além disso, não esqueçamos a rede de influências que os Jesuítas detinham através das sociabilidades criadas com os alunos, filhos das elites, que frequentavam os seus colégios. Daqui se pode concluir que a conduta, a acção, a actividade dos Jesuítas estava longe de reunir consensos. Como se sabe, com a I República abrir-se-ia, segundo algumas correntes historiográficas, um novo ciclo histórico e, sob o ponto de vista político-religioso e ideológico-cultural, este não seria menos controverso nem menos apaixonante 73, mas terá de ficar para um próximo estudo… Contudo, permito-me deixar a seguinte questão: abrir‑se‑ia, de facto, com a imposição da I República 74, um novo ciclo histórico, ou temos e assistimos, sob o ponto de visto religioso, a uma continuidade? Pergunta que se faz, resposta que não se dá, por agora...

culdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1983, p. 67. 73

Neto, Vítor, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal, p. 586. 74

Permito-me fazer o seguinte esclarecimento: usei o termo Imposição da república e não Implantação por que me parece impreciso, para não dizer incorrecto, o seu uso. Até mesmo por uma questão de correcção histórica e porque a república não é Implantada mas Imposta. Imposta perante um regime legítimo. Perante um regime que foi vítima de uma revolução que se impõe. Perante um regime que não fez, em quase 100 anos de existência, um referendo para saber a opinião e a vontade nacional. Até porque «a 5 de Outubro de 1910, – como nos diz Rui Ramos – os republicanos portugueses derrubaram um regime que honrava os princípios de Estado de Direito e Representativo: a concepção do Estado como comunidade de cidadãos iguais entre si, o império da lei, a separação e equilíbrio de poderes, etc.». Ramos, Rui, «Outra Opinião. Ensaios de História», Lisboa, O Independente, 2004, p. 24. Carvalho, José, O Regicídio e a Queda da Monarquia, Lisboa, Editora Prefácio, 2008.

247



«Casamento homossexual?»

Salvar o Casamento – I

Pedro Vaz Patto *

A Constituição, a igualdade e o casamento A questão da redefinição do conceito jurídico de casamento começa por ser colocada, para muitos, no plano da análise da constitucionalidade. Há quem diga que essa redefinição de modo a incluir nesse conceito uniões de pessoas do mesmo sexo se impõe como exigência constitucional do princípio da igualdade, sobretudo depois de, no artigo 13.º da Lei Fundamental, se ter introduzido a «orientação sexual» como exemplo de um dos fundamentos que pode dar origem a discriminações atentatórias desse princípio. Poderia, desse modo, uma modificação de tão largo alcance cultural resultar, como já sucedeu noutros países (no Canadá, na África do Sul e nos Estados norte-americanos de Massachussets, Califórnia e Connecticut), de uma decisão judicial, sem intervenção do poder legislativo. Esta é a tese de Luís Duarte d’Almeida, Carlos Pamplona Côrte‑Real e Isabel Moreira1. Vital Moreira e Gomes Canotilho não partilham esse entendimento: «A recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre pessoas de sexo diferente radicado intersubjectivamente na comunidade como instituição não permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo (como querem alguns a partir da nova redacção do artigo 13.º, 2) sem todavia proibir necessariamente o legislador de proceder ao seu reconhecimento ou equiparação (como querem outros)» 2. Neste sentido também se pronuncia * Juiz de Direito.

Brotéria, 168 (2009) 249-277

1

Expressa nos pareceres publicados em O Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo, Coimbra, Edições Almedina, 2008.

2

Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 508.

249


3

Brito, Miguel Nogueira de e Múrias, Pedro, Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo – Sim ou Não?, Lisboa, Entrelinhas, 2008, p. 59[N].

4

In Miranda, Jorge e MedeiRui, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, «Artigo 36.º», pp. 396, 397 e 405. A revisão constitucional de 2004, ao incluir no artigo 13.º a orientação sexual como um dos factores de desigualdade susceptíveis de gerar discriminações vedadas, veio apenas explicitar o que já decorre do princípio geral da igualdade e não acarreta consequências quanto aos regimes do casamento e da adopção (op. cit., «Artigo 13.º», pp. 120-121). ros,

250

Miguel Nogueira de Brito: o conceito de casamento do artigo 36.º da Constituição portuguesa «admite diversas concepções políticas, éticas ou sociais» 3. Jorge Miranda e Rui Medeiros vão mais longe e consideram que uma norma que consagrasse o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria inconstitucional por violar os «princípios estruturantes do casamento na ordem jurídica portuguesa» entre os quais «dificilmente se pode deixar de encontrar a exigência de diferença de sexo entre os dois cônjuges». O legislador deve «respeitar a estrutura nuclear da garantia institucional do casamento que se extrai da Constituição» e nessa estrutura nuclear inclui-se a heterossexualidade 4. Mas será que estes entendimentos atendem ao princípio da igualdade? Sempre se tem afirmado que o princípio da igualdade não veda (e pode até impor em algumas circunstâncias) tratamentos diferenciados: proíbe que se trate de forma desigual o que é objectivamente igual, mas não que se trate de forma desigual o que é objectivamente desigual. Se o tratamento diferenciado se funda em motivos objectivos, racionais e justos, e não subjectivos, arbitrários ou discriminatórios, não contraria o princípio da igualdade. É óbvio que não se discrimina inconstitucionalmente em função da «instrução» quando se exige a licenciatura em medicina para exercer a profissão de médico. Uma condição social e económica de desfavor justifica um tratamento fiscal mais benéfico (que pode até ser obrigatório de acordo com os parâmetros constitucionais). Um partido político ou uma escola confessional podem seleccionar os seus funcionários ou professores de acordo com a fidelidade destes ao seu ideário, sem estarem, por isso, a discriminar inconstitucionalmente em razão das «convicções políticas» ou da «religião». Será discriminatório negar a uma pessoa com tendências homossexuais o acesso a um emprego ou a um benefício social quando tal não tem fundamento objectivo ou racional. Mas não poderá dizer-se que não tem fundamento objectivo ou racional a não equiparação das uniões homossexuais à união entre homem e mulher no âmbito dos regimes do casamento e da adopção. Trata-se de situações objectivamente desiguais


que, precisamente na perspectiva da natureza e das finalidades destes institutos, justificam um tratamento diferenciado 5. É o que veremos de seguida com mais profundidade. Não estamos, pois, perante um tratamento diferenciado de pessoas com tendência heterossexual ou homossexual. Estamos perante o tratamento diferenciado de uma união entre um homem e uma mulher, por um lado, e uma união entre pessoas do mesmo sexo, por outro lado 6. Não se trata, noutra perspectiva, de alargar ou restringir direitos, mas de definir conceitos. Trata-se de «chamar as coisas pelos seus nomes». Não se trata de proibir ninguém de casar, mas de definir o que é o casamento. Como já se afirmou ironicamente a este respeito, quando se distingue entre uma «maçã» e uma «laranja» não se está a violar o princípio da igualdade entre os «frutos» 7. Afirma a este respeito Rafael Navarro Valls, catedrático de Direito Civil da Universidade Complutense de Madrid: «A ficção de que um par homossexual constitui um casamento é tão contraditória como pretender que formam uma holding, um leasing ou uma fundação. São instituições jurídicas que se movem noutra órbita. O modelo de casamento do Ocidente não pretende a protecção de simples relações assistenciais, de amizade ou sexuais, o que pretende é, para além disso, um estilo de vida que assegura a estabilidade social e a renovação e educação das gerações» 8. Isto mesmo foi salientado pelo Consejo General del Poder Judicial num seu parecer de 26 de Janeiro de 2005 sobre a alteração do Código Civil espanhol que veio a redefinir o casamento de modo a nele incluir uniões entre pessoas do mesmo sexo 9. A união entre pessoas do mesmo sexo não se confunde com o casamento, tal como a compra e venda não se confundo com a doação, sem que com isso seja afectado o princípio da igualdade. Uma garantia institucional com assento constitucional contém um núcleo essencial que a torna socialmente identificável. O casamento é «uma instituição dotada de garantia normativa, pelo que deve ser reconhecível em Direito; isto implica que qualquer regulação de uma instituição jurídica pré-existente deve gozar desta recognoscibilidade na consciência social» (p. 29).

5

Neste sentido, pronuncia‑se também Jorge Miranda in «Discriminação e Casamento: um Olhar Constitucional», Público, 9/10/08.

6

É o que salienta o juiz J. Zarella no voto de vencido que formulou no caso Kerrigan, do Supremo Tribunal do Connecticut (ver http://www.jud.state.ct.us/ external/supapp/Cases/ AROcr/CR289/289CR152. pdf, p. 6)

7

Martens, François, «Le Beau Mariage Gay», Le Monde, 22/5/2004

8

Matrimonio y Derecho, Madrid, Tecnos, 1994, pp. 105 e segs.

9

Acessível em www.poderjudicial.es

251


10

É o que salienta Jorge Miranda (in Discriminação… cit.). Este autorizado constitucionalista também aí evoca, para sustentar que a noção constitucional de casamento implica a heterossexualidade, os termos literais do artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de harmonia com a qual devem ser interpretados e integrados os preceitos constitucionais e legais relativos as direitos fundamentais: «A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça ou religião».

11

Andrini, Stefano, «Famiglia, Filo Rosso tra le Civiltà», in Avvenire, 22/2/07

12

«Il Matrimonio? Viene delle Caverne», in Avvenire, 15/3/07

252

Quando os nossos constituintes de 1976 reconheceram tal instituição tinham, sem margem para dúvidas, em mente a noção de casamento que tem atravessado os séculos e as culturas mais diversificadas. Além do mais, porque o artigo 36.º, que tem por epígrafe «família, casamento e filiação», associa o casamento à filiação10. Se fosse possível a redefinição arbitrária de conceitos, nada seria seguro, qualquer afirmação constitucional poderia ser distorcida e todo o edifício constitucional poderia ser subvertido. Poder-se-ia negar o direito à vida, redefinindo o conceito de «vida», ou a proibição da tortura, redefinindo a noção de «tortura». Deve acentuar-se também que não está em causa um qualquer conceito jurídico. A Constituição remete para um conceito pré-estadual e pré-positivo. O casamento é uma instituição milenar que precede o Estado, não é uma criação deste, nem dos mais ou menos iluminados legisladores. Não será, mesmo, exagerado dizer que se trata da mais antiga e basilar das instituições. O Estado limita-se a reconhecê-la. Salienta o sociólogo da família Pier Paolo Donati, baseando-se no vasto e completo arquivo étnico-antropológico da Universidade da Califórnia, como a família enquanto «união mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre homem e mulher com os seus filhos» (de acordo com a célebre definição do antropólogo Claude Lévy-Strauss) está presente em todas as sociedades, para além de todas as variações devidas a factores culturais e ambientais (há nota de apenas duas tribos em que não se encontram famílias nesse sentido, mas essas tribos desapareceram precisamente porque não tinham uma estrutura familiar capaz de as regenerar)11. E o arqueólogo Emmanuel Annati (baseado nos vestígios materiais que chegaram até hoje desde a arte rupestre) salienta como «não há civilização antiga que não tenha tido a sua concepção bem nítida da união matrimonial e do núcleo familiar»12. De acordo com a nota da Conferência Episcopal espanhola En Favor del Verdadero Matrimonio, de 15 de Julho de 2004, o casamento é uma «instituição mais primordial do que o próprio Estado, inscrita na natureza da pessoa como ser


social»13. E, de acordo com o teólogo Angel Rodriguez Luno, admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo significará a «ruptura completa com tradições tão antigas como o género humano, violentando rasgos e diferenças antropológicas de carácter pré-político sobre as quais o legislador não tem qualquer poder»14. Afirma também o Consejo General del Poder Judicial no parecer acima referido: (o casamento) «é uma instituição anterior à Constituição, anterior ao Estado e às formas jurídicas que este cria e regula, pelo que o Estado não pode usar a sua capacidade normativa para adulterar essa instituição» (p. 29). Que o Estado pretenda forjar tal instituição milenar só pode ser sinal de uma tentação totalitária de ideológica «engenharia social». João Carlos Espada alude, a este propósito a «jacobinismo pós-moderno», num «mandato para uma vanguarda redesenhar instituições descentralizadas – como a família ou a religião – que não tinham sido desenhadas por ninguém», de «um projecto político-filosófico particular, de natureza sectária e adversarial, contra modos de vida descentralizados e realmente existentes»15. Seana Sugrue, professora de filosofia política da Ave Maria University, salienta também, nesta linha, que, sendo o casamento como união entre homem e mulher uma instituição pré-política e o casamento entre pessoas do mesmo sexo necessariamente uma criação política, esta criação não pode deixar de traduzir-se numa forma de «despotismo», conduzindo à utilização do próprio sistema educativo público para criar condições culturais que apoiem o casamento entre pessoas do mesmo sexo16. Dir-se-á que, neste aspecto, não se trata de uma redefinição arbitrária e que o elemento histórico da interpretação das normas constitucionais não é decisivo e pode ceder diante de uma interpretação actualista que corresponda a uma evidente evolução social e cultural. É a partir desta exigência de interpretação actualista que alguma jurisprudência norte-americana e a jurisprudência canadiana têm concluído pela inconstitucionalidade da definição do casamento como união entre um homem e uma mulher. Os conceitos constitucionais não são

13

http://www.conferenciaepiscopal.es/documentos/ Conferencia/VerdaderoMatrimonio.htm

14

«Sin Heterossexualidad No Hay Matrimonio», in www. zenit.org, ed. em castelhano, 15/5/05

15

«Família e Democracia», in Expresso, 8/7/06

16

«Soft Despotism and SamSex Marriage», in The Meaning of Marriage – Family, State, Market and Morals, ed. Robert P. George e Jean Bethke Elshtain, Dallas, Spense Publishing Company, 2006.

253


17

www.mass.gov/courts/ courtsandjudges/courts/ supremejudicialcourt/goodridge.html 18

www.courtinfo.ca/ gov/opinions/archive/ S147999PDF. De salientar que em sete juízes, três formulam votos de vencido. Para contrariar esta sentença, uma proposta de emenda constitucional que definiu o casamento como união entre um homem e uma mulher foi aprovada por referendo em 4 de Novembro de 2008. 19

http://www.jud.state. ct.us/external/supapp/ Cases/AROcr/CR289/ 289CR152.pdf. De salientar que, também neste caso, em sete juízes, três formulam votos de vencido. 20

http://scc.lexum.umontreal.ca/en/2004/2004scc79/ 2004scc79.html 21

http://www.courts.ie/ Judgments.nsf/597645521 f07ac9a80256ef30048ca52/ a4fe4e30eef 23925 8025 727 90040d30c?OpenDocument 22

Aí se citam, entre outros, os casos Baker v. Nelson, do Supremo Tribunal do Minnesota, Dean v. District of Columbia, do Supremo Tribunal do Distrito de Columbia, Lewis v. Harris, do Supremo Tribunal de Nova Jersey, Li v. State of Oregon, do Supremo Tribunal do Orégão, Marrisson v. Sadhier, do Court of Appeals de Indiana, e Hernadez v. Robles, do Court of Appeals de Nova Iorque.

254

conceitos cristalizados («frozen»), mas em evolução («living instruments»), não podendo ignorar-se as transformações que, desde a época da génese dos textos constitucionais até hoje, tem sofrido o modo como a sociedade e a ordem jurídica encararam a homossexualidade. Esta tese foi seguida, na jurisprudência norte-americana, inicialmente, pelo Supremo Tribunal do Havai no caso Baher v. Lowen, de 1993, posteriormente pelo Supremo Tribunal do Massachussets no caso Goodridge v. The Department of Public Health, de 18/11/0317 e, já em 2008, pelos Supremos Tribunais da Califórnia no caso In Re Marriage18 e do Connecticut no caso Kerrigan et al. v. Comissioner of Public Health et al.19 No Canadá, tal jurisprudência teve início no caso, do Court of Appeal de Ontário Halpern and Others v. Attorney General of Canada, de 2003, e culminou no caso, do Supremo Tribunal Federal, Reference Re: Same Sex Mariage, de 2004 20. No entanto, parece evidente que só poderíamos aceitar uma interpretação actualista se estivéssemos perante um consenso pacífico e indiscutível (não certamente uma questão «fracturante»), o que não é manifestamente o caso. E é isso que tem sido salientado pela jurisprudência que, em sentido contrário ao da referida, sustenta que a definição do casamento como união entre homem e mulher é a que se ajusta aos textos constitucionais em causa. Assim, o High Court da Irlanda, no caso Katherine Zappane and Anne Louise Guilligan v. Revenue Comissioners, Ireland and the Attorney, de 14/12/0621. Nesta sentença, para demonstrar que não se trata de uma questão pacífica e consensual, faz-se alusão ao facto de, nos Estados Unidos, a jurisprudência acima referida não ser seguida na grande maioria dos outros Estados e em decisões a ela anteriores e posteriores 22, aos votos de vencido proferidos no caso Goodridge e ao facto de muitos Estados, em reacção a essa decisão, terem introduzido alterações nas suas Constituições de modo a definir expressa e inequivocamente o casamento como união entre um homem e uma mulher. Invoca-se, também, nessa sentença a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Na verdade, este


tem afirmado unanimemente que a noção de casamento a que alude o artigo 12.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem supõe a heterossexualidade, quer porque é isso que decorre dos termos literais deste artigo («… o homem e a mulher têm o direito de casar-se»), quer porque tem sido entendimento recorrente da sua jurisprudência, o de que sai fora do seu âmbito de actuação decidir a respeito de «controvérsias de âmbito social, político e religioso» 23. A questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo situa-se inequivocamente nestes âmbitos controversos. E invoca-se o facto de serem, na altura, em número reduzido os países que redefiniram o casamento de modo a admitir casamentos entre pessoas do mesmo sexo: a Espanha, a Bélgica, a Holanda, o Canadá e a África do Sul. Há quem saliente, mesmo, que estamos longe de uma evolução natural da consciência jurídica e social porque estamos, antes, perante aspirações de minorias vanguardistas com um poder de influência muito superior à sua real dimensão. A oposição à alteração legislativa espanhola deu origem a petições e manifestações com uma expressão numérica sem paralelo. Procura evitar-se a sujeição destas questões a referendo. Sempre que tal se verificou (nos Estados Unidos) a rejeição popular de alterações à definição do casamento foi clara. Não podemos falar, pois, de uma evolução semântica correspondente a uma espontânea e tranquila evolução cultural, mas antes de uma subversiva manipulação de linguagem, também ela de laivos totalitários (faz recordar a «novilíngua» do famoso romance de George Orwell 1984). Nesta linha, afirma Rafael Navarro Valls: «Os meios de comunicação e publicações especializadas controlados por uma certa intelligenzia avançam com modelos familiares nos quais a maioria dos cidadãos não se reconhece, ou que são residuais. Isto tem produzido dois efeitos: um «anestesiador» e outro de recusa. O primeiro é o que prevalece inicialmente. Mas o segundo também entra em acção paulatinamente». A «maioria silenciosa» começa, assim, a fazer-se ouvir. O «efeito dominó» das primeiras alterações legislativas dá origem a um

23

Ver, entre outros, os casos Rees v. Reino Unido (1986), Cossey v. Reino Unido (1990), Sheffield and Harsham v. Reino Unido (1998), acessíveis em www.echr.coe.int.

255


24

Segundo a informação reportada por Katherine Shaw Spath, em 2006 apenas seis Estados (Connecticut, Massachussets, Nova Jersey, Nova Iorque, Novo México e Rhode Island) não tinham legislação que, de um ou de ouro modo, preservasse a definição tradicional de casamento (ver «the Current Crisis in Marriage Law», in The Meaning of Marriage…, cit., p. 193, nota 118. 25

A estes vinte e sete vieram juntar-se mais três (Arizona, Florida e Califórnia), que aprovaram tais emendas em referendos realizados a 4 de Novembro de 2008. O referendo realizado na Califórnia seguiu-se à decisão do Supremo Tribunal desse Estado que declarara inconstitucional a definição legislativa, também aprovada anteriormente por referendo, do casamento como união entre um homem e uma mulher. O referendo realizado na Florida pretendeu prevenir uma eventual decisão judicial em sentido idêntico ao do Supremo Tribunal da Califórnia e superou a percentagem de aprovação necessária (60%) para uma alteração constitucional. Nessa mesma data, um referendo no Arkansas veio a consagrar a proibição de adopção por casais homossexuais. 26

Sobre a proposta de uma emenda à Constituição federal, pode ver-se «Marriage Amendment» in First Things, 136 (Outubro de 2003), p. 26-36. 27

«Del Efecto «Dominó» al Efecto «Blindaje»», in www. zenit.org, ed. castelhana, 9/6/06 e 22/5/08 28

Pode ver-se, sobre esta questão, Donati, Pier Paolo, Perchè «la» Famiglia? Le Risposte della Sociologia Relazionale, SENA, Cantagalli, 2008.

256

«efeito blindagem». Como exemplo deste efeito, indica o facto de quarenta e um Estados norte-americanos terem definido 24, vinte e sete dos quais através de emendas constitucionais 25, 26, o casamento como união entre um homem e uma mulher, sendo que em vinte casos as alterações legislativas foram aprovadas por referendo com maiorias muito expressivas (a rondar os 60-70%); o facto de países como a Letónia, Honduras, Guatemala e Costa Rica terem definido expressamente nas suas Constituições o casamento como união entre um homem e uma mulher; o facto de essa definição também se ter mantido por decisões judiciais e legislativas em países como a Austrália, a Polónia e a Venezuela 27. É de salientar, também, que a redefinição do casamento de modo a nela incluir uniões entre pessoas do mesmo sexo seria, mais do que uma evolução do conceito, a subversão completa do mesmo, a sua transformação radical. Se é verdade que a família, ao longo dos tempos e de acordo com as várias culturas tem conhecido grandes transformações, a heterossexualidade permanece como denominador comum para além de todas essas transformações. Claude Lévy Strauss definiu a família comum a todas as culturas e épocas como «a união mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre um homem e uma mulher com os seus filhos». É a partir de uma definição deste tipo que pode ser estudado o conceito de família presente nas mais variadas culturas, na sua diversidade, mas também na sua permanência, como um conceito com alguma substância, não inteiramente elástico ou absolutamente vazio 28. Também o Consejo General del Poder Judicial no parecer atrás citado (p. 46) salientou este aspecto: que a família evolui ao longo do tempo, mudam as suas formas, mas não a sua característica heterossexual. E mesmo as culturas que aceitavam práticas homossexuais nunca reconheceram a união homossexual como uma instituição equiparável à união entre homem e mulher através do casamento. Em conclusão, não pode a interpretação actualista servir para introduzir por via judicial alterações profundas dos fundamentos do ordenamento jurídico que devem caber ao legis-


lador democraticamente eleito e para tal legitimado, numa operação que se poderia qualificar de activismo judiciário no sentido pejorativo (como algo que extravasa do âmbito de legitimidade do poder judicial em nome de aspirações ideológicas de alteração do ordenamento vigente). Afirmou, nesta linha, o Court of Appeal de Nova Iorque, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da inadmissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo na sentença do caso Hernandez v. Robles: «exprimimos, assim, a nossa esperança de que os participantes na controvérsia sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo dirijam os seus argumentos ao legislador; que o legislador oiça esses argumentos e decida da forma mais sensata de que for capaz e que aqueles que ficarem descontentes com o resultado – como sucederá indubitavelmente com muitos – respeitem esse resultado como os cidadãos de um Estado democrático devem respeitar as decisões tomadas democraticamente» 29. É de salientar que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos resultou sempre, até agora, de decisões judiciais, sendo as decisões de órgãos legislativos ou resultantes de referendos populares sempre em sentido contrário a essa legalização (ainda que, por vezes, se reconheçam uniões civis entre pessoas do mesmo sexo com alguma equiparação ao casamento). Na Califórnia, um referendo, com uma votação de cerca de 60%, consagrou a definição legal do casamento como união entre um homem e uma mulher. Foi a lei deste modo aprovada que veio a ser declarada inconstitucional (numa deliberação de 4 juízes contra 3) pelo Supremo Tribunal deste Estado. Um referendo realizado a 4 de Novembro de 2008 30 veio a consagrar tal definição do casamento como união entre um homem e uma mulher agora no plano constitucional. Estes factos têm motivado a contestação desta forma de activismo judiciário que se sobrepõe à legitimidade decorrente do sufrágio popular num âmbito tão relevante como o da redefinição de uma instituição social básica e de raízes culturais milenares. Afirmaram os bispos do Connecticut a respeito da decisão judicial que impôs a lega-

29

Apud a sentença do High Court da Irlanda acima referida.

30

Foi salientado, a respeito deste referendo, como se mobilizaram em favor da definição tradicional do casamento, de forma muito abrangente, pessoas de várias denominações cristãs, de várias religiões e de várias etnias, contra a maioria dos políticos, incluindo o governador do Estado, do Partido Republicano, Arnold Scharwtznegger. Um peso importante no resultado tiveram os votantes hispânicos e afro-americanos, que também tiveram um peso decisivo na eleição de Barak Obama (ver www.forumlibertas.com, 7/11/08).

257


31

Ver http://www.ctcatholic. org/Statement-of-Bishopson-Court-Same-sex.php

lização do casamento entre pessoas do mesmo sexo contra a opção do legislador: «O Supremo Tribunal esqueceu-se de que os juízes devem interpretar as leis e os legisladores devem fazer as leis»; é a estes, e não ao poder judicial que cabe «determinar as concepções sociais contemporâneas» sobre o casamento e qualquer evolução que possa verificar-se quanto a essas concepções 31. De qualquer modo, pode discutir-se se é justificável a subversão completa do conceito de casamento, já não pela via judicial, mas pela via legislativa ordinária ou constituinte, democraticamente legitimada. Vamos, pois, continuar a nossa análise já não no plano da análise da constitucionalidade, mas no da política legislativa. Tem-se dito que outras instituições milenárias (a família fundada na supremacia masculina, por exemplo) têm caducado com o progresso da civilização. Mas o casamento não pode ser equiparado a qualquer outra instituição sujeita a caducidade. Não é apenas um produto cultural, exprime uma realidade natural. Não é, pois, por acaso ou coincidência que tem persistido ao longo dos séculos e que é comum às culturas mais diversificadas. Mas há que aprofundar porque assim é. E há que verificar se tem um fundamento objectivo e racional (para além da tradição, por muito antiga que seja) o tratamento diferenciado do casamento como união entre homem e mulher e uma união entre pessoas do mesmo sexo. É o que veremos de seguida. A função social do casamento Importa, antes de mais, que nos coloquemos no plano correcto. Não está em causa, fundamentalmente, o maior ou menor respeito por opções de estilo de vida privada, ou a discriminação entre um ou outro desses estilos, ou uns ou outros direitos, interesses ou aspirações privados, mas o relevo social e a funcionalidade social do casamento. Está, pois, em causa o interesse público e o bem comum.

258


O reconhecimento e a promoção do casamento e da família pelo Estado não têm a ver com o privilégio de uma opção de estilo de vida privada entre outras possíveis, mas com a função social dessas instituições. Também não se trata de discriminar um tipo de afectos em relação a outros («o Estado não tem de dizer quem ama quem» - ouve-se dizer). Há outro tipo de relações afectivas sem expressão sexual (entre irmãos ou amigos), indiscutivelmente respeitáveis e dignas de consideração, que não têm um reconhecimento social e jurídico específico porque se situam no âmbito da privacidade, onde deverão também situar-se as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Uma coisa são relações que se situam num âmbito puramente privado e em relação às quais a postura da ordem jurídica há-de ser de tutela da sua liberdade e respeito da intimidade a elas inerente, outra são relações com um relevo e uma funcionalidade sociais que justificam, antes de mais, um reconhecimento social e jurídico específico e, em consequência, um estatuto jurídico orientado para a sua protecção e promoção em atenção a esse relevo e essa funcionalidade. E a função social do casamento e da família supõe a dualidade sexual. O reconhecimento social e jurídico do casamento, e a protecção que daí decorre, ligam-se à função de fundamento da família como célula base da sociedade. É, desde logo, a família que assegura a perenidade e renovação da sociedade, gerando, a partir da união entre homem e mulher (haverá poucas verdades tão evidentes e objectivas como esta), novas vidas. Essa renovação passa pela geração biológica, mas também pela educação das crianças e dos jovens. A formação da pessoa exige o contributo insubstituível das dimensões masculina e feminina, que só em conjunto compõem a riqueza integral do humano. É por isso que quando o artigo 16.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos define a família como «núcleo fundamental da sociedade e do Estado», que «como tal, deve ser reconhecida e protegida», é (só pode ser) à família concebida como união duradoura entre homem e mulher que se 259


32

De Chair e de Parole – Fonder la Famille; Bayard, Paris, 2007, p. 7.

33

La Confusion des Genres – Réponses à Certaines Demandes Homossexuellles sur le Mariage et l’Adoption; Paris, Bayard, 2005, p. 51-54.

260

refere. E assim também a Constituição grega quando se refere à família como «fundamento da conservação e progresso da Nação». Ou a Constituição irlandesa quando afirma que o Estado reconhece a família «como grupo unitário natural, primário e fundamental da sociedade» e como «base necessária da ordem social e indispensável ao bem-estar da Nação» (artigo 41º, 1). Esta é uma verdade que, precisamente por ser tão basilar, pode passar despercebida e que só estas discussões (um pouco como sucede, muitas vezes, quando só em situações de doença nos apercebemos do bem evidente e elementar da saúde) nos fazem relembrar e evidenciar: a função social primordial do casamento enquanto fundamento da família como célula base da sociedade e garantia da sua sobrevivência e harmoniosa renovação. E esta é uma verdade que tem sido salientada, a propósito desta discussão sobre a redefinição do conceito de casamento, de forma recorrente e sob perspectivas variadas. Assim, por exemplo, o filósofo Xavier Lacroix salienta como o casamento é um «acto eminentemente social, que não une apenas os esposos entre eles, mas também o casal e a sociedade» 32. O reconhecimento social do casamento liga-se ao contributo desta instituição para o bem comum e ao encorajamento social desse contributo. «Antes de ser pensado como direito subjectivo, o casamento deve ser pensado em termos de responsabilidades, funções, papéis. É, na verdade, uma instituição, isto é, uma forma de vida que uma sociedade estabelece para assegurar a sua perenidade». A instituição «não se compreende só do ponto de vista individual e sentimental», «mas numa dialéctica entre indivíduos e corpo social», não sendo o Direito só um «instrumento de desejos privados». Em contrapartida, a união homossexual não tem este relevo social e, por isso, não deve ser, como é o casamento «publicitado, reconhecido, apoiado, oficializado» 33. E afirma o filósofo Guy Coq: «Se é necessário proteger e valorizar a instituição do casamento, se o Estado deve imperativamente assumir tais objectivos no seio da sociedade; é porque


tem como imensa responsabilidade a de agir para assegurar um futuro à sociedade, para lhe proporcionar, na medida do possível, condições harmoniosas de sobrevivência. Em suma, aquilo que, de forma eminente, é para o Estado relevante no casamento, é a questão das crianças, encorajar o seu nascimento, contribuir com um ambiente o menos instável possível para a sua educação, para o seu equilíbrio. As vantagens atribuídas ao casal heterossexual não se fundamentam na noção de casal, mas na probabilidade de que nasça uma criança, e, ao mesmo tempo, na família necessária à criança» 34. Para Roger Scruton, professor de filosofia da Universidade de Buckingham e jornalista, «em todas as sociedades o casamento goza de uma aura social porque diz respeito à comunidade, assegura a dedicação de uma geração ao bem‑estar da geração seguinte» 35. A centralidade da família como a primeira e mais basilar das instituições sociais é posta em relevo pelo sociólogo Pierpaolo Donati, que afirma não ser «pensável/possível uma sociedade «sem família»», «quer na perspectiva dos indivíduos, quer do lado da sociedade (instituição)», porque a família exerce «uma mediação única e insubstituível (infungível)» «sem a qual não podem existir nem o indivíduo, nem a sociedade». A família é o «capital social primário da sociedade». E, para que sejam adequadas estas afirmações, a família não pode ser concebida como um qualquer tipo de convivência, supõe, para além de todas as diferenças e evoluções, como «bem universal presente em qualquer tipo de sociedade» e de acordo com a definição de Claude Lévy Strauss, a «união mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre homem e mulher com os seus filhos» 36. A universalidade do casamento está, pois, ligada à sua característica de «aliança reprodutiva». Afirma Maggie Gallagher, presidente do centro de estudos norte-americano Institute for Marriage and Public Policy: «Se é certo que as normas do casamento em diferentes culturas variam consideravelmente, este está sempre relacionado com a criação de uma união sexual pública (não privada) entre homem e mulher, de modo a que

34

Le Fígaro, 15/9/98

35

«Sacrilege and Sacrament», in The Meaning of Marriage…, cit., p. 5.

36

Op. cit., pp. 84-87.

261


37

«(How) Does Marriage Protect Child Well- Being?», in The Meaning of Marriage…cit., p. 197.

38

The Marriage Problem: How Culture Has Weakened Families, New York, Harper Collins Publishers, 2002, pp. 29-30.

39

«Matrimonio di Omosessuali», in Lexicon – Termini Ambigui e Discussi su Famiglia, Vita e Questioni Etiche, Conselho Pontifício para a Família, Bolonha, Edizione Dehoniane di Bologna, 2003, p. 596.

262

as crianças, socialmente valorizadas como tal, tenham um pai e uma mãe, e que a sociedade tenha a geração seguinte de que necessita» 37. Depois de analisar a instituição do casamento ao longo do tempo e no seio das mais variadas culturas, o cientista político norte-americano James Q. Wilson conclui também que o casamento existe por ser uma «aliança reprodutiva» e porque a experiência demonstrou que é indispensável para a educação das crianças, sendo que não existiria com a sua universalidade se estas nascessem capazes de se alimentar por si mesmas, como parece suceder com outras espécies animais 38. Aquilino Polaino-Lorente, catedrático de psicopatologia da Universidade Complutense de Madrid, também salienta a importância do casamento como união duradoura entre um homem e uma mulher para a «génese do tecido social». E, comparando-o com uma união homossexual, questiona: «Em qual das duas realidades reside o princípio auto-constitutivo e «genético» da sociedade? Em qual das duas sociedades fundadas a partir de cada uma dessas relações podem ser mais bem transmitidos os valores à geração sucessiva? Em qual delas crescerão melhor os novos cidadãos, de modo a que possam estruturar-se, desenvolver-se e fazer crescer de modo natural a sua personalidade? (…) Que «obrigações» deve assumir a sociedade em relação a cada uma delas?» 39. Nesta linha, afirma Carlos Martínez de Aguirre, catedrático de Direito Civil da Universidade de Saragoça: «Em relação aos pares homossexuais, o único fundamento possível de reconhecimento jurídico é o desejo psicológico dos conviventes. Mas já sabemos que esse desejo não justifica o reconhecimento e a protecção da sociedade através do Direito (como também não justificaria o reconhecimento e a protecção jurídica, mediante um regime normativo específico, da amizade). A afectividade, em si e por si, não interessa ao Direito; e a sexualidade interessa basicamente no que se refere às suas consequências (a procriação), mas então com grande intensidade e de uma forma institucional. A união homossexual é um tipo de relação afectiva com conteúdo sexual, mas, pela


sua própria natureza, sem consequências sociais relevantes». «…o Direito está interessado, e muito interessado, pelas uniões de conteúdo sexual, precisamente porque de elas procedem os seu futuros membros; e está também muito interessado em que essas uniões, pela sua própria estrutura (pela sua heterossexualidade, e por constituir um contexto de humanização e socialização adequado), possam permitir adequadamente a sobrevivência da sociedade» 40. E assim também Fábio Macioce, investigador em Filosofia do Direito da Universidade de Roma - Tor Vergata: «… o Direito protege o casamento por outras razões: protege-o porque considera que a família não é apenas o lugar dos afectos, mas desempenha também uma relevantíssima função social. Mais, poderíamos dizer que, na perspectiva do Direito, o casamento é essencialmente uma função, no sentido em que a decisão do casal de formar uma união (de amor e solidariedade, como disse) estável, duradoura e potencialmente fecunda representa para o Direito algo de tal modo importante a ponto de fazer com que a ela seja garantida a máxima tutela possível». O casamento tem, pois, um relevo público e social, não simplesmente pessoal. «A amizade, por muito subjectivamente significativa que seja, não desempenha um papel social, não conta para a sociedade, conta apenas para as duas pessoas por ela ligadas». «O casamento é, em substância, socialmente relevante e importante socialmente e (por isso) juridicamente na medida em que assegura a ordem das gerações. Qualquer comunidade, seja ela pequena ou grande, tem, na verdade, um interesse irrenunciável, que é o de se perpetuar no tempo, construir um futuro para os seus membros, e a família, precisamente, desempenha esta função pública fundamental, que é a de gerar, cuidar de e apoiar as gerações futuras. É por causa desta função fundamental, e da estabilidade que assegura no desempenho desta tarefa, que o Direito protege a família fundada no casamento, e é por isto que o vínculo entre cônjuges não é um facto meramente privado, mas adquire uma importância crucial e um papel público de primeiríssimo plano; enfim, é sempre em razão desta importância que o Direito opta por tutelar a

40

Diagnostico sobre el Derecho de Familia – Analisis sobre el Sentido y los Contrasentidos de las Transformaciones Comtemporaneas del Derecho de Familia, Ediciones RIALP – Instituto de Ciencias para la Familia, Madrid, Universidade de Navarra, 1996, p. 168 e nota 211.

263


41

PACS, Perché il Diritto Deve Dire No, Milão, San Paolo, 2006, pp. 65, 80-81.

42

Unioni di Fatto, Matrimonio, Figli, tra Ideologia e Realtà, Società Florença, Editrice Fiorentina, 2007, pp. 30-31, 84-85 e 93-94.

264

família mais e melhor do que o faz com outras relações». São disto reflexo as regras sucessórias que impõem o respeito pela quota legitimária à própria vontade do testador 41. O jurista e deputado do Parlamento europeu Carlo Casini também associa o reconhecimento e estatuto jurídico do casamento ao interesse público na tutela da família como instituição necessária à sobrevivência da sociedade. Alude, a este respeito, à definição, do artigo 16.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de família como «núcleo fundamental da sociedade e do Estado». Evoca, para salientar o papel da família como lugar educativo primário, a expressão do antigo direito romano da família como seminarium rei publicae. E sugere a sugestiva metáfora da família como «brecha de esperança projectada no futuro». As imagens de uma doença que tornasse estéreis todos os homens e mulheres ou de uma guerra atómica que destruísse toda a espécie humana são apresentados como exemplos reveladores da importância da função da família como garante da sobrevivência e renovação da sociedade. «O «estar juntos», em si e por si, não realiza um fim de relevância pública», como sucede com a família fundada no casamento como união entre um homem e uma mulher. Por isso, não são merecedoras do reconhecimento social específico que é devido à família as uniões homossexuais, como não o são até outras formas de convivência (uma comunidade religiosa, por exemplo) que exprimem valores fortes e nobres, dirigidos a um bem exterior aos próprios conviventes e à satisfação recíproca 42. Num voto de vencido proferido na já referida sentença do caso Goodridge, do Supremo Tribunal do Massachussets, o juiz Cordy J. afirma: «É difícil imaginar um objectivo do Estado mais importante e legitimado do que o de assegurar, promover e apoiar a estrutura social mais adequada para criar e educar crianças, e o estatuto do casamento continua a realizar este importante objectivo do Estado». E num voto de vencido na também já referida sentença do caso Kerrigan, afirma o juiz J. Zarella: «De modo a promover o interesse da sobrevivência da raça humana, a instituição


do casamento honra e privilegia o único tipo de relação sexual (a que ocorre entre um homem e uma mulher) donde pode resultar o nascimento de uma criança. Em segundo lugar, de modo a proteger o fruto dessa relação e assegurar que a sociedade não é injustamente sobrecarregada pela procriação irresponsável, o casamento impõe ao casal a obrigação de cuidar de cada uma das crianças que possa resultar da sua união». E no já referido parecer do Consejo General del Poder Judicial também se acentua que a diferença entre o casamento como união entre um homem e a mulher e a união homossexual reside na funcionalidade social da primeira dessas uniões por oposição a disfuncionalidade social da segunda. Essa funcionalidade traduz-se no facto de tal união depender a continuidade da sociedade através do nascimento de novos cidadãos (p. 48). Ainda nesta linha, afirma-se na nota da Congregação para a Doutrina da Fé Considerações sobre os Projectos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais, de 31 de Julho de 2003: «A sociedade deve a sua sobrevivência à família fundada sobre o matrimónio. É, portanto, uma contradição equiparar à célula fundamental da sociedade o que constitui a sua negação» 43. Também a Conferência Episcopal espanhola, na sua nota En Favor del Verdadero Matrimonio, já referida, alude à família como «base insubstituível do crescimento e da estabilidade da sociedade». A diferença de estatuto jurídico entre o casamento como união entre um homem e uma mulher e a união homossexual tem, pois, a ver com uma função social objectiva e incontrovertida, não com uma qualquer opção ideológica. Pode, por isso, rebater-se facilmente a invocação dos princípios da neutralidade ideológica do Estado e do respeito pelo pluralismo das mundividências culturais presentes na sociedade como fundamento para a redefinição do conceito jurídico do casamento de modo a nele incluir a união entre pessoas do mesmo sexo. Afirma, a este respeito, Carlos Martínez de Aguirre: «… o Direito da Família dificilmente pode ser neutral quanto ao

43

http://www.vatican.va/ roman_curia/congregations/ cfaith/documents/rc_con_ cfaith_doc_20030731_homosexual-unions_po.html

265


44

Op. cit., pp. 112 e 113.

45

«Matrimonio e Bene Comune», in www.zenit.org, edição italiana, 21/4/07 e «Discurso na Inauguração do Ano Académico do Instituto Pontifício João Paulo II de Estudos sobre a Família», in www.zenit.org, edição italiana, 6/11/06

266

seu modo de regular o casamento e a família: o fundamento da sua intervenção não é subjectivo ou ideológico, mas é determinado directa e objectivamente pela função essencial da família. E o seu fundamento determina o seu sentido: é a própria razão da sua intervenção sobre a família, nos seus aspectos mais radicais (não noutros ligados a circunstâncias económicas, sociais, culturais, etc.) a que determina necessariamente o sentido dessa intervenção. Sobre estas bases, a absoluta neutralidade do Direito diante de formas funcionalmente diferentes – e, portanto, de distinta eficácia social – de organizar juridicamente o casamento e a família não é razoável porque desapareceria, então, a razão de ser da própria actuação do Direito sobre a família. Seria contrária ao próprio fundamento da sua intervenção. Nesta perspectiva, um Direito da Família neutral negaria os seus próprios pressupostos» 44. Salienta o cardeal Carlo Cafarra, arcebispo de Bolonha, que não deve invocar-se a neutralidade do Estado diante das várias concepções de «Bem» e de «vida boa» presentes numa sociedade pluralista para negar legitimidade ao favor iuris de que deve gozar o casamento, pois tal representaria a negação da relevância do bem comum. Não existe só o bem da pessoa isolada, mas também o bem da «pessoa em relação com os outros», o «bem próprio da relação interpessoal como tal». O Direito não pode, por isso, reduzir-se a um conjunto de regras processuais e instrumentais destinadas a permitir que cada um prossiga isoladamente o seu bem individual, desligando-se da perspectiva do bem comum. É nesta perspectiva da relevância do bem comum que se justifica, pelas razões atrás amplamente expostas, o favor iuris de que deve gozar o casamento 45. Mas o próprio John Rawls (expoente de uma concepção mais liberal e menos atenta à relevância do bem comum tal como decorre da concepção solidarista da doutrina social da Igreja) não retira do princípio da neutralidade do Estado em face de concepções divergentes do Bem, como salienta Miguel Nogueira de Brito no estudo atrás referido, a exigência de aceitação de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, pois


razões políticas podem justificar um tratamento diferenciado e uma tutela reforçada do casamento como união entre um homem e uma mulher. Para Miguel Nogueira de Brito, essas razões ligam-se à exigência (liberal) de conter a intervenção do Estado num domínio tão relevante: «O casamento constitui um espaço de liberdade que retira ao Estado a principal responsabilidade na renovação da sociedade e a atribui às mulheres e homens que decidem unir-se sob os seus laços com esse propósito» 46. Contra a relevância da função social do casamento como garante da sucessão de gerações, e, portanto, a favor da admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, tem-se afirmado que o casamento não deixa de ter reconhecimento social quando os cônjuges não podem (por doença ou idade), ou não querem, ter filhos. Reside aqui, em grande medida, a argumentação dos partidários dessa admissibilidade. Afirma, por exemplo, o Supremo Tribunal do Massachussets, na já referida sentença do caso Goodridge, para justificar a inconstitucionalidade da exigência de dualidade sexual para o reconhecimento do casamento: «É o compromisso exclusivo e permanente dos cônjuges entre si, não o compromisso de gerar e educar filhos, o sine qua non do casamento civil». É verdade. Mas podemos dizer que essas situações são «a excepção que confirma a regra». O legislador, ao reconhecer e regular o casamento, tem em conta, como em muitos outros casos, aquilo que é a regra, não a excepção. Na generalidade dos casos, os cônjuges estão abertos à vida e se assim não fosse estaria comprometido o futuro da sociedade, facto que o Estado e o legislador certamente não ignoram. Salienta, nesta linha, Miguel Nogueira de Brito: «… afirmar que a procriação e educação é um dos principais fins ou funções do casamento não significa impor esse fim a todos os cônjuges, mas tão só, considerando também a valia que lhe atribuem a esmagadora maioria das pessoas que casam, sustentar ser em vista desse fim que o casamento constitui um espaço de liberdade que retira ao Estado a principal responsabilidade na renovação da sociedade e a atribui às mulheres

46

Op. cit., pp. 38 a 51 (N) e 65 (S).

267


47

Op. cit., p. 65 (S).

48

Op. cit., p. 168, nota 211.

49

Op. cit., p. 82.

50

Elementos para una Filosofía de la Familia, trad. castelhana, Ediciones RIALP – Instituto de Ciencias para la Familia, Madrid, Universidade de Navarra, 2002, p. 135.

268

e homens que decidem unir-se sob os seus laços com esse propósito» 47. Carlos Martínez de Aguirre, por seu lado, afirma: (as relações matrimoniais interessam ao Direito) «…como instituição, portanto, independentemente do facto de, num caso concreto, um casal que reúna todas estas condições não vir a ter filhos: o que o Direito tem em conta e regula não é cada casamento em concreto, saber se tem filhos e os educa bem, mas, em geral, a estrutura por si mesma adequada para permitir eficazmente a sobrevivência da sociedade» 48. Há que distinguir, assim, relações que são acidentalmente estéreis e relações estruturalmente estéreis (como o são as relações homossexuais, precisamente por serem homossexuais). Afirma Fábio Macioce: «As relações homossexuais, ainda que subjectivamente importantes, não têm uma relevância social nem de longe comparável à das famílias heterossexuais, e precisamente porque são relações constitutivamente estéreis. Certamente, também um casal heterossexual pode ser estéril, ou pode decidir não procriar, mas permanece, pelo menos potencialmente, um casal capaz de desempenhar uma função social fundamental; as relações homossexuais são, pelo contrário, de per si estéreis e, portanto, não importantes socialmente: este é um dado objectivo, que não tem qualquer atinência com o valor ético dos comportamentos homossexuais, mas que para o Direito não pode deixar de ser central» 49. Também o Consejo General del Poder Judicial salienta, no parecer já atrás referido, este facto, de as relações homossexuais serem estéreis «por princípio, de forma generalizada e estrutural» (p. 55). E assim também Francesco D’Agostino, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Roma – Tor Vergata: os casais homossexuais têm vedada, «por uma impossibilidade de princípio» a experiência dos casais heterossexuais que «não se buscam a si mesmos (ou só a si mesmos), mas buscam, para além de si mesmos, a garantia da identidade humana no tempo» 50. Carlo Casini justifica o facto de o ordenamento jurídico admitir o casamento de casais heterossexuais que não pretendem ter filhos, apesar de o reconhecimento jurídico do casa-


mento ter em conta a natural abertura deste à procriação, com as exigências do respeito pela liberdade e dignidade pessoais. O interesse público no reconhecimento e promoção do casamento deriva da «verificação, geral e abstracta, de que um encontro entre um homem e uma mulher pode estar na origem de um «seminarium rei publicae»». Mas o interesse público não pode ir mais longe e está limitado pelo respeito pela liberdade pessoal. Seria inaceitável que controlasse a vontade efectiva de procriar, tal como seria inaceitável que, de forma sistemática, controlasse a capacidade educativa dos pais. E seria inaceitável, por outros motivos, que controlasse uma possível esterilidade ou negasse o direito de casar aos idosos na base da sua esterilidade (o que também afectaria a igualdade entre homem e mulher, pelas diferenças que, a este respeito, se verificam 51). Também Giacomo Samek Lodovici, professor de Filosofia Moral da Universidade Católica de Milão, afirma que seria opressivo um Estado que controlasse as intenções ou capacidades procriadoras dos cônjuges 52. E assim também o juiz J. Zarella no voto de vencido que formulou na sentença do caso Kerrigan, do Supremo Tribunal do Connecticut, já acima referida: a exigência de prova de intenção ou capacidade para procriar seria intoleravelmente intrusiva 53. Têm sido estes os argumentos mais frequentemente apresentados para rebater o argumento de que a admissibilidade de casamentos de casais heterossexuais estéreis ou que não pretendem procriar deveria conduzir à admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Parece-me, no entanto, que há outro motivo para recusar a redefinição do conceito jurídico de casamento a que nem sempre se presta atenção. Se é verdade que o reconhecimento social e jurídico do casamento tem fundamentalmente a ver com a função deste de garantia da sobrevivência e renovação da sociedade (trata-se, como já atrás se referiu, do mais fundamental dos objectivos de uma qualquer comunidade), não deixa de realizar-se, também, com esse reconhecimento um outro objectivo de relevância social: a valorização da dualidade sexual. A valorização da dualidade sexual que dessa

51

Também neste sentido se pronuncia Seana Sugrue, in op. cit., p. 182.

52

«PACS e DICO: Domande e Risposte», in www.zenit. org, edição italiana, 1/3/07 e 8/2/07.

53

Ver loc. supra cit., p. 11

269


forma se verifica não deixa de ter também um relevo social, pois a sociedade estrutura-se em torno dessa dualidade. Assim, mesmo nos casos de casais sem filhos o reconhecimento social do casamento desempenha uma função social que não pode ser desempenhada por uniões entre pessoas do mesmo sexo.

A adopção Também se afirma, por outro lado, que a união homossexual pode desempenhar uma função equiparável à da união heterossexual se se lhe abrir a possibilidade da adopção. À reivindicação da admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo vem normalmente associada a reivindicação da admissibilidade da adopção por parte de «casais» homossexuais. Também para este efeito se invoca o princípio da igualdade. A questão de algum modo extravasa o âmbito deste estudo, mas, porque está estreitamente ligada ao seu objecto, não posso deixar de referir o seguinte. Ao instituto da adopção preside, acima de tudo, a finalidade de prossecução do bem da criança. Por isso, não pode, desde logo, encarar-se a possibilidade de adopção como um direito dos adoptantes (de que seriam privadas de forma discriminatória as pessoas de tendência homossexual). A centralidade do bem da criança afasta qualquer abertura à possibilidade de a adopção servir de instrumento para colmatar o eventual vazio existencial ou afectivo decorrente de uma relação estrutural e naturalmente infecunda. A criança não pode ser, desse modo, instrumentalizada ou reduzida a objecto que se reivindica. E o bem da criança exige que entre adoptantes e adoptado se estabeleçam laços o mais possível próximos dos que são próprios da filiação natural (adoptio imitat naturam). Todo o regime jurídico da adopção reflecte este princípio. O artigo 1974.º, n.º 1, do Código Civil português define, como requisito geral da adopção, o de que entre adoptante e adoptado se estabeleça um «vínculo semelhante ao da filiação». Ao contrário do que já tem sido dito, não basta que entre 270


eles se criem relações afectivas, por mais fortes e consistentes que estas sejam. Exige-se que essas relações afectivas correspondam às que são próprias da filiação natural. Por isso se exige que entre adoptante e adoptado haja um desnível etário (sem que isso implique obviamente qualquer tratamento discriminatório) correspondente ao que se verificará entre pais e filhos (ver os artigos 1979.º e 1992.º do Código Civil português). Se entre o candidato a adoptante e o adoptando não se verificar uma significativa diferença de idades, pode entre eles existir uma profunda relação afectiva, mas não será certamente a que é própria da filiação natural. Assim, também nunca a relação entre um casal homossexual e um adoptado, por muito e respeitável afecto que entre eles possa existir, será próxima da filiação natural, pois esta supõe sempre a dualidade sexual. Será difícil encontrar evidência mais objectiva do que esta: que a filiação natural supõe sempre a dualidade sexual. Será difícil, por isso, dizer que não estamos, neste âmbito, perante situações objectivamente diferentes, que justificam um tratamento diferenciado. Não se ignora a controvérsia a respeito dos estudos que pretendem demonstrar a ausência de danos psicológicos particulares em crianças educadas por «casais» homossexuais. A metodologia seguida tem sido contestada (os números são pouco representativos; trata-se, sobretudo, de crianças com laços de filiação biológica a um dos membros do «casal», o que não deixa de ser diferente de uma adopção conjunta; as consequências a mais largo prazo não foram ainda estudadas; os casos são seleccionados entre militantes dos direitos dos homossexuais, e não de forma aleatória, e os dados recolhidos assentam, em grande medida, nas declarações destes 54). Não pode, de qualquer modo, ignorar-se que os tratados de psicologia da evolução da criança nunca deixaram de salientar, antes e depois desta controvérsia, a importância e insubstituibilidade das figuras paterna e materna nessa evolução e que, com base neste facto, sempre os tribunais, no âmbito dos processos de regulação do poder paternal, apelaram, e continuam a apelar,

54

Ver Fontana, Monica, Martínez, Patricia e Romeo, Pablo, No Es Igual – Informe sobre el Desarrollo Infantil en Parejas del Mismo Sexo, Hazteoir, org., Maio de 2005, e Leite, Eduardo de Oliveira, «Adoção por Homossexuais: Adultocentrismo × Interesse das Crianças», in Campos, Diogo Leite de; Chinelatto, Silmara Juny de Abreu (coord.), Pessoa Humana e Direito, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 110-114. Gallagher, Maggie (in op. cit., pp. 202-203 e notas 17 e 18, pp. 280-281) aponta também, como deficiências desses estudos, a sua reduzida representatividade, o facto de não abrangerem os efeitos a longo prazo e o facto de se basearem na comparação entre crianças criadas por pares de lésbicas e crianças criadas por mães sós heterossexuais, mas sempre na ausência do pai.

271


55

Ver www.forumlibertas. com, 28/9/04.

272

à presença o mais contínua possível de cada uma dessas duas figuras na educação da criança. Que as crianças candidatas à adopção, já normalmente mais afectadas pelo mais variado tipo de carências e privações, sejam também privadas de uma dessas figuras paterna ou materna não pode deixar de ser encarado como sintoma da sua instrumentalização em função de uma reivindicação categorial ou da sua redução a objecto de uma experiência social de resultados, no mínimo, duvidosos e arriscados. A comparação com a adopção singular por pessoas solteiras (aceitável em muitos ordenamentos jurídicos mesmo que a preferência seja para a adopção conjunta) ou com a educação de uma criança por mães solteiras ou viúvas não é adequada, pois em nenhuma destas situações se verifica a anómala presença de dois «pais» e duas «mães», quando cada uma das figuras paterna e materna é «única e insubstituível». O psiquiatra espanhol Enrique Rojas declara a sua oposição à adopção por pares homossexuais porque a criança adoptada não pode dar o seu consentimento informado a algo que se traduz numa verdadeira experiência (ter dois pais ou duas mães) de resultados incertos e porque ela é privada da referência a uma das duas grandes componentes da natureza humana, que são a masculinidade e a feminilidade. Para além disso, qualquer criança adoptada enfrenta a problemática da aceitação da adopção («de onde venho?»; «quem são os meus pais?»), uma prova muito mais difícil de superar quando os adoptantes têm características radicalmente diferentes dos pais naturais e habituais 55. Afirma Xavier Lacroix: «É importante que a criança se aperceba e se experimente como nascida de dois corpos diferentes. Se ele se concebesse como nascida apenas do corpo da sua mãe, teria dificuldade em deixar de se conceber como o prolongamento desta. A partir do momento em que, pelo contrário, ela se experimenta como o fruto da união de dois corpos, apercebe-se necessariamente como diferente, única, nova. A experiência clínica mostra claramente os danos sofridos por algumas crianças psicóticas pelo facto de se encon-


trarem na impossibilidade de se imaginarem saídas do corpo do seu pai. Sentem-se como concebidas a partir de nada (…) A impossibilidade, em alternância com a habitual distância, de reencontrar a proximidade corporal com o pai será, para a criança, um apoio, uma confirmação da sua identidade masculina que lhe dará mais segurança para assumir a renúncia à mãe e ao feminino. Porque ela não surge tão espontaneamente, porque ela é, de algum modo, um «valor acrescentado», a masculinidade tem necessidade de ser confirmada, sustentada, e isto em todos os níveis da personalidade: psíquica, certamente, mas também corporal e espiritual» 56. E afirma também Xavier Lacroix, em resposta ao argumento de que os «casais homossexuais são tão capazes de amar como os outros: «Amar não consiste apenas em nutrir afecto, mas, antes de mais, em querer activamente as condições objectivas do crescimento do outro. Ora, as condições objectivas do crescimento da criança implicam papéis, funções, diferenças. A família não é apenas uma nebulosa de relações afectivas, ela é uma estrutura. E as duas diferenças primordiais em redor das quais se articulam sempre as estruturas elementares da parentalidade são a diferença dos sexos e a diferença das gerações» 57. Considerações análogas às tecidas a propósito da adopção poderão ser tecidas a respeito do acesso às técnicas de procriação medicamente assistida. A essa regulação preside (ou deve presidir) a ideia de centralidade do bem da criança a conceber, sem que esta seja (ou deva ser) instrumentalizada ou reduzida a objecto de pretensões dos requerentes desse acesso. E, tal como na adopção e por motivos análogos, será essa instrumentalização que se verificará no caso de acesso a essas técnicas por parte de pessoas homossexuais. A procriação medicamente assistida, tal como tem sido (ou deverá ser) regulada nos vários ordenamentos jurídicos destina-se a responder às exigências de casais que sofram de infertilidade patológica, não a servir de alternativa, por quaisquer outros motivos, à procriação natural.

56

Op. cit., pp. 74-75.

57

Op. cit., p. 83.

273


O artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006, de 25/7 (Lei que regula a procriação medicamente assistida) é claro ao declarar que a procriação medicamente assistida é um método subsidiário da procriação natural, e não a ela alternativo. Por isso, os seus beneficiários são casais heterossexuais (artigo 6.º). Que a reivindicação da admissibilidade da adopção por «casais» homossexuais venha normalmente associada à reivindicação da admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou seja vista como seu lógico corolário (como sucedeu em Espanha) tem sido mais um motivo de rejeição desta admissibilidade. Por isso, justifica-se esta breve alusão a esta questão, que não pretende esgotá-la.

A valorização da dualidade sexual Como já referimos, mesmo nos casos de casais sem filhos o reconhecimento social do casamento desempenha uma função social que não pode ser desempenhada por uniões entre pessoas do mesmo sexo. Esse reconhecimento não diz primordialmente respeito à atribuição de um conjunto de direitos e deveres, mas ao quadro simbólico de referência da sociedade. Através desse reconhecimento, de algum modo se «presta homenagem» à riqueza da dualidade sexual na perspectiva social do bem comum. A sociedade estrutura-se a partir dessa dualidade. Esta afirmação já consta do Génesis («Deus os criou homem e mulher»), que evidencia não só uma intuição característica da cultura judaico-cristã onde nos integramos, mas uma realidade natural que também está presente nos relatos fundadores das culturas mais diversificadas. A diferença estrutural entre homem e mulher não é fruto do acaso (como se pudesse deixar de ser assim), mas corresponde a um desígnio natural que faz dessa diferença uma ocasião de enriquecimento recíproco, que apela à unidade e comunhão a partir da diversidade. É isto mesmo que exprime a instituição do casamento, que as diferenças entre homem e mulher não são uma ocasião de conflito, mas de colaboração e enriquecimento recíprocos. 274


E é assim em todos os domínios da vida social, onde a dualidade sexual deve ser sempre encarada como uma riqueza, uma ocasião não de conflito, mas de colaboração. É esta «unidade na diversidade» que a instituição do casamento, pelo simples facto de existir, «proclama». Afirma, a este respeito psicanalista Tony Anatrella: «O laço social não pode constituir-se sem o respeito de quatro interditos estruturantes que vão permitir, precisamente, a vida, a relação entre as pessoas e a futuro da sociedade. Estes quatro interditos são: a proibição do incesto sob todas as suas formas, a proibição de provocar a morte, que permite o respeito de si próprio e da vida, a aceitação da diferença de gerações e o reconhecimento da diferença sexual, que estão nos fundamentos de todas as sociedades» 58. A sociedade estrutura-se a partir da diferença fundamental entre homem e mulher, o casamento representa a valorização dessa diferença e a homossexualidade não, como é óbvio. Essa diferença não é secundária ou aces-sória (com as diferenças de raça ou de língua), pois a pessoa não pode existir senão como homem e mulher e, por isso, «a sociedade não pode deixar de ser heterossexual». A sociedade deve manter as suas referências fundamentais, os alicerces do seu «edifício cultural», deixando a cada um a liberdade de conduzir a sua própria vida 59. E «é a partir desta diferença fundamental (entre homem e mulher) que todas as outras se tornam possíveis, que o indivíduo acede ao sentido do outro e se socializa» 60. É, pois, o próprio sentido da alteridade em geral que o casamento como modelo de referência nos ajuda a descobrir. Também este aspecto da valorização da alteridade é salientado na nota dos bispos franceses a propósito do reconhecimento jurídico de uniões homossexuais através do Pacto Civil de Solidariedade (o PACS) Une Loi Inutile et Dangereuse: «Será que foi suficientemente considerado como a busca a todo o preço do semelhante e do idêntico é em si mesmo uma fonte de exclusão? A sociedade não pode construir-se a partir da busca da semelhança, mas a partir da diferença entre o homem e a mulher: não há aqui qualquer discriminação em relação a

58

Époux, Heureux Époux – Essai sur le Lien Conjugal, Flammarion, 2004, p. 108. Podem ver-se, também, sobre estas questões, as obras deste autor La Différence Interdite, Flammarion, 1998, e La Liberte Détruite, Flammarion, 2000.

59

«Une Tendence Sexuelle n’est pas Sujet de Droit», in La Croix, 1/6/96. 60

«Le Pacte Civil de Solidarité – Analyse et Refléxion», in Documents de l’Épiscopat, (Setembro de 1998), 14.

275


61

La Croix, 18/9/98.

62

«Faut-il Abandoner le Mariage?», in La Croix, 28/5/98.

63

«Le Refus de Discrimination n’empêche pas le Discernement», in La Croix, 1/6/96.

64

La Confusion des Genres…, cit., p. 60.

65

I Rapporti e i Valori Familiari secondo la Bibbia, Comunicação apresentada ao VI Encontro Mundial de Famílias, Cidade do México, 14 de Janeiro de 2009, www.zenit.org, secção de documentação em italiano. 66

La Croix, 8/10/98.

276

quem quer que seja, mas um reconhecimento das condições necessárias à vida em sociedade» 61. Também Xavier Lacroix salienta que o casamento como valorização das diferenças sexuais tem necessidade de apoio social, desde logo no plano da dimensão simbólica (o reconhecimento do casamento tem uma «forte carga simbólica») e da «linguagem do corpo social» 62. «A diferença de sexos, uma vez que não é apenas um dado natural, tem necessidade de suporte, confirmação e apoio cultural». A equiparação da união homossexual ao casamento nega a importância dessa diferença. A imagem social do casamento faz parte de uma herança cultural (e espiritual) e é uma referência identificadora para as novas gerações 63. «O encontro entre homem e mulher situa-se, simultaneamente, no início da existência dos seres humanos e como pedra angular do seu movimento em direcção à alteridade É este encontro que é celebrado nas núpcias». No casamento está intrinsecamente presente uma dimensão exogâmica (e, portanto, de valorização da alteridade), exogamia em relação aos parentes (daí a proibição do incesto) e também em relação ao seu próprio sexo 64. Afirma Rainiero Cantalamessa O.F.M.Cap., pregador da Casa Pontifícia: «Abrir-se ao outro sexo é o primeiro passo para se abrir ao outro, que é o próximo, até ao Outro com letra maiúscula que é Deus. O matrimónio nasce sob o signo da humildade; é reconhecimento de dependência e, portanto, da condição de criatura. Enamorar-se de uma mulher ou de um homem é o mais radical acto de humildade. É tornar‑se mendigo e dizer: «Eu não me basto a mim mesmo, tenho necessidade do teu ser» 65. O político francês François Bayrou (que viria a ser candidato à Presidência da República) também salientou, a propósito da discussão sobre o Pacto Civil de Solidariedade (PACS), como a aceitação da alteridade ínsita na diferença entre homem e mulher representa um desafio maior para a sociedade 66. Afirmou, por seu turno, o político socialista francês Lionel Jospin, primeiro-ministro responsável pela consagração do PACS, mas contrário à admissibilidade de casamento entre pessoas


do mesmo sexo: «O casamento é, no seu princípio e como instituição, a união entre homem e mulher. Esta definição não é devida ao acaso. Ela remete não em primeiro lugar à inclinação sexual, mas à dualidade de sexos que caracteriza a nossa existência e que é a condição da procriação e, portanto, da continuidade da humanidade. É por isso que a filiação de uma criança se estabelece sempre em relação aos dois sexos. A espécie humana não se divide entre heterossexual e homossexual – trata-se aí de uma preferência, mas entre homens e mulheres» 67.

67 Journal du Dimanche, 16/5/04.

A publicação deste artigo continuará no próximo número.

277



A Igreja e os refugiados

Domingos Lourenço Vieira *

A Igreja católica, sobretudo pela acção diplomática da Santa Sé, interveio regularmente, sobretudo a partir do último quartel do século XX, sobre os «homens em fuga»1, atingidos na sua dignidade. O caso de todos os «homens em fuga» colocou-nos a questão para este estudo: quais foram as tomadas de posição da Igreja católica a respeito dos homens em fuga, sejam eles refugiados ou deslocados? Neste artigo é nossa intenção analisarmos e compreendermos as intervenções e posições do governo da Igreja católica neste domínio. Querer analisar a emergência da fórmula «homens em fuga» e a sua utilização nos discursos oficiais da Igreja conduziu-nos a uma hermenêutica histórica e analítica das intervenções do Papa como chefe de Estado e dos discursos feitos pelos representantes da Santa Sé nas organizações internacionais, uma vez que eles têm um carácter similar ao do Soberano Pontífice, porque eles comprometem a autoridade do governo da cidade do Vaticano e da Sé Apostólica 2. Ao empenharmo-nos numa investigação sobre os termos «homens em fuga» e «refugiados» quando e onde eles são usados pela Santa Sé, procuramos interrogar as perspectivas abertas pelas intervenções da Santa Sé em favor das vítimas e ver qual a perspectiva a partir da qual elas devem ser lidas.

1

Esta expressão «Homem em fuga» compreende-se em dois sentidos: por um lado, «homem em fuga» é a pessoa que teve de abandonar o seu país para escapar à guerra, à opressão, às perseguições residindo num país estrangeiro onde encontrou asilo – chama-se então «refugiado» (a Convenção de Genebra de 28 de Julho de 1951 regulamenta o estatuto dos refugiados); por outro lado, «o homem em fuga» é também a pessoa que, querendo fugir ao poder opressor, encontra-se na impossibilidade de deixar o seu país onde é perseguida – chama‑se então «deslocado».

2

Sobre a questão do reconhecimento internacional da Santa-Sé pode ler-se Vallin, Pierre, «Saint-Siège et relations internationales», Études, 3 (3853) (Setembro de 1996), 224; veja-se também Le Roy, François, «La personnalité juridique du Saint-Siège et l’Eglise catholique en droit international» in L’année canonique, II, 1963, p. 133.

* Pároco de Afife. Doutor em Teologia – Instituto Católico de Paris e em História Moderna e Contemporânea (Sorbonne-Paris IV).

Brotéria, 168 (2009) 279-296

279


João Paulo II em defesa dos refugiados diante do C.O.E.R.R. a 3 de Junho de 1986 3

Poderíamos partir de um outro texto: João Paulo II, «Discurso aos refugiados» [Viagem às Filipinas], 21 de Fevereiro de 1991, Acta Apostolicae Sedis 73 (1991), 390 que diz: «Pode ser a maior tragédia de todas as tragédias humanas». Ora verifica-se que é o texto de 3 de Junho de 1986 que apresenta de modo sistemático a posição do Papa face ao problema dos refugiados. 4

João Paulo II, «Discurso para a entrega do Prémio João XIII», Acta Apostolicae Sedis 78 (1986), 1279-1286. 5

Encontramos também esta ideia de sinergia a propósito dos refugiados em João Paulo II, «Discurso ao corpo diplomático na Tanzânia», Dar-Es-Salaam, 1.º Setembro de 1990, texto em inglês, Acta Apostolicae Sedis 83 (1991), 209-213.

O primeiro texto importante 3 do Papa João Paulo II sobre os refugiados é um discurso datado de 3 de Junho de 1986, pronunciado na entrega do Prémio João XXIII 4. O laureado tinha sido o «Catholic Office for Emergency Relief and Refugees» (C.O.E.R.R.). Na sua alocução, atendendo ao evento, o Papa sublinhou a acção generosa da organização honrada pela atribuição deste prémio em favor dos refugiados no Sudoeste asiático. Salientou ainda que a paz apenas se pode construir se fundada sobre acções multiformes, em acordos de «sinergia» em todos os domínios 5. Na óptica Papal, este fenómeno da sinergia é particularmente verdadeiro no que respeita ao problema dos refugiados: As dificuldades dificilmente serão resolvidas sem uma especial atenção «pela reconciliação entre os povos» (n.º 8) e a busca do «desenvolvimento social» (n.º 9). Ora neste discurso que acabámos de introduzir merecem especial atenção dois aspectos para o nosso estudo: primeiro a questão da dignidade do refugiado e num segundo momento o problema da solidariedade internacional. a)  Toda a intervenção é orientada pela dignidade dos refugiados

6

João Paulo II, «Discurso para a entrega do Prémio João XIII», op. cit., 1283, n.º 6. O Papa cita de novo esta frase na «Mensagem para a Quaresma de 1990», datada de 8 de Setembro de 1989, Acta Apostolicae Sedis 89 (1990), 802.

280

O Papa afirmou a incoerência da situação da pessoa humana refugiada. Sendo a sua dignidade espezinhada, toda a pessoa humana deve estar vigilante para a sua situação inaceitável. É assim um dever de todos respeitar os direitos das pessoas que fogem de seu país: «Devemo-nos ocupar dos refugiados que venham até nós a partir da sua situação de sofrimento e de perseguição. É nosso dever garantir sempre os direitos inalienáveis que são inerentes a todo o ser humano e que não estão condicionados por factores naturais ou por situações sócio-políticas» 6. «Este trabalho é verdadeiramente uma obra de paz. É uma obra de paz, porque antes de mais, ele procura curar as feridas que foram infligidas no espírito e no


corpo das pessoas que sofrem (…). É uma obra de paz porque ele procura reinserir estas populações na família humana de um modo tal, que sejam respeitadas na sua cultura e nos seus valores» 7. A nossa atenção de leitor desta citação, vai para o carácter ético-jurídico da situação dos refugiados. Se estes homens que sofrem têm os «direitos» próprios à sua natureza comum que une a humanidade em dignidade e em justiça, a restante humanidade tem o «dever» de se preocupar por eles e de os socorrer. Há, portanto, um elo entre os «direitos» dos indivíduos, Direitos do homem, e o «dever» correlativo de os fazer respeitar. Por isso, é necessário «garantir» estes direitos aos refugiados pois a dignidade dos refugiados que condiciona os seus direitos, não está ligada a um estado sanitário ou alimentar particular, mas a uma natureza comum com os outros Homens. Esta observação estabelece-se claramente no quadro de uma tomada de consciência moderna, que os seres humanos são-no porque estão ligados entre si por exigências que excedem cada personalidade 8. Uma destas exigências manifesta-se especialmente numa activa solidariedade interpessoal. Os «Direitos do homem» são expressos aqui na percepção contemporânea de uma igual dignidade de todos os seres humanos, como uma dignidade transcendente da pessoa. Neste sentido, correlativamente a um reconhecimento efectivo de um verdadeiro ataque aos Direitos do homem relativamente aos refugiados, o Papa preocupa-se aqui por designar a qualidade superior 9, para não dizer divina: é o homem criado à imagem e semelhança de Deus, que é atingido, é portanto o próprio Deus que é ferido. Esta intervenção de João Paulo II convida claramente à solidariedade em favor dos refugiados, uma vez que estes estão profundamente unidos a toda a família humana. É por esta dignidade10 própria a todo o ser humano que todos os homens devem sentir-se atingidos pela sua provação. A este laço, que une a humanidade que sofre com o resto dos outros homens, dá-se o nome de solidariedade. Esta é «obra de paz» uma vez que enfrenta as causas do sofrimento quando ele

7

João Paulo II, «Discurso para a entrega do Prémio João XIII», op. cit., 1283, n.º 7.

8

Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudium et Spes, 7

Dezembro de 1965, n.º 27.

9 Cf. João Paulo II, «Exortação apostólica», Cristifideles laici, 30 de Dezembro de 1988, Acta Apostolicae Sedis 81 (1989), 4000, n.º 5.

10

Encontrámos esta mesma certeza em João XXIII, «Carta Encíclica», Pacem in Terris, Acta Apostolicae Sedis, 55 (1963), 285-287. «O refugiado político é uma pessoa com a sua dignidade e com todos os seus direitos. Estes devem-lhe ser reconhecidos», Ibidem, p. 285.

281


é conhecido, para as suprimir ou pelo menos, num primeiro tempo, as aliviar. A situação do «refugiado» é portanto intolerável em virtude da dignidade comum que pertence a cada homem e que preside a uma solidariedade universal em relação aos que fogem diante de um agressor. O Papa evoca aqui os «direitos inalienáveis», porque nenhuma situação humana pode justificar a abolição da noção de dignidade. Estes direitos, para serem preservados, devem permanecer uma preocupação de cada Homem, de cada Nação. b)  A solidariedade com os refugiados como preocupação internacional Para combater as ofensas à dignidade humana, o Papa designou claramente quem se deve sentir solidário dos «homens em fuga». Ele disse:

11

João Paulo II, «Discurso para a entrega do Prémio João XIII», op. cit., 1281, n.º 3.4.7.

282

«O trabalho que vós começastes não é apenas feito somente por vós. Vós sois ajudados por numerosas organizações nacionais e internacionais que manifestam o desejo e o empenho universais de ajudar estes irmãos e irmãs que sofrem (…). Agradeço a todos os que se esforçaram na obra que é realizada em favor dos irmãos que se encontram numa indigência extrema, sem alimentação nem casa, longe de sua pátria. (…). Do fundo do coração, dirijo um convite sentido para que, se a solidariedade já conheceu manifestações fortes, uma ajuda internacional ainda mais rica e mais adequada ofereça aos refugiados novos sinais de generosidade. (…) Apenas, uma solidariedade política a uma larga escala poderá trazer uma solução satisfatória a este grave e velho problema»11.

Esta longa citação da alocução de João Paulo II revela a preocupação do Soberano Pontífice em favor dos refugiados. Aí exprime especialmente que a ajuda aos que devem fugir de um agressor, incumbe explicitamente à comunidade internacional. As expressões «desejo e empenho universais», «ajuda internacional» e «solidariedade política a uma larga escala», indicam a orientação que ele procura dar à sua mensagem. O ardor solidário em favor dos refugiados abrange toda a comunidade humana que se deve sentir implicada quando as intervenções humanitárias são urgentes. Ora se o Papa insiste


diante de uma organização privada, sobre o valor insubstituível de uma solidariedade internacional, isso não relativiza a responsabilidade de todas as nações, e portanto, de todos os Homens, diante dos dramas vividos por estes «homens em fuga». Não se trata de denunciar o culpado de uma situação humana dramática, mas na urgência de lembrar a responsabilidade de todos diante das situações humanas que conduzem às perseguições e aos desenraizamentos humanos. A comunidade internacional pode portanto ser reconhecida como responsável pelos acontecimentos decorrentes da situação. Face à sua responsabilidade, a «família humana» deve estar atenta, deve discernir sobre quem precisa da sua intervenção e da sua assistência. O Papa quis mostrar a atenção que tem a Igreja a respeito dos refugiados. É claro que a situação destes homens em fuga responsabiliza verdadeiramente todos os países, porque todos são susceptíveis de acolher refugiados. Mas como analisa o Papa as outras categorias dos homens em fuga?

O dever-direito de solidariedade para com todos os refugiados – Quaresma de 1990 Se a locução diante do «Catholic Office for Emergency Relief and Refugee» se revestia de uma carácter privado no seu apelo a favor dos refugiados, João Paulo II, ofereceu à questão um espectro mais universal na «Mensagem de Quaresma de 1990»12. Retomando o essencial das ideias expostas quatro anos antes, o Soberano Pontífice insiste sobretudo no recrudescimento do fenómeno e numa necessária clarificação da situação de todos os homens em fuga.

12

João Paulo II, «Mensagem de Quaresma de 1990», 8 de Setembro de 1989, Texto original em Italiano, Acta Apostolicae Sedis 82 (1990), 802.

a)  A generalização das situações conducentes ao deslocamento de populações Desde o início da sua mensagem, o Papa reconhece o incremento das condições humanas favorecendo as deslocações de populações: «O afluxo importante e crescente dos refugiados constitui no mundo em que vivemos uma realidade dolorosa 283


13

Ibidem, 801, n.º 1.

que nunca está limitada a certas regiões mas estende-se doravante a todos os continentes»13. A situação é geral aos olhos do Papa e todas as partes do mundo são afectadas. Esta mundialização é um fenómeno que necessita não apenas uma tomada de consciência da comunidade internacional, mas também de uma acção concertada desta mesma comunidade. O dever de solidariedade da comunidade internacional torna-se mais premente. Se este dever abrange todos os indivíduos, todas as nações, ele reveste-se de um carácter urgente com a generalização das situações dos dramas humanitários. É neste contexto que o Papa vai definir os destinatários duma tal solidariedade. b)  Poucos expatriados podem esperar voltar ao seu país

14

Ibidem.

Constatando a internacionalização dos problemas ligados aos refugiados, João Paulo II distingue dois tipos de pessoas atingidas por esta provação. Por um lado, as que devem deixar o seu país em razão de uma expulsão ou de uma fuga aterrorizada e que poderão um dia voltar e aí viver. Por outro lado, as que terão apenas por pátria a Nação que as queiram definitivamente acolher: «Sem pátria, os refugiados procuram o acolhimento de outros países neste mundo que é a nossa casa comum. Poucos refugiados têm a possibilidade de regressar ao seu país de origem, no seguimento das mudanças operadas na situação interior. Para outros, as dificuldades penosas do êxodo, da insegurança e a busca ansiosa de uma situação conveniente, prolongam-se»14. O documento pontifical faz então apelo à solidariedade na justiça e particularmente, para essa Quaresma de 1990, à responsabilidade dos católicos para com os refugiados. A insistência do Papa funda-se numa noção importante, a de comunidade internacional, descrita aqui como uma «casa comum». Mas, o Soberano Pontífice fez mesmo referência à noção de fraternidade, própria à terminologia cristã, mas também universal em virtude dos laços que unem os Homens entre si: «É por isso, que por ocasião desta Quaresma, eu dirijo este apelo imperioso aos membros e às comunidades da Igreja católica: pro-

284


curai todos os meios susceptíveis para ir em ajuda dos nossos irmãos refugiados, dai-lhes um acolhimento que favoreça a sua inserção na sociedade civil, manifestai a seu respeito uma generosa abertura de espírito e uma calorosa cordialidade. A solicitude para com os refugiados deve-nos convidar a reafirmar os Direitos do Homem, universalmente reconhecidos, a sublinhar a sua importância e a pedir um respeito efectivo pelos refugiados»15.

15

Ibidem, 802, n.º 3.

Reconhecemos aqui a temática empregue no discurso pronunciado aquando da entrega do «Prémio João XXIII» em 1986. Aqui encontrámos as linhas preconizadas pelo Papa para uma acção eficaz junto dos refugiados, não apenas no plano dos princípios, mas também das modalidades práticas do acolhimento necessário. Ele desejava despertar as consciências: acolher o refugiado é um dever de justiça, portanto uma exigência ética. Mas João Paulo II vai aqui mais longe: apresenta este acolhimento como um direito que encontra a sua legitimidade nos Direitos do homem: os refugiados têm um direito de asilo, um direito a serem acolhidos. Este texto da Quaresma apresenta a acção humanitária junto dos refugiados como uma exigência ético-jurídica. Mas se estes textos pontificais fazem uma menção a um dever-direito dos refugiados a serem acolhidos e socorridos, eles não apresentam ainda quais são as implicações práticas de um tal reconhecimento.

Um princípio de «direito-dever de livre acesso aos refugiados» (30 de Janeiro de 1992) Foi necessário esperar pelo início do ano de 1992 para o magistério social da Igreja se debruçar sobre o empenho humanitário junto dos refugiados e assinalar a necessidade de uma acção de salvamento. Esta acção, entravada pelos princípios que consagram as soberanias nacionais, é muitas vezes difícil de pôr em prática. A Santa Sé mostrou-se partidária de uma ajuda de urgência, com a certeza de que os meios de assistência chegarão às vítimas. Este foi um dos pedidos formulados por Jean-Louis Tauran diante da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, a 30 de Janeiro de 1992: 285


16

Tauran, Jean-Louis, «Intervention devant la CSCE», 30 de Janeiro de 1992, Texto original em francês, Osservatore Romano 3-4 de Fevereiro de 1992, La Documentation Catholique 2046 (1992), 266.

286

«A breve prazo, a Europa e a América têm um dever de solidariedade imediata para aliviar as misérias imediatas. (…) É preciso com urgência coordenar os esforços de todos (…) os governos cujas populações conhecem uma grave deterioração social e sanitária, devem tomar todas as medidas permitindo à ajuda internacional, pública e privada, chegar directamente aos que estão em necessidade. (…). Do mesmo modo que existe um direito do destinatário a receber directamente do doador, existe um direito do doador de estar directamente em contacto com o destinatário. É o único meio de evitar todo o desvio das ajudas e o enriquecimento de alguns sobre a miséria dos pobres»16.

Constatamos, analisando este texto, que o representante do Papa sublinha o carácter ético-juridico de um acesso às vítimas. O diplomata exprime o cuidado da Santa Sé em tornar prioritário o direito das vítimas e o direito-dever das nações em relação aos homens que sofrem. É também necessário reconhecer que «direito» e «dever» estão, neste contexto preciso, misturados, apresentados como inseparáveis um do outro. Assim sendo, façamos então uma análise detalhada. Em primeiro lugar, o delegado da Santa Sé faz menção, a um «dever de solidariedade imediata para aliviar as misérias imediatas». Esta expressão caracteriza o que convém designar como as situações de urgência. Está na linha das precedentes intervenções do Papa João Paulo II. Há uma insistência sobre a necessidade de pôr em acção uma solidariedade efectiva e rápida das nações ocidentais em favor dos povos vítimas de dramas humanos. Uma situação de urgência necessita de uma resposta humanitária urgente, imediata. A Santa Sé convida as Nações a uma intervenção rápida, quando nada pode ser feito para impedir o drama ou quando, de facto, nada foi feito. Afirmar assim que os homens devem ser solidários uns com os outros, quaisquer que sejam os problemas, mesmo os transfronteiriços, depende já de um dever internacional de intervenção humanitária. Em seguida, esta declaração afirma que existe um «direito de assistência humanitária». Na verdade, Jean-Louis Tauran indica que as nações afectadas por dramas devem fazer tudo o que estiver ao seu alcance para permitir que a ajuda interna-


cional chegue directamente aos que se encontram em necessidade. Uma tal percepção da assistência humanitária significa, por um lado, que a ajuda internacional deve ter o livre acesso a um território soberano e por outro lado, que o Estado atingido por esta ajuda deve permitir o encaminhamento e a distribuição. É pedido pela Santa Sé um «direito de livre acesso às vítimas». Enfim, esta alocução estipula que existem dois outros direitos correlativos: o direito do destinatário a receber directamente do doador, e o direito do doador de estar directamente em contacto com o destinatário. Estes dois direitos exprimem claramente esta vontade: os países doadores devem ter um direito de observação sobre a sua participação humanitária. Receber directamente do doador e estar directamente em contacto com o destinatário são condições específicas de uma assistência responsável e controlada. Sabe-se dos riscos de pilhagem e de desvio das ajudas humanitárias, se nenhum controlo é efectuado. «Aceder directamente às vítimas» implica que a assistência possa ser decidida, encaminhada, seguida e controlada por quem tomou a iniciativa. Na verdade, a assistência humanitária de urgência necessita, em virtude dos imperativos de sobrevivência, de meios diferentes dos que são requeridos para ajuda ao desenvolvimento a longo prazo. Esta necessária relação, entre a vítima e o seu salvador, surge como uma exigência jurídica. Esta intervenção da Santa Sé descreve, então, as implicações de uma solidariedade efectiva e de uma justiça activa. Ela lembra ainda que nenhuma consideração política prevaleceria sobre os socorros a prestar às vítimas. «A minha delegação é da opinião que na organização da ajuda internacional, convém que os governos – doadores e beneficiários – saibam fazer prevalecer a sobrevivência das populações sobre qualquer interesse político»17. Esta tomada de posição por um representante da Santa Sé, a primeira no género, apresenta as condições das intervenções de assistência às vítimas, quando o princípio da «soberania nacional» seja invocado pelas nações beneficiárias da ajuda, para a recusar ou impedir. Há, para a Igreja católica, um «direito

17

Ibidem, 266.

287


18

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes: «Os Refugiados: um Desafio à Solidariedade». Versão portuguesa Online http://www.vatican. va/.../pontifical_councils/ migrants/documents/rc_pc_ migrants_doc_19920625_re fugees_po.html (acesso realizado a 17 de Junho de 2008). Neste estudo seguimos a versão documental francesa: «Les réfugiés un défi à la solidarité», 2 de Outubro de 1992, texto francês da Libreria Editrice Vaticana, La Documentation Catholique 2059 (1992), 926-932. A 5 de Março de 1993 João Paulo II cita este documento várias vezes na «Mensagem ao Colóquio organizado pela ONU», texto original em francês, La Documentaion Catholique 2070 (1993), 352-353. Paul Tabet, chefe da delegação da Santa Sé na intervenção junto do Alto Comissariado da ONU para os refugiados, de 4 a 8 de Outubro de 1993 em Genebra cita-o também várias vezes: «Des orientations relatives aux réfugiés ont été consignées en 1992 dans le document du Saint-Siège intitulé: Les réfugiés, un défi à la solidarité», texto escrito em francês, Osservatore Romano, 11-12 de Outubro de 1993, La Documentation Catholique 2083 (1993), 1014-1015. 19

Cf. Tabet, Paul, «Intervention devant le Haut-Commissariat de l’ONU pour les réfugiés», 4-8 de Outubro de 1993, Texto original em francês, Osservatore Romano 11-12 Outubro de 1993, La Documentation Catholique 2083 (1993), 1014-1015. 20

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes, «Les réfugiés un défi à la solidarité», op. cit., 926, prefácio. 21

Toda a intervenção directa (ingerência) num país soberano por uma outra

288

de livre acesso às vítimas» por parte da comunidade internacional, nos casos de dramas humanitários em que está em causa a ajuda humanitária. Tendo sublinhado as implicações morais e jurídicas restava ao magistério social alargar o «direito‑dever de acesso às vítimas» a todos os homens em fuga.

O alargamento da categoria de refugiado a todo o homem em fuga – 2 de Outubro de 1992 A 2 de Outubro de 1992, o Conselho Pontifício Cor Unum e o Conselho para a Pastoral dos migrantes publicaram um texto importante18 que vai ser citado várias vezes por João Paulo II ou pelos representantes da Santa Sé. Este texto, prefaciado pelo Cardeal Roger Etchégaray – na época Presidente do Conselho Pontifício Cor Unum – e Giovanni Cheli – na altura Presidente do Conselho Pontifício para a pastoral dos migrantes e das pessoas em deslocação, é a «Carta da Igreja para a protecção de todos os que por razões diversas são obrigados a procurar refúgio no estrangeiro»19. Este prefácio nota que se o número de refugiados exilados aumentou dramaticamente, não se pode esquecer que este é duplicado pela quantidade de deslocados no interior do seu próprio país e portanto juridicamente não protegidos 20. É este «grupo» de homens em fuga que nos importa estudar neste documento, porque se trata de uma categoria à parte: eles estão desprovidos de direitos e susceptíveis de serem assistidos por países estrangeiros. Se acontece uma acção solidária, ela pode ser qualificada de ingerência, uma vez que existiria intervenção de um ou de vários Estados nos assuntos interiores de um país soberano, mesmo se se trata de restabelecer a justiça 21. a)  As pessoas deslocadas devem ser consideradas como refugiados O documento tem 4 capítulos, com diferente extensão, apresentando uma visão de conjunto da problemática respeitante à pessoa refugiada, a partir de diferentes epistemologias. Assim,


designa quem é «refugiado», aborda o princípio da responsabilidade internacional e dos caminhos possíveis da solidariedade, abarca ainda os problemas ligados à imigração, à situação dos refugiados e os problemas político-económicos dai resultantes, evocando, por fim, os diversos locais onde a Igreja está em contacto directo com os problemas dos refugiados. Retenhamos a nossa atenção na clarificação terminológica do «refugiado». Este documento sustenta que é pessoa refugiada a que tem de abandonar a sua Nação – como nota o prefácio do texto, mas também a que não entra nesta, ou seja, toda a pessoa deslocada no interior de seu próprio país. O texto assevera: «Para um grande número de pessoas, o desenraizamento forçado do seu meio de vida, efectua-se sem sair das fronteiras nacionais. Com efeito, aquando das revoluções e contra-revoluções, a população civil é muitas vezes colocada sob o fogo cruzado das forças da guerrilha e das forças governamentais que se defrontam por motivos ideológicos ou pela propriedade das terras e dos recursos naturais. Por razões humanitárias, estas pessoas deslocadas deveriam ser consideradas como refugiadas, ao mesmo título que são reconhecidos tais pela Convenção 22, porque elas são vítimas do mesmo tipo de violência» 23.

Ora, uma pessoa deslocada no seu próprio país não tem o estatuto jurídico particular de «refugiado» e não pode, a este título, prevalecer-se do direito humanitário existente 24. Por isso, o texto lembra todos os direitos e deveres dos refugiados 25. Que haja um atravessar de fronteira ou uma simples deslocação no território nacional, o documento insiste para que a qualidade de «refugiado» seja reconhecida a toda a pessoa obrigada a fugir da sua habitação. Trata-se portanto do conceito de «fuga» (situação do homem em fuga) que permite aqui fazer a passagem ao conceito jurídico de «refugiado» às pessoas deslocadas. Em qualquer dos casos, quer a pessoa seja deslocada ou refugiada, ela é, na visão da Igreja católica, uma pessoa que foge diante de uma violência. É a este título que a Igreja insiste por um reconhecimento de direitos idênticos. É por isso que os organismos internacionais perti-

Nação está largamente proibida pelo direito internacional contemporâneo, tal como ele está desenvolvido no Artigo 2 §4 da Carta das Nações Unidas. 22

Trata-se da «Convenção relativa ao estatuto dos refugiados» adoptada pelas «Nações Unidas» a 28 de Julho de 1951 e do Protocolo relativo ao estatuto dos refugiados adoptado a 31 de Janeiro de 1967. A Convenção define como sendo «refugiado « toda a pessoa que «temendo com razão ser perseguida pelo facto de ser de tal raça, da sua religião, da sua nacionalidade, da sua pertença a um grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país de que ela tem a nacionalidade e que não pode, ou pelo facto deste medo, não se quer reclamar senão sob a protecção desse país do qual ela tinha feito a sua residência habitual no seguimento de tais acontecimentos, não pode ou em razão do dito receio, não quer aí voltar» (Art 1, A, 2), Documentation des Nations Unies. Note-se que segundo o direito, os «homens em fuga» no território do seu país não têm no rigor do termo o nome de «refugiados» mas de pessoas «deslocadas» (cf. Convention de Genève, relative à la protection des personnes civiles en temps de guerre, 12 de Agosto de 1949. Título III, secção 1-2, Genebra, CICR 1989, pp. 169-175. 23

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes, «Les réfugiés un défi à la solidarité», op. cit., 927. 24

Notemos que os documentos oficiais das Nações Unidas têm apesar de tudo alargado a noção de refugiado por uma mais vasta visão humanitária do fenómeno. Retenhamos em particular: A Declaração sobre o Asilo territorial, adoptada

289


pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, a 14 de Dezembro de 1967; a Convenção da Organização da Unidade Africana, de 10 de Dezembro de 1969, regendo os aspectos próprios aos problemas dos refugiados em África. O colóquio de Cartagena (Colômbia), a 22 de Novembro de 1984, cuja declaração final considera também como refugiado a pessoa que fugiu de seu país por causa de uma violação massiva dos Direitos do homem (III,3). Esta declaração não tem até hoje senão a força de uma opinião partilhada no plano internacional (ver Documentation des Nations Unies). 25

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes, «Les réfugiés un défi à la solidarité», op. cit., 927-929, n.º 8-16. 26

Convém assinalar que para as Nações Unidas, um problema político ou social interior, apenas se torna internacional no caso de transvazar as fronteiras do Estado em questão. Assim, o problema de perseguição de população apenas se reveste com um carácter internacional quando os Estados vizinhos são também tocados pelo fenómeno que, de início, não lhes dizia respeito. Ver a este título o Artigo 43 da Carta das Nações Unidas e a Resolução 688 do Conselho de Segurança, adoptada a 5 de Abril de 1991 a propósito de Curdistão iraquiano. 27

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes, «Les réfugiés un défi à la solidarité», op. cit., 929, n.º 18. 28

Ibidem, n.º 20.

29

Ibidem.

30

Ibidem, 930, n.º 22:23.24.

290

nentes se interessam por todos os tipos de homens em fuga, os deslocados ou os exilados; todos devem ser assimilados e considerados como refugiados, com os direitos e deveres que possuem neste estado. b)  Face aos «homens em fuga», a exigência de consciência solidária da comunidade internacional O Conselho Pontifício Cor Unum e o Conselho para a Pastoral dos migrantes pedem o contributo das instituições internacionais para que se sintam solidárias dos problemas ligados às deslocações das pessoas 26. Esta solidariedade entre os povos, mas também de modo extensivo entre os Homens, encontra a sua plena expressão contemporânea nos meios que podem oferecer as instituições especializadas das Nações Unidas. Este texto defende as instituições da ONU que «merecem estima e reconhecimento» 27. Por isso, o Conselho deseja que este «espírito de solidariedade revele claramente que é inaceitável que milhões de refugiados vivam em condições desumanas»28. O documento vai ainda mais longe «Não se trata somente de tratar as feridas, é preciso também intervir sobre as causas geradoras de refugiados» 29. Verifica-se um forte apelo à solidariedade, bem como um convite à atenção da comunidade internacional para um acordo político da situação. Uma tal tomada de consciência implica prioritariamente a procura de meios que permitam o regresso dos refugiados ao seu país, a assistência humanitária e o exercício da caridade: «Uma expressão particular de solidariedade em relação aos refugiados é o apoio dado em favor de um regresso consentido à sua pátria, que é a aspiração da maioria. (…). A solidariedade em relação aos refugiados, exige iniciativas conjuntas de ajuda humanitária e de cooperação no desenvolvimento (…). Os caminhos da solidariedade exigem da parte de todos, ultrapassar o egoísmo e o medo do outro» 30.

A solidariedade entre povos e nações é a razão a partir da qual o documento pede um compromisso da comunidade internacional em favor dos refugiados. Trata-se portanto para a


Igreja católica de recordar a exigência de Justiça que é necessário oferecer a todos os homens: restituir a cada um o que lhe é devido 31. Esta solicitude das nações em relação aos refugiados poderia ser compreendida como a responsabilidade dos Estados mas ricos e mais democráticos em favor dos Estados mais pobres ou sem real vida democrática. O texto clarifica este ponto de vista: «Os cidadãos e as instituições dos Estados democráticos e economicamente desenvolvidos não podem ficar indiferentes face a uma situação tão dramática. A inacção ou o fraco esforço da parte destes Estados estaria em contradição gritante com os princípios que eles consideram, a justo título, como sendo a base da sua cultura, fundada sobre a igual dignidade reconhecida a toda a pessoa humana» 32.

Esta percepção de uma humanidade nobre e de origem comum vai condicionar o dever dos Homens de assistir o inocente, de aceder às vítimas, de ir ao encontro do refugiado.

31

Cf. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, nº 69.

32

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes, «Les réfugiés un défi à la solidarité», op. cit., 929, n.º 30.

c)  Um novo apelo em favor de um direito de livre acesso às vítimas O documento não se contenta em convidar à solidariedade e ao dever de justiça; ele exorta à institucionalização das intervenções humanitárias da comunidade internacional, em favor dos refugiados: «A protecção dos direitos humanos dos deslocados exige a adopção de instrumentos jurídicos específicos e de mecanismos de coordenação apropriados por parte da comunidade internacional, cujas legítimas intervenções não poderão ser consideradas como violações da soberania nacional. (…). A necessidade de criar um sistema de controlo internacional ressente-se cada vez mais fortemente, de modo que seja assegurada aos refugiados a plena liberdade de serem repatriados» 33.

Estas linhas revestem-se de singular importância para assinalar o empenho humanitário da Igreja católica. Elas indicam o desejo de instauração de regras jurídicas internacionais protectoras ao serviço dos deslocados e que tal legislação necessita

33

Documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes, «Les réfugiés un défi à la solidarité», op. cit., 929-939, n.º 21-22.

291


34

Sobre este assunto veja-se Conforti, Benedetto, «Le principe de non-intervention» in Bedjauoi, Mohammed (dir.), Droit International, Paris, Pedone, 1991, tome I, pp. 489-503.

292

de uma reforma das regras que orientam as relações internacionais. Este documento mostra que a Igreja defende uma limitação dos princípios ligados às soberanias nacionais, quando a vida dos homens está em causa. Na sua óptica, é necessário constituir uma legislação prioritária, mesmo superior às regras tradicionais que gerem as relações ordinárias entre os Estados. Tratar-se-ia de uma legislação para os casos extremos, para as faltas de equidade: todos os Homens em fuga necessitam que se exprimam em direito, a solicitude e a atenção das nações. Mais ainda, não se trataria somente de adoptar novas normas, mesmo eivadas de justiça, seria necessário aplicá-las. O documento convida claramente a uma legislação internacional das intervenções humanitárias, em nome da solidariedade e da justiça para a protecção dos direitos humanos violados, mesmo se o Estado tocado julga que se trata de uma violação da sua soberania. Esta nova regulamentação apenas se poderia pôr em prática com o aval das Nações Unidas, uma vez que se trataria de regras que devem ser examinadas pelos próprios governos 34. O texto do Conselho Pontifical sublinha que tais instrumentos jurídicos não atingiriam em nada a soberania nacional dos referidos Estados. A justiça à qual todas as nações são chamadas ultrapassa largamente os princípios do direito internacional que foram estabelecidos para proteger os Estados do arbitrário e das hegemonias. Estas regras, justas a priori, não se devem revelar arsenais legais, permitindo proteger os agressores e abandonar os agredidos. O apelo formulado convida a respeitar o espírito e não a letra da lei quando esta última se revela ser injusta. Por outras palavras, o documento reclama o que se poderia designar por extensão da ideia, um direito-dever dos povos para o livre acesso às vítimas. Neste sentido, poderíamos dizer que esta intervenção se reveste ao mesmo tempo de um carácter jurídico e ético. Ela tornar-se-ia um direito das nações a intervir, se isso lhes fosse reconhecido no direito internacional; mas ela seria também um dever dos homens em fuga, vítimas de uma opressão, a serem socorridos. Ela seria, enfim, um dever para a comunidade das nações. É, portanto, um apelo para um tipo de direito-dever de inter-


venção humanitária internacional, em favor dos «homens em fuga». Se o documento do Conselho pontifical Cor Unum e do Conselho para a pastoral dos migrantes convida os povos a dotarem-se de meios jurídicos internacionais adaptados, é para colocar o Homem no centro do debate, significando e exigindo nesta questão, um direito de livre acesso aos deslocados vistos como vítimas 35.

A assistência a todos os homens em fuga é um direito e um dever (1 de Março e 8 de Outubro de 1993) O documento que acabámos de analisar – «Os refugiados: um desafio à solidariedade» – que emanou de Conselhos pontificais com tonalidade pastoral, foi citado como explicitação da posição diplomática da Santa Sé e da preocupação da Sé Apostólica em favor dos refugiados. Neste contexto, em 1993, encontrámos uma mensagem de João Paulo II num colóquio organizado pela ONU a 1 de Março de 1993 e uma intervenção de Paul Tabet, membro da secretaria de Estado do Vaticano e então chefe de delegação da Santa Sé nas Nações Unidas, diante do Alto Comité das Nações Unidas para os Refugiados (H.C.R.) a 8 de Outubro de 1993. Estas intervenções, na sequência das precedentes declarações da Igreja católica, apelam a uma necessária e legitima intervenção humanitária da parte da comunidade internacional. A solidariedade internacional em favor dos refugiados é uma exigência: João Paulo II diante da ONU a 1 de Março de 1993 Paulo VI 36 e João Paulo II 37 responderam sempre aos convites que lhes foram endereçados de exprimir diante da ONU as opções e as visões da política internacional da Santa Sé. Uma tal tribuna permitiu-lhes, por meio de uma mensagem ou intervenção pessoal, definir também com precisão a missão da Organização desejada pela Santa Sé. A ONU encontra a justificação da sua existência na vontade que têm os seus mem-

35

Esta exigência de livre acesso às vítimas é também lembrada pelo Papa João Paulo II numa carta ao arcebispo de Vrhbosna (Saravejo), Puljic a 29 de Setembro de 1993: «O bispo de Roma não deixou, desde o início do conflito, de fazer eco a esta questão: ele convidou todas as partes a ter a coragem da paz e defendeu os esforços da comunidade internacional para favorecer o processo de paz e ir em ajuda às vítimas do conflito» (João Paulo II, Carta ao arcebispo de Vrhbosna, 29 de Setembro de 1993, texto italiano, Osservatore Romano de 3 de Outubro de 1993. 36

Assinalamos duas intervenções de Paulo VI à ONU: Paulo VI, «Alocução à Assembleia Geral das Nações Unidas», 4 de Outubro de 1965, Acta Apostolicae Sedis 57 (1965), 877-885; Idem, «Mensagem para o 25 aniversário da Organização das Nações Unidas», 4 de Outubro de 1970, Acta Apostolicae Sedis 62 (1970), 683-687. 37

Retenhamos 3 intervenções de João Paulo II junto das Nações Unidas: João Paulo II, «Discurso no 34 aniversário da Organização das Nações Unidas», Nova Iorque, 2 de Outubro de 1979, La Documentation Catholique 76 (1979), 872‑879; Idem, «Mensagem para o 40 aniversário da Organização das Nações Unidas», Nova Iorque, 14 de Outubro de 1985, La Documentation Catholique 82 (1985), 1051-1053; Idem «Discurso à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas», 5 de Outubro de 1995, La Documentation Catholique 92 (1995), 917-923.

293


bros em resolverem os diferendos internacionais e a irem em auxílio aos homens que sofrem. É precisamente sobre esta vocação que insistiu João Paulo II, numa mensagem dirigida à ONU num Colóquio organizado por aquela alta instância em Nova Iorque a 1 de Março de 1993:

38

João Paulo II, «Mensagem a um colóquio organizado pela ONU», 9-10 de Março de 1995, La Documentation Catholique 2070 (1993), 352-353. 39

A mesma preocupação pelos refugiados aparece várias vezes em João Paulo II assim na Exortação póssinodal Ecclesia in Africa, Acta Apostolicae Sedis 88, (1996), 70. Veja-se também o discurso do Papa aos membros da «Liga internacional de humanistas» de Saravejo a 9 de Fevereiro de 2001, http:// vatican.va/ .../john_paul_ii/speeches /2001/documents/hf_jpii_spe_20010209_umanistisarajevo_fr.html. As mesmas ideias são retomadas no Angelus de 15 de Junho de 2003, http.//www.vatican. va/holy_father/john_paul_ ii/angelus/2003/documents/ hf_jp-ii_ang_20030615_fr. html (acessos realizados a 14 de Agosto de 2008). 40

O texto diz: «Todas estas pessoas generosas e as organizações que elas criaram dão um testemunho de solidariedade humana e de amor em relação aos mais pequenos dos nossos irmãos e irmãs, testemunho que mostra o caminho a seguir» (João Paulo II, «Mensagem a um colóquio organizado pela ONU», op. cit., 352)

294

«A vocação desta Organização internacional é precisamente manifestar ao mais alto nível a vontade de cooperação e de solidariedade das nações no mundo; por sua natureza, ela é chamada a velar pela protecção dos direitos fundamentais de todo o ser humano, e a procurar a paz e o desenvolvimento de todos os povos. (…). Ao mesmo tempo, os socorros aos refugiados devem continuar, do mesmo modo que o desenvolvimento da protecção jurídica dos diferentes grupos de pessoas deslocadas sob ameaça. (…). A ajuda humanitária, por necessária que seja, não se pode substituir à acção política. Para resolver o problema dos refugiados, a solidariedade de todos – os Estados, as organizações não governamentais e os indivíduos – é necessária, para quebrar o silencio ou a indiferença, para impedir o genocídio de populações inteiras e para se chegar a uma solução política dos problemas de fundo que afligem largas franjas da família humana» 38.

Esta citação mostra João Paulo II a convidar os Estados e os povos a uma atenção particular no serviço dos refugiados 39 e a insistir no empenho político da comunidade das nações para a resolução dos problemas dos refugiados. A comunidade das nações não se pode contentar em assistir materialmente os refugiados. Ela deve implicar-se largamente na defesa dos direitos fundamentais do ser humano e, se necessário, quebrando a lei do silencio ou da indiferença. Trata-se de um apelo à denúncia dos agressores e ao restabelecimento de situações dignas da humanidade: é claramente um dever de justiça e não somente uma obra de caridade. Uma tal solidariedade implica não apenas um empenho humanitário, mas também político que conduza a ONU a uma gestão das crises. Esta solidariedade 40, acrescenta ainda o Papa, atravessa todas as estruturas da sociedade humana; as nações, as organizações humanitárias e até aos indivíduos isolados. Assim, conviria actualizar o direito internacional existente e de o adaptar às novas situações. Um tal empenho exige reformas das leis internacionais e uma vontade real da parte das nações.


A solidariedade internacional para com as pessoas deslocadas necessita de uma nova regulamentação internacional A intervenção do representante da Santa Sé diante do Alto Comissariado para os Refugiados, em 8 de Outubro de 1993, descreveu as exigências do Papa e da Igreja a propósito dos «homens em fuga». Seria necessário uma transformação da legislação em matéria de direito humanitário: «A protecção das pessoas deslocadas no interior do seu próprio país é um elemento essencial desta prevenção. A Santa Sé deseja que a comunidade internacional continue a debruçar-se sobre o destino destas pessoas e supra as sérias lacunas jurídicas que persistem a propósito da sua protecção» 41. Esta passagem mostra que a Igreja católica milita em favor de uma intervenção humanitária da comunidade internacional – ONU, Organizações Não Governamentais e indivíduos – para regular os problemas próprios aos «homens em fuga», especialmente os exilados e deslocados. Esta intervenção encontra a sua justificação, como as outras intervenções oficiais da Igreja católica, na comum solidariedade que liga os Homens uns aos outros e na tomada de consciência de um necessário restabelecimento da justiça. Que o refugiado seja exilado ou deslocado, ele é uma prioridade para a comunidade mundial: ele deve ser assistido. Enfim, se o direito internacional humanitário é deficiente, é necessário completá-lo, para permitir uma aplicação plena e inteira do direito.

41

Tabet, Paul, «Intervention devant le Haut-Comissariat de l’ONU pour le réfugiés», op. cit., 1014.

Conclusão O estudo que realizámos permitiu uma análise e compreensão das acções que são encaradas pela Igreja católica em favor dos homens em fuga, quer sejam refugiados, exilados ou deslocados. Os princípios de solidariedade e de justiça não estão exclusivamente reservados a esta categoria de vítimas, mas o exemplo dos «homens em fuga» permite definir e designar as vítimas susceptíveis de serem destinatários de um auxílio inter295


nacional. Este estudo permitiu também mostrar uma nova exigência formulada pela Santa-Sé, a exigência de um direito‑dever de livre acesso às vítimas. As pessoas deslocadas, obrigadas a fugir de um agressor, obrigadas a ficar num país que lhes é hostil e donde são originárias, estão abrangidas por esta exigência de justiça internacional. Para o Magistério social da Igreja, elas têm o direito a serem socorridas e a comunidade internacional tem o dever de ir ao seu encontro, mesmo quando elas estão no território de um país soberano.

296


Jerónimo Nadal, SJ: A sua importância na cultura apostólica da Companhia de Jesus – I

Ferdinand Azevedo, SJ *

O nascimento de uma ordem ou congregação religiosa é sempre imprevisto e o próprio início da Companhia de Jesus, em 1540, assim o confirma. Inácio de Loyola tentou três vezes e, só na terceira, obteve êxito, unindo um pequeno grupo de dez homens. Êxito, também, foi o seu governo da mesma por dezasseis anos (1540-1556), visto que alguns fundadores encontraram muitas dificuldades para governar uma entidade recém-criada e até foram expulsos da própria organização fundada por eles. Outros êxitos que Inácio poderia enumerar é que, entre os homens que entraram na Companhia, dois deles foram sacerdotes do quilate de Juan de Polanco e Jerónimo Nadal. O primeiro seria o seu secretário e grande colaborador na redacção das Constituições da Companhia e o segundo o competente «porta-voz» de Inácio, na divulgação das mesmas. Por causa disto, Nadal tornou-se o intérprete exímio do pensamento apostólico de Santo Inácio. Decidimos chamar a esse pensamento apostólico a «cultura apostólica» da Companhia de Jesus e Nadal, o seu fiel intérprete, divulgou e implantou a mesma nas novas comunidades de Jesuítas, espalhadas pela Europa. A importância da actuação desse extraordinário «porta‑voz», é o enfoque do nosso interesse.

Nadal, o Homem Homem brilhante, mas melancólico, capaz de sínteses impressionantes da espiritualidade inaciana mas, às vezes, preso a pormenores e orientações minuciosas que irritaram os seus correligionários, Jerónimo Nadal nasceu, em 1507, numa famí* Historiador.

Brotéria, 168 (2009) 297-410

297


1

Fernandez, Luis SJ, «Iñigo de Loyola y los Alumbrados», in Ignacio de Loyola en Castilla; Juventud Formación – Espiritualidad, Valladolid. Valladolid, Adreès Matin. S.A., 1989, pp. 155-277.

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lia influente de Palma de Maiorca. Estudou na Universidade de Alcalá de Henares (1526-1532?), onde encontrou pessoas que seriam, um pouco mais tarde, os primeiros membros da Companhia de Jesus, tais como: Nicolás Bobadilla, Diogo Laínez, Alfonso Salmerón e, até, Inácio de Loyola que, neste momento, se apresentava como um homem esquisito, acompanhado por outros três, todos vestidos de igual, com «túnicas de cor castanho escuro com mangas e capuzes». Esse grupo chamou a atenção das autoridades eclesiásticas que o considerava como membros dos «alumbrados», movimento que valorizou mais as moções interiores do Espírito Santo do que as orientações mais ortodoxas da Igreja.1 Sensível a qualquer desvio doutrinal e orgulhoso do seu prestígio social, Nadal nem pensava em se aproximar de Inácio em Alcalá, principalmente, naquele momento, quando as autoridades espanholas suspeitavam de qualquer movimento heterodoxo. Em 1532, Nadal foi à Universidade de Paris. Mais uma vez, esse tal Inácio estava lá, agora sem os colegas anteriores e melhor adaptado na população estudantil, atraindo pessoas como Alfonso Salmerón e Diego Laínez. Nadal sentiu a força da personalidade de Inácio, mas ainda não foi o momento oportuno para uma maior aproximação. O que interessou a Nadal foi uma obra de Theophylactus, um bizantino do século onze, entendido nas sagradas escrituras e muito influenciado por São João Crisóstomo. Nadal, em seguida, foi a Avignon, em França, para estudar em mais uma universidade. Lá encontrou muitos Maiorquinos e sentiu-se em casa. Estudou a língua hebraica e aperfeiçoou a mesma, fazendo amizades com uma colónia judaica. Desenvolveu tanto a sua competência nessa língua que foi convidado por alguns rabinos para ser seu líder. Nadal recusou e até os criticou rigorosamente por ter sido convidado. Essa altercação viria a ter repercussões infelizes para Nadal porque, nesse momento, o Rei de França, Francisco I, incomodado pela presença de espanhóis no seu reino, que incluia Avignon, decretou a saída de todos eles, sob pena de morte. Mandou as suas tropas para Avignon para implementar essa nova polí-


tica. Sendo de Maiorca, Nadal pensou que esse decreto não iria tocá-lo. Engano seu. Por vingança, a comunidade judaica denunciou-o. Por pouco, Nadal escapou do laço do carrasco e só teria condições para continuar a sua carreira com a saída das tropas francesas 2. Nadal, ordenado padre em Abril de 1538, recebeu, em Maio, o seu doutoramento em teologia mas, apesar desses eventos felizes, sofria de enxaquecas e dores de estômago que quase o mataram. Segundo o historiador William Bangert, SJ, Nadal estava muito insatisfeito com a sua vida. Faltava-lhe uma vida interior mais serena, algo que desejava 3. Parece que vivia uma dupla personalidade, uma delas atraída por uma teologia conceitual, exemplificada pelo seu interesse pela vida intelectual, e outra por uma teologia apofática e intuitiva, exemplificada pela sua inclinação para as obras místicas de Theophylactus. Essa oscilação interior iria marcar profundamente o seu futuro na Companhia de Jesus.

2

Bangert, William V. SJ, Jerome Nadal SJ, 1507-1580, Tracking the First Gerneration of Jesuits, Ed. e completado por Thomas M. McCoog SJ, Chicago, Loyola University Press, 1992, p. 11. Essa excelente obra é uma das bases principais de nosso trabalho. 3

Ibid., pp. 11-12.

Nadal sente a graça de Deus Nadal voltou a Palma de Maiorca onde encontrou a sua mãe, amigos e estabilidade financeira, recebendo três «benefícios», que incluía o mais prestigioso em Palma de Maiorca, a Igreja de Santa Eulália. Passou quase seis anos nessa nova vida. Entre os seus amigos encontravam-se o culto P.e Jaime Pou, mais tarde auditor da Rota na Cúria Papal em Roma, e o soldado António Castañeda, que se tornou eremita, morando nas montanhas ao lado da Igreja da Santíssima Trindade em Miramar. Nadal, porém, não estava tranquilo. Moções interiores mexiam muito com o seu espírito, fazendo-o vacilar, em intermináveis altos e baixos. Começou as suas actividades na Igreja, pregando com entusiasmo, mas quando o povo começou a diminuir, ficou desanimado. A sua vida, mesmo sem preocupações financeiras, estava a tornar-se insípida. Foi passar algum tempo em Miramar, numa casa perto de Castañeda. Com ele, falou sobre assuntos espirituais e os dois entenderam-se muito bem. Nadal, por fim, estava a encontrar uma certa serenidade. 299


4

O’Malley, John W. SJ, The First Jesuits, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1993, p. 269.

5

Ibid., pp. 13-18.

300

Sentiu-se melhor e, lá, começou a estudar seriamente as obras do Pseudo-Dionísio que sempre considerava como discípulo de São Paulo 4. Foi a segunda vez que Nadal pôde satisfazer a sua inclinação para o misticismo por via de uma espiritualidade e teologia apofática. Foi nessas circunstâncias que em 1545, no espaço de duas semanas, Nadal recebeu duas cartas de Roma. Uma, do seu amigo Don Felipe de Cervallo, Vice-Rei de Carlos V, em Maiorca, na qual estava incluída uma cópia de outra, datada de oito anos antes e endereçada para Inácio de Loyola, em Roma, escrita por Francisco Xavier que já estava há três anos no Oriente. Nadal informa-nos que, depois de ler a actuação de Xavier e tomar conhecimento de que Inácio se tornou o Superior Geral da recém-fundada Companhia de Jesus, ele, Nadal, acordou «como se estivesse dormindo por um longo período». Profundamente sensibilizado, decidiu ir para Roma. A segunda carta foi do seu amigo P.e Pou, convidando-o para o ajudar no Concílio Geral que iria começar em Dezembro de 1545. Essa seria a primeira reunião do Concílio de Trento. Agora, Nadal tinha uma dupla razão para sair de Palma de Maiorca rumo a Roma 5. Já com a idade de trinta e oito anos, Nadal embarcou para Roma, via Barcelona, no dia 2 de Julho de 1545. Em Roma, fez os Exercícios Espirituais de trinta dias sob a direcção do P.e Jerónimo Doménech, SJ, natural de Valência, e decidiu entrar na Companhia. Ainda não existia um noviciado como tal na Companhia e Nadal fez o seu na própria Cúria Geral, conquistando, logo, a confiança de Inácio. A maneira como Nadal fez os seus primeiros votos é interessante e, além de revelar a sua personalidade complexa, mostra como a Companhia, nesse momento, funcionava sem muitas formalidades. Em Janeiro de 1546, Nadal aparece preocupado com a questão da entrada formal na Companhia, porque somente fizera votos pessoais de vir a fazer os primeiros votos na Companhia de Jesus. Confidenciou o seu estado interior a Inácio, que lhe deu uma orientação feita, a nosso ver, especificamente para Nadal. Disse-lhe: «Para que deseja fazer os votos? Diante


de Deus, está ganhando mérito. Porém, preste atenção, há outro tipo de mérito e esse é, se não os fizer, precisamente, porque penso que você não deveria fazer» 6. Nadal ficou satisfeito, mas não por muito tempo. Pergunta a si mesmo: «Vou fazer os votos para Inácio ou para Deus?» 7 A sua resposta foi: «para Deus»; porém, Nadal considerava que fazer os votos numa fase de consolação não seria um acto tão nobre. Preferiu fazê-los quando sentisse uma certa repugnância pela vida religiosa. E assim aconteceu. Pouco depois, enquanto estava a rezar o «Te Deum» na hora de «Laudes», sentiu essa sensação. De repente, decidiu fazer os seus primeiros votos. Depois sentiu muita consolação. Narrou tudo isso a Inácio, que simplesmente concordou, sem muita cerimónia. Reflectindo nesses eventos, Nadal interpretou que Inácio, de facto, queria que ele fizesse os votos, mas não tinha querido intervir. E assim foram os primeiros votos de Nadal, pessoa tão brilhante mas muito complexa, na Companhia de Jesus 8. A experiência de Nadal enriqueceu, mais ainda, com a chegada de Florença, em 1547, à Cúria, de Juan de Polanco, que tinha entrado na Companhia em 1541. Natural de Burgos, Polanco deu um grande impulso na elaboração das Constituições e Nadal, certamente, presenciou a química da sua elaboração, nas conversas entre Inácio e Polanco, todos membros dessa pequena comunidade da Cúria. Em 1548, Nadal participou num outro evento que modificou a jovem Companhia de uma maneira tão profunda que os primeiros Jesuítas nem podiam imaginar. As experiências positivas em Gandía dos «colégios» – que inicialmente foram uma maneira de reforçar os estudos de jovens Jesuítas que entravam na Companhia mas tinham que terminar os seus estudos formais e estavam a frequentar cursos universitários – chamaram a atenção de Inácio. Em pouco tempo, esse tipo de colégio modificou-se e seria aberto para outros jovens que queriam somente uma educação comum. Isso aconteceu na Sicília, quando as autoridades da ilha, na pessoa de Juan de Vega, o Vice-Rei, pediram a Santo Inácio para abrir um colégio em Messina. Inácio concordou e colocou em momento

6

«Because of your desire to make the vows of religion, your are earning merit before God. Remember this, though: there is another kind of merit, and that is not pronouncing thoses vows, percisely because I do not think that you should.», Bangert, William V. SJ, op. cit., p. 30. 7

«... are you making your vows to Ignatius or to God?», Ibid., p. 31.

8

Ibid., p. 3l.

301


9

Ibid., pp. 56-8.

302

oportuno um apostolado educacional que iria dinamizar o catolicismo em toda a Europa. Com essa decisão, Inácio teve que modificar as próprias Constituições da Companhia, que naquele momento ainda estavam em formulação. Inácio escolheu alguns dos seus melhores Jesuítas para Messina. Mandou dez, dos quais quatro eram Padres: o maiorquino Nadal, o holandês Pedro Canísio, o francês André des Freux e o belga Cornélio Wischaven. Inácio escolheu Nadal como superior do grupo. Além de ser considerado, mais tarde, o intérprete mais competente das Constituições, Nadal dirigiu o primeiro colégio aberto especificamente para jovens leigos e que serviu como ponto de referência para outros. Essa experiência não só fez Inácio modificar as Constituições da Companhia, como a educação se firmou como um dos seus apostolados principais 9. Em Roma, entretanto, Inácio e Polanco continuavam o seu trabalho nas Constituições e quando Nadal voltou para lá, em 1552, as mesmas estavam praticamente terminadas. Praticamente, porque a experiência muita positiva dos Colégios e todo o apostolado educacional para leigos ainda não estavam totalmente inseridos nelas. Além de aproveitar a experiência feita, principalmente em Messina, Inácio pediu a ajuda de Nadal para suprir essa lacuna. Foi nesse tempo que Nadal, não somente fez os seus últimos votos na Companhia, na Festa da Anunciação, em 25 de Março de 1551, mas descobriu a sua vocação para ser o intérprete das Constituições. Aparentemente, Inácio, com a sua sensibilidade espiritual sempre alerta, percebeu isso e lançou Nadal na sua nova vocação, enviando-o de volta a Messina para explicar as Constituições aos Jesuítas de lá, escrever as suas reflexões sobre as mesmas e, se isso não fosse suficiente, atribui-lhe também a tarefa de compor uma legislação para os colégios e universidades da Companhia de Jesus. Depois, Nadal enviou os resultados dos seus trabalhos para Inácio em Roma. O génio de Nadal foi que cumpriu a ordem de Inácio como ninguém poderia imaginar. De volta a Roma, Inácio constituiu-o delegado do Geral para a Companhia de Jesus em Portugal e Espanha, dando-lhe


todos os poderes necessários. Além disso, Inácio informou-o de que podia fazer mudanças visto que, «Nadal conhece bem o meu pensamento e goza da mesma autoridade que eu» 10. Os Jesuítas da Península Ibérica iriam obedecer a Nadal como se fosse o próprio Inácio. No dia seguinte, Nadal viajava para a Espanha, via Génova.

As visitas de Nadal Nadal visitava as Comunidades jesuítas não só na Península Ibérica mas também noutros países da Europa. Dava conferências e conversava pessoalmente com cada Jesuíta. Mostrou-se muito sensível a todos e explicou as constituições aos Jesuítas que, em grande parte, estavam a tentar viver uma vida comunitária baseada apenas no espírito dos Exercícios Espirituais. Teve grande sucesso e foi muito apreciado por todos. Como orador, Nadal teve um carisma brilhante, ainda mais depois do falecimento de Santo Inácio. Exemplo disso, são as suas apresentações para os jovens Jesuítas, no Colégio Romano, em Janeiro de 1557, na renovação dos votos, um acto religioso já estabelecido pelas Constituições. Nas suas visitas anteriores à Europa, Nadal iniciou o costume de fazer uma preparação dessa renovação com três dias de oração e reflexão, terminando com a renovação no terceiro dia. Daqui vem o nome «triduo». Aqui, uma descrição do estilo de Nadal 11: Esplicaba la gracia particular y el espíritu próprio de la Compañía. Pero ahora podia hablar com más libertad del fundador ya difunto. Era tal su luminosidad y fuerza carismática en la explicación, que dejaba efectos maravillosos de conmoción y fervor em los oyentes. Así lo testifican los asistentes a aquel tríduo.

10

«(Nadal)… qui mentem nostram omnino noverit, et nostra auctoritate fungitur,...» Epistolae et Monumenta P. Hieronymi Nadal I , p. 144 (10 abril, 1553); citado por O’Malley SJ, John W., «To Travel to Any Part of the World: Jerónimo Nadal and the Jesuit Vocation», Studies in the Spirituality of Jesuits, XVI, n.º 2 (March 1984), 3. Nadal não foi o único jesuíta indicado para explicar as novas Constituições mas, certamente, foi o mais conhecido. Em 1555, Inácio mandou Pedro Ribadeneira para a Alemanha e França e António de Quadros, treinado por Nadal, para o Oriente para fazer o mesmo trabalho. O sucessor de Inácio, Diego Laínez, também, em 1559, explicou as Constituições para muitos jesuítas, em Roma, e para ajudar outros jesuítas nessa tarefa. Em 1561, Nadal, preparou um comentário, rico em detalhes, intitulado, «Scholia in Constituitiones», para que outros Jesuítas pudessem explicar as Constituições. (O’Malley SJ, John W., «The First Jesuits», p. 336.)

11

Ruiz Jurado SJ, Manuel. «La figura de Jeronimo Nadal en la primera crisis grave de la Compañía (1556-1557)», Manresa, 52, n.º 203 (1980), 140.

Nadal não somente foi um orador carismático, mas, também, um bom diplomata, confirmado pelo seu papel nos eventos problemáticos e anteriores à Primeira Congregação da Companhia, em 1558. A principal dificuldade foi de ordem canónica. Com o falecimento de Santo Inácio, em 1556, a questão foi quem seria o Vigário que exerceria a autoridade, a fim 303


12

Ibid., Passim; veja também, Ravier SJ, André, Ignacio de Loyola funda la Compañía de Jesús, México, D.F., Obra Nacional de La Buena Prensa, A.C., 1991, pp. 296-333.

de convocar a Congregação. Visto que essa Congregação iria formalmente aprovar as Constituições, alguns Jesuítas, entre os quais o Pe. Nicolás Bobadilla, acharam que as Constituições, na sua presente forma canónica, não tinham força de lei. O episódio foi complexo, mas Nadal, mesmo às vezes exteriorizando a sua raiva, conseguiu, com o seu conhecimento privilegiado da cultura da Companhia, ajudar muito para um desfecho feliz com a convocação da Congregação sob a autoridade de Diego Laínez 12. Depois de Inácio, Nadal, na sua longa carreira, serviu a mais três Gerais: Diego Laínez (1558-1565), Francisco de Borja (1565-1572) e Everard Mercurian (1573-1580), falecendo no mesmo ano que Mercurian, em 03 de Abril de 1580, em Roma, no noviciado de Santo André.

O trabalho de Nadal

13

Bangert, William V. SJ, op. cit., p. 128. Em 1556, ano do falecimento de Santo Inácio, a Companhia tinha cerca de 1.000 membros dos quais somente 67 eram formados e 69 residências ou colégios. Dalmases SJ, Cándido de, Ignatius of Loyola, Founder of the Jesuits, his life and Work, St. Louis, The Institute of Jesuit Sources, 1985, pp. 299-302.

304

Para compreender a importância do trabalho de Nadal devemos lembrar que uma das grandes dificuldades da jovem Companhia de Jesus foi a falta de pessoas formadas para assumir posições de liderança, tais como Superiores e Directores de Colégios. A Companhia cresceu muito depressa e assumiu obras para as quais não dispunha dos recursos humanos necessários, não porque esses Jesuítas fossem muito jovens, mas porque não estavam há muito tempo na Companhia. Alguns exemplos são muito indicativos. Santo Inácio nomeou o P.e Diego Mirón, de 26 anos, Reitor do Colégio de Coimbra quando só tinha um ano de Companhia e o P.e Miguel de Torres, como Reitor do Colégio de Salamanca com apenas dois anos na Companhia. Na década de 1550, quando Nadal deu palestras no Colégio de Medina, o seu Reitor Pedro de Sevillano ainda era um aluno em estudos. Também o Reitor de Córdova, António de Córdoba, que o próprio Nadal nomeara, era apenas um noviço.13 Em 1554, quando Inácio dividiu Espanha em três províncias (Castilla, Aragón e Bética), nomeou Francisco Estrada, grande pregador, Provincial de Aragón, que ainda precisava de terminar os seus estudos teológicos. E, para ajudar Estrada nas tarefas


governamentais, Inácio indicou outro Jesuíta, João Batista Barma, como seu «colateral» para assumir a administração da Província 14. Até o próprio Nadal tinha menos de seis anos de Companhia quando recebeu a missão de explicar as Constituições para os outros Jesuítas! Inácio acertou mais uma vez. As visitas de Nadal, portanto, para essas comunidades foram essenciais para que os Jesuítas, com pouco tempo na Companhia, pudessem entender e sentir o seu espírito. Nadal literalmente firmou-os nas suas vocações. Apesar de ter uma personalidade bastante complexa, como já indicámos, o génio de Nadal foi que se apropriou do espírito de Inácio e conseguiu expressá-lo, filtrando-o pelas suas próprias experiências. Conseguiu esse feito porque sabia salientar os temas essenciais da espiritualidade inaciana, utilizando os seus conhecimentos do misticismo do Pseudo-Dionísio. À primeira vista, parece ter sido impossível, mas obteve êxito. E a melhor maneira para entender a actuação de Nadal seria o conhecimento das conferências por ele apresentadas aos Jesuítas. Há muitas, mas, seguindo o parecer do historiador William Bangert, SJ, as de Alcalá de 1554 são importantes porque revelam temas já delineados e que iriam ser aperfeiçoados, em Coimbra, em 1561. Lá apareceu o seu tríade «spiritu», «corde» e «practice» para explicar qual é o modo de proceder na Companhia de Jesus 15. Mas é de Alcalá donde temos as primeiras informações de como Nadal explicava as Constituições e o seu espírito.

As conferências de Alcalá No início de Fevereiro de 1554, Nadal começou a sua visita de um mês ao Colégio de Alcalá e, graças ao português Manuel da Sá, SJ, aluno da Universidade de Alcalá, com 26 anos de idade e já com nove anos na Companhia de Jesus, temos hoje as suas notas das palestras dadas por Nadal, que ocupam 71 páginas na «Monumenta Historica Societatis Iesu» 16. A visita foi um sucesso, como consta essa descrição por Cristóbal de Castro, SJ, anos depois 17:

14

A figura do colateral é interessante e indica uma característica de «ars gubernandi» de Inácio que deu mais importância ao homem do que à estrutura. O historiador André Ravier SJ, explica: «... para ele, Estrada é alguém que participou dos inícios e primeiros debates da Companhia, frequentou os primeiros padres no tempo em que escolhiam o seu caminho e definiam o seu espírito, antes da grande dispersão missionária; Inácio conhece Estrada, Estrada conhece Inácio; ele tem a «mens et modus Societatis»; ademais, significa uma ‘força’ apostólica de primeira grandeza por seus dons de eloquência, sua influência, seu prestígio, sua acção. Dê-se-lhe portanto o título de provincial, embora um outro, um colateral, assuma o trabalho administrativo. Esta maneira de encarar a relação entre os homens e as funções devia levar Inácio, quando uma situação se intricava em alguma parte, a contar mais com as pessoas do que com as estrutura para resolvê-la. Daí o sistema de comissários, visitadores, superintendentes, colaterais, esses estranhos acúmulos de autoridades num mesmo local: … Ao que parece, a experiência revelou que tal processo surtia mais inconvenientes do que eficiência; Inácio, sem dúvida, atribuía a seus homens de confiança maior agilidade e mais virtude do que a humana fraqueza comporta.» Ravier SJ, André, «Inácio de Loyola», pp. 378-379. 15

Bangert, William V. SJ, op. cit., pp. 246-247. 16

Nadal, Hieronymi, Commentarii de Instituto Societatis Iesu, V, Ed. Michael Nicolau SJ, Romae, Monumenta Historica Soc. IESU, 1962, V, pp. 32-33. Em 1561, Nadal visitou o Colégio de Alcalá, de novo, e desta vez, Aegidius González Dávila SJ, fez notas até mais exten-

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sas das palestras de Nadal. Ibid., pp. 206-488. 17 «… llegó (el P. Doctor Hierónimo Nadal) a este collegio de Alcalá a la entrada del de 54, donde se detuvo declarando en algunas pláticas el Instituto de la Compañía, que en sus instituciones nos avia escrito el Santo Inácio, junto com las reglas comunes y particulares de cada oficio, mostrando el amor y estima que se habia de tener del instituto que com tantas visitaciones avia Dios nuestro Señor enseñado a Ignacio, y com tan grandes consolaciones como le avia dado escriviéndole, aprovado com los muchos e maravillosos efetos que hazian los que le guardavam, confirmado por el copioso influxo com que ellos influian de favores y gracias. Declaró los varios estados que avia en la Compañía e de las virtudes de que se avían de ajydar para mejorarse en ellos y ser fieles ministros de Dios y obradores de su instituto…» Ibid., pp. 33-34.

O P. Doctor Jerónimno Nadal chegou a este Colégio de Alcalá, no início de 1554, onde permaneceu, dando algumas palestras sobre o Instituto da Companhia que Santo Inácio tinha escrita para nós, junto com as regras comuns e particulares de cada ofício, mostrando o amor e estima que devemos ter do Instituto que Deus Nosso Senhor com tantas graças tinha instruído Inácio e com tão grandes consolações como Inácio o tinha recebido, em escrevê-lo, aprovado com muitos e maravilhosos efeitos que fazem para eles que o guardam, confirmado pelo influxo copioso de favores e graças que eles influíam. Declarou que os vários estados que existem na Companhia e das virtudes que podiam ser aproveitadas para se melhorarem e ser fiéis ministros de Deus e trabalhadores de seu Instituto.

Nadal conversou individualmente com cada Jesuíta e, em vez de tomar a refeição principal com a comunidade inteira, escolheu, cada dia, um pequeno grupo de três ou quatro e tomava a refeição com eles, conversando sempre sobre as coisas da Companhia e dos primeiros Jesuítas, dando grande destaque a Inácio. Mantendo esse contacto com pequenos grupos e animando os jovens a serem membros da Companhia, Nadal ganhou a sua simpatia. Mesmo deixando muitas regras para as residências na sua saída, Nadal alcançou o seu objetivo de disseminar o conhecimento das Constituições e o amor pela Companhia. Manuel da Sá organizou as suas notas sobre a apresentação de Nadal em oito capítulos mas vamos tratar somente os temas mais importantes.

Introdução Nadal é decisivo e positivo. Nas suas primeiras palavras para os jovens Jesuítas afirma que Deus deu-lhes a graça de serem chamados para a Companhia de Jesus e lança a pergunta retórica: quais são as implicações desse facto? Citando a terminologia da época, descreve a vida religiosa como um estado de perfeição, dedicado para servir, honrar a Deus, dando-Lhe o devido culto, mas logo fez lembrar aos seus ouvintes que essa explicação é abstracta. Na prática, porém, Deus ajuda a sua Igreja e, nos determinados momentos históricos, faz 306


aparecer pessoas para esse fim. Assim exemplifica com a vida de São Francisco de Assis. E agora Deus estava a fazer a mesma coisa com Inácio de Loyola mas para outra época. Nadal, certamente, não é nada modesto na sua avaliação de Inácio. E diz mais. Como cada um dos sacramentos dá graças específicas, assim também, através dessas pessoas vêem graças específicas que são partilhadas por outras pessoas. Se os Franciscanos participavam das graças operativas da vida de São Francisco, assim, também, os Jesuítas participam das graças dadas a Inácio que fundou a Companhia 18. Há duas características das graças dadas a Inácio: «… que a sabedoria e a santidade se juntam e se direcionam para o bem comum do próximo»19. Nadal vai narrando a vida de Inácio, apontando como Deus entrou na sua vida, «… dando‑lhe primeiramente, desejar com grande devoção a maior honra e glória da sua divina majestade. E assim, doando-se ao serviço de Deus, não ficando contente com pouco, mas desejava intensamente e procurando como mais podia agradar-Lhe em tudo e com toda perfeição» 20. São interessantes as suas reflexões sobre os Exercícios Espirituais: «Aqui Deus comunicou-lhe os exercícios, guiando-o desta maneira para que tudo se empenhasse no serviço e saúde das pessoas; o que lhe mostrou, especialmente, com devoção, nos dois exercícios do Rei e das Duas Bandeiras. Aqui entendeu seu fim e aquele para o qual tudo tem que aplicar e ter a visão em todas as obras que tem agora a Companhia» 21.

Nadal gostava de fazer a comparação da experiência de Inácio com as de Cristo, dos companheiros de Inácio com os apóstolos de Cristo, mesmo exagerando. Isso acontece quando fala sobre o motivo para escrever as Constituições. Nadal explica que, tal como antes de ter o Novo Testamento os apóstolos viviam por tradição, assim também, antes das Constituições, os Jesuítas viviam por tradição; mas a Igreja crescia, como também a Companhia crescia. Foi necessário para a Igreja ter algo ordenado sobre essa tradição e assim

18

Ibid., pp. 35-7.

19

«… que las letras y spíritu se juntassen; y la 2º, que se applicasen para común utilidade del próximo.» Ibid., p. 37.

20

«… dandole in primis a dessear com gran devotión la mayor honra y gloria de sua divina Magestad. Y assí como estando en el século tenía ánimo de grande cosas, assí dándose al servicio de Dios no se contentava com poco, sino intensamente desseava y procurava cómo más le pudiesse agradar en todo y com toda perfectión». Ibid., p. 38. 21

«Aqui le comunicó N. S. los exercicios, guiándole desta maneira para que todo se empleasse en el servitio suyo y salud de las almas; lo qual le mostró com devotión specialmente en dos exercicios, scilicet, del Rey e de las vandera. Aquí entendió su fin y aquello a que todo se devía applicar y tener por scopo en todas sus obras, que es el que tiene aora la Compañía.» Nadal, V, p. 40. Os primeiros Jesuítas faziam isso, também, apreciando muito a imagem dos apóstolos enviados por Cristo para pregar em pobreza. Por exemplo, Nadal vai dizer que foi somente de

307


muito sofrimento que Inácio chegou a ponto de escrever as Constituições, aludindo semelhanças com os sofrimentos de Cristo. «Estas y semejantes persecutiones tuvo el P. M. Ignatio en su persona ad Christi similitudinem.» Ibid., p. 42. 22

Ibid., pp. 45-6. É difícil acreditar que Nadal não sabia a verdadeira razão para escrever as Constituições que foi uma autorização para escrever constituições para ajudar a Companhia a alcançar a sua finalidade, contida na Carta Apostólica, «Regimini militantis Ecclesiae», de Paulo III, fundando a Companhia, em 1540. Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares, São Paulo, Edições Loyola, 1997, p. 23. Veja: Nadal, pp. 85-6. 23

Ibid., pp. 46-52.

24

Ibid., pp. 57-65.

25

«Societas praetendit in omnibus rebus habere orationem Deumque invenire et devotionem. Neque enim seguitur Societas orationem modo solitudinis et heremitico, sed extendit et coniungit com praxi et exercitio suae vocationis et obedientiae». Ibid., p. 97. 26

aparece o Novo Testamento. A Companhia, também, crescia e precisava de escrever Constituições nas quais Inácio pudesse colocar todas as suas ricas experiências a fim de que a Companhia pudesse ter um bom governo 22. Esse é um exemplo típico de como Nadal queria mover os sentimentos dos jovens Jesuítas para estimar mais o papel de Inácio na fundação da Companhia.

Nome e aprovação da Companhia e a sua finalidade Nadal rapidamente explica que a Companhia, nome que Inácio preferia ao de Ordem, humildemente se dedica ao serviço, aludindo ao sentido do adjectivo «mínima» na frase «Esta mínima Companhia». Ela deve a sua origem a Deus e a sua aprovação ao Papado. Devido à sua experiência em La Storta, Inácio quis designar a Companhia com o nome de Jesus e as graças dadas a Inácio em La Storta são para toda Companhia 23. Nadal define a finalidade da Companhia assim: para o bem e perfeição das almas para a maior glória de Deus (salus et perfectio animarum ad maiorem Dei gloriam) e isso é concretizado na oração e no trabalho.

Modo de vida na Companhia

Ibid., p. 92.

27

Ibid., p. 93. É interessante notar que um pouco antes da sua morte, Santo Inácio pediu a Nadal para fornecer aos noviços um livro ilustrado como auxílio para a meditação. Nadal concordou. Organizou e iniciou o trabalho para dois livros, porém, por causa das dificuldades financeiras, os dois livros foram publicados em um só volume depois de sua morte, em Antwerp, por Martinus Nutius em 1593. A parte mais importante desse livro são as 153 gravações feitas pelos artistas: Bernardino Passeri, Marten de Vos, e Jerome e Anton Wierix. Os títulos dos dois

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O Jesuíta tem que lidar com uma variedade de pessoas e, consequentemente, tem que ser flexível. A sua maneira de viver era comum e nada para chamar a atenção. A vida interior ou espiritual tinha que ser forte, a fim de possibilitar as suas actividades apostólicas. Nadal cita a experiência de Inácio que, inicialmente, fazia muita penitência, desfigurando a sua própria pessoa. Mais amadurecido, Inácio modificou a sua maneira de viver, entendendo que, como se comportava antes, estava a afastar as pessoas. Com isso, Nadal salientou que a vida dos Jesuítas estava orientada para o apostolado. Explicou os graus na Companhia, os votos simples e solenes, os coadjutores espirituais e temporais, os professos e os


períodos de provação. Temos que lembrar que os membros do seu auditório não tinham muita informação sobre as Constituições, portanto, Nadal teve que entrar em muitos detalhes 24.

Oração Nadal teve uma noção abrangente de oração: «A Companhia acredita que todas as coisas podem servir como matéria para oração e, dessa maneira, que Deus e a devoção podem ser encontradas. A oração da Companhia não é hermética ou feita a sós, mas estende-se e encaixa-se na sua acção e no exercício de sua vocação e de sua obediência» 25.

Descreveu esse impulso para o serviço num «horizonte de amor» (amplitudo caritatis). Nas suas actividades, o Jesuíta leva consigo as moções e lembrança da sua oração (reliquiae cogitationum) as quais o ajudam durante o dia. A oração do Jesuíta não é alcançada intelectualmente e nem pela abundância de ideias, mas em saborear (gustus) o que é contemplado. O exemplo favorito de Nadal para explicar a oração do Jesuíta foi o círculo. Da oração o Jesuíta vai ao trabalho e do trabalho volta a orar. Essas actividades não são antagónicas, ao contrário, enriquecem-se mutuamente, numa complementariedade circular 26. Segundo Nadal, uma vida ascética, é essencial para se ter uma vida de oração e, citando Inácio, frisou que a sua oração não era abstrata ou somente uma abundância de conhecimentos, mas era essencial para saborear interiormente as coisas espirituais 27.

Obediência e pobreza No seu tratamento sobre a obediência, Nadal seguia a orientação da Carta de Santo Inácio sobre esse assunto para os Jesuítas de Coimbra em 1553. Sete anos mais tarde, em Coimbra, Nadal será mais expansivo. Em Alcalá, limitou-se a salientar que obediência na Companhia tem que ser não

trabalhos foram: Evangelicae Historiae Imagines ex Ordine Evangeliorum quae toto ano in Missae sacrificio recitantur, in ordinem temporis vitas Christi digestae; e, Adnotationes et Meditationes in Evangelia quae in sacrocsancto Missae sacrificio toto anno legunter; cum Evangeliorum concordantia historiae integritati sufficienti. MacDonnell SJ, Joseph F., Gospel Illustrations; A reproduction of the 153 Images taken from Jerome Nadal’s 1595 book Adnotationes et Meditationes in Evangelia. Fairfield, CT, The Fairfield Jesuit Community, 1998. 28

Nadal, Hieronymi, op. cit., pp. 54-56, O’Malley, John W. SJ, «To Travel to Any part of the World: Jerónimo Nadal and the Jesuit Vocation.», Studies in the Spirituality of Jesuits, XVI, n.º 2 (March 1984), Passim. Historicamente, o crescimento dos colégios logo diminuiu a importância das casas dos professos que, actualmente, nem existem mais. Citação de Nadal sobre o quarto tipo de casa: O quarto tipo da casa: «Ele é o mais cômodo lugar e se estende o universo inteiro. Para qualquer lugar onde eles podem ser enviados para ajudar pessoas, isto é a mais gloriosa e desejada casa para esses teólogos (Jesuítas professos). Porque sabem a sua finalidade: trabalhar para a salvação e perfeição de todas as pessoas. Entendem que são obrigados a essa finalidade pelo quarto voto ao Papa; que possam ir para essas missões universais para o bem das pessoas sobre o seu comando que, pelo decreto divino, se estende pela igreja inteira. Sabem que não podem construir ou adquirir casas suficientes próximas para facilitar seu trabalho. Sendo assim, consideram que se encontram nas casas mais agradáveis e tranquilas quando estão se movendo constante, quando estão viajando pela terra,

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quando não têm um lugar como casa, quando estão sempre em necessidade, sempre carente – só lhes permitem atuarem numa maneira simples para imitar Cristo Jesus, que não tinha onde colocar sua cabeça e se dedicou toda a sua vida, pregando enquanto viajava.» «Ille est locus longe amplissimus et tam late patens quam orbis universus. Quocumque enim in ministerium ad opem animabus ferendam mitti possunt, haec est horum theologorum habitatio praestantissima atque optatissima. Sciunt enim esse sibi finem praestitutum, ut salutem omnium animarum procurent et perfectionem. Intelligunt propterea se voto illo quarto Pontifici Maximo esse obstrictos, ut universales missiones in animarum subsidium obeant ex illius imperio, quod est divinitus in universam Ecclesiam constitutum. Vident se tot domus vel aedificare vel obtinere non posse, ut ex propinquo excurrere ad pugnam possint. Haec quum ita sint, illam reputant esse quietissimam atque amenissimam habitationem, se perpetuo peregrinari, orbem terrarum circumire, nullibi in sua habitare, semper esse egenos, semper mendicos, modo minima aliqua ex parte enitantur Christum Iesum imitari, Qui non habebat ubi caput reclinaret, et totum tempus suae praedicationis in peregrinationibus exegit. Nadal, Hieronymi, op. cit., pp. 773-774.

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somente da vontade mas também do intelecto. Implica que obediência tem certos aspectos de fé, principalmente quando se trata da tal «obediência cega». Prescindindo do facto de que o Superior, em nome da obediência, não pode mandar uma acção pecaminosa, às vezes é necessário apelar para a fé, em obedecer sem entender completamente a intenção do Superior. Religiosamente, fundamentando tudo isso está o facto de que, na fé, a pessoa obedece a Deus ou a Cristo nos Superiores. Curioso é o facto de que Nadal não menciona o processo de discernimento dos primeiros Jesuítas na fundação da Companhia no processo de tomar decisões que está ligado à obediência. Dos votos, Nadal dedica mais tempo para a pobreza, contextualizando-a segundo o tipo de casas. Aqui, Nadal lista quatro: casas de provação, colégios, casas dos professos e viagem-missão (peregrinatio). As casas de provação e os colégios viviam de fundos providenciados pela autoridades civis ou pelos benfeitores. As casas dos professos viviam de esmolas. A novidade é o quarto e vem do próprio Nadal. A ideia da missão já estava ligada às missões dadas pelo Papa aos membros da Companhia. Nadal enriqueceu essa ideia e revestiu-a com o acréscimo de que quando os Jesuítas faziam missões, o seu apostolado, entendido como viagem-missão, é a sua casa. Mais tarde vai dizer que essa casa é a melhor 28.

A publicação deste artigo continuará no próximo número.


rec ens õ es

Literatura Rendell, Ruth: O jogo da navalha. 196 págs. Europa-América, Mem Martins, 2006.

A penas desaparece uma mulher de pouca virtude. De vez em quando, por entre os pormenores e minúcias que urdem descritivismo e ambiente do romance policial (1967) apoiado em carta anónima, sem cadáver nem crime, brilha uma lâmina ou aparece o cabo de uma navalha. Mas não passa deste ‘jogo’, pois a história vai por outra banda. A polícia entretém-se a peneirar diferenças entre mulheres decentes e não tanto. Até que um inspector levanta uma hipótese que, a verificar-se, teria determinado outro romance. De resto a nota mais saliente é a primavera na brumosa Albion. Que candeia alumia o destino? – pergunta-se na pág. 13 e na 129. – F. Pires Lopes.

Sherwood, Ben: O homem que comeu o 747. 220 págs. Europa-América, Mem Martins, 2006.

G rande bizarma devia ser ‘o homem’ para comer um 747 como qualquer das torres gémeas do WTC. Por isso, «esta é a história do maior amor de todos os tempos» (11). Na capa, uma cena de bucolismo muito

campestre, nada parecida com Nova Iorque, antes a remeter para «uma pequena cidade no interior da América» onde «um agricultor amou tanto uma mulher que se propôs comer um avião Jumbo» (13), peça por peça. Em causa os mais alarves concursos para o ‘Guinness’. Uma frase pode passar por resumo: «Conhecia a história da América» (42). O sucesso e os recordes põem-na em polvorosa. Notável, ainda o agradecimento final a quem contribuiu para o livro com o ‘amor às palavras’. Pode esperar-se que não haja ‘português nem gramática’? Qual quê! O primeiro erro é na página 18: «nenhum tinham»; sucedem-se mais. Mas em tradução. E confusão de umbral com ‘ombreira’ (28, 60) – confusão frequente que virá de algum dicionário. Extravagante e humorista; mas, no final, poético. Sem procurar recordes, as «torres gémeas do silo de cereais» (62) ou coisas mais pequenas feitas por amor são igualmente grandiosas. Mas as coisas mais maravilhosas da vida não podem ser medidas. Para elas não há livro de recordes. – F. Pires Lopes.

Teologia Pannenberg, Wolfhart: Théologie systématique. I. 587 págs. Cerf, Paris, 2008.

P ublicada entre 1988 e 1995, a Teologia sistemática de W. Pannenberg, fortemente

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enraizada na tradição luterana, acabou por se tornar uma obra de referência, sobretudo na Alemanha e no mundo anglófono. Como o título desta apresentação deixa ver, dispomos finalmente da versão francesa do I vol. do original (Systematische Theologie, Band I, Göttingen, 1988), consagrado a questões que giram em torno daquilo que, em terminologia católica, designamos como teologia fundamental e questão do Deus trinitário. Um traço singular, bem representativo da originalidade da obra, reside no facto de o antigo professor de teologia sistemática da Faculdade de teologia protestante de Munique retomar aqui uma parte das teologias da Palavra, com relevo para Karl Barth, e de, ao mesmo tempo, se tornar defensor, sob um ponto de vista metodológico, de uma teologia pós-iluminista (post-Aufklärung). Em consequência disso, assim comenta, com justeza, o editor francês: «W. Pannenberg deixa-nos na sua obra uma maneira de pensar, um paradigma teológico interdisciplinar, que permite tomar a sério tanto os testemunhos da tradição cristã como as exigências racionais aparecidas depois das Luzes». Os seis capítulos que compõem o vol. em referência correspondem, respectivamente, às seguintes questões: Em que é que a verdade da doutrina cristã constitui o tema da teologia sistemática? Como é que o conceito de Deus está vinculado a esta verdade? Será que podemos falar de um conhecimento natural de Deus? Como é que a realidade divina é compreendida em cristianismo, tendo em conta as outras religiões? – «A comparação sistemática das

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diferentes concepções das religiões do mundo fará sem dúvida parte das tarefas que virão a ocupar mais a teologia sistemática do futuro» (10) –. O que é a revelação? Como é que se elabora uma teologia trinitária com base nos princípios metodológicos desenvolvidos nos anteriores capítulos? A todo esse leque de questões, há a acrescentar ainda a questão da unidade e dos atributos de Deus. Duas simples observações, elucidativas por certo no que diz respeito a todo o labor teológico aqui levado a cabo: 1. Segundo Pannenberg, a reflexão histórica e a reflexão sistemática devem estar continuamente ligadas e devem interpenetrar-se sempre que se trata de analisar e de apresentar a doutrina cristã do ponto de vista da sua pretensão à verdade; 2. Sem negar que uma certa concepção das relações da teologia com a filosofia atravessa toda esta apresentação da verdade cristã, deixa todavia bem claro o antigo director do Instituto ecuménico da mesma Faculdade de Munique: «Muito pelo contrário, a tarefa da teologia filosófica encontra, segundo penso, a sua perfeição conceptual na revelação histórica de Deus» (9). Concluímos com as palavras finais do livro, referentes às expectativas então postas por Pannenberg no futuro da Teologia sistemática (lembremos que o original deste I vol. saiu há mais de vinte anos): «… devemos esperar do desenvolvimento da teologia sistemática, até que ela encontre o seu epílogo no tratamento da escatologia, uma compreensão mais diferenciada do que significa: Deus é amor» (574). – Isidro Ribeiro da Silva.


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