Outubro de 2009 Volume 169

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C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u 4 C r i s t i a n i s m o e C u l t u ra C r i st ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ul2ra C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo VOL. e C ult ura169 C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u Saramago C r i s t i an i s m o Infelizmente, e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u António C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e CVazultPinto ura CS.J.r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o Darwin e C u l t u ra C r iest iaoniscristianismo mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i a n i s m o A va n ç o s e c u m énicosr ist ianismo e S.J. C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Alfredo Dinis, e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m Nobel da economia e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism CésarC r das Neves e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e CJoão ult ura is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stAmbiente i a n i sm o e C ult -uraEcologia C r is t ia nis moeeética C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism W. Osswald e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stEuropa i a n i sm o e em C ult uraCrise? C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a Peter n i sm oMil-Homens Mumford e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stAi aEconomia n i sm o e C ult ura eC rois tapóstolo ia nis mo e C ult Paulo ura C r is t ianismo - I e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo Pedro McDade S.J. e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stOi a fundador n i sm o e C ult urados C r is t“Espiritanos” ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Adélio Torres Neiva e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stAinda i a n i sm o eNun’Alvares C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e José Eduardo Franco C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stCrítica i a n i sm o eeC imprensa ult ura C r is t ia niscinematográfica mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e CFrancisco ult ura C Perestrello r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r Outubro ist ianismo e 2009 C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism

Revista publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902

Brotéria


Outubro 2009 Série Mensal Assinatura para 2009: Portugal 47,00 - (IVA incluído); U. Europeia 90,00 -; Outros países 95,00 Número avulso: 5,50 - (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual NIB: 0007 0101 00461660002 25


ISSN 0870-7618 Dep贸sito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.

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Director Conselho de Direcção Conselho de Redacção

Recensão e Crítica

António Vaz Pinto S.J. Manuel Morujão S.J. Domingos Terra S.J. Alfredo Dinis S.J. António Júlio Trigueiros S.J. Daniel Serrão Domingos Terra S.J. Emília Nadal Francisco Sarsfield Cabral Henrique Leitão Isabel Horta Correia João Norton S.J. Mário Garcia S.J. Miguel Corrêa Monteiro Francisco Pires Lopes S.J. Isidro Ribeiro da Silva S.J.

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ÍNDICE # %

António Vaz Pinto, S.J.

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Alfredo Dinis, S.J.

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João César das Neves

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W. Osswald

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Infelizmente, Saramago Desafios da teoria da evolução ao cristianismo Nobel da governação Ecologia e ética: moda ou dever? Peter Mil-Homens Mumford

Europa em crise ou crise da utopia europeia. Reflexões à margem do Congresso Ideas of/for Europe

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Pedro McDade S.J.

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Adélio Torres Neiva

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José Eduardo Franco

A economia e o apóstolo Paulo - I O fundador dos «Espiritanos» e a reforma do clero A universalidade de Nun'Alvares Pereira. Um santo português entre a medievalidade e a modernidade

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Francisco Perestrello

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Recensões

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Obras recebidas na redacção

Crítica e imprensa cinematográfica

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Editorial

António Vaz Pinto SI

Infelizmente, Saramago

Os últimos tempos, no Mundo e em Portugal, têm sido

férteis em acontecimentos marcantes: a paz não conseguida, Irão, Iraque, Afeganistão, Paquistão; as eleições portuguesas, os conflitos institucionais, a Conferência Internacional sobre o Ambiente, os vários Nobel E no universo português, dominando o espaço e o tempo, José Saramago e o seu Caim. Onde tudo foi já dito ou escrito e, curiosamente, algumas das melhores peças, a meu ver, têm surgido de não-cristãos e não-crentes A tentação de passar por cima deste evento-espectáculo foi grande, mas acabei por escolhê-lo como tema desta Nota de Abertura, ao pensar no que pensariam os leitores, daqui a 100 anos, quando procurassem rastos desta polémica na Brotéria de 2009. Como foi possível estarem ausentes? Não é uma revista de Cristianismo e Cultura? Onde estavam os jesuítas? De novo presos nas prisões? Ou presos no medo? Em forma de «quase aforismas» aqui vai a minha reflexão: Não devo nem quero julgar intenções, mas que foi uma grande promoção comercial para o «livrinho», foi Não me vou pronunciar sobre o livro, pois não o li e nem sei se o lerei, mas sobre as declarações do próprio José Saramago sobre o livro «O Memorial do Convento», «Evangelho Segundo Jesus Cristo», agora «Caim». Será coincidência ou obcessão religiosa? José Saramago é indiscutivelmente um homem inteligente e, embora auto-didacta, culto. Com este «estatuto», como 527


é possível passar tão ao lado da realidade, humana, religiosa, literária, do Antigo Testamento? Será que nunca ouviu falar de «géneros literários»? Que pensa que Adão, Eva e a «costela» são históricos? Que ignora as diversas épocas e extractos do texto? Não sabe a diferença entre histórico e sapiencial? Entre interpretação literal e simbólica ou metafórica? Quanto posso depreender das suas várias declarações, é nesta galáxia de nebulosas, literárias e religiosas, que Saramago navega, é disto que se alimenta, é a matéria da sua atitude provocatória Tanto ou mais que Saramago, também eu lamento a violência na história humana, de modo especial, a que brotou ou brota de opções religiosas e sobretudo, cristãs: Cruzadas, Inquisição, guerras de religião, extermínios, perseguições Mas é curioso que não conheço indignação de Saramago sobre as atrocidades incomparáveis de Estaline ou de Mao, estas no seu e nosso século Inquisidores e Cruzadas, ao lado destes «promotores de humanidade», não passam de «meninos de côro» Ou será que José Saramago nunca ouviu falar destes acontecimentos? Até a liberdade de expressão tem regras; quando estas são ignoradas, há muito barulho e pouco proveito

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Desafios da teoria da evolução ao cristianismo

Alfredo Dinis, S.J. *

As implicações da teoria da evolução das espécies para o

cristianismo têm sido objecto de atenção por parte de um número crescente de teólogos, cientistas e filósofos, bem como de declarações de Papas como João Paulo II e Bento XVI. Apesar disso, tem-se a sensação de que não foram ainda adequadamente enfrentados os desafios que esta teoria coloca ao cristianismo, desde a publicação por Charles Darwin, há 150 anos, da sua obra principal A Origem das Espécies. Se é verdade que a filosofia e a teologia cristãs têm procurado uma nova compreensão do ser humano na sua dupla vertente, física e espiritual, que não assente de modo simplista nos dualismos substancialistas do passado, tem-se por vezes a sensação de que actualmente há também retrocessos nesta compreensão. A relação de realidades como a alma e o espírito, que parecem pertencer a um mundo não evolutivo, com a matéria em evolução, e com o corpo humano em particular, parece constituir uma questão central que tem sido até agora de difícil solução. Esta dificuldade insere-se, porém, no contexto muito mais vasto de uma crise cultural generalizada, de uma profunda mudança paradigmática, que torna difícil compreender de que forma o cristianismo se harmoniza com o evolucionismo. Trata-se de uma crise de crescimento da Humanidade tanto na sua compreensão do universo e da vida em geral, como na sua auto-compreensão. Esta crise atinge, de uma forma por muitos subestimada, formulações teológicas até hoje consideradas fundamentais. É pois num contexto de

* Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa - Braga.

Brotéria 169 (2009) 529-550

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crise que deve ser repensada a relação entre evolucionismo e cristianismo.

A questão do evolucionismo no contexto de uma crise cultural generalizada A teoria da evolução das espécies introduz no paradigma filosófico-teológico tradicional, de inspiração aristotélico-tomista, e até mesmo no paradigma científico ocidental predominante até ao século XIX, uma ruptura que nos traz imediatamente à memória uma outra semelhante causada no século XVII pela teoria heliocêntrica. O desmoronar do universo medieval, no qual todos os elementos da Revelação cristã pareciam encaixar perfeitamente como num puzzle onde também os elementos da filosofia e da ciência tinham o seu lugar, levou àquilo a que podemos chamar fim de um mundo . Muitos elementos fundamentais da filosofia aristotélica e da teologia tomista tiveram que ser profundamente revistos e muitos deles completamente abandonados. A descoberta de uma infinidade de estrelas por detrás da esfera das estrelas fixas , onde durante séculos se pensara que estava localizado o empíreo, habitação de Deus, dos anjos e dos santos, por exemplo, obrigou a teologia cristã a elaborar uma nova teologia da natureza e da criação. Algo de semelhante se passa hoje com a teoria da evolução das espécies no que se refere ao aparecimento e à evolução da vida na Terra. A teoria não se pronuncia sobre a origem da vida, mas era inevitável que esta questão surgisse logo que o evolucionismo começou a pôr em causa a interpretação literal dos três primeiros capítulos do Génesis. As consequências teológicas e filosóficas da teoria não se fizeram por isso esperar, conduzindo a alguns dos aspectos da crise cultural que ainda hoje perduram. Teilhard de Chardin foi certamente um dos primeiros autores cristãos a aceitar não apenas a inevitabilidade do evolucionismo biológico, mas também a necessidade da elaboração de uma perspectiva evolutiva do universo que incluía o darwinismo mas o supera significativamente numa nova sín530


tese de toda a realidade, síntese que nos revela Deus, o cosmos, a vida, de uma forma radicalmente nova e, para Teilhard e muitos dos que o seguem, entusiasmante. Muito cedo, no início do século XX, Teilhard reconheceu esta crise que punha seriamente em causa alguns dos fundamentos da aparentemente inabalável formulação tradicional da fé cristã. A passagem de uma perspectiva estática do universo, da vida e do próprio Deus, a uma perspectiva dinâmica, bem se pode comparar a um furacão que à sua passagem deixa apenas de pé os edifícios e as árvores, mais fortes e com mais seguros fundamentos e raízes. Mas Teilhard tem uma visão positiva da crise: «Na crise presente em que se defrontam, sob o nosso olhar e nos nossos corações, as forças cristãs tradicionais e as forças modernas da Evolução, não será conveniente reconhecer simplesmente as peripécias de uma providencial e necessária fecundação? Julgo que sim» 1? Algumas décadas depois, após os debates que tiveram lugar durante o Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger reconhecia os sérios problemas que, num mundo em mudança, os teólogos experimentavam ao pretenderem expor a fé aos seus contemporâneos. Depois de se referir a uma história contada por Harvey Cox, na qual o teólogo era comparado a um palhaço fracassado, Ratzinger afirma: É preciso reconhecer que quem tenta anunciar a fé no meio de pessoas envolvidas na vida e no pensamento de hoje pode sentirse realmente como um palhaço, ou antes como alguém que se levantou de um sarcófago antigo e se apresenta ao mundo de hoje com os trajes e pensamento de antigamente, sendo incapaz de compreender este mundo e de ser compreendido por ele. Mas se aquele que tenta anunciar a fé assumir uma atitude autocrítica, depressa notará que não se trata apenas da forma ou de uma crise de roupagem com que a teologia se apresenta. Quem, na estranheza do empreendimento teológico dirigido aos seres humanos do nosso tempo, levar a sério a sua missão, experimentará e reconhecerá não apenas a dificuldade de se fazer entender, mas também a insegurança da sua própria fé e o poder aflitivo da incredulidade presente dentro da sua própria vontade de crer 2.

1 C HARDIN , Teilhard de, «Cristianismo e Evolução. Sugestões para servir uma nova teologia» in A Minha Fé. A Matéria e Deus, Lisboa, Ed. Notícias, 2000, p. 198.

2 RATZINGER, J., Introdução ao Cristianismo, Estoril, Principia, 2005, p. 29.

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Este texto, inicialmente publicado em 1967, poderia ter sido escrito nos nossos dias. A dificuldade que a teologia cristã tem em apresentar hoje a fé aos seres humanos do nosso tempo, não é certamente menor que a dos anos sessenta do século passado. O confronto com o paradigma evolucionista, ainda não suficientemente realizado de uma forma integradora, é certamente um dos factores que nos nossos dias bloqueia o acesso de muitos à fé. A análise desta situação torna-se, por conseguinte, cada vez mais premente. Também num texto publicado em 1970, Ratzinger reconhecia, de uma forma não menos dramática, a realidade das mudanças profundas que estavam a acontecer desde o final da segunda guerra mundial:

3

Idem, Fé e Futuro, Estoril, Principia Editora, 2008, p. 84.

Vivemos hoje sob a impressão de uma prodigiosa viragem, em comparação com a qual a passagem da Idade Média para a Modernidade nos parece inofensiva; e até a ruptura das invasões bárbaras, que se situa entre a Antiguidade e a Idade Média, chega porventura a parecer que dificilmente terá a importância decisiva inerente à viragem de hoje, a qual, em todo o caso, produz um efeito apenas comparável ao das grandes viragens no desenvolvimento da humanidade 3.

Qual é então, segundo o autor, a experiência de crise vivida hoje pelos crentes?

4

Ibidem, pp. 12-13.

Difundiu-se entre os crentes um sentimento semelhante ao que poderia dominar entre os passageiros de um barco prestes a afundar-se: interrogam-se sobre se a fé cristã ainda tem um futuro ou se, de facto, não terá sido simplesmente ultrapassada de forma cada vez mais ostensiva pelo progresso intelectual. Na base destas considerações está a consciência de um profundo abismo entre o mundo da fé e o do saber, abismo esse que parece intransponível e que torna a fé ainda mais indiscernível 4.

Num outro texto publicado em 1973, o autor reconhece que a teoria da evolução das espécies provocou uma revolução maior que a de Galileu, uma vez que esta apenas tocou as dimensões espaciais do universo, aumentando-as muito, ao passo que a revolução darwiniana tocou a dimensão temporal, 532


colocando toda a realidade em evolução. «O ser humano como um ser em permanente transformação. As grandes constantes da visão bíblica do mundo, o alfa e o ómega, o princípio e o fim, desembocam no indeterminável os fundamentos da realidade modificam-se: evoluir toma o lugar do ser, evolução toma o lugar da criação, progresso toma o lugar da queda» 5. A aceitação do evolucionismo como explicação da vida representa, pois, uma autêntica revolução paradigmática no sentido kuhniano do termo: Quando se tenta conciliar o pensamento criacionista com a teoria da evolução, propõe-se efectivamente à fé uma imagem do mundo muito diferente daquela com que sempre se identificou. É neste fenómeno que efectivamente está o cerne de toda a questão à volta da qual giram as nossas reflexões. O crente fica sem a imagem do mundo com a qual ele mesmo se identifica, tendo de identificar-se com uma outra. Pode acontecer isso sem que o crente perca a sua identidade? Este é efectivamente o nosso problema 6.

Uma das questões mais perturbantes para o crente em geral tem a ver com a sua inserção no movimento evolutivo que partindo de seres unicelulares conduziu à extraordinária diversidade de seres vivos, entre os quais se encontra o ser humano. A história da criação de Adão do pó da terra, de Eva a partir de uma costela de Adão, do pecado original como fonte do sofrimento e da morte, etc., são apenas alguns dos elementos que, baseados numa interpretação literal do Livro do Génesis, parecem estar em frontal desacordo com a nova perspectiva evolutiva da espécie humana e da vida em geral. Como compreender então o ser humano profundamente inserido no processo evolutivo e, apesar disso, criado por Deus?

5

Idem, «Fé na criação e teoria da evolução» in Credo para Hoje, Braga, Editorial Franciscana, 2007, p. 36.

6 Ibidem, p. 42. O termo criacionista não é aqui utilizado no sentido que tem hoje com base na interpretação literal do Génesis.

Sobre o início da Humanidade As primeiras reacções da teologia cristã à teoria da evolução das espécies foram extremamente negativas, tanto por parte dos católicos como dos protestantes. O mesmo tinha, aliás, sucedido com a teoria heliocêntrica. A Pontifícia Comissão Bíblica pronunciou-se oficialmente em 1909 contra a inter533


7 «Sobre o carácter histórico dos três primeiros capítulos do Génesis» (30 de Junho de 2009), in Denzinger-Hünermann, Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações da Fé e Moral, São Paulo, Ed. Loyola, 2007, § 3512.

8 RATZINGER, J., Fé e Futuro, pp. 13-14.

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pretação metafórica, não literal e histórica, do texto bíblico sobre a criação do mundo e, em particular, de Adão e Eva. O seguinte texto foi publicado pela Comissão em forma de pergunta-resposta, a primeira de um conjunto de três sobre a mesma questão: «Têm algum fundamento sólido os diversos sistemas exegéticos elaborados e defendidos sob forma científica para excluir o sentido histórico literal dos três primeiros capítulos do Génesis? Resposta: Negativa» 7. É provável que esta Comissão se tenha fundamentado em razões semelhantes às da Comissão de Cardeais que condenou a teoria heliocêntrica como contrária à Bíblia. Ambas as Comissões parecem ter intuído as consequências filosóficas e teológicas da teoria que cada uma delas foi chamada a analisar, considerando-se que nos dois casos as teorias eram incompatíveis com a fé cristã. Também em ambos os casos, as Comissões parecem ter ignorado o ambiente de crise de profundas transformações culturais generalizada em que se encontravam. Num já citado texto sobre a tensão entre fé e saber (1970), Joseph Ratzinger refere-se à interpretação bíblica da criação do mundo, reconhecendo a existência de um profundo desfasamento entre a teoria científica da evolução das espécies e a interpretação tradicional, pré-Vaticano II, dos três primeiros capítulos do Livro do Génesis. Com efeito, a perplexidade de quem se sente no interior de um furacão cultural de enorme potência, ou na crista de um tsunami cultural devastador, tem início, segundo Ratzinger, logo no contacto com as primeiras páginas da Bíblia, com a narração que aí se lê da criação do universo e da humanidade: Vejamos agora em traços largos onde se situam, para nós, os pontos críticos. A dificuldade começa logo na primeira página da Bíblia: a representação da evolução do mundo, tal como aí se descreve, está em aberta oposição com tudo o que hoje sabemos acerca da génese do cosmos; as perguntas prosseguem, página após página: aparece a imagem, para nós realmente chocante, do barro que, sob a acção das mãos de Deus, se torna homem e, logo a seguir, a imagem da mulher que é tirada do lado do homem adormecido, que provém dele como carne da sua carne 8


O facto de sabermos hoje que estas páginas do Génesis não devem ser lidas como se lê um livro científico, e que o seu conteúdo simbólico afirma mais sobre a natureza humana que as próprias ciências naturais como, por exemplo, a biologia, não parece ser suficiente para resolver as questões que o evolucionismo levanta ao cristianismo. Ratzinger prossegue, explicitando algumas das questões mais perturbantes que surgem da leitura do texto bíblico contido nos três primeiros capítulos do Livro do Génesis quando se tem como pano de fundo a teoria da evolução das espécies. nos capítulos seguintes surgem novas perguntas, com a história da queda: como é que se pode compaginar com o ponto de vista de que o homem, segundo a indicação das ciências da natureza, não começa a partir do alto, mas sim do baixo, não cai, antes se ergue lentamente, estando ainda em curso a sua transformação de animal em homem? E o paraíso? Havia sofrimento e morte na Terra muito antes de aparecer o homem, cresciam cardos e espinhos muito antes de o homem abrir os olhos e, mais uma vez, esse primeiro homem mal tinha consciência de si mesmo, lançado que estava na necessidade de uma existência que consegue vingar de modo fatigante, muito longe de possuir aquele dom do conhecimento perfeito que a antiga doutrina do paraíso lhe atribui. Mas se a imagem do paraíso e da queda se desfaz, parece que lhe segue necessariamente as pisadas a ideia do pecado original e, com ele, também necessariamente a da salvação 9.

9

Ibidem, pp. 14-15.

A imagem do ser humano e da própria realidade em geral que emerge da teoria da evolução, parece pôr em causa uma tradição filosófico-teológica milenar, considerada inabalável e definitiva. Esta tradição faz-nos correr o risco de enveredarmos por um dualismo epistemológico que acabe por ocultar um dualismo ontológico correspondente a dois mundos excessivamente separados, o natural e o sobrenatural, dualismo do qual emergem outros: matéria-espírito, corpo-alma, imanente-transcendente, etc. dualismos de origem grega que acabaram por se impor ao paradigma filosófico-teológico cristão, algo fortemente criticado por Ratzinger na sua obra Introdução ao Cristianismo. 535


Pio XII e a Humani generis Estes dualismos surgem claramente na encíclica Humani generis de Pio XII, que assume uma posição que parece, segundo Ratzinger, marcar um armistício na oposição entre cristianismo e evolucionismo, ao procurar harmonizar a teologia católica com a teoria da evolução das espécies. Como se sabe, Pio XII declarou naquele documento que o evolucionismo era aceitável, enquanto explicação da origem do corpo humano, mas não poderia explicar a origem da alma, uma vez que esta é directamente criada por Deus no momento da geração biológica de um novo ser humano e é, portanto, objecto de estudo da teologia:

10 PIO XII, Humani generis (1952), § 36, texto retirado do site www.vatican.va.

11 RATZINGER, Joseph, Prefácio à obra Evolutionismus und Christentum, Weinheim: Acta Humaniora, 1986, p. VII. Esta obra reúne os textos das comunicações apresentadas num colóquio organizado em Castelgandolfo, em 1985, pelos ex-alunos de Ratzinger, sobre a relação entre evolucionismo e cristianismo.

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o magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente (pois a fé nos obriga a reter que as almas são directamente criadas por Deus), segundo o estágio actual das ciências humanas e da sagrada teologia, de modo que as razões de uma e outra opinião, isto é, dos que defendem ou impugnam tal doutrina, sejam ponderadas e julgadas com a devida gravidade, moderação e comedimento 10.

Com esta distinção dos objectos de estudo da teologia, por um lado, e da biologia, por outro, parece ter-se chegado a um armistício entre cristianismo e evolucionismo. No entanto, este armistício foi mais aparente do que real, como reconheceu o próprio Ratzinger: Neste armistício não se atenuou, sem dúvida, a luta em torno do homem: bem cedo também os teólogos nada sabiam que fazer com o conceito de alma e da sua imediata criação por Deus. O modelo antropológico clássico, em que se formulou o dado irrenunciável da fé, não se deixa facilmente harmonizar com o princípio totalmente distinto do pensamento da teoria da evolução e com a sua pretensão global de explicação, que não se quis deter perante o homem 11.

Recusando a constituição da biologia numa qualquer filosofia primeira que pretenda absorver todos os níveis de


explicação da realidade, Ratzinger também não aceita uma fácil e completa separação de tarefas entre a biologia e a teologia, como se a primeira se devesse ocupar da origem do corpo humano e a segunda da origem da alma humana. Esta separação tem dado origem a alguma controvérsia entre os autores cristãos, controvérsia centrada na questão da origem e natureza da alma humana.

Sobre a criação da alma por Deus A questão da criação da alma humana por Deus está intimamente ligada ao problema do início da Humanidade. O antigo criacionismo que se baseava numa interpretação literal dos três primeiros capítulos do Livro do Génesis tinha uma explicação simples: Deus criou Adão e Eva, o casal original do qual descende toda a Humanidade, insuflando neles uma alma espiritual. Esta explicação enquadrava-se bem num mundo estático e limitado. Mas num mundo em evolução, como se compreende a criação da alma dos primeiros seres humanos? A criação de Adão em dois momentos e actos distintos, primeiro o corpo, a partir do pó da terra, depois a alma, quando Deus a insuflou no barro, continua a ser considerada um elemento fundamental da doutrina cristã. Numa Mensagem à Pontifícia Academia das Ciências (1996) João Paulo II reafirma, na linha de Pio XII, que o aparecimento de cada ser humano pressupõe a criação especial da alma por Deus, criação que acontece quando se dá a geração do substrato biológico de um novo ser pelos progenitores: «Pio XII tinha sublinhado este ponto essencial: se o corpo humano tem a sua origem da matéria viva que lhe preexiste, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus («anima enim a Deo immediate creari catholica fides nos retinere iubet») (Enc. Humani Generis, AAS 42 [1950])» 12. Como se harmoniza, porém, esta posição dualista com a perspectiva evolucionista? Para João Paulo II não nos é lícito considerar que as almas dos primeiros seres humanos emergiram da matéria em evolução. Isto levar-nos-ia a afirmar, com

12 JOÃO PAULO II, «Mensagem à sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências (22.10.96)», in The Pontifical Academy of Sciences, Papal Addresses, Vatican City, 2003, p. 373.

537


13

Ibidem.

efeito, que a alma espiritual é um fruto desta evolução, o que parece não só filosoficamente insustentável, como dispensaria, aparentemente, a intervenção especial de Deus no momento da criação dos primeiros seres humanos. Segundo João Paulo II, o aparecimento da alma espiritual criada por Deus e por ele infundida nos primeiros seres humanos, a partir dos quais teve início a história da humanidade, representa um salto ontológico , uma descontinuidade radical no processo evolutivo dos seres vivos: «Com o homem, encontramo-nos então diante de uma diferença de ordem ontológica, diante dum salto ontológico, poder-se-ia dizer» 13. Encontramo-nos de novo com o problema da relação entre matéria e espírito, corpo e alma. A tradição católica afirma, por um lado, que corpo e alma constituem uma unidade indivisa. Afirma também, por outro lado, que há uma descontinuidade ontológica entre a matéria e o espírito. A primeira tese parece permitir a afirmação de que os seres humanos são constituídos em corpo e alma de forma simultânea e intramundana. Esta tese parece dispensar a questão por muitos colocada: Quando criou Deus as primeiras almas humanas no processo evolutivo? A segunda tese parece justificar a necessidade de uma intervenção especial de Deus na criação da alma humana no decurso do processo evolutivo, segundo uma causalidade distinta da causalidade em acto na natureza. Esta tese parece dar legitimidade à pergunta atrás formulada. Analisando os textos de alguns teólogos, sobretudo de Karl Rahner e de Joseph Ratzinger, tem-se a sensação de que o primeiro propôs a primeira tese. Já no que se refere a Joseph Ratzinger, parece que ele, numa primeira fase dos seus escritos, se aproximou da posição não só de Rahner como também da de Teilhard de Chardin, acabando por se afastar de tal posição a partir dos anos oitenta do século passado. Analisaremos esta questão mais adiante.

Karl Rahner e a teoria da auto-superação dos seres humanos Para Karl Rahner, a afirmação da unidade essencial do ser humano corpo-alma, implica que «não ficam imediatamente 538


resolvidos todos os problemas com a simples admissão da evolução em relação ao corpo , excluindo-a para a alma» 14. Rahner mantém-se fiel à tradição antropológica católica, e por isso mesmo procura explicitar as consequências de tudo o que ela contém, nomeadamente as implicações da unidade indivisa do ser humano, unidade que impede considerar em abstracto seja o corpo seja a alma: O que denominamos alma espiritual no homem não é uma pura forma fenoménica daquilo a que chamamos a sua materialidade e corporalidade (DS 1440; 3022; 3220ss; 3896). Vice-versa, a matéria não é pura forma manifestadora do espírito finito que somos. Por conseguinte, não se pode deduzir e compreender adequadamente a alma com base num ponto de partida puramente espiritual, que não represente já todo o ser humano, nem de um ponto de vista apriorístico que não inclua já a experiência factual e impenetrável da matéria 15.

Rahner mantém-se de algum modo na linha tomista que concebe a alma como forma do corpo, não porém de um modo abstracto e apriorístico. Para S. Tomás, mesmo separada do corpo, após a morte, a alma, mantendo embora as faculdades cognitivas, está intrinsecamente orientada para a união com o corpo na ressurreição. No entanto, Rahner não está a repetir simplesmente a tradição. Ao acentuar a indivisa unidade antropológica do ser humano, o autor está também, de algum modo, a preparar a proposição de uma tese teológica que implica também a indivisa unidade do acto criador de Deus. «A doutrina originária da fé, pouco importa se está expressa ou não, adequadamente, numa declaração do magistério eclesiástico», prossegue o autor, «é que o homem deriva da terra, e tal origem que ele também tem, diz respeito ao homem todo, como algo que lhe é próprio» 16. A expressão «homem todo» é significativa no contexto da posição de Rahner sobre a causalidade divina, que não deve ser concebida como existindo ao lado da causalidade natural das causas segundas, produzindo apenas uma parte do ser humano, a sua alma, mas como causa primeira e total de todo o devir, tanto da criação do corpo como da alma:

14 RAHNER, Karl, Il Problema dell Ominizzazione, Brescia, Morcelliana, 1969, p. 31.

15

Ibidem, p. 32.

16

Ibidem, pp. 34-35.

539


17

Ibidem, p. 96.

Do ponto de vista metodológico, parece poder dizer-se que sempre que no mundo se encontre um efeito, se deva postular a sua causa no próprio mundo, e se possa procurá-la, precisamente porque Deus, rectamente concebido, realiza tudo mediante as causas segundas. Deste modo, postular ou descobrir uma tal causa intramundana não diminui em nada o efeito da causalidade divina universal, a qual está localizada no mundo segundo o tempo e o espaço. Pelo contrário, postular uma tal causa torna-se necessário para distinguir claramente a irrepetível e única especificidade do agir divino de toda a causalidade intramundana 17.

Esta afirmação metafísica sobre a distinção entre a causa primeira, Deus, e as causas segundas, que se reconhecem no estudo dos fenómenos naturais, estando embora na linha da tradição, acentua um elemento que tem consequências nem sempre reconhecidas: a causalidade divina, e não apenas as causas segundas, manifesta-se no espaço e no tempo. É por isso que Rahner afirma sem hesitações que se isto não é claramente reconhecido e afirmado, a causalidade divina acaba por ser erradamente entendida, o que tem também consequências inaceitáveis. É o que se passa com a compreensão da criação da alma espiritual. Referindo-se à sua concepção sobre a causalidade divina, prossegue Rahner:

18

Ibidem, p. 96.

Parece que esta concepção fundamental seja rejeitada no caso da criação por Deus da alma individual. Mesmo quando se sublinha o carácter normal de tal criação, ela assume uma característica de milagre. O agir divino coloca-se no mundo ao lado do das criaturas, em vez de constituir o fundamento transcendental de todo o agir das criaturas 18.

Esta posição pode ser interpretada como uma crítica fundamental à forma actual e oficial de interpretar a criação da alma por Deus, separadamente do corpo, criado pelos pais de um novo ser humano. A mesma interpretação pode representar um sério obstáculo à integração do dado evolutivo na auto-compreensão do ser humano cristão. Com base na sua perspectiva sobre a relação entre causalidade divina e causalidade humana, Rahner pode agora propor a sua solução para o problema da criação da alma humana por Deus: 540


O agir de uma criatura deve entender-se fundamentalmente como uma auto-superação, de tal modo que a acção não se pode deduzir da essência da criatura operante, ainda que se deva considerá-la como causada por ela. Pressuposto um tal conceito universal de devir e de agir, deve dizer-se sem alguma dificuldade que os pais são a causa do ser humano todo, na sua totalidade unitária e, por isso, também da sua alma. Por conseguinte com esta proposta não só não se exclui mas, pelo contrário, se inclui positivamente, que os pais podem ser causa de um ser humano somente enquanto o fazem surgir mediante a virtude infusa de Deus, que lhes torna possível a própria auto-superação e é imanente ao seu agir, sem fazer parte dos factores constitutivos da sua essência 19.

Os progenitores de cada novo ser humano geram-no, por conseguinte, na sua indivisa unidade corpo-alma, num movimento ontológico de auto-superação que, em virtude da causalidade divina, os leva a auto-superarem-se e a produzirem um ser que é ontologicamente mais do que a sua mera causalidade criatural poderia originar sem o concurso da causalidade divina. Vista desta perspectiva, a criação da alma por Deus perde, segundo Rahner, o seu carácter miraculoso. O actual Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, Luís Ladaria, considera que a solução de Karl Rahner ou seja, nas suas palavras, «a questão da intervenção directa e categorial de Deus no próprio plano das causas segundas» 20 pode criar dificuldades, embora se lhe refira, em nota de rodapé, como «a conhecida teoria da autotranscendência de Karl Rahner, sem dúvida a mais original dos últimos anos, e que teve grande influência na teologia católica» 21. Deve, porém, dizer-se que a tese de Rahner não encontrou acolhimento por parte do Magistério da Igreja Católica.

19

Ibidem, p. 98.

20 LADARIA, Luís, Antropologia Teologica, São Paulo, Ed. Loyola, 2.ª ed., 2002, p. 71. O texto original é de 1992.

21

Ibidem.

A posição do teólogo Joseph Ratzinger Nos textos que publicou nos anos sessenta e setenta do século passado, Ratzinger afirma claramente que matéria e espírito não são duas realidades que se possam considerar desligadas da nova perspectiva dinâmica do ser criado. Por um lado, deve considerar-se que «o espírito não é um produto ocasional do 541


22 RATZINGER, «Fé na criação e teoria da evolução», pp. 48-49.

23

Ibidem, p. 47.

24

Ibidem, p. 49.

25

Ibidem.

desenvolvimento da matéria, mas antes que a matéria significa um momento da história do espírito». Esta formulação, claramente teilhardiana, é reafirmada mais adiante: «o espírito não aparece na matéria como algo estranho, um outro diferente, como uma segunda substância; o aparecimento do espírito significa que o movimento ascendente chegou à meta que lhe estava destinada» 22. Ratzinger continua a utilizar aqui, sem hesitar, uma linguagem teilhardiana, aceitando «o reconhecimento de um mundo evolutivo, como auto-realização de um espírito criador» 23. Por conseguinte, continua o autor, «tratando-se sobretudo da criação do espírito, ela não pode ser apresentada na perspectiva de uma actividade artesanal que, de repente, começou a actuar no mundo» 24, o que parece excluir a hipótese da criação por Deus, num determinado momento da evolução dos seres vivos, de uma alma que, sendo forma substancial do corpo, devesse ser inserida nele. Quando surgiu então o ser humano, no processo evolutivo? Nem a ciência, nem a filosofia, nem a teologia podem determinar o momento exacto da aparição dos primeiros seres humanos. A resposta a esta questão só poderá ser dada, segundo Ratzinger, em termos relacionais, não meramente em termos da ciência biológica ou de uma metafísica substancialista: a argila tornou-se ser humano no momento em que uma criatura, pela primeira vez, mesmo de forma muito velada, foi capaz de formar uma ideia de Deus. O primeiro tu que o ser humano por mais balbuciado que fosse dirigiu a Deus é o momento em que o espírito se levantava no mundo. Aqui foi ultrapassado o rubicão da criação humana. Não é a utilização de armas ou do fogo, nem novos métodos de barbárie que caracterizam o ser humano, mas a sua capacidade de estar frente a frente com Deus. É isto o que significa a criação especial do ser humano Aí está também a explicação porque é impossível à paleontologia fixar o momento da criação do ser humano: criação do ser humano é o ressurgimento do espírito, que nenhuma pá de investigador pode detectar 25.

Ratzinger coloca-se assim na linha argumentativa de Teilhard e de Rahner. A causalidade divina está presente no mundo em evolução a partir de dentro do mais íntimo de 542


toda a realidade que continua a aventura da criação, e é por isso que esta metafísica não propriamente substancialista mas relacional, permite compreender que o aparecimento do espírito não é um mero resultado do desenvolvimento da matéria, uma vez que este mesmo desenvolvimento não acontece senão em virtude da causalidade divina, a qual é objecto da fé, não da ciência. Ratzinger critica a adopção do paradigma filosófico grego pela teologia cristã, sobretudo a partir do século XIII. A adopção deste paradigma encerrou a teologia cristã numa interpretação substancialista do ser humano, distorcendo a compreensão do texto bíblico da criação no seu sentido mais amplo, tal como emerge de uma exegese não literalista: Este sentido amplo da fé, só entrou em crise quando a exegese literal se começou a impor e se perdeu a perspectiva da transcendência da Palavra de Deus em relação às várias formas de expressão cultural. Pela mesma altura desde o século XIII reforçou-se a imagem do mundo, de uma forma nunca vista até então. Na sua forma primitiva, esta imagem não podia ser considerada um produto do pensamento bíblico, antes pelo contrário, só a muito custo se podia harmonizar com as realidades fundamentais da fé bíblica. Não seria difícil detectar raízes pagãs naquela visão do mundo, tida então como a única cristãmente aceitável 26.

26

Ibidem, p. 44.

Ratzinger regressa assim a uma perspectiva que já tinha desenvolvido mais demoradamente na sua obra Introdução ao Cristianismo (1967). Nela, o autor critica convictamente a perspectiva substancialista do paradigma filosófico grego: A concepção grega parte do princípio de que o ser humano é formado por duas substâncias originalmente estranhas entre si, sendo uma (o corpo) perecível e a outra (a alma) imperecível, de modo que esta última continua a existir independentemente de qualquer outro ser. Na realidade, só a separação do corpo, que lhe é estranho, abriria à alma a possibilidade de ser ela mesma. O raciocínio bíblico, pelo contrário, pressupõe a unidade indivisa do ser humano, tanto assim que a Bíblia nem tem palavra para designar apenas o corpo (separado e distinto da alma); por ouro lado, o termo «alma» refere-se, na grande maioria dos casos, ao ser humano inteiro, tal como ele existe com a sua corporalidade 27.

27 RATZINGER, Joseph, Introdução ao Cristianismo, S. João do Estoril, Principia, p. 255.

543


A concepção relacional do ser humano, proposta por Ratzinger, permite-nos entender o conceito de alma no contexto de um paradigma que tem, segundo o autor, um carácter mais histórico e actual:

28

Ibidem, p. 259.

Ter alma espiritual quer dizer exactamente ser querido, conhecido e amado de modo especial por Deus; ter alma espiritual significa ser-se alguém que é chamado por Deus para um diálogo eterno e que, por isso, é capaz, por sua vez, de conhecer Deus e de Lhe responder. Aquilo que numa linguagem mais substancialista, chamamos ter alma , passamos a chamar numa linguagem mais histórica e actual, ser interlocutor de Deus 28. .

Ao modificar o entendimento cristão sobre o corpo, a alma e a pessoa, no contexto de uma filosofia e de uma ciência que se tornaram menos substancialistas e mais históricas, Ratzinger e os teólogos cristãos em geral, renunciaram assim a uma concepção dualista acerca da relação corpo-alma, herdada da filosofia grega.

O Catecismo da Igreja Católica

29

O texto aqui utilizado é o da versão portuguesa. Cf. Catecismo da Igreja Católica, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1993.

544

Com a publicação do Catecismo da Igreja Católica (1992) e do correspondente Compêndio (2005), regressou-se a uma interpretação tendencialmente literal do Livro do Génesis, e a uma posição muito próxima da da Comissão Bíblica Internacional do início do século XX, antes mencionada. A composição do Catecismo teve início em 1986, ano em que o Papa João Paulo II a confiou a uma comissão de doze cardeais e bispos, presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger. João Paulo II publicou o extenso documento em Outubro de 1992. Nele se reafirmam as posições tradicionais, em relação às quais tanto Karl Rahner como Joseph Ratzinger pareceram ter mantido alguma distância crítica. Sobre a criação dos primeiros seres humanos, Adão e Eva, afirma o Catecismo 29: A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual. A narrativa bíblica exprime esta realidade numa linguagem simbólica, quando afirma que «Deus formou


o homem com o pó da terra, insuflou-lhe pelas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se num ser vivo» (Gn 2, 7). O homem, no seu ser total, foi, portanto, querido por Deus. [§ 362] A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a «forma» do corpo (232); quer dizer, é graças à alma espiritual que o corpo, constituído de matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espírito e a matéria não são duas naturezas unidas, mas a sua união forma uma única natureza. [§ 365]

Esta afirmação clara da unidade corpo-alma do ser humano, parece constrastar com as subsequentes afirmações acerca da separabilidade dos dois elementos. Encontramos aqui, provavelmente a justaposição de duas correntes da teologia católica actual. A Igreja ensina que cada alma espiritual é directamente criada por Deus não é produzida pelos pais e é imortal: ela não perece quando da separação do corpo na morte e se unirá novamente ao corpo na ressurreição final. [§ 366] O homem é corpore et anima unus (uno de corpo e alma). A doutrina da fé afirma que a alma espiritual e imortal é criada directamente por Deus. [§ 382]

A afirmação do Catecismo de que o ser humano constitui uma unidade de corpo e alma exige, porém, que a causalidade que produz cada um dos dois elementos seja diferente. Deus cria directamente a alma e indirectamente o corpo. A unidade antropológica, afirmada no Catecismo parece assim ocultar um dualismo ontológico em sentido forte , dualismo presente não apenas no início da vida humana mas também no final da mesma. Este paradigma pode levar a reabrir o debate entre cristianismo e cultura em termos que se tinham considerado já, de algum modo, superados. Sobre a natureza dos primeiros seres humanos criados no paraíso em estado de inocência, afirma o Catecismo: O primeiro homem não só foi criado bom, como também foi constituído num estado de amizade com o seu Criador, e de harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava; amizade e harmonia tais, que só serão ultrapassadas pela glória da nova criação em Cristo. [§ 374]

545


A Igreja, interpretando de modo autêntico o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, ensina que os nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram constituídos num estado de santidade e de justiça originais (246). Esta graça da santidade original era uma participação na vida divina (247). [§ 375]

Pode-se perguntar se o simbolismo da linguagem bíblica não permitirá outras interpretações. A linguagem utilizada pelo Catecismo é certamente ininteligível pelos não crentes, sobretudo pelos que adoptam o paradigma evolucionista. Mas ela é também, provavelmente, de difícil compreensão pelos cristãos cultos que adoptam o mesmo paradigma. Todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas pela irradiação desta graça. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer (248), nem sofrer (249). A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher (250), enfim, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação, constituía o estado dito de justiça original . [§ 376]

Veremos a seguir que Karl Rahner procurou justificar as afirmações sobre a imortalidade e a imunidade ao sofrimento dos primeiros seres humanos. Mas devemos perguntar se a afirmação pelo Catecismo dos conteúdos da tradição, sem neles introduzir uma reinterpretação actualizada, não aumentará o fosso que separa cada vez mais o cristianismo e a cultura do nosso tempo. Toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo plano de Deus, será perdida pelo pecado dos nossos primeiros pais. [§ 379]

Sobre o tema do pecado original não é possível fazer aqui uma análise, mesmo que breve. Mas trata-se de uma questão que não se pode considerar hoje suficientemente esclarecida, embora praticamente todos os teólogos, incluindo Rahner e Ratzinger, se lhe tenham referido. Estudos teológicos sobre esta questão continuam a ser publicados todos os anos. Karl Rahner considera aparente a oposição entre as perspectivas científica e bíblica da origem da Humanidade, tal 546


como vem expressa nas passagens do Catecismo acima citadas: «Para as ciências, o Paraíso está, de algum modo, no final da evolução , ao passo que para a Bíblia ele representa o início de uma história . Haverá aqui uma contradição entre estes aspectos e interpretações da história primitiva da Humanidade?» 30 Rahner procura responder negativamente a esta questão procurando um entendimento do texto bíblico que atenue, ou até mesmo elimine, uma tal contradição. Assim, afirma: Alguns elementos, mas não todos, que quase automaticamente consideramos pertencentes ao primeiro homem na sua manifestação histórica, devem ser entendidos como a situação que deveria acontecer, ou que em algum momento deveria ter acontecido. A imortalidade do primeiro ser humano, por exemplo, não se deve ter necessariamente manifestado na prática: ela foi-lhe atribuída, e ele tê-la-ia conservado se não tivesse pecado. O mesmo se aplica à imunidade da dor: não teve que ser necessariamente experimentada na prática. Só o teria sido se o primeiro acto de decisão do ser humano, com o qual estava relacionada a sua posse, não a tivesse recusado 31.

30

Il Problema dell Ominizzazione, p. 100.

31

Ibidem, pp. 101-102.

Esta tentativa por parte de Rahner de harmonizar o dado científico com o dado bíblico dificilmente se poderá aceitar como tendo sido bem sucedida. Grande parte do que é afirmado no Catecismo acerca da natureza do primeiro ser humano e da sua condição de imortalidade e impecabilidade, torna-se difícil de compreender no contexto do paradigma evolucionista.

Posição recente do Papa Bento XVI Uma afirmação recente do Papa Bento XVI parece afastar-se, de algum modo, do que foi posição do teólogo Joseph Ratzinger. No dia 31 de Outubro de 2008, o Papa dirigiu-se aos participantes na Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências. A Assembleia debruçou-se nesse ano sobre «A compreensão científica da evolução do universo e da vida». Nesta ocasião o Papa afirmou entre outras coisas: 547


32

BENTO XVI, «Alocução aos membros da Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências» (31.10. .2008), in ARBER, Werner et al., Scientific Insights into the Evolution of the Universe and of Life, Vatican City, 2009, pp. XXXIV-XXXV.

33

Ibidem, p. 29.

A distinção entre um simples ser vivo e um ser espiritual que é capax Dei revela a existência de uma alma intelectiva de um sujeito transcendental livre. Com efeito, o magistério da Igreja tem constantemente afirmado que «cada alma espiritual é criada imediatamente por Deus ela não é produzida pelos pais , e que ela é imortal. (Catecismo da Igreja Católica n. 366).32

Bento XVI regressa assim à linguagem tradicional do Magistério, linguagem que, embora correcta, não parece ter incorporado desenvolvimentos teológicos propostos por teólogos como Karl Rahner e Joseph Ratzinger, que agora parecem ser deixados na sombra . No final de cada uma das conferências apresentadas no encontro da Pontifícia Academia das Ciências, o orador respondeu às questões que lhe foram colocadas pelos demais participantes. O Cardeal Schönborn apresentou uma comunicação intitulada «A posição do Papa Bento XVI sobre criação e evolução». No final desta comunicação, o Prof. Ingo Potrykus, biólogo, levantou a seguinte questão: de acordo com a doutrina da Igreja Católica, quando entra a alma no processo evolutivo? Recordo-me que um dos livros mais impressionantes que li quando era jovem foi escrito por Teilhard de Chardin, o qual, em meu entender, realizou uma tentativa honesta de compreensão de como podemos imaginar que a alma entre no processo evolutivo. Qual é neste momento a opinião da Igreja Católica? 33

A pergunta parece ter, de algum modo, um certo tom de desafio. É difícil acreditar que o Prof. Potrykus não conhece a posição da Igreja Católica, tal como foi afirmada pelos Papas Pio XII e João Paulo II, e pelo Catecismo da Igreja Católica. Por outro lado, o próprio Papa Bento XVI tinha afirmado a posição oficial da Igreja na alocução que pouco tempo antes dirigira aos membros da Academia, como se viu. Também a referência a Teilhard de Chardin dificilmente pode ser vista como inocente. O Cardeal Schönborn, ignorando a referência feita a Teilhard, limitou-se a citar as palavras do Papa, respondendo: 548


Posso ser breve quanto a isso, porque o Papa Bento XVI referiu-se hoje à criação imediata da alma como um elemento essencial da doutrina da Igreja, partilhado também pelo Judaísmo. A alma é criada por Deus, se é que acreditamos na existência da alma. Isto significa que o ser humano é humano desde o início. Não há transição. Pode haver transição corporal entre pré-formas e o aparecimento do Homo sapiens sapiens. Há certamente muitos passos, mas quando surge um ser humano, surge um ser humano. Este é, segundo creio, o núcleo da doutrina segundo a qual a alma é criada por Deus. A pessoa humana não é um produto da natureza. O facto de sermos seres humanos marca a diferença. É esta a doutrina da Igreja Católica, e creio que é também o ensinamento bíblico 34.

34

Ibidem, pp. 29-30.

Regressamos assim à afirmação, algo ambígua, da criação imediata da alma por Deus. Nada na resposta do cardeal está em desacordo com a doutrina tradicional do Magistério. Mas estão certamente ausentes, mais uma vez, os desenvolvimentos teológicos de teólogos como Rahner e Ratzinger, entre outros. Vimos que na sua obra Introdução ao Cristianismo, Ratzinger, embora sem renegar o dualismo corpo-alma tradicional, prefere adoptar um conceito de alma utilizando aquilo a que chama uma linguagem mais actual e mais histórica, propondo um conceito relacional de alma . Esta linguagem parece porém ausente no discurso de Bento XVI, mesmo sendo verdade que em 2005 foi publicada uma nova edição daquela obra para a qual o Papa escreveu uma longa «Introdução». Nela, ele não retira nada do que afirmou na primeira edição, o que não deixa de ser significativo. É provável que o Papa, embora nada rejeitando do que escreveu anteriormente aos anos oitenta do século passado, prefira, como Papa, limitar-se às formulações filosóficas e teológicas mais tradicionais do Magistério.

Os contínuos desafios do evolucionismo ao cristianismo Quais são então os desafios que o evolucionismo continua a lançar ao cristianismo ou, mais concretamente, ao ser humano cristão? Ratzinger resume bem este desafio nos seguintes 549


35

Fé na criação e teoria da evolução, p. 50.

36 HAUGHT, John, Cristianismo e Evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Lisboa, Gradiva, 2009, pp. 91-92.

37

Ibidem, p. 90.

550

termos: «A teoria da evolução não acaba com a fé; também não a confirma. Mas lança o desafio a uma maior compreensão de si mesmo, e ajuda o ser humano a ser cada vez mais o que é na realidade: a criatura que, para toda a eternidade, pode dizer tu a Deus.» 35 Segundo o teólogo norteamericano John Haught, o evolucionismo teve já algumas consequências para a teologia cristã: Em primeiro lugar, a evolução obrigou alguns pensadores religiosos a alargar aquilo que é designado por teologia natural. E, em segundo lugar, fez com que a teologia fundamental tivesse de dar mais atenção àquilo a que poderíamos chamar promessa da Natureza O pensamento de Darwin, no entanto, convida também a teologia natural a considerar o facto de que vivemos num universo inacabado Uma criação inacabada convida a teologia a estender a nossa esperança não apenas para um céu destinado aos seres humanos num futuro que há-de vir, mas para um destino antes disso que, de algum modo, terá que incluir todo o universo 36.

Apesar desta visão algo optimista, Haught afirma que «teologia católica hoje, como a teologia cristã em geral, ainda não foi tocada profundamente pelas ideias evolucionistas A reflexão teológica sobre a Natureza ainda é algo de marginal na teologia católica, e está quase totalmente ausente dos Seminários» 37. A conveniência de uma resposta mais adequada aos desafios do evolucionismo por parte dos cristãos em geral, e dos teólogos em particular, tem também a ver com a necessidade de evitar que a situação da Igreja Católica e da teologia se assemelhe hoje à que foi descrita há mais de quarenta anos por Joseph Ratzinger na sua Introdução ao Cristianismo, e que foi atrás mencionada. A ausência de uma maior clarificação destes desafios poderá tornar não só a fé cristã como também os próprios teólogos cada vez mais incompreensíveis para a cultura de hoje, por um lado, mas também, por outro lado, alimentar posições criacionistas que representam hoje uma caricatura do que uma fé esclarecida deve afirmar tomando a sério o paradigma evolucionista.


Nobel da governação

João César das Neves *

N

o testamento de Alfred Nobel de 1896 que estabelece o célebre prémio com o seu nome, há várias vezes a referência que o galardão deve ser dado a pessoas que se notabilizaram pelos contributos que deram no próprio ano. Nem sempre esta cláusula tem sido cumprida nos 109 anos em que foi atribuída esta distinção, pois muitas vezes são distinguidos resultados antigos sem relação com a situação corrente. O prémio da Economia não foi estabelecido por Nobel nem depende do testamento. Nasceu em 1968, quando o Banco Central da Suécia, celebrando o seu 300.º aniversário, criou o «Prémio Memorial em Ciências Económicas» que a Nobel Foundation aceitou juntar aos outros cinco. Apesar disso, por vezes este galardão acena à exigência de contemporaneidade do velho testamento. Isso aconteceu, por exemplo, em 1999, ano do nascimento do euro, em que o prémio foi para Robert Mundell, o pai da teoria das «zonas monetárias óptimas», que inspirou a criação da moeda única. Em 2009 a economia viveu um período de terrível crise, em que muito se discutiram as questões de poder dentro das empresas e as relações entre accionistas e gestores. Por isso é muito adequado que os galardoados deste ano tenham trabalho precisamente na estrutura institucional das firmas. A Academia fez questão de sublinhar este ponto, explicitando a «governance» como definição do trabalho premiado. De facto, foi aí que trabalharam os dois premiados, embora se deva dizer que as análises dos dois economistas não se cen* Professor Catedrático de Economia da Universidade Católica Portuguesa - Lisboa.

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tram no tema específico da partilha de poder nas companhias, mas em questões muito mais profundas. O prémio foi partilhado por dois americanos. O comité explicou que Elinor Ostrom, nascida em 1933 em Los Angeles, o recebeu «pela sua análise da governação económica, especialmente os comuns» e Oliver Williamson, nascido em 1932 em Superior no Wisconsin, «pela sua análise da governação económica, especialmente as fronteiras da empresa». O que está por detrás destas fórmulas secas? Oliver Williamson, doutorado na Carnegie Mellon University e ensinando desde 1988 na Universidade da Califórnia, em Berkeley, é um autor há muito consagrado e bem conhecido no meio, sobretudo pelos seus textos sobre custos de transacção. Os seus trabalhos são vastos e brilhantes, todos à volta da estrutura mais profunda da relações económicas. Williamson vê a actividade económica como uma sequência de conflitos que são resolvidos por dois mecanismos principais: a empresa e o mercado. Deste modo, quer a empresa quer o mercado são vistos como variantes do mesmo, a resolução de conflitos. A diferença entre ambos é, pode dizer-se, a questão que apaixonou este autor. Porque motivo algumas disputas são tratadas internamente na empresa e outras vivem-se entre empresas? Porque motivo alguns produtos são produzidos na totalidade por uma única empresa, dos materiais ao bem acabado, enquanto outros exigem a participação de uma sequência de muitas empresas, que vão vendendo no mercado os produtos semi-transformados umas para as outras? Este autor considerou que estas diferenças devem ter uma razão motivadora. Assim, estas perguntas muito simples conduziram-no à questão da determinação das fronteiras entre as empresas, as fronteiras que distinguem os conflitos, ficando alguns dentro e tratando dos outros no mercado. Investigar essa razão criou uma das mais interessantes teorias da empresa. Um exemplo ajuda a compreender a motivação. Considere-se uma empresa particular que, naturalmente, depende dos seus fornecedores para as matérias-primas indispensáveis. No caso em que existem muitos concorrentes a distribuir os 552


tais materiais de que essa empresa necessita, ela está segura de encontrar os fornecimentos essenciais. Nesse caso ela pode confiar no mercado para lhos entregar em quantidade e preços adequados. Mas suponhamos que, pelo contrário, um dos elementos vitais para a operação dessa produção está nas mãos de uma única fonte. Nesse caso a nossa empresa está totalmente dependente desse abastecimento. Isso abre-lhe uma fragilidade que lhe pode ser fatal. Havendo um monopólio do fornecimento, o mercado não garante uma segurança e não a protege dos abusos que o tal abastecedor pode impor. Este é um caso em que é razoável que a empresa tente adquirir a tal fonte de matéria-prima, para que os dois interesses sejam geridos no interior da mesma empresa. São considerações como estas que formam os blocos da teoria de Williamson, uma rica análise da empresa e da sua estrutura de poder, que hoje constitui uma referência incontornável na análise institucional dos processos produtivos e dos mecanismos de transacção. A sua abordagem unificadora permitiu determinar de forma integrada os motivos pela qual são definidas certas fronteiras para a empresa, e os mecanismos que distinguem entre os seus conflitos internos e externos. Elinor Ostrom fez manchetes por ser a primeira mulher a receber este galardão, que já foi atribuído a 63 homens. Doutorada na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, ensina desde 1966 na Universidade de Indiana e trabalha em temas próximos dos do colega, mas bem distintos. Os resultados de Ostrom são bastante curiosos, por se situarem num dos pontos mais controversos da economia, invertendo uma análise intuitiva. Ela estudou a chamada «tragédia dos comuns», ou seja, o fenómeno conhecido da má gestão dos recursos em que muitas pessoas mandam. «Panela de muitos, mal mexida e pior comida» é o provérbio antigo que formula precisamente esta situação. Em geral, a resposta para este problema de falha de coordenação entre muitas pessoas, é a intervenção pública, sendo a gestão do recurso assegurada pelas autoridades. 553


Esta autora interessou-se precisamente pelos casos em que a tragédia desaparece e as coisas correm bem. Todos sabemos que existem situações de colaboração satisfatória em muitos grupos humanos. Por exemplo, há aldeias em que os cidadãos conseguem cooperar, atingindo um alto grau de satisfação no uso de baldios, matas, lagos ou rios que, sem o apelo a árbitros externos, servem a todos e não são abusadas por ninguém. De onde vêm tais excepções? Não é difícil encontrar a lógica que motiva tais sucessos. Se toda a gente se conhece e repete regularmente as suas actividades, quem prevarica é facilmente identificado e punido. Por isso, nenhum dos participantes sente interesse em atropelar os outros e as coisas acabam por funcionar regularmente. A ideia é, portanto, que o sucesso acontece quando um pequeno número de agentes tem continuidade na utilização e monitorização mútua. Tendo começado por coleccionar vários casos de estudo desse sucesso, Ostrom acabou por formular uma teoria geral que estruturou o pensamento sobre o tema. O que fez foi determinar rigorosamente as condições em que se verifica tal resultado, retirando da sua teoria também algumas sugestões para fazer funcionar melhor esses sistemas. Estes trabalhos agora galardoados já têm muitos anos: os de Williamson do início dos anos 1970s, os de Ostrom dos anos 1990s. Mas a compreensão que nos deram sobre a estrutura institucional das empresas e dos mercados revela-se preciosa no ano em que, perante um maciço choque financeiro, todas as actividades produtivas se vêm envolvidas em esforços de reestruturação. Daí a lógica do prémio Nobel de 2009.

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Ecologia e ética: moda ou dever?

W. Osswald *

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inguém duvida da pegada ecológica nitidamente impressa no nosso viver quotidiano. O nosso século é o de um tempo ecológico, assumido mais ou menos conscientemente (às vezes com irritação ou desgosto) por todos. A etimologia (oikos, a casa) lembra-nos sempre de novo que vivemos, todos nós os que pululam à face da terra, numa casa comum, que partilhamos com miríades de outros seres vivos e com incontáveis elementos estruturais que apelidamos de inanimados, isto é, sem alma. A partir desta constatação, é fácil dar o passo seguinte, que é o de assumirmos responsabilidade e de manifestar empenho na gestão e conservação desta casa comum. Neste sentido, somos curadores e fiéis depositários de um tesouro que estamos incumbidos (aqui insere-se a pergunta: por quem? Com possíveis respostas que vão de «por nós próprios» até «pelo próprio Criador») de administrar e de gerir, mas não de destruir. Antes de prosseguir, convém que nos detenhamos um pouco em dois pontos que, não sendo essenciais, são proeminentes nesta matéria, pelo especial relevo que adquiriram na opinião pública. O primeiro diz respeito à sobrecarga mediática e politicamente correcta que tem incidido sobre a ecologia. O meio ambiente é servido em doses industriais, passe o paradoxo voluntário, às criancinhas na escola, aos adultos nas regras do bem viver que persistentemente lhes são oferecidas por televisão e imprensa, e às quais os autarcas e * Professor aposentado da Faculdade de Medicina do Porto. Conselheiro do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa.

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governantes pressurosamente se associam (para não falar de forças políticas que fazem do verde a sua bandeira, embora não sejam muçulmanas ). O velho preceito da publicidade, que nos previne contra um excesso de mensagem («overexposition kills»), é ignorado nesta área, aparentemente sem efeitos demasiado deletérios. Mas não se serve a causa ecológica quando se desvia o louvável intento de preservar o bem que é a natureza para o campo do mais desenfreado marketing, como temos assistido nos últimos tempos. Somos convidados a acreditar que este ou aquele produto (independentemente da sua função ou finalidade) é «amigo do ambiente», «combate a poluição» ou é «ecologicamente aprovado». Até companhias petrolíferas, pasme-se, se precipitam a disputar estes prestigiados rótulos de amizade ambiental. Ora, este exagerado protagonismo, que tantas vezes não ultrapassa a mera vocalidade, tende a afastar as pessoas mais críticas, a suscitar reservas e cepticismos e a resultar numa descredibilização da importante noção que subjaz a toda esta questão. O outro ponto a merecer a nossa atenção é a heterogeneidade dos que apoiam e subscrevem a causa da ecologia. De facto, encontramos aqui uma aliança de forças muito diversas, nas suas doutrinas fundacionais e nas intervenções cívicas e sociais que adoptam. Há muitos movimentos, bem organizados e financiados, estruturados a nível de um país ou a nível internacional, que tendem a organizar acções de protesto, muitas vezes espectaculares, obviamente mediáticas, recorrendo por vezes à violência contra coisas e pessoas; outros actuam de forma mais pedagógica, alertando e esclarecendo, e recorrendo com alguma frequência aos tribunais (providências cautelares, processos). Há ainda agrupamentos cívicos, grupos de discussão, centros académicos, personalidades da vida universitária, da comunicação, da política, etc., que se dedicam ao estudo das questões e se não eximem ao exercício do contraditório. Estes, é penoso dizê-lo, são bem menos conhecidos e escutados do que os que ocupam a ribalta ecológica, que nas suas mãos se transforma facilmente em plataforma a partir da qual se podem arremessar armas ou que se adequa como 556


trampolim para altos voos políticos. Há que reconhecê-lo, este desvio ideológico afasta muita gente de boa fé, que intui a necessidade e urgência de um compromisso ecológico, mas recusa protagonismos espalhafatosos ou adulteração de princípios nobres por palavras de ordem vácuas e interesseiras. Pese embora a estes obstáculos, a noção de um urgente dever de intervenção para defesa e manutenção da nossa herança ambiental tem vindo a fortalecer-se e a instalar-se na consciência colectiva. Bastará prestar atenção ao modo como firmemente se gravaram no léxico coloquial termos ou expressões até há poucos anos raramente usados, ao menos neste contexto, tais como ambiente, ecologia, desflorestação, aquecimento global, buraco de ozono, sustentabilidade, desenvolvimento sustentado, biodiversidade, poluição dos mares e dos rios, escassez de bens, espécies ameaçadas de extinção, gerações futuras, pegada ecológica, emissões de dióxido de carbono, etc.; os próprios conceitos de limpeza e pureza ganharam novas dimensões e toda esta evolução conduziu a uma nova escala axiológica, com evidentes implicações sociais. Por ex., o fumador, o criador de porcos e o condutor de um potente automóvel passaram a merecer reprovação (nem sempre explícita, é certo, mas nem por isso menos autêntica), por contribuírem para a degradação do ambiente. Por isso alguns, mormente recrutados entre aqueles a quem não agradam a vocalidade, o protagonismo, o ruidoso marketing ou a contaminação ideológica da argumentação e dos próprios movimentos ecológicos, afirmam que todo este afã variegado e multicolor não passa de uma moda, condenada, como tantas outras, a estiolar ou a fenecer. Tal posição é, porém, insustentável: aí estão os factos a fundamentar a preocupação ambiental, aí está a história do pensamento a carrear informação acerca da preocupação em preservar o habitat natural do Homem. Se é certo que o conceito de natureza não merece especial destaque para a filosofia grega, ele não está ausente das 557


locubrações dos pitagóricos e não parece ousado afirmar que Aristóteles dedicou uma significativa parcela do seu tempo ao estudo e reflexão dos dados biológicos que pacientemente colheu (talvez se possa ver nele o primeiro biólogo marinho). O advento do cristianismo representou um notável incremento no respeito pela natureza, ao adoptar e afirmar a cosmogonia do Génesis: de criação divina, a natureza é um hino de louvor ao Criador. É certamente infundada a crítica de Lynn White, segundo a qual a injunção divina do domínio da terra, dos peixes e outros animais, das árvores de fruto (Gen 1, 26-29) representaria uma injusta sobrevalorização da espécie humana em relação às restantes. Infundada, pois que, embora seja antropocêntrica esta posição, ela não estatui uma escala axiológica entre as espécies, antes as une na sua dignidade de criações divinas e na apreciação uniforme que faz da obra criada (Gen 1, 31: «Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa»). De resto, a tradição cristã e alguns dos seus mais altos expoentes históricos confirmam eloquentemente o apreço e o respeito pela natureza; recorde-se apenas o lirismo de S. Francisco (irmã água, irmão lobo, etc.) e as declarações de S. Bernardo acerca da aprendizagem teológica facultada pela contemplação das árvores e dos rios. É o sentimento tão bem expresso pela poeta irlandesa Joyce Kilmer, ao proclamar que «Os loucos, como eu / Fazem poesia; / Uma árvore / Só Deus é que a fazia». O afastamento do ser humano em relação ao meio ambiente terá a sua raiz no mecanicismo cartesiano e sobretudo na senda do iluminismo e do cientismo novecentista. A ideia e o ideal do progresso e da prosperidade conduziram a uma visão do mundo ambiental como simples recurso a modificar, a explorar, a desnaturar, para um almejado benefício dos seres humanos. É claro que o progresso tecnológico permitiu alterar o ambiente de forma muito mais radical do que era possível em épocas mais recuadas: a máquina a vapor, os explosivos, as armas de alcance maior, a exploração das minas, etc. vieram tornar eficazes os procedimentos humanos 558


profundamente modificadores da natureza. Do ponto de vista ético, poucos se terão preocupado com a crescente perigosidade do Homem para o meio ambiente, já que a técnica era idolatrada, o progresso divinizado e a natureza considerada como recurso submisso e passivo. Lembremos, a título de mero exemplo, que a chacina exterminatória dos búfalos americanos só foi lamentada por ter acabado (quando já não havia animais). São bem conhecidas as vozes de alarme de Hans Jonas e de Aldo Leopold, o primeiro ao alertar para o dever indeclinável de proteger e salvaguardar o que é frágil e indefeso, no âmbito de uma ética de responsabilidade, mormente em relação às gerações futuras; e Leopold com a sua seminal «Ética da terra», verdadeiro e apaixonado manifesto a favor da preservação da casa comum da humanidade, a terra no seu esplendor e significado. Não constitui surpresa para ninguém ficar a saber que um discípulo e atento leitor de Aldo Leopold, Van Rensselaer Potter, foi o introdutor da Bioética como ciência da sobrevivência e ponte para o futuro (títulos das suas obras mais importantes). É a partir destas correntes do pensamento, desta inovação nos conceitos e deste profético anúncio que crescem e se alimentam as correntes de opinião e os movimentos que activamente tentam despertar a comunidade, letargicamente aninhado na cómoda atitude de não me importismo, para a realidade: a actividade humana, a própria presença do ser humano, arrisca-se a destruir, irremediavelmente, a sua própria casa. Impõe-se, pois, agir, em múltiplas frentes e com agentes diversificados, convencendo incrédulos, mobilizando apáticos, disciplinando hiperactivos, moderando radicais. Antes da acção, urge reflectir sobre os princípios e fundamentos. Neste aspecto, é indiscutível a existência de pelos menos duas correntes de pensamento que enfrentam o problema ambiental com diverso ponto de partida conceptual e por isso sugerem e propugnam intervenções diferentes. Uma, de cariz antropocêntrico, atribui à espécie humana um papel de relevo 559


e um valor superior, considerando-a responsável pelos problemas que se vivem e pelo achar de soluções apropriadas para esses mesmos problemas. Pelo contrário, a escola ecocêntrica nega ao Homem importância e relevo, considera que as diversas espécies têm o mesmo valor (pelo menos aquelas cujos membros são dotados de sensibilidade dolorosa) e tende a incluir na listagem dos seres vivos entidades como os rios, as montanhas, as florestas, desde que auto-sustentáveis. O filósofo Peter Singer foi um expoente desta corrente, ao bater-se pelos assim chamados direitos dos animais (considerados pelos seus contraditores como um mero paralogismo) e ao escolher a capacidade de sentir (a que chamou senciência) como característica definidora da dignidade do ser e garante do respeito que lhe é devido. Mais longe foi o norueguês Arne Naess, arauto da ecologia profunda, que recorre a termos próprios dos místicos para descrever a harmonia total da natureza e a necessidade que os humanos têm de se inscreverem nela, na esteira da quase religiosa interpretação de James Lovelock (em 1979, o seu livro Gaia veio reacender o quase extinto e romântico culto da terra). Estas divergentes hermenêuticas da crise ambiental têm, obviamente, importância do ponto de vista da tomada de decisões. O ecocentrismo, mais radical, propõe medidas extremas que parecem inexequíveis (p. ex. a proibição da circulação automóvel nas cidades), enquanto o antropocentrismo, mais moderado e modesto nos seus objectivos, propõe (para usar o exemplo da poluição e emissão de dióxido de carbono nas urbes) apenas restrições à circulação, incentivos à partilha de veículos, reforço dos transportes colectivos, recurso a energias renováveis, etc. Ou seja, a posição das autoridades nacionais e internacionais é bem mais próxima do antropocentrismo do que das do ecocentrismo. Este, porém, detém um poder que não deve ser subestimado e que é o de inspirar numerosas organizações não governativas, algumas das quais bem influentes, e de se tornar cada vez mais difundido a nível das bases do ecologismo, e até ao de partidos políticos. 560


A questão dos direitos dos animais, acima aflorada, não tem nada a ver com a ecologia, pelo que não deve ser tratada com mais pormenor nestas linhas. À guisa de conclusão, gostaríamos de deixar aqui esta singela reflexão: A preocupação ecológica não é uma moda, tem séria e grave fundamentação, corresponde a uma obrigação que impende sobre todos nós. A natureza possui um valor intrínseco e por isso exige que a respeitem, o que significa que não depende do reconhecimento do Homem para valer. Todavia, não se lhe pode atribuir valor moral, pois a sua actividade e as características que assume, não dependem de sua vontade nem são conscientes: ninguém pode atribuir culpas ao tsunami que destrói vidas e fazendas nem à seca que faz migrar populações inteiras. Não há aqui raciocínio orientador, nem escolha entre opções. O Homem é, pelo contrário, um ser moral, dotado de direitos, acompanhados dos deveres que lhes são conatos. A ele cabe respeitar e promover o respeito pela natureza, conciliar as suas necessidades e interesses com a sustentação e conservação do meio que o rodeia, ter presente o futuro e estar cônscio de que é apenas curador e não dono da terra. Dirá algum leitor que esta é uma visão antropocêntrica, observação justa, à qual a resposta é positiva: por que a pessoa não tem senão olhos humanos para ver e um cérebro humano para reflectir, optar e planear a acção.

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Leituras recomendadas: ARAÚJO, J.; CARVALHO, A. S.; RENAUD, M. «A ética e a água», in Água: um desafio sem espaço nem tempo, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009. ATTFIELD, R. «Environmental ethics. Overview», in Encyclopedia of Applied Ethics, vol. 2, N.Y., Academic Press, 1998, pp. 1-13. BECKERT, C. (coord.) Ética ambiental, uma ética para o futuro. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003. CALLICOTT, J. B. «Environnement», in Dictionnaire d Éthique et de Philosophie Morale (dir. M. Canto Sperber), 1:, Paris, Presse Universitaire de France, 2004, 640-645. CALLICOTT, J. B.; NAESS, A.; WARREN, K. J. «Environmental Ethics», in Encyclopedia of Bioethics (coord. S.G. Post), 3rd ed., N.Y., Macmillan, 2004, pp. 757-775.

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CASTRO, P. M. L.; MALCATA, F. X. «Ecoética ou responsabilidade humana para com o ambiente», in Novos Desafios à Bioética (coords. L. Archer, J. Biscaia, W. Osswald, M. Renaud), Porto, Porto Editora, 2001, pp. 277-300. HOLLAND, A. «Ecological balance», in Encyclopedia of Applied Ethics, vol. 2, N.Y., Academic Press, 1998, pp. 1-13. LEONE, S. «Ecologia», in Dicionário de Bioética (coords. S. Leone, S. Privitera, J. T. Cunha), V. N. Gaia, Ed. Perpétuo Socorro, 2001, pp. 351-355. LUCH, W. «Ecoética», in Nova Enciclopédia de Bioética (coords. G. Hottois, J. N. Misse), Lisboa, Instituto Piaget, 2003, pp. 279-281. RENAUD, Isabel «Ética e ecologia», in Novos Desafios à Bioética, (coords. L. Archer, J. Biscaia, W. Osswald, M. Renaud), Porto, Porto Editora, 2001, pp. 277-300.


Europa em crise ou crise da utopia Europeia Reflexões à margem do Congresso Ideas of/for Europe 1 «É difícil perceber a Europa desde a Europa. Sem dúvida, desde os Estados Unidos se percebe o pequeno continente como uma espécie de grande Disneylândia, cheia de igrejas, palácios, mansões, acrópolis, aldeias antigas, restaurantes, boinas bascas, chapéus tiroleses, holandeses com suecos, sistakis, valsas vienenses». Edgar Morin 2

O

actual projecto político da União Europa concretiza utopias que já vêem de muito longe, que não só do tempo recente do iluminista século XVIII ou do liberal Século XIX. Muito antes de Victor Hugo sonhar com os Estados Unidos da Europa já muitos utopistas imaginaram uma Europa e um mundo unido. Aliás alguns querem ver, com alguma pertinência, a União Europeia, como a reactualização, mutatis mutandis, de projectos políticos muito antigos 3. Em alguns aspectos, e por isso é legítima a analogia, a União Europeia está a reactualizar, de forma pacífica, o modelo do Império Romano. Por isso tem algum sentido cognominar, como o faz num livro recente Parag Khanna, a União Europeia como a «Nova Roma». O seu ideário assente no ideal consagrado com a expressão Pax Romana visa construir uma espécie de cidadania universal: um império multiétnico, multirreligioso, com um direito único, com regras e moeda comuns, estendendo-se por espaços cada vez mais amplos com um ideário civilizacional que visava englobar todos os povos que aceitassem este projecto de cidadania com custos naturalmente de partilha de soberania e vassalagem ao imperador. O hodierno ideário de Pax

Peter Mil-Homens Mumford *

1 Congresso Internacional realizado na cidade alemã de Chemnitz com o Alto Patrocínio do Presidente da Comissão Europeia, nos dias 6, 7, 8 e 9 de Maio de 2009. Passaram por este congresso mais de 700 pessoas, participaram mais de 120 conferencistas de 28 países europeus e extra-europeus, tendo sido o Dr. Durão Barroso agraciado no âmbito deste evento com o doutoramento Honoris Causa concedido pela Universidade de Chemnitz. http://www.tu-chemnitz. de/phil/europastudien/swa ndel/europe. 2

MORIN, Edgar, Pensar a Europa. La metamorfosis de un continente, Barcelona, Erdisa, 2003, p. 22.

3 Cf. ANTUNES, Manuel, Repensar a Europa e a globalização, Selecção de textos e Introdução de José Eduardo Franco, Lisboa, Multinova, 2006.

* Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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4 Cf. KHANNA, Parag, O Segundo Mundo, Lisboa, Presença, 2009.

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Europea, que subjaz à construção da União Europeia recupera estes traços que fizeram a grandeza e a novidade da Roma antiga 4. Nunca se estudou tanto, nunca se analisou e falou tanto sobre a Europa como hoje. É uma evidência à Monsieur Jacques de La Palice, mas é preciso enunciá-la e constatá-la, especialmente ao nível dos estudos académico-científicos. A Europa tornou-se um case study sobre o qual se tem, através das mais diversas disciplinas científicas e abordagens epistemológicas, produzido mananciais e mananciais de estudos, de tratados, de histórias, de reflexões. Financiados e estimulados pela própria União Europeia ou não, em todos os países do Velho Continente nascem, pujantes de juventude, os Estudos Europeus. Mas o fenómeno transborda largamente as fronteiras europeias. São cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento, são centros de investigação, são congressos, são workshops que por todo o lado proliferam. Se há uma geografia física, humana, política, religiosa, cultural da Europa, importa fazer também esta nova e pujante geografia, a geografia dos estudos sobre a Europa, a Europa enquanto objecto de estudo. A popularidade da Europa enquanto objectivo de estudo é, sem dúvida, dos aspectos mais notáveis da nova cultura europeia. Há unidade e unanimidade neste ponto: a Europa é um caso de estudo interessante. E não apenas porque há muitos financiamentos para o efeito! De facto estamos perante um caso inédito na história política e cultural. O projecto da União Europeia em curso está a tentar concretizar, desde há mais de meio século, uma utopia pacifista de unidade sonhada por muitos pensadores idealistas dos séculos passados. Unindo nações, instalando paulatinamente um super-estado, ou uma autoridade transnacional com alguma força, partilhando soberania, integrando a diversidade de culturas e procurando, nessa diversidade, um fio condutor comum. Tudo isto de uma forma extraordinariamente única até ao momento: de forma pacífica, sem recurso ao braço militar.


O que mais fascina no estudo sobre a Europa é o facto de estarmos a poder acompanhar a concretização de uma utopia tornada projecto político, cultural e económico depois da última Grade Guerra, cujos protagonistas foram os chamados pais da Europa: Robert Shauman, Jean Monet, Konrad Adenauer, De Gasperi, Sicco Mansholt. No entanto, todo o projecto utópico deixa de o ser, isto é, perde o seu fascínio enquanto ideal a atingir, quando se tenta torná-lo realidade. O ideal em confronto com a realidade esvanece-se. Ou melhor, a utopia quando concretizada assume a dimensão crua da realidade e das fragilidades que essa realidade humano-social impõe ao projecto utópico 5. A utopia encarnada clama por outra utopia, ou por mais utopia. Aqui se verifica o que bem definiu Umberto Eco: «A utopia é um horizonte em movimento» 6. Os problemas e as fragilidades que envolvem o projecto europeu em acto, que é uma espécie de processo revolucionário silencioso em curso através da concretização de uma velha utopia, passa pela não coincidência entre a utopia praticada e a utopia sonhada. Desta falta de coincidência brota a desilusão, o desengano, o descontentamento. Todo o projecto humano quando é concretizado está sujeito a este processo e a este efeito. Não esqueçamos que, como escreve, Lewis Mumford, a palavra «utopia» designa ou a completa loucura ou a esperança humana absoluta sonhos vãos de perfeição numa Terra do Nunca ou esforços racionais para remodelar o meio humano, as suas instituições ou até a sua própria natureza falível de maneira a enriquecer a vida da comunidade 7.

Se tentássemos como aliás já se tentou em versões modernas e à luz de outros ideários como as aldeias biotópicas, ou as concept-city s concretizar o projecto de sociedade ideal da ilha utópica de Thomas More, ou da Cidade do Sol de Tommasio Campanella, a experiência da desilusão aconteceria logo que se lançasse a primeira pedra para erguer essa nova sociedade. A utopia é irmã gémea da distopia.

5 Cf. RICOEUR, Paul, Ideologia e Utopia, Lisboa, Eds. 70, 1991, p. 23.

6

Cf. ECO, Umberto, Six promenades dans les bois du romain et d ailleurs, Paris, 1994; e ver Idem, Obsessão pelo fogo, Lisboa, Difel, 2009.

7 MUMFORD, Lewis, História das Utopias, Lisboa, Antígona, 2007, p. 9.

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8

Cf. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (coord.), Identidade Europeia e Multiculturalismo, Coimbra, Quarteto, 2002, pp. 9ss.

9 Cf. GIDDENS, Anthony, A Europa na Era Global, Lisboa, Presença, 2007. 10

Sobre a nova teoria da mitificação quadridimensional e a afirmação da ideia moderna de nacionalidade ver José Eduardo Franco, «O Quinto Imperio de Vieira e a Ideia de Portugal: A elaboração da quarta dimensão mítica da nacionalidade em Vieira», in José Cândido de Oliveira Martins (org.), Padre António Vieira Colóquio, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2009, pp. 187-208.

11 GEARY, Patrick, O Mito das Nações: A invenção do nacionalismo, Lisboa, Gradiva, 2008. Ver também BONIM, Pierre-Yves (dir.), Mondialisation: perspectives philophiques, Paris, L Harmattan, 2001. 12

Cf. WATSON, C. W., Multiculturalism, Buckingham-Philadelphia, Open University Press, 2000.

566

Hoje, pois, o problema profundo e verdadeiro da Europa resulta da crise de utopia. Não uma crise sem solução, mas uma crise necessária e que se repetirá sempre que se concretizar a revisão, a reformulação e a repotenciação da utopia inicial. Esta consciência (ou inconsciência) é fundamental para nunca desistirmos do esforço humano de utopizar. É isso que garante o progresso, na linha do velho mito iluminista, da humanidade. Os diversos analistas e pensadores do processo de implementação do projecto-utopia Europeia consubstanciado na actual União Europeia, tendem a afirmar que a consolidação deste projecto implica a necessidade de criar um «sentimento europeu» de pertença comum que passaria pelo que Edgar Morin chamou um «mercado comum cultural». Por outro lado também a necessidade de conferir à Europa uma teleologia comum com a criação da chamada «comunidade de destinos» que dê finalidade à sua deriva histórica dos cidadãos europeus reunidos em comunidade 8. De facto, o que subjaz a muita da ideografia europeia é intento de transpor e imprimir no projecto comunitário apanágios estruturantes das velhas nacionalidades 9. Muitos autores expressam clara ou subliminarmente a convicção de que, no fundo, a Europa só terá viabilidade a longo prazo se desenvolver e aplicar a si uma mitologia nacionalizante. Esta deveria consubstanciar-se no desenvolvimento de uma mitificação quadridimensional de sentido da comunidade nacional europeia: uma mitificação das origens, a narração épica de uma epopeia comum, a circunscrição de uma idade de ouro-idade referência, e a pregação de uma teleologia 10. Mas importa perguntar se é uma nova nação que se quer, ou melhor, uma super-nação com os complexos e os excessos históricos que marcaram a deriva da afirmação das nacionalidades, a qual passou por unificações e uniformização culturais e identitárias não poucas vezes violentas e esterilizadoras de experiências de existência humana em comunidades diversas? 11 Ou se, por outro lado, não estamos no momento histórico privilegiado para inventarmos uma realidade nova e evitar erros do passado que se tornariam crassos 12.


Nesta linha de reflexão são bem pertinentes as perguntas de Manuela Tavares Ribeiro: «Poder-se-á perguntar: não será possível existir uma integração política sem uma integração cultural?» Como bem considera a autora, esta questão permite equacionar de maneira diferente as «relações com o «exterior» da União, entre «nós» e os «outros», o que prova, de certa maneira, que a ideia de uma unidade cultural não tem muito sentido» 13. Com efeito, como lembra Lucian Boia, «as distâncias de ordem cultural e mental tornam-se muito mais consideráveis que as distâncias geográficas. A proximidade não exclui a alteridade e, por vezes, até reforça» 14. A citada especialista portuguesa em Estudos Europeus partilha de um outro ideário, que nós também consideramos mais viabilizante para a União Europeia, contra as tentações uniformistas e que, como sabemos por experiência, são sempre reincidentes. Este ideário é expresso através do conceito de «coabitação cultural», onde a Europa dos povos e das culturas se respeitem, mas também se recriem nas relações sinergéticas fomentadas entre si 15, numa partilha dialógica de perspectiva intercultural 16. De facto, não tem sentido e é uma «situação paradoxal» querer-se a globalização e uniformização cultural e ao mesmo tempo assistir-se a um processo de valorização das culturas e especificidades nacionais e regionais, como reacção ao processo oposto em curso 17. Com efeito, na linha do que defendia André Malraux, «o universo da cultura não é o mesmo que o universo da imortalidade; é sim o da metamorfose». O mesmo é dizer que o mundo da cultura é dinâmico e não estático. Assim temos a oportunidade única da Europa pensar-se e definir-se como um espaço, uma união onde as culturas se recriem: o espaço por excelência da criação cultural que faz evoluir verdadeiramente a humanidade. Assim a «Europa das Culturas» evitaria o regresso da tentação nacionalizante que poderia eriçar velhos antagonismos sem solução 18. Por esta via a Europa poderá aproximar-se um pouco mais daquela ideia, carregada de utopia, de ser, na formulação de alguns, um «laboratório do mundo», ou um laboratório de

13 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (coord.), op. cit., p. 10.

14

BOIA, Lucian, Pour une Histoire de l imaginaire, Paris, Les Belles Lettres, 1998, p. 123.

15

Cf. WOLTON, Dominique, «Presentation», in La cohabitation culturelle en Europe. Regards croisé des Quinzes de l Est et du Sud, Paris, CNRS Éditions, 1999, pp. 11-17. Ver também TOURAINE, Alain, Um Novo Paradigma. Para Compreender o Mundo de Hoje, Lisboa, Instituto Piajet, 2005. 16 Cf. VILLANOVA, Roselyne de; HILY, Marie Antoinette; VARO, Gabrielle, Construire l Interculure? De le notion aux pratiques, Paris, L Harmattan, 2001; e cf. ORTIZ, Renato, Mundialização e Cultura, São Paulo, Editora Brasiliense, 2006. 17 Cf. SANTOS, Victor Marques dos, Conhecimento e Mudança. Para uma Epistemologia da Globalização, Lisboa, ISCSP, 2002. 18

Cf. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (coord.), op. cit., p. 11.

567


19 Cf. FRANCO, José Eduardo e GOMES, Ana Cristina da Costa (coord.), Jardins do Mundo: Discursos e Práticas, Lisboa, Gradiva, 2008. Ver nesta obra o texto de LOURENÇO, Eduardo «Os Jardins como Cultura: Os Mares do Sul como utopia», pp. 21-25.

20

Cf. DIEZ DEL CORRAL, Luis, El rapto de Europa Uma interpretation histórica de nuestro tempo, Madrid, Alianza Editorial, 1974.

21

MARTINS, Guilherme d Oliveira, «Ponto de Encontro de Identidades», in GIL, Isabel Capeloa (coord.), Identidade europeia Identidades Europeias, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, p. 158.

568

humanidade, como sonhou Jeremy Rifkin, na linha de uma velha formulação ainda mais poética de olhar a Europa como «Jardim do Mundo» 19. Mas sem nunca esquecer da umbertiana definição que vê a utopia como «horizonte em movimento» que deve ser também o horizonte da criação cultural. Assim a ideia de laboratório seria um projecto à medida da Europa, onde a sua pequenez como continente poderia coadunar-se com a largueza da sua história, história esta que se interceptou e inter-relacionou em várias épocas e andamentos com as histórias dos diferentes povos e culturas do mundo 20. Pois como afirma G. Oliveira Martins, «a Europa é uma ideia, mais do que um continente». E para que não corra o risco de se tornar um museu de sonhos, importa atender à necessidade sim de criar um mito mobilizador de que fala Eduardo Lourenço e que Oliveira Martins assim concretiza: O mito mobilizador de que necessitamos na Europa contemporânea exige a compreensão da «comunidade de memória» que se repercuta numa legitimidade democrática complexa, que resulta da convergência entre os povos, de que decorre uma nova e inédita realidade supranacional. Identidade e identidades definem uma pluralidade de pertenças e uma integração aberta, em que temos de nos empenhar. Eis porque a realidade europeia tem de ser entendida como uma «comunidade plural de destino e valores 21.

Este sentimento europeu passará necessariamente por imaginarmos, pensarmos e sentirmos todos (os europeus), no fundo, toda a história como nossa e não como a dos franceses, dos ingleses, dos alemãs, dos espanhóis, dos portugueses, etc. Quando fizermos a História da Europa nossa e sentirmos que estamos a participar juntos na construção do seu destino, então teremos uma Europa sentida pelos europeus. Mas para isso é preciso tempo e uma política bem conduzida nesse caminho.


A Economia e o apóstolo Paulo - I

Pedro McDade S.J. *

Introdução Vivemos numa época marcada pelo progresso da ciência e da técnica, mas ao mesmo tempo cheia de desejos de regressar às fontes e raízes da nossa identidade histórica. Parece que há algo que se nos escapa e que gostaríamos de voltar a recuperar. O presente estudo insere-se na dinâmica de investigação que procura reimaginar as origens do cristianismo primitivo, reconstruindo algo que aconteceu há dois milénios: um período histórico de significação especial para os cristãos (e não só para eles). Trata-se, pois, de fazer uma grande viagem pelo passado não como um exercício estéril ou puramente académico, mas como algo que nos pode ajudar a perceber melhor qual deve ser o compromisso cristão na sociedade actual. Reimaginar as origens do cristianismo não pode ser outra coisa senão fazer uma viagem de «ida e volta». A recente celebração do Ano Paulino foi uma oportunidade única para recordar que S. Paulo pode ajudar-nos nesse desejo de reimaginar as origens. Assim o exprime J. Gnilka no início do seu livro sobre a vida e obra deste grande Apóstolo: Ninguém melhor do que Paulo pode oferecer-nos uma visão autêntica do cristianismo mais primitivo. Nas suas cartas percebemos a voz imediata de um apóstolo, apesar de ter sido chamado na segunda geração por Cristo exaltado e não pertencesse ao grupo original dos Doze. As suas cartas permitem-nos ter uma visão das primeiras comunidades formadas por cristãos vindos do mundo * Licenciado em Economia. Estudante de Teologia na Universidade Comillas, Madrid. (E-mail: pedromcdade@jesuits.net).

Brotéria 169 (2009) 569-000

569


1

GNILKA, Joachim, Pablo de Tarso: Apóstol y testigo, Barcelona, Herder, 1998, p. 9.

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pagão; permitem-nos captar a sua estrutura e organização, os seus problemas e carências.1

Este estudo parte da seguinte inquietação: numa sociedade em que é evidente o peso da economia em várias dimensões da vida (basta recordar a actual crise económica), poderá a Bíblia oferecer-nos pistas de orientação para estes tempos de incerteza? A recente e oportuna publicação da encíclica social de Bento XVI, «Caritas in Veritate» (A caridade na verdade) no passado 29 Junho, dia de encerramento do Ano Paulino é também um excelente motivo para nos perguntarmos: será possível fazer uma leitura económica da Bíblia e, em particular, das Cartas de Paulo? Por leitura económica entendemos a tentativa de identificar as passagens mais relevantes em que Paulo trata de temas económicos (como a pobreza/riqueza, o tipo de atitude a ter para com o dinheiro e os bens materiais) e, a partir daí, reconstruir uma moral económica. Mas uma reconstrução fiel da moral económica paulina não pode começar por uma aproximação directa ao texto, porque correríamos o risco de ler o texto desde as nossas categorias culturais, supondo que o mundo económico do Novo Testamento funcionava mais ou menos de modo similar ao nosso quando a verdade é que há grandes diferenças de fundo. Por isso, há que fazer um trabalho prévio à leitura económica de Paulo. Ou seja, há que começar por estudar as condições de vida no mundo mediterrâneo do séc. I, perceber como funcionavam as relações de produção e distribuição, quais eram as classes ou estratos sociais. Primeiro há que reconstruir o mundo social e económico no tempo de Paulo (parte I deste trabalho), para depois ler com outros olhos os textos do Apóstolo e finalmente reconstruir a sua moral económica (parte II). Na parte I, usaremos um método de descrição ou análise socio-histórica, partindo de um nível mais geral até chegar ao particular: apresentaremos a situação do mundo mediterrâneo em geral; depois, abordaremos a situação do cristianismo primitivo e das comunidades paulinas no contexto do Império Romano; e veremos a condição social do próprio Paulo.


I. Contexto histórico e social 1. O mundo mediterrâneo do século I Contexto geral O mundo dos homens e mulheres de que nos fala o Novo Testamento é o mundo mediterrâneo do séc. I. É neste marco que se devem entender as afirmações directas ou indirectas do NT e em concreto do apóstolo Paulo sobre os aspectos económicos da vida social. Que tipo de sociedade existia então? Para Stegemann 2, as várias sociedades do Império Romano (da Hispânia à Judeia) estavam ligadas por uma multiplicidade de elementos culturais, sociais e económicos comuns. Apesar das particularidades de cada região, «as condições económicas e sociais reinantes nas cidades e nas zonas rurais do mundo greco-romano, e também na terra de Israel, eram estruturalmente semelhantes. É possível classificá-las, de modo global, num tipo de sociedade comum: o das sociedades agrícolas desenvolvidas [avançadas]» 3. Nestas sociedades, a actividade económica central era a agricultura e a imensa maioria da população vivia no campo. Portanto, a produção estava centrada no cultivo da terra; e a distribuição dos bens da terra estava submetida ao controlo de um grupo reduzido. Assim sendo, grande parte da população (dedicada à agricultura) vivia num regime de economia de subsistência: as famílias produziam normalmente tudo o que necessitavam para cobrir as suas necessidades de alimento, vestuário e ferramentas de trabalho. Faltavam sobretudo realidades macroeconómicas, próprias de uma economia de massa (como o mercado dos produtos e do trabalho), e mecanismos de regulação (como o controlo e a distribuição de grandes quantidades de dinheiro por parte das autoridades estatais, por exemplo). Além disso, o atraso tecnológico [comparado com a economia actual] era um obstáculo à produtividade no âmbito agrícola, assim como nos sectores comerciais e artesanais.4

2

Cf. STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang, Historia social del cristianismo primitivo: los inicios en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo, Estella (Navarra), Verbo Divino, 2001. Por razões de conveniência, referir-me-ei sempre a estes dois autores (irmãos) como «Stegemann» no singular.

3 Ibidem, pp. 12-13. Se nos fixarmos, por exemplo, nas modernas sociedades industriais ocidentais, podemos dizer algo similar: apesar das diferenças que encontramos entre elas (como as que existem entre os Estados Unidos, a Alemanha, Portugal e Japão), têm entre si muitíssimos aspectos estruturais comuns. Historicamente, as actuais sociedades industriais distinguem-se das sociedades agrícolas sobretudo a partir da revolução industrial (desde meados do séc. XVIII).

4

Ibidem, p. 24.

571


5 Gradualmente, nas cidades: 1) Dá-se uma crescente divisão e especialização do trabalho. Multiplicaram-se, por exemplo, as profissões artesanais (apesar da pequena dimensão destas manufacturas); 2) Surge toda uma multiplicidade de ofícios: funcionários, sacerdotes, estudiosos, escribas, comerciantes, soldados, artesãos, operários, servos e mendigos; 3) Surgem os mercados e dá-se um aumento do comércio, através do qual circulavam os excedentes agrícolas do campo para a cidade, por via terrestre ou marítima. 6

Ibidem, p. 20.

7

Ibidem, p. 26.

8 Cf. Ibidem, p. 27. Mais adiante, teremos presente que as comunidades com as quais Paulo manteve contacto estão situadas, não no campo, mas nas cidades.

9

Cf. Ibidem, pp. 25-26.

10

Cf. Ibidem, pp. 35-36; 77-79.

572

Apenas uns 5-10% da população do Império Romano vivia nas cidades, mas era aí onde se concentrava a riqueza e o poder político. A importância económica da cidade 5 dava-se sobretudo nas áreas artesanal e comercial, e também como consumidora dos produtos do campo. Além disso, as cidades tinham enorme importância socio-política, pois aí viviam as elites, «que dominavam o campo e a cidade, como proprietárias da maior parte dos bens e das terras, ou como possuidoras do poder do controlo social» 6. Esta elite restrita «vivia das suas terras ou dos rendimentos dos cargos políticos» 7. Assim, a produção agrícola (e pré-industrial) estava submetida a um sistema de dominação política e social que, no decurso da redistribuição, concentrava a riqueza da sociedade nas mãos de uma elite bastante restrita. A descoberta do dinheiro e da escrita foi um elemento decisivo para melhorar o sistema económico das sociedades agrícolas; mas pelo facto de serem utilizados somente nas cidades ou por uma minoria urbana, levaram a aumentar a assimetria existente entre a cidade e o campo 8. Do exposto, vemos que a economia estava dividida em 2 grandes sectores: i) A economia agrícola das zonas rurais, com condições infra-humanas (agricultores e escravos, postos pela classe dirigente ao serviço da economia urbana; escravos das casas privadas; mendigos, prostitutas e pessoas na miséria); ii) E a economia comercial e pré-industrial (esta última, ainda incipiente e muitas vezes ausente) nas cidades. Logo, era uma economia marcada por fortes assimetrias, em que o peso dos impostos, das doações religiosas e políticas e das rendas, crescia continuamente e sempre a favor do estrato superior. Por contraposição, o estrato inferior (com o problema das dívidas) muitas vezes só podia assegurar a sua própria subsistência 9. Sistematizando, estes são os principais aspectos da economia antiga no Império Romano 10: 1. A agricultura ocupava um posto preponderante. 2. Manufacturas de pequena dimensão, de escala fami-


liar (incluindo os escravos) produziam objectos de amplo consumo (louça, tijolos, têxtil, armas). 3. A pequena indústria e o comércio não estavam orientados para o mercado, mas para satisfazer as próprias necessidades 11. 4. Não havia mercados no sentido moderno do termo, mas sim mercados locais onde se vendiam os excedentes mercados estes que foram crescendo gradualmente. 5. Em geral, as cidades estavam orientadas ao consumo e não à produção. 6. Ainda não estava estruturada a economia monetária (economia de troca indirecta), em que o dinheiro serve para pagar bens e serviços, bem como as taxas, impostos e multas; esta coexistia com a economia de troca directa de bens e serviços (pagamento em espécie ou géneros), que aliás, estava muito mais difundida que a monetária. 7. A imensa maioria da população era rural, trabalhava na agricultura e vivia com um baixo nível de subsistência ou até mesmo abaixo do mínimo indispensável para a subsistência. Não tinha acesso aos excedentes, e se os havia, eram tomados pelos estratos superiores (os grandes proprietários de terras). Quanto à população urbana, a maior parte também vivia numas condições de grande pobreza 12. Virando agora a nossa atenção para os aspectos institucionais, pode-se dizer que na Antiguidade a instituição social mais importante era a casa (oikos). A economia da casa era sobretudo uma economia de subsistência 13 no interior da família, em que os membros estavam inteiramente absorvidos pela produção das coisas necessárias para o sustento (incluídas as ferramentas e a roupa), o que limitava o nascimento de grandes mercados 14. Mas também não nos podemos esquecer do papel da polis, sobretudo no caso dos habitantes das cidades. Portanto, na Antiguidade, a vida comunitária, as relações económicas e a vivência religiosa moviam-se entre estas duas esferas: a) A esfera da politeia, ou seja, a vida pública da comunidade da polis, à qual os habitantes da cidade pertenciam de maneira distinta no plano jurídico;

11

O transporte por terra era custoso e o transporte marítimo, mais económico, só era possível nos lugares com fácil acesso aos portos.

12

Provavelmente, as condições de vida nos centros urbanos da parte ocidental do Império Romano, sobretudo em Roma (abastecida regularmente de cereais procedentes do Egipto e do Norte de África) eram, de certo modo, toleráveis; mas nas partes orientais do Império, o empobrecimento de amplos estratos da população foi crescendo inclusive nas cidades.

13

Lembremos que o factor decisivo a nível económico, a terra (que estava essencialmente nas mãos do estrato superior), permitia a acumulação da riqueza só para o grupo reduzido de pessoas da elite.

14

Cf. Ibidem, p. 34.

573


15

Cf. Ibidem, p. 388.

b) E a esfera da oikonomia, da casa (oikos), à qual se pertencia por nascimento ou por outras vias (como a escravatura). Sendo assim, a vida económica estava inserida ( embedded ) nestas duas esferas sociais. Não existia qualquer tipo de economia pura, ou seja, uma actividade económica independente da oikos ou da polis. A economia estava, pois, constitutivamente ligada 15: ao âmbito da casa e da família, sob a forma de reciprocidade; e ao âmbito da politeia, sob a forma de redistribuição e de troca no mercado. Também o fenómeno da igreja (ekklesia) como comunidade urbana crente em Cristo se entendia no marco da oikos e da polis. Não havia grupos puramente religiosos, nem se pensava em termos de separação entre igreja e estado ou entre igreja e família.

Estratificação da sociedade

16

Cf. Ibidem, pp. 101-108; 395. Mais adiante, veremos como se pode aplicar este modelo de dois estratos às comunidades paulinas. Neste trabalho, somos conscientes de que os modelos e certas categorias da sociologia e da antropologia cultural são apenas hipóteses e têm as suas limitações. Contudo, podem ajudar-nos a compreender melhor a realidade, sem pretender reduzi-la.

Para completar a apresentação da sociedade no mundo mediterrâneo do século I, Stegemann propõe um modelo de estratificação social distinguindo basicamente dois estratos sociais 16: 1 A elite (estrato superior), que inclui três grupos: a) Membros das ordines : a aristocracia imperial romana (casa imperial, senadores, cavaleiros), a aristocracia provincial e a aristocracia urbana (decuriões); b) Os ricos que não pertencem à ordo (ou seja, sem funções políticas ou decurionais); c) Pessoas do séquito ( retainers ). Inclui homens livres, libertos, escravos com altas funções administrativas, culturais e militares. De certo modo, são um grupo intermédio entre a elite e a não-elite. 2 E a não-elite (estrato inferior), formado por dois grupos: a) As pessoas relativamente pobres ou relativamente acomodadas acima do mínimo vital ( penetes );

574


b) E as pessoas absolutamente pobres ( ptochoi ), que viviam no limite do mínimo vital ou abaixo do mesmo. Segundo este modelo, a população do Império distribuía-se deste modo: a imensa maioria «pertencia ao estrato inferior e a maior parte da mesma vivia no campo. Globalmente falando, o estrato inferior urbano vivia melhor que a população rural» 17; por seu turno, a classe dirigente constituía apenas cerca de 1-2% da população 18.

17

Ibidem, p. 125.

18

Cf. Ibidem, p. 28.

Reflexão económica na Antiguidade Depois de ter apresentado a situação social e económica na Antiguidade, cabe perguntar-se sobre o tipo de reflexão que os autores da época fizeram sobre a economia 19. Isso é importante para contextualizar o pensamento de Paulo sobre temas económicos (a ver na parte II deste trabalho). Uma primeira consideração é que o termo actual «economia» deriva da antiga palavra grega oikonomia. Mas atenção, os sentidos são distintos, porque: a) economia no sentido actual das ciências económicas, é o estudo da utilização de factores produtivos buscando maximizar o lucro ou minimizar o custo, num contexto de escassez de recursos; b) oikonomia na Antiguidade designava o governo (administração ou organização) da casa (oikos), o que implicava sem dúvida um aspecto económico, ainda que só na medida em que o governo da casa incluía também tarefas económicas. «Acima de tudo, à oikonomia pertenciam coisas que nós hoje jamais consideraríamos de natureza económica. Incluía, com efeito, os direitos e a autoridade que o senhor da casa ou cabeça de família (oikodespotes; paterfamilias) tinha sobre o seu património , ou seja, sobre a sua mulher e filhos, os seus netos e escravos, assim como sobre os seus bens materiais. Por conseguinte, os antigos manuais que dispensavam conselhos sobre o governo da casa não se interes-

19

Pode-se consultar a obra clássica de S CHUMPETER , Joseph A., History of Econo mic Analysis, London & New York, Routledge, 1986 (orig. 1954), pp. 48-69.

575


20

STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W., op. cit., p. 30.

21

Ibidem, p. 33. A economia moderna pretende, de facto, ser um mundo autónomo, com as suas próprias leis (de oferta e procura) e sobretudo motivada pelo objectivo de obter lucro. Este processo de autonomização levou, dentro da própria economia, à distinção recente entre a economia real (mercado de bens e serviços) e a economia financeira.

22

Um termo típico da escola sociológica do funcionalismo estrutural, ligada a Talcott Parsons (1902-1979).

savam somente por questões económicas» 20, mas também por questões éticas (o comportamento que o marido deve ter face à mulher; as virtudes que o cabeça de família deveria possuir). Note-se que a ciência económica não surgiu até ao século XVIII (com Adam Smith). Até então, os problemas económicos não eram considerados como uma matéria em si mesmos, nem tratados de uma maneira particular. Isto significa que, ao abordarmos a economia na Antiguidade, haveremos de operar com uma concepção «etnológica» da economia: a actividade económica não só se destina à satisfação das necessidades, mas está antes subordinada à vivência de valores culturais tradicionais; não está orientada por uma estrita racionalidade económica (que mede ganhos e perdas, entre várias decisões possíveis), mas por outro tipo de valores. De acordo com Stegemann, O facto das actividades económicas estarem «inseridas» (embedded) nas características da cidade enquanto tal, constitui para Polanyi o elemento típico da economia antiga: o processo económico enquanto tal é movido por factores não económicos, como os vínculos parentais, o matrimónio, os escalões etários, as sociedades secretas, etc. Distingue-se portanto da economia moderna, que Polanyi considera «solta» ou «desvinculada» (disembedded) da sociedade e constitui uma esfera independente.21

Portanto, nas línguas antigas não existe um termo equivalente ao que nós chamamos hoje «economia». Isso explica que a Antiguidade não tenha desenvolvido qualquer teoria geral sobre a economia. Para um trabalho deste tipo, não dispunha de um determinado tipo de conceitos, nem dos seus pressupostos. Apesar de haver várias actividades económicas, os homens daquele tempo não consideravam-nas na sua mente como algo que forma uma unidade, uma subfunção diferenciada da sociedade 22. Contudo, eles foram capazes de distinguir sectores particulares na economia, como, por exemplo, a produção de bens (techné), a satisfação das necessidades (chreia), as trocas pagas com dinheiro (nomisma) e

576


através do mercado (agorá), a distinção entre a economia doméstica (oikos) e a economia pública (politeia). No entanto, a reflexão sobre todas estas necessidades e actividades não dava lugar a uma teoria da economia, mas situava-se antes no âmbito político, filosófico e ético.23

Já atrás referimos que a passagem da sociedade agrícola à sociedade industrial só se deu a partir da revolução industrial. Basicamente, isso significa que a estrutura económica das sociedades antigas tem uma forma distinta da das modernas (orientadas para o mercado). Por isso não se pode definir a economia na Antiguidade como economia política (no sentido da moderna economia de mercado) 24. Conclui-se, pois, que a aplicação das categorias da ciência económica moderna para estudar as economias antigas ou para interpretar o que um autor da Antiguidade (como Paulo) pensa sobre questões económicas é um exercício que tem as suas limitações.

23

Ibidem, p. 30.

24

Ibidem, p. 34. Neste ponto, Stegemann segue a tese do economista da escola histórica alemã, Karl W. Bücher (1847-1930).

2. Cristianismo primitivo e comunidades paulinas Continuando a nossa reflexão, as comunidades do cristianismo primitivo inserem-se no contexto das sociedades agrícolas avançadas (ou desenvolvidas) próprias do mundo mediterrâneo do séc. I. Atrás referimos que estas sociedades partilham entre si diversos aspectos comuns a nível cultural, social e económico. Mas, quando pretendemos aprofundar na análise do cristianismo primitivo há que matizar um pouco esta ideia. Na verdade, devido a certas particularidades regionais referentes à condição económica, socio-política e religiosa do judaísmo em Israel, convém fazer uma distinção metodológica essencial 25 entre: 1) Os seguidores de Jesus na terra de Israel (formavam parte de uma sociedade maioritariamente hebraica); 2) E as comunidades de crentes em Cristo fora de Israel, nas áreas urbanas do Império Romano (de uma sociedade maioritariamente pagã) que incluem entre outras, as comunidades paulinas.

25

Cf. Ibidem, p. 14.

577


Israel e Jerusalém

26

Isto ajudar-nos-á a perceber o tipo de relação que Paulo tentou estabelecer, no final do seu ministério apostólico, entre as suas comunidades e a dos «santos» de Jerusalém, com o grande projecto da colecta (2 Cor 8-9; Rom 15, 25-28.30-32).

27

Cf. Ibidem, p. 131. A quantidade de 200 denários era o que um jornaleiro podia ganhar num ano, trabalhando regularmente e tendo em conta dias de festa e repouso. Lembremos a parábola dos trabalhadores da vinha: o proprietário «ajustou com eles um denário por dia» (Mt 20,2).

28

Este tipo de idealismo comunitário encontra um certo paralelismo na antiga apresentação dos essénios em Qumran (junto ao Mar Morto).

29

Cf. Ibidem, p. 300.

30

Ibidem, p. 300.

31

Consultar: Rom 15,25-29; Gal 2,10; cf. 1 Cor 16,1-4; 2 Cor 8-9; Act 11,29.

32

Cf. Ibidem, p. 300.

Antes de passar ao estudo das comunidades paulinas, parece-nos oportuno apresentar de forma breve a situação económico-social em Israel e em Jerusalém 26. Em Israel, segundo certos cálculos e tendo em conta as taxas e impostos, cada habitante dispunha de uns 40 denários/ano para viver. Este dado absolutamente realista, mostra claramente que um número extremamente elevado de pessoas vivia abaixo do limite da pobreza (200 denários) 27. Segundo os Actos dos Apóstolos, a comunidade primitiva de Jerusalém vivia a comunhão de bens, atendendo através dela às necessidades de todos (Act 2,44-47; 4,32-37). Hoje sabemos que se trata seguramente, de uma idealização (de S. Lucas) dos começos da igreja, que remonta às utopias sociais judaicas 28 e gregas, com uma intenção parenética (exortativa). Apesar disso, também é verdade que é difícil pensar que a vida comunitária da Ekklesia nascente não se caracterizasse, além da partilha religiosa e social, por uma certa partilha económica 29. De qualquer modo, «é um facto decisivo que a pobreza constituía claramente um problema essencial para a Ekklesia de Jerusalém» 30. A prová-lo estão vários dados: 1) As diferenças entre judaico-cristãos e cristãos-helenistas , recordadas por Lucas a propósito das ajudas às viúvas (Act 6,1); 2) A intensa actividade de colectas 31 organizadas por Paulo na diáspora para os «miseráveis (ptochoi) entre os santos de Jerusalém» (Rom 15,26); 3) A grande fome recordada em Act 11,28s e o ano sabático que se lhe seguiu deveria ter agravado ainda mais a situação dos habitantes de Jerusalém 32.

As comunidades paulinas Vejamos agora a situação das comunidades cristãs com as quais Paulo se relacionou, fundadas ou não por ele. Geograficamente centrar-nos-emos na Ásia Menor, Grécia e Roma; e cronologicamente interessa-nos o período da missão de Paulo, 578


que durou aproximadamente entre 15-20 anos e que se pode situar num intervalo entre o ano 37 e 68 ou seja, anterior à queda de Jerusalém (70 d.C.) 33. Todos os investigadores actuais (Stegemann, Meeks, Theissen e outros) estão de acordo nesta tese: o cristianismo, depois dos seus começos na Palestina, foi sobretudo um fenómeno urbano nas sociedades mediterrâneas do Império Romano 34. Graças à pax romana e ao apoio imperial da urbanização, veio um período de grande prosperidade para as cidades. «Todas as cidades da Ásia onde nos consta a existência de comunidades paulinas participavam dessa prosperidade geral; todas elas eram centros de comércio» 35. Como eram então as cidades das comunidades paulinas? Pode-se dizer que: Quanto ao tamanho, variam desde as cidades mais pequenas como Filipos, até às mais extensas, como Éfeso e Corinto, mas todas elas são cidades em termos de governo, de cultura e de número dos seus habitantes. Duas delas, Filipos e Corinto, são colónias romanas, mas de tipo muito diferente: a primeira, um centro prioritariamente agrícola; a segunda um centro de artesanato e comércio. ( ) Todas, excepto Filipos, eram centros de artesanato; e há razões para pensar que, além dos campesinos italianos, havia em Filipos muitos estrangeiros que viviam do comércio ou do artesanato. Todas elas tinham bons acessos por mar ou por terra, ou por ambas as vias; também as cidades da Galácia setentrional comunicavam entre si mediante boas calçadas romanas com o resto da Ásia Menor 36.

33

Os irmãos Stegemann optam por dividir o estudo social das comunidades cristãs urbanas em 2 períodos: antes e depois de 70 d.C. Cf. Ibidem, pp. 391-426 (cap. 10).

34

Cf. Ibidem, p. 361.

35

MEEKS, Wayne A., Los primeros cristianos urbanos: el mundo social del apóstol Pablo, Salamanca, Sígueme, 1988, p. 80.

36

Ibidem, p. 91.

A nível do interior de uma comunidade cristã urbana, constata-se que a sua célula foram as casas (comunidades domésticas). De um modo geral, a história do cristianismo numa cidade começava com a conversão de uma casa. Por isso, o apóstolo Paulo apresenta o seu ministério de pregação como oikonomia, isto é, como a tarefa do governo e administração de uma casa (1 Cor 9,17). Em 1 Cor 4,1s, para descrever a sua actividade missionária, usa outros termos derivados do âmbito social da casa: define-se, com efeito, como servidor (hyperetes) de Cristo e administrador da casa (oikonomos) dos mistérios de Deus.37

37

STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W., op. cit., p. 376.

579


38

Cf. Ibidem, p. 375.

39

Para alguns autores (Ebertz, Mödritzer), uma estratégia foi a autoestigmatização, mediante a qual a pessoa adere ostensivamente ao seu papel de marginalizada, ainda que não tenha possibilidade alguma de ser reconhecida neste. Cf. THEISSEN, Gerd, «Exégesis socio-histórica desde los comienzos de la investigación histórico-crítica hasta la antropología cultural», in Carmen Bernabé, Carlos Gil (eds.), Reimaginando los orígenes del cristianismo, Estella (Navarra), Verbo Divino, 2008, p. 74. 40

Ibidem, p. 74.

41

Ibidem, p. 74.

42 Cf. STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W., op. cit., p. 379.

580

Para termos uma ideia da dimensão das comunidades, em Corinto havia provavelmente, uma rede de 4 ou 5 comunidades domésticas (cf. 1 Cor 1,12s; Rom 16,23). Estima-se que cada comunidade teria entre 30 a 50 membros 38. Como estavam os cristãos integrados na sociedade do seu tempo? No contexto do Império Romano do séc. I, os cristãos eram uma minoria, um grupo marginal e insignificante, em tamanho (número de membros) e em quotas de poder/ influência política, social e económica. Com as convicções que tinham, como religião nascente e grupo marginal, os cristãos discrepavam do seu ambiente. Por isso, Stegemann usa como chave de interpretação sociológica do cristianismo primitivo a tese do comportamento desviado para a partir daí, tentar compreender de que modo se configurou esse desvio (marginalização) 39. Mas, será que se pode dizer que os cristãos eram uma seita? Aqui convém distinguir, no conjunto das várias comunidades religiosas daquele tempo, entre a seita e a igreja: a seita tem uma tensão mais forte face ao mundo e uma maior homogeneidade interna, enquanto que a igreja tem uma relação flexível com o mundo e uma pluralidade interna. Segundo Theissen, o cristianismo primitivo não deve ser entendido como uma seita (do judaísmo ou do mundo antigo), mas como igreja (ekklesia), porque «desde muito cedo admitiu-se a pluralidade interna e deu-se importância ao carácter mediador do cristianismo para com os de fora» 40. Seguidamente, indicamos alguns elementos da cultura mediterrânea que supostamente influenciaram o modo de vida das comunidades paulinas: 1. As sociedades antigas funcionavam com redes flexíveis de relações, que «jogaram um papel importante na origem e extensão do cristianismo primitivo. A missão e o acolhimento das comunidades primitivas pressupõem certas estruturas de redes suprarregionais» 41. Os fiéis em Cristo comprometidos com a missão (e provavelmente não só eles) encontravam nas casas dos companheiros de fé a hospitalidade e, em caso necessário, também apoio económico (cf. 2 Cor 8,9; 1 Cor 16,2) 42.


2. As relações sociais estavam determinadas pela relação patrão-cliente ( patron-client ), marcada pela dependência recíproca (o patrão oferecia protecção, e o cliente em troca oferecia uma renda ou parte dos frutos da terra) e pela desigualdade, a favor do senhor (patrão) 43. 3. O comportamento social seguia na Antiguidade (muito mais que na actualidade) um código de vergonha e honra. De vergonha e não de culpa, o que significa que o comportamento de cada um é controlado desde fora: «o prestígio e a importância no âmbito público possuem mais valor do que a sintonia consigo mesmo» 44. 4. O sistema socio-económico estava marcado pela percepção de bens limitados: a consciência de uma quantidade limitada de bens ( limited goods ) disponíveis numa determinada estrutura social; e a correspondente aparição da inveja social 45.

Estratificação social das comunidades paulinas Na investigação mais antiga sobre a composição social do cristianismo primitivo, situada entre finais do séc. XIX e inícios do séc. XX (Deissman, Harnack), reinava um amplo consenso sobre a tese de que a maior parte dos crentes em Cristo procedia do estrato social inferior. Mas os estudos mais recentes (desde 1960) foram chegando a outro tipo de conclusões, defendendo que nas comunidades primitivas havia homens e mulheres pertencentes a todos os estratos da população e inclusive algumas delas provinham da elite urbana 46. Assim, segundo Meeks e apoiando a nova visão de consenso de Malherbe a composição social das comunidades paulinas reflectia, num certo sentido, um «corte transversal da sociedade urbana» 47. Havia indivíduos de diversos níveis sociais. Só os extremos superior e inferior da escala social greco-latina não estavam representados na comunidade. Não havia membros das ordines, nem aristocratas terratenentes, nem senadores, equites ou decuriões. Mas também não havia pessoas na miséria. Portanto, os níveis intermédios estavam bem representa-

43

Cf. Theissen, op. cit., p. 74. A relação patrão-cliente manifesta-se, por exemplo, na dependência dos plebeus face aos patrícios no contexto do Império Romano. Ganhará outra visibilidade com o feudalismo na Idade Média, assente nas relações entre o senhor feudal e o servo (vassalo).

44

Ibidem, pp. 74-75. Por esta razão tem-se postulado a existência entre os antigos de um especial tipo de personalidade diádica (B. J. Malina).

45

Isto ocorria na medida em que o vizinho, relativamente mais rico, possuía uma quantidade maior, fazendo com que faltasse e não fosse já acessível, precisamente por causa da sua quantidade limitada, à pessoa relativamente mais pobre. Cf. STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W., op. cit., p. 56.

46

Cf. Ibidem, pp. 391-393.

47

MEEKS, op. cit., p. 129.

581


48

Cf. Ibidem, p. 128.

49

Possivelmente escritas por esta ordem: 1 Tes, Gal, Flp, Flm, 1-2 Cor, Rom. As cartas deutero-paulinas (2 Tes, Col, Ef) e as pastorais (Tit, 1-2 Tim) são de escola ou tradição paulina , mas têm certos matizes que nem sempre representam o pensamento original do Apóstolo.

50

No que se segue, cf. STEE. W.; STEGEMANN, W., op. cit., pp. 397-403; p. 410.

GEMANN,

51

Seriam os casos de Estéfanes e a sua casa/família em Corinto (1 Cor 1,16; 16, 15.17), Filémon em Colossos (Flm 2), Priscila e Áquila (Rom 16,3; cf. Act 18,2.18.26) ou Gaio (Rom 16,23; 1 Cor 1,14). Ao contrário de Meeks, Stegemann defende que o casal judeu Priscila e Áquila (artesãos) não pertencia ao estrato superior.

52

Cf. Ibidem, p. 402.

582

dos: o artesão livre, o pequeno comerciante; inclusive alguns deles possuíam casas e escravos, tinham possibilidades de viajar, exerciam o papel de protectores, ofereciam alojamento e lugares de reunião ou mostravam outros sinais de riqueza 48. Mas, para Stegemann, esta tese de Meeks tem algo de contraditório, pois afirma a existência de um corte transversal da sociedade e ao mesmo tempo admite que certos grupos sociais não estão representados nas comunidades. Por isso, partindo do modelo de dois estratos sociais (elite e não-elite) que já vimos anteriormente e da análise atenta dos dados das 7 cartas autênticas 49 de Paulo, Stegemann propõe várias teses sobre a composição social das comunidades paulinas: 50 1. Não houve nenhum membro da ordo do estrato superior. 2. Não há testemunhos claros sobre membros ricos, embora essa hipótese não se possa excluir totalmente. Para Meeks, alguns artesãos livres e pequenos comerciantes, em virtude da possessão de uma casa ou de escravos, ou da possibilidade de empreender viagens, podiam ser qualificados de «ricos» 51. Mas Stegemann contrapõe que o critério usado por Meeks não prova necessariamente que uma pessoa fosse rica. Por isso, sem pretender negar a tese de Meeks, nem afirmá-la com certeza, Stegemann prefere falar destas pessoas como patrões (protectores) das comunidades. A essas haveria que acrescentar a mulher Febe, que foi prostatis para Paulo e muitos crentes em Cristo (Rom 16,1s). O grego prostatis poderia equivaler ao latim patrona e expressar, portanto, um certo número de ajudas ou protecção (de natureza económica, social ou jurídica) proporcionadas por Febe aos membros da comunidade de Cêncreas. Assim, é provável que alguns membros das comunidades paulinas tenham sido relativamente acomodados e ricos; mas não tinham, certamente, os rasgos decisivos da pertença ao grupo dos ricos do estrato superior (nobreza de sangue, poder político, indícios claros da possessão de grandes riquezas) 52. 3. Podem-se identificar alguns membros das comunidades como pessoas do séquito do estrato superior (retainers),


embora nem sempre seja claro em que âmbito deste grupo se situam. Alguns membros do séquito mencionados por Paulo são: a) Erasto de Corinto (Rom 16,23), apresentado como vereador, tesoureiro ou «administrador da cidade» (oikonomos tes poleos) só muito teoricamente se poderia admitir que pertence à ordo. Por isso, o mais provável é que pertence ao séquito; b) Os crentes em Cristo da casa/família de César, que em Flp 4,22 se unem às saudações de Paulo; c) E alguns crentes em Cristo a quem Paulo envia saudações em Rom 16,10s: os membros da casa de Aristóbulo (um possível membro da dinastia herodiana) e os da casa de Narciso. 4. A imensa maioria das comunidades pertencia, seguramente, ao estrato inferior (não-elite), mais concretamente, aos relativamente pobres (acima do mínimo vital). Muitos eram artesãos (como Priscila e Áquila) ou pequenos comerciantes. A grande maioria dos membros da comunidade de Tessalónica estava ocupada no sector artesanal (cf. 1 Tes 4,11s). Também havia nas comunidades muitos escravos e libertos. 5. Curiosamente, não há nenhum representante do grupo social de pessoas que viviam na pobreza absoluta (abaixo do mínimo vital). É verdade que Paulo fala da pobreza extrema (ptocheia) das comunidades de Macedónia (2 Cor 8,2), mas fá-lo por motivos retóricos, para apresentar aos coríntios um exemplo grandioso de generosidade e de participação na colecta a favor dos cristãos de Jerusalém. Note-se que Paulo recebeu, repetidas vezes, ajudas económicas dos macedónios (Flp 4,11ss; 2 Cor 11,9). Portanto, os macedónios não podiam viver numa situação de pobreza absoluta. «Só o próprio apóstolo e a comunidade primitiva de Jerusalém estão caracterizados nas Cartas de Paulo com termos que expressam a pobreza e, além disso, somente se fala da concessão de ajudas económicas para eles» 53.

53

Ibidem, p. 403.

3. Condição social do apóstolo Paulo Depois de termos visto a situação socio-económica das comunidades paulinas, cabe perguntar-se pela condição do próprio 583


Paulo ou dito de um modo técnico, do Paulo histórico. Adiantando um pouco a conclusão, diremos que corresponde à situação da imensa maioria da sua clientela : os relativamente pobres ( penetes ). Neste tema há que ser consciente de que o NT apresenta duas imagens de Paulo bem distintas: a dos Actos e a que se reflecte nas suas Cartas autênticas. De acordo com os Actos dos Apóstolos, Paulo tem vários rasgos típicos dos membros do estrato superior:

54

Ibidem, pp. 406-7.

55

Ibidem, p. 409.

56

Ibidem, p. 407.

584

Em virtude da sua origem familiar e da condição jurídica de cidadão de Tarso e romano, a ela ligada, Paulo descende da elite local de Tarso (abaixo da classe decurional) e, como executor das ordens do sumo sacerdote, possui em Jerusalém uma elevada condição social na qualidade de pessoa do séquito (retainers) da aristocracia sacerdotal local. Está claro de que dispõe de notáveis meios económicos para sustentar o seu nível de vida inclusive como propagandista da comunidade messiânica em Cristo. A esta condição elitista correspondem a sua formação judaica e grega, assim como as suas relações com pessoas de primeiro plano da elite judaica, romana e provincial em geral.54

No entanto, se atendermos aos dados socialmente relevantes que as Cartas nos oferecem, Paulo pertencia, não à elite, mas ao estrato inferior (relativamente pobre) e ele mesmo considerou-se como tal apesar de nunca se auto-definir claramente como pessoa do grupo relativamente pobre. «A sua formação (judaica e grega) é notável mas, enquanto tal, não constituía rigorosamente um sinal distintivo do estrato dominante» 55. Estudando com mais detalhe as Cartas, podemos concluir que: 1. Paulo nunca fala da sua cidadania tarsiana ou inclusive romana; 2. Ao contrário dos Actos, nas Cartas «nem sequer se vislumbra que o apóstolo pudesse dispor de importantes quantidades de dinheiro para financiar as suas viagens ou para o seu próprio sustento. Pelo contrário, todas as afirmações de Paulo nesta matéria obrigam a considerar que ele trabalhou manualmente para assegurar o seu sustento e que dependeu de ajudas económicas alheias» 56.


3. Segundo Act 18,3 Paulo era fabricante de tendas (skenopoios). As Cartas não especificam melhor o seu trabalho, mas é apresentado como algo duro (kopos, kopian) 57. Segundo 1 Tes 2,9, trabalhava já antes do nascer do sol e ainda depois do sol-posto; desenvolvia a sua actividade artesanal como jornaleiro e, além de trabalhar, desenvolvia também a sua acção missionária. Logo, a actividade artesanal teve uma importância central na vida de Paulo; não foi algo secundário ou marginal 58. 4. Por isso, Paulo pôde entender a sua vida dura de trabalho como parte do seu sofrimento pelo ministério apostólico que exercia. «De modo especial, o catálogo das dificuldades de 1 Cor 4,8-13 (cf. 1 Cor 9,8ss; 2 Cor 11,7-11; 12,14-16) reflecte as experiências negativas típicas dos antigos artesãos» 59. 5. Segundo o próprio Paulo, a sua vida foi marcada pela pobreza, como nos explica Stegemann: Com efeito, dos assim chamados catálogos de dificuldades se depreende, entre outras coisas, que o apóstolo padeceu fome e sede, teve escassez de roupa, sofreu violência, foi desprezado, conheceu a prisão, incorreu em todo o tipo de perigos durante as suas viagens, e até chegou a encontrar-se em perigo de morte (1 Cor 4,8ss; cf. 2 Cor 6,4ss; 11,7ss.23ss). Está claro que com a sua actividade artesanal não podia permitir-se outra coisa que uma vida extremamente parca e sempre dependente da ajuda económica dos seus correligionários (2 Cor 11,8s; Flp 4,10ss). Esta contínua dependência da ajuda económica alheia, juntamente com outras afirmações de Paulo, leva a pensar que viveu durante certos períodos da sua vida abaixo do mínimo vital: fome, sede, escassez de roupa (1 Cor 4,11); está perturbado (lypoumenos) e, como um pobre reduzido à mendicidade (ptochos), não possui nada (2 Cor 6,10). Mas devemos supor que esta condição de falta de tudo dependia da sua actividade missionária e caracterizou a sua vida apenas de um modo temporário 60.

Por isso, caracteriza-se melhor a figura de Paulo situando-o no grupo dos relativamente pobres ( penetes ) 61 do que no grupo dos absolutamente pobres ( ptochoi ). Note-se igualmente que das Cartas (1 Cor 9,19; 2 Cor 11,7) não se «depreende que Paulo renunciasse a uma condição social elevada, nem

57

Ver: 1 Cor 4,12; 2 Cor 6,5; 11,23; 1 Tes 2,9.

58

Ibidem, p. 407.

59

Ibidem, p. 403.

60

Ibidem, pp. 408-409.

61

Isso significa que ele não dispunha de meios suficientes para assegurar de forma autónoma o seu sustento; por isso tinha de trabalhar e pedir ajuda para a sua actividade missionária.

585


62

Ibidem, p. 409. Posição partilhada por Abraham Malherbe.

63

Ibidem, p. 409.

586

que a sua actividade artesanal fosse praticada por ele como um sacrifício para identificar-se com os destinatários da sua propaganda missionária» 62. Como vemos, é difícil harmonizar a imagem de Paulo em Actos com a das suas Cartas. Devemos antes considerar que a imagem lucana de Paulo (em Act) é, em parte, uma ficção literária, subordinada a uma mensagem profunda e verdadeira, a teológica. Logo, «para a determinação da condição social do Paulo histórico, deve-se conceder preferência às suas Cartas» 63. Na parte II do nosso estudo, veremos como integrar os aspectos históricos e teológicos do pensamento paulino.


O Fundador dos «Espiritanos» e a reforma do clero

Adélio Torres Neiva *

C

elebramos este ano o 300.º aniversário (1709-2009) da morte do Fundador dos Espiritanos, Cláudio Francisco Poullart des Places. Cláudio Poullart des Places não foi um inovador como S. Bento, Francisco de Assis, Santo Inácio ou Libermann. Ele insere-se na corrente renovadora do clero do século XVII, que respondia aos apelos do Concílio de Trento (1545-1563), realizado um século antes, e que elaborou um programa de renovação para toda a Igreja. A Igreja vivia uma das mais graves crises da sua história e a reforma da Igreja era incontornável. Nesta crise sobressaía a decadência do clero e da vida monástica. Foi contra esta crise que explodiu a Reforma Protestante e que foi convocado o Concílio de Trento.

O contexto e as influências de Poullart des Places na reforma do clero A Reforma da Igreja vai processar-se em várias frentes e reveste duas modalidades: uma institucional e outra carismática. A nível institucional o pico dessa reforma foi o Concílio de Trento. O concílio prolongou-se por três períodos distintos: o primeiro teve lugar sob Paulo III de 1545 a 1549; o segundo sob Júlio III de 1551 a 1552; o terceiro, finalmente, após uma longa interrupção, sob Pio IV, de 1562 a 1563. Foi uma reforma global de toda a Igreja, tanto no campo doutrinal * Missionário Espiritano da Academia Portuguesa de História.

Brotéria 169 (2009) 587-602

587


como no disciplinar. Desta reforma, merece relevo especial a reforma do clero. O decreto da reforma do clero e a criação dos seminários, há muito esperada, foi talvez a que mais impacto viria a ter. Se o Concílio de Trento não tivesse feito outra coisa senão instituir os seminários, teria já prestado um grande serviço à Igreja. São os chamados seminários conciliares. O seminário tinha já precedentes. Santo Agostinho, Santo Hilário de Arles e muitos outros bispos tinham já o costume de agruparem à sua volta os seus clérigos e os seus padres para os formar no ministério sacerdotal. E por vezes fazer até comunidade com eles. Mais tarde, houve, junto de cada catedral, uma escola para o desenvolvimento moral e intelectual dos ministros do altar. Mas a multiplicação infinita de paróquias rurais e de benefícios eclesiais havia engendrado uma situação nova. Duas fundações recentes em plena Roma haviam aberto uma pista em que o Concílio se iria lançar: a do Colégio Germânico por Santo Inácio de Loiola, em 1552, e o do Seminário Inglês pelo Cardeal Reginaldo Polé, em 1556. Foi a partir deste modelo que o papa e o seu Secretário de Estado, Carlo Borromeu, pensaram na criação de um seminário romano que devia concluir-se precisamente nesse ano de 1563, em que se concluía o Concílio. O Concílio mais não fez que generalizar esta instituição. Esta foi, na sua acção reformadora, a proposta mais feliz e mais inspiradora. É no Capítulo 18 da sessão 23, que se encontra a ordem do concílio que manda criar em cada diocese um seminário. Estabelece o santo concílio que todas as igrejas catedrais, metropolitanas e outras superiores a estas, segundo as suas rendas e a extensão do território, sejam obrigadas a restaurar e a educar virtuosamente e a instruir na disciplina eclesiástica certo número de meninos da mesma cidade ou diocese ou daquela província, se no bispado os não houver, um colégio contíguo à mesma Igreja ou em outro lugar conveniente que o bispo elegerá. Neste colégio, pois, serão admitidos aqueles que tiverem pelo menos doze anos, se forem nascidos de legítimo matrimónio, e saibam ler e escrever competentemente e cuja índole e desejo dêem esperanças de que se entregarão perpetuamente aos ministérios eclesiásticos. O concílio quer que

588


se escolha de preferência filhos dos pobres, mas nem por isso exclui os ricos, contanto que se sustentem à sua custa e mostrem vontade de servir a Deus e a Igreja. Dividirá o bispo estes meninos em tantas classes quantas lhe parecer, conforme o seu número, idade e progresso na disciplina eclesiástica; parte deles, como parecer conveniente, empregará no ministério da Igreja e parte conservará no colégio, substituindo outros no lugar dos que se tiraram, de modo que este colégio seja perpetuamente seminário de ministros de Deus. Para serem mais facilmente instruídos na disciplina eclesiástica se lhes dará logo ao princípio a tonsura que usarão sempre com o hábito clerical. Aprenderão gramática, canto, cômputo eclesiástico e outras boas artes e além disso, instruir-se-ão na Sagrada Escritura, Livros Eclesiásticos, homilias dos santos e no concernente à administração dos sacramentos, principalmente no que respeita a ouvir as confissões e as formas dos ritos e cerimónias da Igreja. Cuidará o bispo em que ouçam missa todos os dias e se confessem dos seus pecados ao menos uma vez por mês e conforme o juízo do confessor, recebam o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ministrem na catedral e em outras igrejas do lugar nos dias festivos. Tudo isto e o mais que parecer oportuno e o necessário para este negócio, estabelecerão todos os bispos com o conselho de dois cónegos dos mais velhos e graves, que elegerem, segundo o Espírito Santo lhe inspirar e procurarão que esta instituição se observe visitando-os muitas vezes. Castigarão com severidade os orgulhosos e incorrigíveis e que semearem maus costumes, expulsando-os se for preciso.

Em resumo: para a reforma do clero o concílio aposta sobretudo na formação dos futuros padres. Esta formação inclui: a preferência pelos pobres, a vida em comunidade, a formação teológica, a vida evangélica ou de piedade e um quadro disciplinar exigente. A nível carismático, esta reforma foi sobretudo assumida por um conjunto de santos que estiveram na base da reforma ou da criação de outros tantos institutos religiosos. A provocação do Concílio de Trento e os desafios do Renascimento e da descoberta de uma nova cultura e de novos mundos foram interpelações que despertaram todo um movimento de renovação da Igreja em todas as suas frentes. Nas antigas ordens lembremos a reforma dos Franciscanos por S. Pedro de Alcântara (1540), conhecida por «Descalços ou 589


de estrita Observância» e o aparecimento dos «Capuchinhos» (1526) também conhecidos por «ermitas Franciscanos». Lembremos entre os Carmelitas a reforma dos «Descalços» e dos «Recolectos» (assim chamados por se retirarem para casas de recolecção). Lembremos, na vida contemplativa, a reforma de Teresa de Ávila que abandona o convento da Encarnação de Ávila para assumir a radicalidade do Carmelo das origens, fundando o convento de S. José (1563), logo seguida de S. João da Cruz, o contemplativo de Segóvia (1568). Lembremos Santo Inácio de Loyola (1534) e os Jesuítas que se abrem aos novos espaços da evangelização que os novos tempos tinham posto a lume. Lembremos, na vida missionária, S. Francisco Xavier e os novos caminhos da missão nas terras longínquas, que os Descobrimentos abriram. Lembremos a evangelização da saúde com S. Camilo de Lélis e os seus companheiros. Lembremos o Oratório de S. Filipe de Néri (1575) a criar espaço para a renovação do clero (1575). Lembremos S. José Calazanzo e os seus Esculápios na evangelização do planeta jovem (1597). Lembremos S. João de Deus (1539) convivendo com os doentes mentais e procurando integrá-los nos caminhos do Evangelho. Lembremos Santa Ângela de Merici e as Ursulinas, criando um modelo de vida religiosa integrado no mundo e abrindo o seu espaço à juventude feminina. Lembremos Frei Bartolomeu dos Mártires e a evangelização do mundo rural. E podíamos ainda lembrar S. Francisco de Sales (1567), utilizando os meios modernos e as tecnologias de ponta do seu tempo para fazer circular a mensagem evangélica em todas as frentes da sociedade e S. Vicente de Paulo com Santa Luiza Marillac a abrir os caminhos do Evangelho pelas periferias e margens do sofrimento humano. 590


A criação dos clérigos regulares no século XVI Fixemo-nos apenas na reforma do clero. A grande novidade desta época é o aparecimento dos clérigos regulares, ou seja, um clero que procura a sua renovação assimilando os valores essenciais da vida religiosa. São uma síntese entre o apostolado sacerdotal e a vida religiosa. Eles compreendem, entre outros, a Companhia de Jesus, fundada por Santo Inácio (1534), os Camilianos, por S. Camilo de Lelis, os Esculápios de S. José Calazanzo, para só falar nos mais conhecidos. Estes clérigos regulares apresentam um conjunto de características comuns que serão a primeira fonte de inspiração de Poullart des Places: 1. Ao contrário de quase todos os fundadores de institutos religiosos do tempo anterior que, em geral, eram leigos, agora, todos são padres, pelo menos eram-no no momento em que conseguiram a aprovação da sua congregação; no entanto, a maior parte deles concebe o seu projecto antes de receber a Ordenação sacerdotal. Eles dão-se conta que, para realizar o seu projecto, a ordenação sacerdotal era indispensável. O sacerdócio aparece aqui como garantia de uma formação séria. O mesmo acontecerá com Poullart des Places. O sacerdócio é menos fruto de uma opção pessoal que de um imperativo da obra. 2.

A abertura aos novos tempos ou a internacionalidade A Companhia de Jesus pode ser tomada como ponto de referência, pois totaliza mais membros que as outras fundações todas juntas. Começa logo a 15 de Agosto de 1534, na capela de S. Denis de Montmartre, com três nacionalidades: Inácio de Loiola, Francisco Xavier, Diogo Lainez, Afonso Salmeron e Nicolau Bobadilha, espanhóis, Pedro Fabre: da Sabóia e Simão Rodrigues de Portugal. A sua finalidade é colocar-se à disposição do papa para ir trabalhar entre os infiéis ou entre os hereges e cismáticos ou mesmo entre os fiéis. Um leque que abrange todos os espaços da evangelização do 591


novo mundo. Será esta abertura de horizontes que permitirá aos padres de Poullart des Places abrirem-se à Acádia, ao Quebec e às colónias francesas. 3.

Uma constituição síntese Inácio, com os seus companheiros, redige umas novas Constituições; os outros institutos contentam-se em adaptar a Regra de Santo Agostinho, acrescentando-lhe uma série de disposições práticas As Constituições de Santo Inácio referem-se constantemente à sua caminhada espiritual e às reflexões do primeiro grupo de Roma, de 1539. Procuram a harmonia entre as aspirações evangélicas e as modalidades apostólicas. 4.

A exclusão de interferências exemplares Os clérigos regulares, quanto à organização, quase não apresentam novidades: as estruturas são herdadas das Ordens mendicantes. O que fazem é suprimir todos os elementos monásticos; o seu género de vida é apostólico, oposto ao monástico: deixam cair o ofício divino em comum, o hábito religioso, as penitências, etc. Por outro lado, intensificam a oração pessoal com a meditação e a contemplação de Cristo e dos santos. Pretendem estar disponíveis para a actividade apostólica. É um modelo de vida religiosa, mas liberto das exigências monásticas. Também para aqui converge a opção de Poullart des Places. 5.

Uma formação escolar intensa Para os monges canónicos e os mendicantes, a escola em que eram formados até ao fim da vida era a vida comum. Não tinham outro espaço formativo. Quem os formava era a vida religiosa como tal. Os clérigos regulares, ao contrário, vão ter alguns anos de formação unicamente consagrados para esse efeito. Esta formação é-lhes ministrada já não nos conventos, mas em casas de formação, em seminários, noviciados e escolasticados. São estruturas que antecedem a vida religiosa. É uma formação intensiva segundo as exigências do Concílio de Trento. Santo Inácio prevê um noviciado de dois 592


anos em vez de um, previsto na lei. Após o noviciado, todo o relevo é dado aos estudos. Após os estudos, terceiro ano de noviciado. Santo Inácio dizia que se os Jesuítas tomassem este programa a sério, não precisariam de outras práticas para serem bons religiosos. Vai ser exactamente esta a postura de Poullart des Places. 6.

Uma acção apostólica concertada Os clérigos regulares são formados com base numa actividade apostólica concertada. Mas, em vez de se fixarem numa actividade particular, como tal, vivem sobretudo uma espiritualidade, que servirá de base para todas as actividades. O que os une é um espírito comum, exactamente como acontecerá com Poullart des Places. Por isso as suas tarefas podem ser muito diversificadas: ensino, educação da juventude, evangelização, saúde, missões, etc. Pode dizer-se que o serviço da Igreja ou do povo de Deus é o motor dos clérigos regulares. O trabalho dos superiores será sobretudo coordenar e orientar as actividades. A obediência torna-se uma característica maior: a obediência ao serviço de uma estratégia comum. Para os anacoretas a obediência era «ouvir» o mestre; para os monges era a inserção na vida comum; para os mendicantes era a comunhão numa orientação preferencial do grupo. A nota distintiva dos clérigos regulares é a sua associação em vista de uma acção apostólica concertada. A comunidade será concebida à imagem de uma armada espiritual, com a necessidade de um general para supervisionar o conjunto dos problemas e dos efectivos. É agora que aparece pela primeira vez o cargo de superior ou «prepósito». A comunidade religiosa foi primeiro estruturada segundo o modelo da vida rural, com o pai-abade de S. Bento; as ordens mendicantes vão conceber a autoridade na linha da fraternidade: o ministro, ou seja, o mínimo dos menores, como acontecia com os Franciscanos ou, então, o primeiro dos irmãos: o prior dos Dominicanos. Mas agora, com a Renascença e o paradigma dos Reinos, em vista à eficácia da missão nos novos contextos, a imagem da autoridade passa a ser a de chefe, superior. 593


As novas modalidades de Vida Consagrada nos séculos XVII e XVIII: as Sociedades de Padres de vida comum e as Congregações clericais Um outro passo na reforma do clero vai ser o aparecimento de Sociedades de Padres de vida comum ou Sociedades Apostólicas, como hoje dizemos, e as Congregações clericais. No século XVI a vida religiosa ficou marcada por duas grandes coordenadas: a criação dos clérigos regulares e a renovação das antigas ordens. Agora continuam a surgir congregações à procura de novas fórmulas, adaptadas às necessidades dos tempos novos, mais de 30. As três principais inovações são as Sociedades de Padres da vida comum, as Congregações clericais e as Congregações laicais. As Congregações laicais, como os Irmãos das Escolas Cristãs de S. João Baptista de La Sale e os Monfortinos de S. Luis Maria Grignion de Monfort, na sua primeira fase, não entram no projecto da renovação do clero, pois que se destinam exclusivamente a leigos. 1.

As Sociedades de Padres de vida comum Já no século XVI, S. Filipe de Néri, em Roma, tinha dado origem a uma nova fórmula de associação de padres, o «Oratório». Organizou cursos e conferências para elevar o nível cultural e intelectual dos que se destinavam ao sacerdócio. Estes encontros tinham lugar no oratório da sua casa; daí o nome da Sociedade. Filipe de Néri não se preocupou muito com elaborar uma Regra ou dar uma organização estável à sua Sociedade. Os padres no Oratório não tinham votos e podiam deixar o Oratório quando quisessem. As casas eram independentes, o bispo do lugar era o seu superior espiritual. Cinquenta anos após o primeiro Oratório de Roma, Bérulle (1575-1625) funda também um Oratório em Paris, para a reforma do clero. Tem, no entanto, uma organização mais sólida que a do Oratório de S. Filipe de Néri. Não professam votos mas têm um superior geral vitalício e capítulo geral de três em três anos. 594


Na França aparecem ainda várias outras fundações no século XVII, com o mesmo objectivo de dar uma vida nova ao clero: Os Lazaristas (1625), os Sulpicianos (1624), os Eudistas (1663) e os Espiritanos (1703). Os Lazaristas, ou Congregação da Missão fundada por S. Vicente de Paulo para as missões populares, mantêm a fórmula dos clérigos regulares, mas com votos privados. Os Sulpicianos, agrupados por M. Olivier, que veio a ser cura de S. Sulpício em Paris, era uma sociedade para a formação do clero. Os seus sucessores ocupar-se-ão de quase todos os seminários da França. São padres seculares, sem votos com uma espécie de noviciado o «ano da solidão» põem em comum as suas rendas, guardando a propriedade dos seus bens. Os Eudistas, fundados por S. João Eudes, são consagrados às missões populares e ocupam-se dos seminários. As Missões Estrangeiras de Paris são uma associação de leigos e padres, fundada pelo jesuíta Alexandre de Rhodes para a missão entre países não cristãos, sobretudo na Ásia. Só se comprometem definitivamente na obra após 3 anos passados em terras de missão. Os Espiritanos, fundados por Poullart des Places (1679-1709), eram uma Sociedade para a formação, exclusivamente de clérigos estudantes pobres. Após a sua morte, dois dos seus companheiros, Yacinthe Garnier e Louis Bouic, continuam a sua obra, organizando o seminário que ele havia lançado. A partir de 1740 deixam a formação do clero pobre das dioceses de França, pois que então já as dioceses dele se ocupavam, para se dedicarem à formação do clero colonial e à evangelização entre os infiéis. No século XVII aparecem também as congregações clericais que juntam padres e leigos na mesma vocação, mas com predomínio dos padres: a 2.ª fase dos Monfortinos, os Passionistas de S. Paulo da Cruz, os Redentoristas de Santo Afonso Maria de Ligório, etc. 595


Características comuns destas fundações: O fim destas fundações era a evangelização, sobretudo das massas populares, mas para isso impunha-se uma condição preliminar: a formação espiritual dos padres. E, muitas vezes, o fim geral era esquecido para dar prioridade ao fim específico. Pouco a pouco, as Sociedades de padres transformaram-se em cenáculos. Enquanto os fundadores dos Clérigos regulares se tornam padres sob a pressão das circunstâncias, nas Sociedades de Padres de vida comum deu-se o contrário: Berulle, Olivier, Eudes, Vicente de Paulo, Poullart des Places foram destinados muito cedo para o sacerdócio. Isto levou também a ver o apostolado unicamente sob o ponto de vista do padre. As sociedades de Padres não têm votos públicos que até aqui eram considerados como sinal distintivo da vida religiosa: Poullart des Places não terá votos. Abandonam o título de ordem e renunciam a ser considerados religiosos: são mudanças que vão contra tradições seculares. São Sociedades de vida apostólica. Por outro lado, têm estruturas semelhantes às do mendicantes e clérigos regulares: regra, superior, assembleia-geral, poder executivo e poder legislativo. Obedecem ao superior por promessas ou juramento, professam o celibato, guardam o direito de propriedade, mas põem os rendimentos em comum. Quer dizer: não pronunciam votos públicos mas vivem-nos e, na prática, pouca diferença fazem dos religiosos. A sua originalidade é mais no plano jurídico que prático. Ao fim e ao cabo, situam-se na linha dos clérigos regulares. A vida apostólica é o seu grande objectivo: para isso se associam em comunidade. Todos os fundadores são padres e o seu recrutamento limita-se ao meio sacerdotal: a santificação dos membros é uma prioridade em vista do trabalho apostólico. A santificação pessoal é decisiva para a sua vocação. Todos os fundadores situam as suas aspirações à santidade como suporte das actividades apostólicas. A santificação dos membros é concebida 596


como intensificação da sua vida espiritual e é condição sine qua non para o apostolado. O grande objectivo dos seus membros é serem padres santos e zelosos. Por isso privilegiam a união dos espíritos e dos corações no interior dos círculos privados. Além destas iniciativas de porte, há todo um conjunto de pequenas comunidades que vão emergindo nesta linha e que, sem dúvida, terão servido de inspiração a Poullart des Places: o seminário do P. Bellier (director espiritual de Cláudio) (1683), as pequenas Comunidades da Providência, do P. Changièrges (1650), e outras. De notar que, apesar de todas estas iniciativas, a reforma proposta pelo Concílio de Trento levou tempo a chegar à França. Cem anos depois do Concílio ainda os seus documentos não estavam traduzidos em francês.

Perfil de Poullart des Places como formador de um clero renovado Penso que no decurso desta exposição já foi emergindo o perfil de Poullart des Places como formador do clero e o seu contributo para a sua renovação. Efectivamente, é no quadro de todos estes movimentos de renovação do clero que Poullart des Places se situa. Vou apenas sublinhar algumas das chaves de leitura mais sugestivas que nele emergem para a renovação do clero. A mística de Poullart des Places assenta em três pilares: a docilidade ao Espírito Santo, a vida de comunidade e o serviço dos pobres. É nestes pilares que temos de alicerçar a nossa identidade das origens. Para Poulllart des Places, ser formador era, antes de mais nada, deixar-se formar. De facto, toda a sua vida foi o percurso de um formando. É preciso não esquecer que Cláudio, ao mesmo tempo que era formador, também ele se preparava para receber o sacerdócio. O seu itinerário espiritual é um itinerário de quem procura o seu caminho. A sua vida 597


foi a grande escola de formação para os primeiros espiritanos. Não nos deixou outras orientações nem outro código para a formação dos espiritanos. Nos apontamentos do seu retiro de 1701 sobre a escolha de um estado de vida ele fala num «plano de vida para atingir a perfeição», ou seja, numa Regra de Vida, mas dessa regra de vida só nos restam 4 páginas com os pontos 12 a 15, que provavelmente elaborou durante o primeiro semestre no Colégio de S. Luís. Os poucos escritos que nos deixou, à excepção dos Regulamentos, todos falam dele, dos seus problemas, das suas dificuldades, das suas aspirações, dos seus sonhos. Ele ensina-nos que uma vocação não aparece feita, é preciso aceitar períodos de reajustamento do sim inicial, afim de lhe dar um fundamento mais sólido. No percurso da sua vocação Poullart des Places ensina-nos que, se tudo é dado desde o princípio, tudo fica para se fazer passo a passo. Ele ensina-nos a descobrir caminhos não programados que são para nós ocasião de crescimento, quando ao tempo das certezas sucede o das dúvidas e das perguntas, ao tempo do fervor sucede o do deserto e, por vezes, mesmo o da noite. O percurso formativo está cheio de etapas, de conversões necessárias para renovar as nossas convicções, na oração, na vida de comunidade, nos apelos do Espírito e da Igreja ao serviço dos pobres e do Evangelho. A passagem da devoção ao Espírito Santo à docilidade ao Espírito Santo Poullart des Places nasceu num meio marcado pela devoção ao Espírito Santo. Os Jesuítas, que evangelizaram a sua Bretanha, tinham deixado as marcas do Espírito Santo por toda a parte: pregação, confrarias, novenas, devoções. Depois, nos colégios, as marcas do Espírito Santo continuavam, através dos seus mestres espirituais, as Assembleias dos Amigos, as leituras, as experiências apostólicas etc. A sua inserção no quadro dos Jesuítas foi verdadeiramente a moldura do seu itinerário espiritual. Mas a grande conversão deu-se quando ele passou da devoção à docilidade. O Espírito Santo então deixa de ser uma 598


devoção para se tornar a sua razão de ser. Foi uma conversão difícil de que ele nos dá conta nos seus escritos. Foi quando descobriu a revelação do amor de Deus por ele, que o fez ultrapassar todas as barreiras. No seu retiro de 1701 ele faz uma releitura da sua vida, toma consciência deste Deus que sem cessar o procura, o persegue e que não deixa em paz. Então, todas as barreiras caem e ele perde todas as suas defesas. A partir desse momento não tem outro desejo senão dar-se a Deus, corresponder a esse amor. Ele entrega-se a Ele com todos os seus defeitos, as suas sombras e as suas luzes. A partir daí, a docilidade ao Espírito Santo será a bússola que o vai guiar. A disponibilidade apostólica será a marca de origem dos Espiritanos. Será no horizonte desta disponibilidade que ele conhecerá os pobres e se porá do seu lado. E quando Grignion de Monfort lhe vem pedir para colaborar com ele nas missões populares no Oeste de França, o seu futuro já estava decidido: ajudar os estudantes pobres na sua formação para o sacerdócio. «Parece-me que é o que Deus me pede e várias pessoas esclarecidas me confirmaram neste projecto». A passagem do acolhimento dos pobres à vivência da pobreza Poullart des Places descobriu os pobres na companhia do P. Bellier quando visitava o hospital de Saint Yves, onde se refugiavam os sem abrigo e abandonados da rua. Descobriu depois o limpa-chaminés e os estudantes pobres, aspirantes ao sacerdócio que vagueavam pelas ruas de Paris. Um segundo passo deu-o quando um desses aspirantes entrou na sua vida e com ele começou a partilhar a pensão e a casa: J. B. Faulconnier. Em 1702 começa a alojar alguns deles numa casa à parte. Foi a partir daí que começou a diminuir a distância que o separava dos pobres e a passar de benfeitor a companheiro, igual a eles. Mas a verdadeira conversão deu-se quando aprendeu dos pobres a ser pobre. Então a sua casa deixa de ser um recolhimento de abandonados, para se tornar um cenáculo onde a pobreza é vivida como bem-aventurança 599


do Reino. Os pobres ensinaram a pequena comunidade a descobrir a pobreza de Jesus Cristo, a pobreza do Evangelho. Poullart des Places descobriu a pobreza através dos pobres que recolheu mas também através de sucessivas escolhas e por vezes difíceis, pelo desapego radical de si mesmo, das suas seguranças e dos seus projectos, para não se enraizar senão na fé e na confiança em Deus, para se tornar disponível ao Espírito Santo. E esta foi outra das grandes chaves de leitura de Poullart des Places como formador. A partilha das responsabilidades Em 1704, Cláudio atravessa uma crise profunda. Passados seis meses após a fundação da comunidade, ela conta já uns quarenta aspirantes e Cláudio é solicitado por um conjunto de tarefas que o ultrapassam: alimentação, alojamento, formação, os problemas, a sua própria preparação para o sacerdócio. Cai num esgotamento físico e numa grande depressão moral. Foi o seu tempo de deserto e de silêncio. Chega a pôr em causa a própria obra, de tal maneira se sentia esmagado por ela. Foi então que, como de costume, fez mais um retiro de que fala nas «Reflexões do passado». Recorre a um director espiritual, reconhece que o seu grande problema era a falta de distância entre ele e os seus discípulos. Terá que renunciar à paternidade exclusiva da sua obra, partilhando as responsabilidades com outros. Escolhe colaboradores para o ajudarem na direcção da obra e, assim, ele poderá ficar mais livre para pacificar o seu interior e continuar os seus estudos de preparação para o sacerdócio. A esse grupo pertencem Vincent Le Barbier e Louis Bouic. Assim nasce o grupo de formadores, que será o núcleo dos Messieurs du Saint Esprit, primeira célula do que viria a ser a Congregação do Espírito Santo. Também por aí passou a sua escola da pobreza. A prevalência do espírito sobre a estrutura Uma das constantes dos clérigos regulares do tempo pós-Tridentino foi a vivência do sacerdócio, aproveitando não tanto a estrutura, como os valores da vida religiosa. A comu600


nidade de Poullart des Places corresponde perfeitamente a este modelo. Efectivamente, de Poullart des Places nós herdámos mais um espírito que uma estrutura. A Comunidade viveu sem existência legal durante trinta anos, sem se saber bem se era seminário, se era comunidade. Dava para os dois. E, quando em 1734 ela assumiu uma estrutura visível, esta consistia apenas num corpo de directores requeridos pela lei civil, para que pudesse ter personalidade jurídica. Os directores não faziam promessa nem votos de religião, mas apenas um contrato em que se comprometiam a observar os estatutos, de resto muito simples Como diz Koren, o vigor desta fundação não provinha da sua organização mas do seu carisma. O que eles tinham em comum era a concepção do sacerdócio. Ser padre, para eles, significava uma disponibilidade evangélica na obediência ao Espírito Santo para o serviço dos mais pobres e abandonados, acompanhada de uma pobreza voluntária. Para eles, viver esta concepção do sacerdócio bastava para lhes fazer viver a vida religiosa na sua radicalidade e os seus compromissos apostólicos não precisavam de qualquer promessa. O que os motivava não era o quadro legal, mas a fidelidade ao Espírito Santo. Não deixa de ser curioso como eles encontraram na renovação do sacerdócio a sua vocação religiosa. Uma formação teológica de qualidade O Concílio de Trento tinha criado os seminários para a formação dos aspirantes ao sacerdócio e o programa que propõe para essa formação era exigente. Poullart des Places insere o programa académico dos estudantes na linha dessa exigência. Os estudos incluíam: três anos de Filosofia, compreendendo as ciências novas, a Matemática e a nova teoria da física de Newton, depois cinco anos de estudos teológicos e, finalmente, se necessário, um mestrado: dois anos de Direito Canónico ou de Sagrada Escritura. A pastoral dos mais pobres e abandonados merecia todo o esmero desta preparação de nível universitário. Nem hoje os programas de formação dos seminaristas são mais exigentes. 601


A comunidade como cenáculo Poullart des Places quer que reine em sua casa uma atmosfera de cenáculo, como era apanágio dos padres regulares. Os Regulamentos desdobram-se em pormenores e sugestões para fazerem da comunidade uma escola de fraternidade e comunhão onde reinasse um só coração e uma só alma, à imagem da Igreja dos Actos dos Apóstolos. Não é por acaso que a divisa «Um só coração e uma só alma» se tornou a credencial dos Espiritanos. Comunidade de fraternidade mas também comunidade de oração. A consagração ao Espírito Santo, que caracterizava a comunidade, era recordada ao longo do dia pela invocação desse Espírito antes de qualquer actividade escolar. A docilidade a esse Espírito era a sua marca de origem. Comunidade que amava ternamente Maria concebida sem pecado, sob cuja protecção todos os membros são consagrados ao Espírito Santo. Comunidade de vivência eucarística e litúrgica esmerada que ritmava todos os dias da vida dos estudantes. Comunidade Apostólica. Desta comunidade nasceu a geração de ouro dos Espiritanos, que foi, sem dúvida, a dos missionários da América do Norte, no tempo das lutas entre a França e a Inglaterra pela posse dessas colónias.

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A universalidade de Nun Alvares Pereira

José Eduardo Franco *

Um santo português entre a medievalidade e a modernidade

A canonização recente de Nun Alvares Pereira tem suscitado

uma verdadeira avalanche de publicações que revisitam esta extraordinária figura da história portuguesa e a sua época do fim da Idade Média: os séculos XIV e XV portugueses e europeus. Falar de Nun Alvares é fazer uma viagem a um tempo conturbado e de gestação de um mundo novo que em breve se iria revelar. O Século XIV foi marcado por muitos problemas que deixaram feridas graves na história da Cristandade europeia: a peste negra, a guerra dos Cem Anos, as lutas dentro do papado com o drama dos papas e dos anti-papas apoiados e combatidos por diferentes monarquias, a instabilidade social e política devida às lutas dinásticas, etc. São Nun Alvares Pereira, que depois viria a tomar o nome religioso de Frei Nuno de Santa Maria, nasceu em 1360 em pleno século de um Portugal que procurava consolidar a sua independência e que gerava a matriz diferenciada da sua língua e da sua literatura com as Cantigas de Amigo e de Amor na Corte de D. Dinis. Era um tempo de guerra, de fomes, de barbáries, mas também era um tempo de poesia, de Fé e de grandes valores e ideais. Tempo de extremos que propiciava os grandes testemunhos. É neste contexto que se revela um dos mais extraordinários santos portugueses reconhecido, passados sete séculos, no mais alto grau de santidade da Igreja Católica por Bento XVI. * Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Sendo certo que um santo é filho do seu tempo e do seu país e, portanto, participa das preocupações e desafios do seu povo, também não deixa de ser certo que o fruto da santidade deve transcender a sua época e representar um testemunho com significado universal, capaz de ser digno de inspiração para toda a humanidade. Só com a constatação da dimensão de universalidade é que a Igreja pode elevar um homem ou mulher ao mais alto patamar de santificação. A memória histórica portuguesa apresenta D. Nun Alvares como um dos seus maiores heróis, cuja acção foi de tal modo importante tanto no domínio político, militar e social que a sua vida e obra tem sido valorizada em diferentes ópticas ideológicas. São Nuno reúne qualidades e valores de um herói universal que fazem dele uma figura capaz de inspiração para várias gerações, épocas históricas e filiações políticas e culturais. Notável líder militar e grande estratega, com coragem, valentia e determinação dirigiu várias operações militares que garantiram a auto-determinação portuguesa em relação à vizinha Castela no quadro da revolução de 1383-85, sendo a batalha de Aljubarrota a mais conhecida peleja que venceu contra o exército espanhol. Politicamente contribui decisivamente, num momento político em que o Reino de Portugal corria o risco de ser integrado na coroa espanhola, para elevar ao trono um rei português, o Mestre de Avis. Aquele que se tornaria D. João I inaugurou uma nova e florescente dinastia, a Dinastia de Avis que iria, no século seguinte, dar ao país a chamada Ínclita Geração, de reis, infantes e navegadores que escreveriam a mais universal página da história portuguesa: o Portugal dos Descobrimentos e construtor da modernidade e da proto-globalização. Mas esta mudança de actores no governo de Portugal não teve apenas um significado político, mas também social. Representou uma revolução para a época, a chamada primeira revolução portuguesa: favoreceu uma inédita mobilidade social. Numa sociedade de Ordens controlada pela Alta Nobreza e pelo Alto Clero, Nuno de Santa Maria lidera um movimento que vai permitir àqueles que contavam em segundo e terceiro lugar na hierarquia social os filhos 604


segundos e bastardos da nobiliarquia, assim como a burguesia comercial ascender socialmente e ter lugar na liderança dos destinos do seu povo. Por isso, muitos atribuíram, já na história contemporânea, a Nun Alvares o estatuto de revolucionário social, sendo admirado por sectores ideológicos surpreendentes que professavam crenças e ideais diversos dos deste herói medieval. Como se compreende que aquele que foi elevado ao estatuto de Condestável do Reino, a figura mais importante a seguir ao Rei, pelos altos serviços prestados em termos militares e políticos e, portanto, tão embrenhado nas coisas, nos negócios e nos compromissos do mundo, tenha sido elevado aos altares pela Igreja Católica como modelo de santidade? Terá sido porque, à semelhança de Santo Agostinho, teria deixado a vida mundana e se teria encerrado voluntariamente, nos últimos anos da sua vida, em 1423, num convento carmelita, tornando-se o mais humilde dos irmãos e distribuindo a sua riqueza pelos pobres e pelos que o tinham servido? Sim, mas mais do que isso. A Igreja acabou, depois de um longo processo de averiguação e de proposição à Santa Sé, por elevar D. Nuno, primeiramente, ao grau de Beato por Bento XV em 1918 e, neste ano de 2009, ao grau de Santo por Bento XVI, reconhecendo o Papa a Vox Populi que, desde a época em que viveu o Condestável, falecido em 1431, lhe atribuía prerrogativas de santidade. Implicado no seu tempo e lutando pelos ideais de liberdade do seu povo, a santidade de D. Nuno afirmou-se pela diferença, pela radicalidade e pela humanidade dos gestos, pelo testemunho da sua fé e pelo sentido de oração em coerência com o Evangelho. Numa sociedade marcada pela guerra, onde a actividade militar era muito valorizada, na medida em que era garantia da protecção e da sobrevivência das comunidades, São Nuno, sendo um exímio guerreiro, pautou-se por uma extraordinária humanidade que fazia a diferença numa época marcada por muita rudeza e brutalidade. Tratava os seus soldados com afecto e cuidado, repartindo bens e meios, procurava garantir o tratamento digno 605


para os prisioneiros, não permitia que as populações civis fossem brutalizadas, nem as colheitas queimadas, como era prática corrente nas incursões militares do tempo. Rezava e criava momentos de oração para os seus soldados, revelando uma grande devoção a Nossa Senhora, na linha da mais genuína espiritualidade mariológica lusitana. Tendo-lhe sido doadas imensas propriedades pelo rei como recompensa pelas suas acções militares que salvaram Portugal do apagamento no mapa dos reinos europeus, distribuiu, mesmo antes de entrar para a vida monástica contemplativa, muitos bens por familiares, colegas, soldados e servos, além de se ter tornado um dos grandes mecenas da Igreja, financiando a construção de templos e conventos, como é o caso do Convento do Carmo, onde se tornaria o porteiro e o irmão serviçal. Sendo o homem mais rico e mais poderoso do reino, quis aceitar o desafio da radicalidade da mensagem de Cristo, fazendo-se o último e o servo de todos. Aqui reside o testemunho de uma vida extrema que o tornou modelo para Portugal, para o orbe cristão e para o mundo. Afirmou que acima do poder e da riqueza valores mais altos se alevantam em nome da afirmação da dignidade humana, pela sua abertura à transcendência que transfigura e ilumina a história dos homens. Por isso, com justiça o Rei dos nossos poetas lhe cantou os feitos e a vida n Os Lusíadas, escrevendo no Canto VIII deste modo já canonizante: Se quem com tanto esforço em Deus se atreve, Ouvir quiseres como se nomeia, Português Cipião chamar-se deve; Mas mais de Dom Nuno Álvares se arreia: Ditosa Pátria que tal filho teve!

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Cinema

Francisco Perestrello *

Crítica e imprensa cinematográfica

Ao longo do pouco mais de um século da História do

Cinema sempre este contou com uma componente publicitária e com a crítica, quando possível independente. Esta última, encarada de forma muito diversa pelos profissionais da distribuição e exibição, tem constituído um elemento essencial na divulgação dos filmes e na separação do trigo do joio, permitindo a muitos espectadores uma escolha adequada. Varia, de caso para caso, o suporte utilizado, desde a rádio à televisão, da Internet à Imprensa. Esta última mantém, apesar de tudo, a parte de leão nesta actividade. Por um lado a imprensa diária ou semanal publica secções, maiores ou menores, em que uma boa parte dos filmes estreados numa dada semana são de imediato analisados pela sua equipa de críticos; por outro, de uma forma mais espaçada mas aprofundada, o mesmo se faz nas publicações especializadas de Cinema, em que se complementam as críticas com artigos de natureza mais cultural ou de divulgação dos mais diversos aspectos da 7.ª Arte, da produção à exibição, de dados históricos ao simples apontamento sobre a vida das figuras mais populares. No que respeita às revistas da especialidade foram poucas as que tiveram uma vida longa, mas há um número considerável que atingiu um prestígio indiscutível. Lembre-se a «Filme», publicada de Abril de 1959 a Maio de 1964, sempre dirigida por Luís de Pina. Nela iniciaram a sua formação diversos críticos; na «Filme» se encontravam artigos de fundo com

* Crítico de cinema.

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informação abundante e exposta com simplicidade. Foi uma revista de êxito. Também nos anos 50 e 60 publicou-se a «Imagem», de aspecto mais modesto mas que resistiu 12 anos. A ela se seguiu a «Celulóide» que, pela mão do Fernando e da Fernanda Duarte foi um caso ímpar de longevidade, tendo sido publicada de 1957 a 1986. «Cinéfilo» teve duas épocas de edição nos longínquos anos 30 e logo após o 25 de Abril de 1974 enquanto a «Panorâmica», editada pelo Cine Clube Católico, resistiu ao longo de cerca de dezena e meia de números. De forma geral, questões económicas resultantes das fracas vendas ou limitado número de assinaturas levaram a que as edições fossem terminando. Serão excepções a «Filme» e a «Celulóide»; a primeira morreu de cansaço, quando a Editora Aster e a equipa de direcção e redacção deixaram de encontrar o comum acordo quanto ao estilo a seguir. A segunda, que vivia da dedicação pessoal de um casal, viu a sua vida terminada quando, também o seu director, Fernando Duarte, terminou a sua vida terrena. Hoje pode-se dizer que não há imprensa desta especialidade, excepção feita à «Première», de uma editora francesa. Em Novembro de 1982 realizou-se em Lisboa o Encontro da Imprensa Cinematográfica, sob a direcção do Secretariado do Cinema e da Rádio. No ano seguinte seria a vez do Porto, com o Cinema Novo a tomar a responsabilidade da organização. O Encontro de 1982 foi uma revelação da força que tinham então as publicações de Cinema. Em três dias de debate discutiu-se a situação então vigente e procuraram-se soluções para os problemas comuns. Já então o porte pago e o subsídio de papel eram tidos como apoio indispensável à viabilização futura das diversas revistas, sobretudo com o custo crescente dos serviços de correio. Outros pontos preencheram a ordem de trabalhos, neles se incluindo o estudo da forma de viabilização económica de cada uma das revistas, analisando-se os custos tipográficos, redactoriais e de distribuição e procurando soluções alternativas às que se encontra608


vam em vigor em cada caso. Visto à distância, o que este encontro apresenta de mais notável é o número de publicações que conseguiu reunir. Além do «BC Boletim Cinematográfico» do próprio Secretariado, participaram nos trabalhos a «Celulóide», de Rio Maior, o «Travellig», modesta mas empenhada edição do Cineclube de Portalegre, o «Cinema Novo» cuja equipa lançou e mantém o Fantasporto, a «Cineclube», do prestigiado Cineclube do Porto, e ainda a «Cineasta», de Lisboa, e a «Sinopse» de «Torres Novas», além da muito particular «Cine Arma», em que o cinema se abordava numa perspectiva profundamente política numa visão de esquerda. Parece hoje impossível que um tão elevado número de edições de cinema se mantivesse simultaneamente em actividade e conseguisse mesmo reunir-se para discutir os seus problemas. Em paralelo com os debates foram organizadas três exposições de publicações de cinema. No Cinema São Jorge estiveram as publicações da Organização Católica Internacional do Cinema (OCIC) e dos seus secretariados nacionais e, noutro piso do mesmo Cinema, as revistas portuguesas dos anos 70 e 80, acompanhadas de um painel especial dedicado ao n.º 1 de cada uma das que participaram no encontro. Na Cinemateca Portuguesa foram expostas as «Revistas de outros Tempos», o que fechava o ciclo de estudo da imprensa cinematográfica ao longo dos anos. São ainda muitas as publicações que nos vêm à memória e não acima citadas. Correndo o risco de esquecer algumas que mereciam uma referência, lembro, de momento, e listando numa ordem totalmente aleatória, «BC Vídeo», «Cinema 15», «Isto É Espectáculo», «Enquadramento», «Memória do Cinema» e «Primeiras Imagens» (com duas épocas) Na maior parte dos casos tiveram vida curta, ou muito curta, mas cada uma delas merecia, por si só, um estudo exaustivo sobre o seu nascimento, vida e morte.

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recensões

Bíblia REYNIER, Chantal: Saint Paul. Sur les routes du monde romain. Infrastructures, logistique, itinéraires. 294 págs. CERF, PARIS, 2009. (20,00 -)

Professora de exegese bíblica nas Faculdades jesuítas do Centre Sèvres de Paris e autora de meia dúzia de obras da sua especialidade, todas editadas pela Cerf e já por nós referidas aqui por altura da apresentação da última Pour lire S. Paul (2008) , surge agora Reynier com nova obra, a única actualmente em francês que se debruça a estudar de maneira científica as viagens de S. Paulo em si mesmas. Para todas essas viagens que empreendeu elas «moldaram a sua personalidade e a sua missão» (218) utilizou naturalmente o Apóstolo das gentes os meios de transporte e as infra-estruturas terrestres e marítimas existentes na sua época, isto é, a rede de comunicações de que estava dotado o mundo romano do século I da nossa era: «O estudo das infra-estruturas e dos meios de transporte permite-nos compreender que as suas viagens, quer as efectue por terra ou por mar, são extenuantes e perigosas. ( ). Ele não procura correr riscos. Nem muito menos um qualquer desempenho. As suas viagens são as de uma testemunha, que, de acordo com a sua vocação, anuncia a Boa Nova» (217); «Estas idas e vindas são indispensáveis

para difundir a mensagem evangélica e fundar as comunidades. Revelam-se igualmente indispensáveis para fazer crescer as comunidades no conhecimento de Cristo, nutrir a fé e consolidar a sua expressão» (218). As viagens paulinas processaram-se por círculos concêntricos, partindo do Oriente em direcção ao extremo Ocidente, optando o Apóstolo pelos cruzamentos de itinerários mais importantes ou pelas grandes cidades marítimas para aí se instalar e fundar comunidades cristãs: «Isso não deixa de evocar a maneira como se desenvolveu o próprio império. Com efeito, Roma cresceu pouco a pouco a partir do centro que ela representava para se alargar até aos confins» (230). Com o propósito de reconstituir todas essas viagens, recorre a A. aos testemunhos contemporâneos de Paulo e às mais recentes descobertas da arqueologia e da historiografia que permitem esclarecer as fontes documentais tradicionais, ou seja, o livro dos Actos dos Apóstolos, «que faz de Paulo um viajante e contribui para forjar uma certa imagem das missões paulinas» (8), e as próprias Epístolas de Paulo, as quais «nos informam sobre os lugares que ele atravessou e onde viveu entre 44 e 60 da nossa era», mencionando também «as províncias que ele percorreu devendo entender-se província no sentido romano do termo, isto é, como um espaço político tais como a Galácia, a Acaia, a Ásia ou a Macedónia» (7). O Apóstolo percorreu «centenas e mesmo milhares de quilómetros» desde Tarso,

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sua cidade natal, até Roma, capital do império romano. Essas deslocações «exigiram da parte de Paulo tanta energia como a que ele teve de desenvolver para pregar e ensinar», segundo deixam entrever as cartas que não constituem, todavia, um diário de viagem nem, muito menos, um guia turístico: «O seu objectivo é anunciar o Evangelho e encorajar as comunidades. Procedendo assim, elas dão a adivinhar a maneira como Paulo se concebe o mundo e as viagens» (8 e 9). Estudar estas viagens de Paulo, na linha do que é feito no presente livro, é, de acordo com o seu subtítulo, dar conta delas sob o prisma das infra-estruturas (vias romanas e rotas marítimas), da logística (meios de transporte, meios de subsistência) e dos itinerários: «Esses são aspectos essenciais para situar o Apóstolo no seu tempo, e para assim melhor o reconhecer e mais perfeitamente captar as condições em que se difundiu a mensagem cristã» (8). Por isso, seguir S. Paulo em todas as suas excursões e permanecer com ele nos lugares por onde decidiu passar ou demorar-se algum tempo, é poder captar ao vivo a maneira como se foi constituindo e organizando o próprio Cristianismo. Bem consciente de que os impérios não são eternos e de que a história inteira está orientada para o retorno do Senhor, Paulo reage, todavia, do ponto de vista cultural tanto por efeito da sua cultura grega como da sua cidadania romana à maneira de um Romano no modo de encarar o mundo e mantendo bem viva a consciência de uma tarefa singular a cumprir, olhando por isso, geograficamente, do lado do Ocidente: «Se Paulo se dirige sempre mais para oeste, não é por ser obrigado a isso. Atraem-no o mundo egeu

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primeiro, depois os confins do Ocidente . Tal é a opção de Paulo expressa nas suas cartas. Sob este aspecto, Paulo é o anti-Jonas: o profeta de Nínive tenta escapar à vontade de Deus ao embarcar com destino a Tarso (Gades). Para Jonas, trata-se da fuga por excelência; para Paulo, trata-se de uma vontade determinada como o indica a carta aos Romanos (Rom. 15, 23-24.28). ( ). Mesmo se o meio judeu desempenha o seu papel, Paulo define a sua missão no quadro das províncias romanas (Síria, Cilícia, Galácia, Acaia, Ásia, Macedónia) e não por relação a regiões ou povos. Instalando-se em cidades como Corinto ou Éfeso, Paulo frequenta ou estabelece-se em cidades dinâmicas por motivo da sua função administrativa ou da sua situação de encruzilhada: por exemplo, Antioquia, Filipo, Corinto, Éfeso. Não opta por fazer viver as comunidades cristãs à distância de sectores urbanos nem fora de zonas povoadas do império. As comunidades estão bem inseridas na cidade» (229-230). Há, por fim, a referir a atracção dominante de Roma (caput mundi) sobre Paulo, com toda a força simbólica que a Cidade (Urbs) começou a desempenhar depois de Augusto e, também, como ponto de equilíbrio capaz de realizar a síntese das culturas que ia assimilando sem as destruir, ao ponto de Ovídio (Fastos II, 683-684) escrever que o espaço de Roma é simultaneamente o da cidade e o do mundo. Tudo isso nos motiva a atentar com mais clarividência nos verdadeiros desígnios de Paulo: «A missão paulina procura atingir este centro não pela glória que ele representa mas pela sua função política e cultural porque a Cidade é a expressão do mundo organizado e


culturalmente em pleno progresso. Para Paulo, Roma não é um termo, mas antes um ponto de partida para os confins ocidentais latinos, sem que, todavia, isso o separe das comunidades da Ásia Menor ou da Europa. ( ). O génio do Apóstolo soube tirar proveito das infra-estruturas e da logística que o império lhe fornecia» (230-2319). Isidro Ribeiro da Silva.

Economia BERNSTEIN, David; FRASER, Beau; SCHWAB, Bill: Morte às vacas sagradas. 206 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2009. (19,51 -)

Quando ia nas páginas 60 deste livro, o

jornal que folheio sublinhava na primeira estes dois títulos: «governo de centro precisa-se» e «gestores de topo enchem consultórios de psiquiatria». Mais para o fim, dupla página ilustrativa provava que os albatrozes, voadores de alto, estão a ser apanhados no isco da extinção (22.III.09). Na crise da depressão e falência, «há quem aproveite para travar a alucinante rotina profissional que nunca conseguiu romper». Não fiz ligação; ela estava feita. «Vacas sagradas encontram-se entre nós desde 1700 a.C.». Mas não estamos no Rigveda nem na Índia, onde ninguém pensa acabar com as vacas sagradas. Nem nos interessa o nacionalismo e sim a oikos-nomia ou gestão. Economia, sociedade, ecologia e política moram na mesma casa: quando uma descola das outras, deforma-se e canceriza.

Não sei bem o que é combuca no Brasil. Mas ficou-me, há muito, de memória o ditado: macaco velho não mete mão em combuca a ganância é uma ratoeira. E o curioso é que a própria ciência económica, tida por norma de boa orientação social e política, acabou por deixar-se cair na sua armadilha e, como macaco inexperiente, meteu mão em combuca. Quem se mede pelo que ganha «tende a ter uma visão exagerada do seu próprio valor». A informação recente da crise actual diz-nos que a AIG (seguradora americana) enterrou a mão até ao cotovelo, recebeu milhões para não ir à falência e dias depois dava prémios ou bónus astronómicos a quem a fez falir. Outros maus exemplos e colapsos surgiram pelo mundo inteiro. Humor: deste maná é que virão as manadas a abater? Há quem diga: «Por vezes, deve-se deixar que o bom senso esmague a tirania de uma Vaca Sagrada» (39). Nem se trata directamente de pessoas mas de ditos, normas e costumes estabelecidos, bolorentos, habituais. «À mercê de uma Vaca Sagrada pode estar a meter-se em sarilhos» (12). Quanto à pessoa, o mais que se pode dizer é que quem não vive como pensa, acaba por pensar como vive . Não é precisa a imagem de capa nem o título do livro para nos sugerir a morte das vacas sagradas ou mesmo convencer-nos a apontar-lhes o golpe de misericordioso remédio como impõem ou sugerem os G20 (2.IV.09). Contudo, a mensagem do livro e dos autores não vai tanto à morte de vacas sagradas (título) quanto ao remédio para as salvar da liquidação: Como os homens de negócios de sucesso mandam pastar as vacas sagradas (subtítulo). Exemplo de vaca sagrada: o cliente tem

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sempre razão após esta, vem um rebanho de outras. A banir, «como um serviço à humanidade». Mais curioso ainda é que a edição original para Estados Unidos e Canadá saiu em 2007, antes de a crise financeira ter por lá desencadeado o toque a rebate; não mudaram as «muitas vacas sagradas que pastam realmente no mundo empresarial» apesar de ser mais que tempo de alguém as abater. Então, para garantir os negócios de sucesso que precisamos, mandem-se pastar as velhas regras sagradas de ultrapassada e descontrolada economia. A situação degradante por onde se estava a andar exige outra escola de aprendizagem, outras regras de boa gestão. Mas ponto de partida e método de exposição só se aprende a bem pensar e a bem gerir uma boa casa em bom ambiente de bom humor e bom coração. Com alegria e a sorrir. Para melhor ambientação o tema é exposto em referência aos três períodos da existência (também empresarial): bezerros, vacas, carcaças. Visando, com maior insistência, a vida longa, útil e produtiva do período intermédio, que garante a perenidade da gestão e da empresa. F. Pires Lopes.

Espiritualidade HONORÉ, Cardinal Jean: Les mots qui disent la foi. 189 págs. CERF, PARIS. 2009 (19,00 -) «Convém não levar apenas o nome de cristão mas sê-lo também» (58) uma linha de força, repisada aqui de muitas formas pelo A. (bispo emérito de Tours,

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depois nomeado cardeal, e conhecedor exímio do pensamento de Newman), mas não sem frisar claramente que é a própria «modéstia» das páginas que nos deixa, que as recomenda à nossa atenção: atente bem o leitor no termo modéstia para ajustar expectativas sobre este «pequeno manual da fé» (7). Na verdade, estas páginas mais não pretendem do que «lembrar a dupla evidência: a fé diz-se e diz-se com palavras. Trata-se simplesmente de colocar as palavras nas coisas para que as coisas estejam sob as palavras». Procura assim o A., seguindo S. Agostinho, falar «de tal maneira que o ouvinte escute, que escutando creia e, acreditando, espere e ame» (10). A motivação forte em que assenta o livro de Honoré reside na constatação de que, apesar de todo o esforço para atribuir «o devido lugar à Palavra de Deus na formação cristã ( ), observa-se ainda, a todos os níveis e em qualquer idade, uma certa deficiência, senão uma carência real, na aptidão em falar da fé» (7), quer seja por pobreza de linguagem geradora, tantas vezes, de inexactidões ou de lamentáveis confusões quer seja por se tentar fugir ao incómodo da questão, quer seja, em suma, por ausência de um mínimo de cultura religiosa que se traduz, antes de mais, pela incapacidade de utilizar os termos adequados para falar de religião. Essa incapacidade torna-se mais sensível, naturalmente, quando está em jogo a responsabilidade do próprio cristão na profissão da sua fé e, consequentemente, no testemunho que dela deve dar: «Não se fala de religião porque não se pode falar dela. E não se pode falar dela porque não se tem as palavras para a dizer» (8). As palavras são, assim, indis-


pensáveis para vestir a verdade religiosa, para lhe oferecer o seu rosto e libré, e para lhe permitir, dessa maneira, que se possa inscrever tanto no quotidiano das pessoas como na vida da cidade. Salienta o A. que as palavras necessárias para exprimir e dar sentido à verdade religiosa não são assim tão numerosas que as não possamos entender e compreender: «É preciso persuadir-se que com cinquenta ou sessenta palavras, demos a volta ao maciço das verdades que dão sentido e coesão aos mistérios do Credo» (Ib.). Foi precisamente para relevar essas palavras que fazem parte do vocabulário cristão, que Honoré redigiu o presente «compêndio doutrinal», que não é um tratado sumário de teologia nem visa, muito menos, substituir o catecismo ou uma abordagem teológica: «Destina-se a quem queira penetrar na paisagem da fé, descobrir os caminhos que a atravessam e aprender as noções que a descrevem» (9). A sucessão dos artigos que compõem o vol. inscreve-se em torno de três eixos da fé, correspondentes, aliás, à distribuição clássica que considera que essa fé deve ser crida, celebrada e vivida: Verdades do Credo; Liturgia e Sacramentos; Moral e Decálogo. Três citações, apenas: «O sinal da cruz manifesta a fidelidade à aliança de Deus que foi selada no baptismo» (12); «O que a razão nos ensina de Deus, permite-nos a sua Palavra, contida nos livros sagrados da Bíblia, conhecê-lo na sua verdade mais profunda» (16); «No coração da revelação aparece a Aliança. Ela significa a relação de Deus com o homem que Ele criou» (33). Em suma, na sua ambição de dar resposta à necessidade de conhecer e compreender as palavras que exprimem a feli-

cidade de crer, aproxima-se dalgum modo o A. do desígnio de S. Cirilo de Jerusalém, expresso nas suas Catequeses baptismais: «A fé cujo texto acabas agora de ouvir, guarda-a na memória. ( ). Não foi o capricho dos homens que compôs este resumo da fé. Escolhemos os pontos mais importantes através de toda a Escritura, para recapitular o conjunto da fé. Este símbolo da fé, em poucas palavras, envolve toda a ciência da piedade contida no Antigo e no Novo Testamento ». Isidro Ribeiro da Silva.

Filosofia CHANTRAINE, Georges: Henri de Lubac. Tome II. Les années de formation. (1919-1929). 843 págs. CERF, PARIS, 2009. (56,00 -)

Trata-se do vol. VII de «Études Lubaciennes», ou Obras completas de H. de Lubac (cinquenta vols. já programados) e tomo II da biografia do célebre teólogo jesuíta francês, na sequência do anterior aparecimento do I tomo (Henri de Lubac. De la naissance à la démobilisation (1896-1919), Cerf, 2007; cf. «Brotéria», Dez. 2007, 502-504), também da autoria do Professor emérito da Faculdade de teologia jesuíta de Bruxelas e Vice-presidente da Associação Internacional Cardeal Henri de Lubac. Abrange o presente vol. dez anos decisivos de formação específica na Companhia de Jesus que, como mais tarde se veio a verificar, constituíram de facto um período marcante para o futuro destino, como filósofo e como teólogo, do autor 615


de Drama do humanismo ateu (1944) e de Sobrenatural (1956). Sobretudo a etapa do Magistério e os anos do curso de Filosofia representaram, no caso de H. de Lubac, um tempo privilegiado de formação, ao propiciarem ao jovem religioso, dotado de raro sentido metafísico, uma notável riqueza de intercâmbios com conhecidos vultos da filosofia e ainda de rara oportunidade para a elaboração de trabalhos filosóficos. A esses anos de consistente enriquecimento intelectual e de progressiva consolidação no domínio da filosofia consagra aqui o biógrafo páginas de grande interesse e, em muitos aspectos, algo surpreendentes, também, para os menos informados. Ao acompanhar esse percurso, toma naturalmente Chantraine em linha de conta que o futuro teólogo francês iria confrontar-se de maneira constante com a questão filosófica e sempre a um alto nível de questionamento: «Como iremos advertir, o aprendiz jesuíta entusiasmou-se imediatamente pela filosofia, desde que foi introduzido nela de maneira correcta: efervescente de conceitos, impaciente por leituras e impondo-se como agitador de ideias já temível, atingiu, em muito poucos anos, um grau de maturidade especulativa verdadeiramente fora do comum ao ponto de elaborar o esboço de um verdadeiro sistema» (11). Descobrindo, passo a passo, a originalidade e a superioridade do sentido metafísico do conhecido mestre de Fourvière (Lyon) na precisa altura em que ele se entregava com extrema aplicação ao cultivo da sua própria paisagem mental e fazia, ao mesmo tempo, as suas opções de fundo podemos atentar com maior evidência na matriz filosófica das suas futuras intuições propriamente teológicas.

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Essa descoberta acabará por se repercutir, logicamente, na compreensão de toda a produção teológica do perito do Concílio e futuro cardeal: não devemos «desprezar o papel arquitectónico, para a teologia, desta infra-estrutura que organizou, a partir de dentro, o seu trabalho» como teólogo (12). Vendo as coisas com um mínimo de subtileza, fácil é constatar que o tecido intelectual que organiza o travejamento dos trabalhos teológicos do P. de Lubac é de ordem metafísica, ao ponto de se correr o risco de desmembrar o seu pensamento se esse aspecto for alguma vez negligenciado ou posto de parte: «Henri de Lubac realizou obra de filósofo ele fornece-nos, sem dúvida mais do que muitos outros, os meios históricos para pensar que o destino da teologia está necessariamente ligado ao da metafísica» (23). Daí que o vol. biográfico que temos entre mãos transcenda no total o anedótico para se impor como uma das chaves essenciais mas chave de natureza filosófica, naturalmente para a cabal compreensão daquilo que de Lubac quis dizer no plano teológico. Um exemplo, apenas, ilustrativo da maneira como o instinto intelectual do teólogo jesuíta reagia contra a mediocridade de certos racionalismos estreitos: de Lubac pretendeu evitar que a dissensão kantiana, e também neo-tomista, do ser e do espírito se prolongasse ao privilegiar indevidamente qualquer um dos dois pontos de vista; mas isso, é claro, sem sobrevalorizar também o sujeito como se ele fosse a condição do ser: «Sensibilizado no mais profundo dele mesmo à presença de Deus na alma, Lubac quer somente que o caminho do absoluto passe francamente pelo homem que tomemos enfim em conta a intimi-


dade inenarrável, e tão acentuadamente negligenciada, do dom do ser com o consentimento do espírito» que, para de Lubac, «é um tropismo do amor votado à unidade absoluta, incapaz de se contentar com menos do que Deus» (21 e 19). Aos vinte e quatro anos, decidiu-se de Lubac a colocar toda a sua reflexão sob o patrocínio de S. Tomás de Aquino, mas na linha de interpretação que dele dera o P. Rousselot (cf. E. Tourpe, «Au príncipe de Surnaturel: le thomisme du P. Rousselot» in Revue des sciences religieuses 87/2, 166-182), isto é, não deixando reduzir a doutrina do doutor angélico ao racionalismo vulgar de certa neo-escolástica então triunfante: «longe de ter sido o mestre do raciocínio e do conceito abstracto, o Aquinate tornava-se, sob a focagem de Rousselot, um filósofo eminente do espírito, encarado segundo o seu dinamismo e o seu amor» (20). Apoiando-se em S. Tomás «socorrendo-se do Tomismo de Etienne Gilson» mas situando a doutrina tomista «no campo mais vasto da tradição filosófica e teológica», e aderindo «ao dinamismo do pensamento agostiniano» (744) , inspirando-se em Rousselot e, sobretudo, em Blondel e S. Agostinho, o jovem estudante jesuíta dedica-se a ler, sob a orientação de Delbos e de Bréhier, Platão, Aristóteles, Descartes, Pascal, Spinoza, Leibniz, Kant, Fichte, Hegel, Maine de Biran, Renouvier, Lachelier, Bergson e Hamelin: «A partir destas numerosas leituras, elabora um pensamento filosófico, atestado por numerosos e breves estudos, que é de grande valor mas pouco conhecido até ao presente: distinta da de Bergson, próxima da de Rousselot, a intuição é para ele o desejo do espírito voltado

para Deus, princípio do conhecimento de Deus; ela é o Acto fundamental . O espírito é o autor do acto. É anterior às faculdades da inteligência e da vontade. A filosofia de Maréchal ensinará ao nosso filósofo a ver no juízo a capacidade que tem o espírito de afirmar o ser e a afirmabilidade do nosso conhecimento futuro, como ele diz. ( ). O centro, original, de uma metafísica como esta encontra-se no vínculo entre Ser e liberdade, objecto de um dos seus estudos. Não podemos pensar o ser senão no movimento do espírito para o seu fim, que é o Ser absoluto. A relação a Deus, é a própria definição do espírito . ( ). Tendo-se tornado autónoma a filosofia, desde Descartes, ele impele-a para além dela mesma pelo movimento do espírito, que é livre» (750). Em suma, terminados os anos de formação em referência, H. de Lubac, finalmente sacerdote da Igreja católica, «empenha-se em renovar ( ) o pensamento e a vida da Igreja em França, estabelecendo a ligação entre uma filosofia que une a tradição antiga, a dos Gregos, retomada por S. Tomás de Aquino, e a tradição moderna iniciada com Descartes e da qual Blondel é o representante por excelência, e por uma teologia que, recebendo o mistério da Trindade e da Incarnação, aceita dar o salto na luz . É o que ele se encarregará de elaborar e de praticar, no decurso dos dois períodos seguintes da sua vida e da sua obra, no ensino e no deserto (1929-1960), no Concílio e nos debates pós-conciliares (1960-1991), lutando «contra todas as formas da mediocridade de pensamento e contra o integrismo» (755-756). Isidro Ribeiro da Silva.

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HEISIG; James W.: Les philosophes du néant. Un essai sur l école de Kyoto. 481 págs. CERF, PARIS, 2009 (58,00 -).

Versão francesa de original Americano sob o título Philosophers of Nothingness. An Essay of Kyoto School (2001), sendo seu A. um professor de renome na universidade Nanzan, além de membro permanente do «Nanzan Institute for Religion and Culture», Nagoya (Japão). A obra introduz-nos, com rara mestria e notória profundeza, a uma corrente de pensamento porventura ainda não adequadamente vulgarizada no Ocidente a chamada escola de Kyoto mas que assinala uma viragem decisiva na história das ideias. Essa corrente de pensamento, cujos grandes expoentes são Nishida Kitarô (1870-1945), Tanabe Hajime (1885-1982) e Nishitani Keiji (1900-1990) pensadores que «partilham fundamentalmente as mesmas hipóteses de trabalho» (27) constitui o primeiro contributo de reconhecida consistência e originalidade que o Japão proporcionou ao pensamento filosófico de tipo ocidental. Na verdade, essa referida escola veio enriquecer o pensamento ocidental com uma perspectiva especificamente oriental que remonta às fontes chinesas e indianas dessa mesma perspectiva e se articula em torno da noção de nada noção muitas vezes apresentada como um correspondente asiático ao ser ocidental. Convém, no entanto, advertir logo de início o seguinte: «é preciso notar também que os filósofos de Kyoto abordam o pensamento ocidental como um todo que abrange não apenas o conjunto da filoso618

fia mas igualmente o conjunto da religião, da ciência e da literatura» (28). Porque os anos de formação da corrente de pensamento em causa, na sua génese e na sua evolução, coincidiram com um período de intenso nacionalismo e de forte militarismo no Japão, acabou por se registar, logicamente, um certo atraso no seu reconhecimento, tanto no interior como no exterior do país. Todavia, neste dealbar do século XXI, foi-se tornando cada vez mais evidente quanto todo esse trabalho filosófico de vulto, elaborado na confluência das tradições do Ocidente e do Oriente e agora finalmente liberto de mal-entendidos, representa de facto um desafio ímpar, «estruturado e bem informado» (15), para a redefinição do projecto filosófico e da própria história da filosofia, se atentarmos bem nas apostas ontológicas e religiosas que a produção filosófica da escola de Kyoto «menos uma escola no sentido ordinário do termo do que uma espécie de vitalidade académica» (17) realmente apresenta. Além do seu carácter introdutório, de teor deveras sugestivo, a presente obra comporta também «as conclusões e avaliações» (43) do A. sobre toda a temática versada. Os filósofos do nada adquiriu, de imediato, o estatuto de um clássico incontornável na literatura consagrada à referida escola japonesa, tornando-se desse modo passagem obrigatória para quem actualmente se interesse pelas várias facetas filosóficas, «muitas vezes complexas e contrastadas» (7), dos seus três principais representantes Nishida, Tanabe e Nishitani que nos desafiam a descobrir «uma sabedoria» (13) nas suas linhas de pensamento e que vieram inequivocamente


contribuir para conferir uma nova dimensão à filosofia mundial: «os filósofos de Kyoto produziram uma filosofia de envergadura mundial que pertence de pleno direito à nossa herança, tanto como as filosofias ocidentais com as quais se confrontaram e nas quais puderam haurir a sua inspiração» (23); assim, «a nossa leitura de Aristóteles e de Descartes, de Kant e de Hegel, de Heidegger e de Nietzsche deveria ser diferente depois de ter lido Nishida, Tanabe e Nishitani» (22). Um alerta, porém, a ter em conta, logo de entrada: garantindo manter o equilíbrio nas suas considerações, anuncia-nos frontalmente o A. a sua própria conclusão: «é preciso, deliberadamente ou não, ignorar a maior parte dos escritos destes pensadores para chegar à conclusão que a inspiração fundamental que o seu pensamento veicula se aproxima, de uma maneira ou de outra, da ideologia imperialista do Japão em guerra. E se alguns deles deram abertamente o seu apoio, este apoio só pode ser considerado como uma aberração relativamente aos seus próprios objectivos intelectuais» (19). Foi por isso que, nos anos 1970, o nome de escola de Kyoto tinha praticamente desaparecido do uso e se havia esbatido igualmente o interesse pelas filosofias das três figuras centrais atrás citadas. Nos últimos anos, porém, o mundo filosófico japonês, numa grande maioria, parece «ter encontrado a sua própria posição, comedida, equilibrada, concernente a esta questão» (Ib.). Se a tradição filosófica ocidental registou o longo processo de amadurecimento de muitos séculos que lhe conhecemos, o mesmo não se pode dizer acerca da filosofia oriental aqui em referência: «Os Japoneses entraram na tradição filosófica

sem esta história e foram confrontados de repente com as preocupações neo-kantianas para a epistemologia, a metodologia científica e a ultrapassagem da metafísica» (27). Além disso, «há uma tese essencial que eles não partilham com a filosofia ocidental no seu conjunto: a demarcação clara entre filosofia e religião. Este ponto é tanto crítico como difícil de resumir» (28). A esse propósito, assim se expressava o principal discípulo de Tanabe, Takeuchi Yoshinori, aqui citado: «A vida da religião inclui a filosofia enquanto sua contrapartida, uma espécie de força centrífuga para a sua própria tendência centrípeta. ( ). É uma filosofia que transcende e supera as pressuposições da metafísica» (29). Mais ainda: «A teoria simbólica, primordial no Ocidente, falta à história intelectual do Japão» (31). Por outro lado, os três filósofos de Kyoto falam regularmente de Deus (não só da ideia de Deus tal como aparece na filosofia e na religião do Ocidente), mas sem que isso signifique confessar uma crença num ser divino: «não se faz qualquer esforço para qualificar este termo como um símbolo da realidade última ou como um princípio metafísico; não se trata também de uma realidade ontológica objectiva nem de uma ficção subjectiva. Trata-se aqui de um dos aspectos mais desconcertantes da filosofia da escola de Kyoto, mas também de um dos mais significativos» (31-32). É sobre este ponto que acrescentará mais adiante o A.: « a noção de Deus, quer seja compreendida metafisicamente ou simbolicamente, pode servir como ponto focal para levar as críticas avançadas pela filosofia do ser a incidir mais directamente sobre a questão da suficiência de uma pura filosofia do nada» (331).

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Concluindo, de modo sumário: Mesmo tendo em conta todas as reservas aqui apontadas, «os filósofos da escola de Kyoto oferecem ao Ocidente uma via real para penetrar o Oriente, uma via sem termo de comparação. Não se trata de um pensamento oriental edulcorado para ser consumido no estrangeiro nem de uma simples transposição que suporia uma familiaridade de todos os instantes com a história das ideias orientais. Trata-se de um contributo inédito à filosofia mundial que simultaneamente respeita as tradições filosóficas e as amplifica. ( ). Jamais o Ocidente produziu um movimento intelectual cujo contributo ao Oriente possa ser comparado àquilo que estes três pensadores ofereceram ao Ocidente» (337). Todavia: «O Ocidente a propósito do qual eles escrevem é altamente selectivo, centrado sobre a história intelectual e, no seio da história intelectual, sobre a filosofia e, no seio da filosofia, sobre a filosofia continental que vai de Descartes a Heidegger» (336). Em suma: «No contexto da filosofia ocidental, os filósofos de Kyoto devem ser considerados como uma escola de pensamento derivado. Nenhum deles manifesta o tipo de originalidade revolucionária que associamos geralmente com os pensadores que mais os marcaram com a sua influência: Kant, Hegel, Nietzsche, James e Heidegger. Mas também não se distinguem enquanto especialistas de um ou de outro destes pensadores. O seu contributo ao pensamento ocidental, como tal, foi elaborado a partir daquilo que eles retiveram, de maneira crítica e criativa, mas sem provocar um grande abalo no sentido daquele que se produziu, por exemplo, com a fenomenologia e o existencialismo» (336). Isidro Ribeiro da Silva.

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História ABREU, Luís Machado de (coord.): Novas variações sobre tema anticlerical 140 págs. CENTRO DE LÍNGUAS E CULTURAS DA UNIVERSIDADE DE AVEIRO, 2005. (10,00 -)

Incidências anticlericais. 178 págs. CENTRO DE LÍNGUAS E CULTURAS DA UNIVERSIDADE DE AVEIRO, 2006. (10,00 -)

Mau grado as jocosas imagens de capa, magnos problemas e do maior interesse para cada pessoa e para a humanidade se abordam nestas colectâneas de tema religioso e interdisciplinarmente analisado. 1. Em tempos democráticos, as épocas de anticlericalismo esquecem. Ao menos na vivência concreta, apesar de alguns esturrados que sempre cantam fora do coro. É então que a olvidada visão de esguelha suscita o interesse histórico e cultural de objecto de estudo até para correcção de perspectiva. Ainda que estes volumes abordem, à maneira de revista, estudos de vários autores e sobre temas separados, há alguma afinidade geral a que o coordenador garante certo ângulo de conjunto. Com surpresa deparámos com o primeiro tema: pode a arte ser jesuítica? Se até deu estilo arquitectónico, claro que pode que alguns lhe associem insinceridade e pompa , isso já é à conta deles. O tema seguinte foca a fragilidade monacal mesmo nos chamados Padres do deserto . Interessante o apontar alguma intersecção entre misticismo e anticlericalismo misticismo laico ou cristianismo não confessional ? que outros autores encontram


logo depois no ateu-místico Manuel Laranjeira como vertigem de outra luz, auscultado em Herculano e Júlio Dinis, para terminar com outra surpresa, a possível correlação misoginia-masculinidade e talvez com boa dose no q.b. de certo anticlericalismo, tanto prático como de facção. Como sublinha o coordenador, sobressai a vontade de agitar ideias feitas (nesse ponto passadistas) mas sem paixão e com o desejo de endireitar menos críticas mentalidades populares, mediante caminhos abertos para novas viagens. E o antijesuitismo que por aqui se exprime vai ainda na corrente da enxurrada pombalina. 2. A mesma atitude histórico-cultural se cumpre na colectânea seguinte, do ano 2006, com mais oito ensaios e alguma variação de articulistas que, no grupo de base, integram o Centro de Línguas e Culturas e há anos vem estudando a fenomenologia do anticlericalismo expresso na cultura portuguesa, em especial na literatura escrita, oral (rifoneiro), caricatura e mesmo linguagem comum. Como período de maior intensidade ostensiva, estes volumes têm focado sobretudo as épocas da Monarquia Constitucional e da Primeira República, na esteira da linha de aprofundamento de cada investigador. Mas invocar ou misturar o céu na terra, se pode parecer profanação também pode exprimir alta inspiração poética e elevação de sentimento. De resto, a má vontade nota-se à légua, e então o que a uns pode parecer incidências anticlericais a outros soa mesmo a incidências eclesiais , como no sublinhado anticlericalismo protestante. Com este se liga medularmente o antijesuitismo pombalino e posterior

(sobre o qual J. E. Franco escreveu O mito dos Jesuítas, em 2 vols., sua tese de doutoramento, onde prova que Pombal foi o maior forneiro de antijesuitismo português e europeu). Também chamados à pedra Garrett, os Bordalos (caricatura) e os sonetos de Oliveira Guerra aparecendo como tema novo os feriados religiosos com Salazar (1952) e (em francês) uma esquematização teórica do ateísmo. Anterior a estes volumes deve ter sido publicada outra colectânea, Variações sobre tema anticlerical (2004), que justifica o título Novas variações, agora apresentado F. Pires Lopes.

LELAIT-HELO, David: Evita O destino mítico de Eva Perón. 152 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2006. (19,90 -)

Coitada! Trinta e três anos. Não merecia a vida que teve. Vida pouca de guiar: breve, ilusória, decepcionada. Pode ficar de aviso a muita mulher jovem para não fazer da ilusão um abismo. Não há grande biografia para tal vida: Evita nascer na pobreza, sentir a fúria de viver e a avidez da paciência . Vida mais breve que o sonho (1949-1952). Quanto maior o ápice da subida, maior o fragor da queda. Ídolos com pés de barro não se auto-sustentam. Pelo mesmo autor que já biografara Maria Callas, agora (1957, 2005) a curta mas «vibrante biografia de uma filha da miséria, de uma actriz falhada, que, mesmo amada por muitos, fez pagar o preço das suas frustrações a um povo inteiro». Por muito que tenha prometido «eu voltarei e serei milhões», mais não resultou na realidade que «o romance da múmia» os últimos capítulos. 621


Na senda da ilusão dos descamisados , piores dias voltarão. Aos gritos de momentânea exaltação palaciana e na mesma praça em breve sucederão mais alto ainda os gritos das mães da Praça de Maio . Paralelamente e em fundo, a história da Argentina, com seu mau ponto de partida (17) que tanto vai pesar no futuro, até como país por construir e filho de navios . Desde novinha, «por entre troças, afrontas e humilhações», endurece «um olhar de criança já muito autoritária» (21, 27). Mas à ambição do prestígio sucede a fulminância da queda. Apesar dos 25 anos que os separam, ambos voluntariosos, calculistas e intuitivos, Eva e Perón, visionário e passionária , embarcam no populismo para a demagogia caldeados no cadinho europeu dos ismos reinantes e salvadores que levam os povos à ruína. Sucessivas vagas de poder argentinas apostam em fazer desaparecer o cadáver mumificado para a eternidade . Ao tempo que lemos, «Eva não morreu». Anda por aí como D. Sebastião, envolvida em nevoeiro. «O mito continua» (142) F. Pires Lopes.

MONROE, Laurence: États-Unis, la métamorphose hispanique. 318 págs. CERF, PARIS, 2008. (24,00 -)

Às vezes, os americanos esquecem que «a América é um país de imigrantes». «A vaga latina causa tanto medo à América, que é denunciada ou negada» (7, 11). Querendo-se exemplo, viraram escândalo. São tantos os locais com nomes católicos adquiridos a dinheiro ou a tiro que se todos os santos patronos batessem o pé era um sismo na América. Basta recordar outros tempos ( de antes da reforma , isto 622

é da Europa medieval ). Por tanto fugir das origens, talvez tenham de se converter a elas: missionários de quinhentos e Pilgrim Fathers da Flor de Maio em 1620 «a História de antes da História». Inegável e reintegrável. O último mandato da administração conservadora determinado pelo medo do terrorismo após o atentado das Torres Gémeas, deixou os E.U.A. em plena crise não só de identidade nacional mas de sobrevivência económica; crise portanto quer da sua imagem interna quer da sua missão no mundo. O peso desta actualidade avivou o interesse pelo dinâmico «factor religioso que, lenta mas seguramente, altera o modo de vida e as crenças americanas». Diplomada pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, a autora, jornalista de longa experiência de entrevista e reportagens no serviço de informação religiosa de La Croix, foi viver dois anos na América em aprofundada investigação, de que resultou este livro. Dá-nos conta que se fala bastante do peso da corrente tradicional católica, do protestantismo evangélico, dos fundamentalismos e do tradicionalismo puritano, mas «raramente se evoca o impacto do catolicismo veiculado pela imigração abundante e duradoira [uns 45 milhões], proveniente da América Latina». Pior: esse aumento exponencial do número de latinos permanece questão tabu (evitável) tanto na Igreja Católica como na população civil. Mas a promessa de mudanças necessárias , que levou Obama à presidência, faz referver ânimos e esperanças até agora amortecidos na homogeneidade instalada e instrumentalizante. Dessa vivência pasmada surge uma intensa vaga de optimismo para outro


futuro, que a autora olha como boa-nova para a América e para o mundo (subtítulo). E não há dúvida que, em toda a parte, todos os marginalizados e oprimidos, mas em especial os latinos , acordam para outra esperança e hipótese de vida nova, apoiada não só em doutrina social mas até em contra-cultura, que urgem uma teologia contextual muito inovadora que valorize certas intuições da teologia da libertação e olvide outras. Os americanos tónicos «pensam ser já o que os outros deveriam ser» (56). Us and them resume tudo e só aceitam os que aceitam became like us fora disto, longe de nós, como os hyphen-americans , em especial hispano-americanos . Há mais e melhor que o concentrado de individualismo-protestantismo-consumismo . Do alcance do livro e da análise diz o momento que vivemos, a fim de despertar, em todos, os compromissos que se impõem à cultura ocidental, à globalização e à evolução das nossas sociedades. Em síntese: «uma América mais receptiva ao que não é ela», «mais sintonizada com o mundo» e não deixando estranhos em terra própria (59ss). Para lá e mais decisivo que as questões financeiras e económicas, levanta-se o problema de coesão social, antropológica e cultural: Que é o homem ? Esse homem (nada abstracto mas subtil) que levanta fermentações nacionais e internacionais, de que os latinos (e imigrados em geral) trazem o fermento, na pele e na vida. Daí e por isso, o enorme desafio hispânico à metamorfose da América toda, nação e continente. Em causa, «a receptividade americana à diferença e à complexidade, dentro e à volta dela, por-

que da natureza dos laços sociais nos E.U.A. depende a relação da América com o resto do mundo». Os bispos já reconheceram na presença latino-americana «um dom providencial para a evangelização» (150). De repente, lembra-me a resposta de um ex-embaixador americano à pergunta quem no mundo teria poder para dar resposta à crise actual ; depois de pensar um pouco, disse: «só um Papa». E acertou. Primeiro, porque «a verdade que devemos aos homens é antes de mais a verdade sobre eles mesmos» (João Paulo II, em Puebla, 1979); depois, porque só a força da fé quotidiana e do cristão em particular (acerca do papel da comunidade no acto de crer, acerca da herança colectiva em hora de individualismo triunfante, acerca do sentido de Igreja e da sua missão enquanto assembleia missionária) pode trazer-nos a salvação para a vida e para a eternidade. Lição já aprendida por alguns mas que custou a aprender: «l unité passe par le partage eucharistique» (176). Por todas as dimensões vitais (história, riqueza, comunidade, mundo), sabemos agora por que vem este livro na colecção l histoire à vif da editora: a urgência cívico-religiosa de procurarmos melhorar o futuro da humanidade. E quem mais pode, mais deve. Humanismo e espiritualidade contra egoísmo e materialidade. «Os pobres têm maior poder evangelizador» (260). O próximo só existe se o fizermos, fazendo-nos. A consciência muda as prioridades. Para corrigir os erros, «ouvir o que dizem os acontecimentos» (296). Bem comum? Só o será quando repartido. Aos perdidos no egoísmo os latino-americanos lembram a importância de viver com outros. Da abertura, do diálogo e da com-

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preensão mútua virá a comunhão único laço real que faz comunidade real: dar e receber em amor, com presença e dinâmica relacional. «A Igreja Católica vai mudar. Deixar de ser uma certa Igreja dominante. Outra Igreja está a nascer» (141ss). A verdadeira globalização é económica e cultural: uma história, uma comunidade. A ponte recente estabelecida

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por Obama com a América Latina, na cimeira latino-americana em Trinidad-Tobago, permitiu maior aproximação e esperança de diálogo para melhor acção conjunta. Mas os problemas continuam à espera de soluções, em particular a muito sublinhada exigência de levantamento do bloqueio à grande ilha vizinha. F. Pires Lopes.


obras recebidas na redacção

OFERTA DOS AUTORES FEIO, Rui, Gestão de projectos com Microsoft. Project 2007, Lisboa, FCA - Editora de Informática, 2008. MATOS, Maria Vitalina Leal de, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, Lisboa, Verbo, 2004. PINTO, Jaime Nogueira, Nuno Álvares Pereira, Lisboa, Esfera dos Livros, 2009. RODRIGUES, Ana Maria S. A.; FERREIRA, Manuel Pedro (coords.), A catedral de Braga. Arte, liturgia e música dos fins do século XI à época tridentina, Lisboa, Arte das Musas, CESEM, 2003. (oferta do coord.)

OFERTA DOS EDITORES Aletheia Associação Cultural e Científica Praça da Faculdade, 1 - P-4710-297 Braga: 1) BRITO, José Henrique Silveira de (coord.), Ética, justiça e cuidados de saúde, 2009. 2) SILVA, Marco, Os passos em volta de Herberto Helder. Uma viagem pelo inverso da realidade, 2009. Alêtheia Editores Rua do Século, 13 - 1200-433 Lisboa: 1) CHESTERTON, G. K., O homem eterno, 2009. 2) FIGUEIREDO, Leonor, Ficheiros secretos da descolonização de Angola, 2009. 3) HOLLAND, Tom, Milénio. O fim do mundo e a expansão do cristianismo, 2009. Apostolado da Oração Largo das Teresinhas, 5 - 4714-504 Braga: 1) CANTALAMESSA, Raniero, Vem, espírito criador! Meditação sobre Veni creator, 2009. 2) SILVA, João, S.J., Ao ritmo da palavra. Itinerário bíblico-espiritual, 2009.

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Cerf 29, bd. La Tour-Maubourg - 75340 Paris Cedex 07 (França): 1) LAFONT, Ghislain, Que nous est-il permis d espérer? 2009. CIG - Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género Presidência do Conselho de Ministros Av. da República, 32 - 1.º - 1050-193 Lisboa:

1) Convenção do Conselho da Europa relativa à luta contra o tráfico de seres humanos, 2008. 2) KORONAIOU, Alexandra, O papel dos pais no equilíbrio da vida pessoal, profissional e familiar, 2007. 3) PEREIRINHA, José António (coord.), Género e pobreza. Impacto e determinantes da pobreza no feminino, 2008. 4) PERISTA, Heloísa; SILVA, Alexandra, Igualdade de género na vida local. O papel dos municípios na sua promoção, 2009. Gradiva Rua Almeida e Sousa, 21- r/c Esq. - 1399-041 Lisboa: 1) HAUGHT, John F., Cristianismo e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, 2009. IHAC - Instituto de História e Arte Cristãs Rua de Sta. Margarida, 181 Braga: 1) Guimarães. Igreja de Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos, 2009. Peeters Bondgenotenlaan 153, - B-3000 Leuven (Bélgica): 1) DRIESSCHE, Thibault Van Den, L altérité, fondement de la personne humaine dans l oeuvre de Edith Stein, 2008. Publicações Europa-América Apartado 8 - 2726-901 Mem Martins: 1) BOOTH, Stephen, Morto por pecar, 2009. 2) COULON, Jacques de, O segredo para a felicidade. Sementes de sabedoria a cultivar, 2009. 3) COX, Josephine, A vida que nunca te contei, 2009. 4) DRAKE, Tim, MIDDLETON, Chris, O segredo da juventude. Mantenha-se eternamente jovem como sempre sonhou!, 2009. 5) FRÍGIO, Dares, Da história da destruição de Tróia, 2009. 6) LEGARDINIER, Gilles, O exílio dos anjos, 2009. 7) VERNE, Júlio, Da terra à lua. Trajecto directo em 97 horas e 20 minutos, 2009. Roma Editora Av. de Roma, 129 - r/c Esq. - 1700-346 Lisboa: 1) GAMA, João, Evangelho de um ateu, 2009. Seuil 27, rue Jacob - 75261 Paris Cedex 06 (França): 1) LEMIEUX, Emmanuel, Edgar Morin. L indiscipliné, 2009.

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Thesaurus Editora SIG, Quadra 8, Lote 2356, CEP 70610-480 - Brasília, DF (Brasil): 1) HORTA, Anderson Braga, Soneto antigo, 2009. Ukrainian Catholic University Press Vul. I. Sventsitskoho 17, 179011 Lviv (Ucrania): 1) ARJAKOVSKY, Antoine, Conversations with Lubomyr Cardinal Husar. Towards a port-confessional Christianity, 2007. Universidade de Aveiro - Departamento de Línguas e Culturas Campus Universitário de Santiago - 3810-193 Aveiro:

1) FERREIRA, António Manuel (coord.), Lusofilias, 2008. 2) SILVA, Celina, Pluralidade e convergência. Leituras, fragmento e notas acerca da teoria da literatura, 2008.

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