Dezembro de 2009 Volume 169

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C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u 6 C r i s t i a n i s m o e C u l t u ra C r i st ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ul2ra C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo VOL. e C ult ura169 C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u anjos” C r i s t i an i sm o “O e C u l tsexo u ra C r i sdos t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u António Vaz S.J. e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism C r i s t i a n i s m o A va n ç o s e c u ménicosr Pinto, ist ianismo e C u l t u ra C r i sTratado t i a n i s m o e Cde ult ura C r ist ianismo e C ultde uraum C r istlongo ianismo eimpasse C ult ura C r ist i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m Lisboa - o fim e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C rFrancisco ist ianismoSarsfield Cabral e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e oe colapso e C u l t u ra C r i sCimeira t i a n i s m o e de C ult Copenhaga. ura C r ist ianismo e Entre C ult ura aC r crise ist ianismo C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Soromenho-Marques e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C Viriato r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism O Cdebate e C u l t u ra C r i sEutanásia. t i a n i s m o e C ult ura r is t ia nis mo anunciado e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo eRoque Cabral, C ult ura C r isS.J. t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i sAt i aEuropa n i s m o e C ultna ura cultura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t do ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism portuguesa século XVI e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult Franco ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism José Eduardo e C u l t u ra C r i sCriação t i a n i s m o e Ceultevolucionismo ura C r is t ia nis mo e C ult-ura I C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r isAntónio t ia nis mo C ultS.J. ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Vaz ePinto, e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i sO t i a desafio n i s m o e C ult dos ura C r isSínodos t ia nis mo e CAfricanos ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult uraTony Neves C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r Dezembro ist ianismo e C ult2009 ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism

Revista publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902

Brotéria


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6 VOL. 169

Dezembro 2009 Série Mensal Assinatura para 2009 : Portugal 47,00 E (IVA incluído); U. Europeia 90,00 E; Outros países 95,00 E Número avulso: 5,50 E (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual


ISSN 0870-7618 Dep贸sito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.


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Brotéria

6 VOL. 169

ÍNDICE

739 António Vaz Pinto, S.J. «O sexo dos anjos» 741 Francisco Sarsfield Cabral

Tratado de Lisboa – o fim de um longo impasse

749 Viriato Soromenho-Marques

Entre a crise e o colapso. O desafio ontológico das alterações climáticas

761 Roque Cabral, S.J.

Eutanásia. O debate anunciado

771 José Eduardo Franco

A ideia de Europa na cultura portuguesa do século XVI: A afirmação da «Europa» como secularização da ideia de Cristandade 793 António Vaz Pinto, S.J.

Criação e evolucionismo – I. Nos 200 anos de Darwin

809 Tony Neves

Justiça, paz e reconciliação em África. O desafio dos Sínodos Africanos

823 Recensões 829 Índice do volume 169 836 Obras recebidas na redacção



Editorial «O sexo dos anjos»

Consta

António Vaz Pinto, SI

que quando Constantinopla (a antiga Bizância e

futura Istambul) estava já cercada pelos exércitos muçulmanos, deixando antever uma catástrofe humana e cultural, os habitantes da capital do Império do Oriente, certamente as suas elites, se apaixonavam e entretinham com algo que lhes parecia de muito maior urgência e importância: se os anjos, criaturas de Deus, puros espíritos, mas sem corpo, seriam de género feminino ou masculino, teriam ou não sexo…

Se esta «história» é verdadeira ou falsa, não interessa

muito, mas a atitude que simboliza, essa sim, importa e muito e parece ser a atitude de grande parte dos nossos responsáveis políticos e sociais: escutas, intrigas, «diz que disse», «casamento dos homossexuais», minoria e maioria, tudo isto passa à frente do que é realmente importante: o desemprego, o descrédito, a inoperância da justiça, o crescente fosso entre ricos e pobres, o enorme déficit de um país que há muito se habituou a viver acima das suas possibilidades, acima daquilo que produz…

Em 1453, Constantinopla foi finalmente conquistada, o

desastre anunciado realizou-se, tendo-se convencionado que esse acontecimento marca o fim da Idade-Média, tal a sua importância para todo o Ocidente e Oriente.

Olhando para o lado, Irlanda e Grécia começaram já a

fazer «marcha-atrás», com determinação e coragem, para evitar a «tomada da cidade». Mas nós, portugueses, continuamos a viver «no país das maravilhas» e assim podemos continuar alegremente a discutir o «sexo dos nossos anjos»… Falar verdade, 739


apontar os números reais, esclarecer as consequências de continuar no mesmo caminho, é ser desagradável, é ser profeta da desgraça, é desanimar a alma portuguesa… O importante é continuar a discussão e não estragar a festa. A continuar nesta linha e neste ritmo, o naufrágio anunciado está à vista. Só nos resta saber quantos morrem e quantos sobrevivem. Mas isso, vê-se depois!...

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Tratado de Lisboa: o fim de um longo impasse

Francisco Sarsfield Cabral  *

O Tratado de Lisboa entrou em vigor no passado dia 1 de Dezembro. Abriu uma nova era para a União Europeia? Talvez, mas pelo menos encerrou um ciclo de impasse que durou mais de uma década, ao longo da qual os dirigentes da UE estiveram sobretudo virados para dentro, tentando concretizar a reforma das instituições necessária ao alargamento da União. O Tratado de Maastricht, que criou a moeda única, foi assinado em 1992, menos de três anos depois da queda do mundo de Berlim. Já nessa altura era previsível que os países da extinta órbita soviética quisessem ingressar na NATO e aderir à UE, para se protegerem dos antigos senhores (russos), consolidarem as suas democracias renascidas e promoverem o crescimento económico.

Alargamento e aprofundamento O alargamento da UE a novos países exigia uma reforma institucional capaz de agilizar os processos de decisão. Manter para a grande maioria dos casos a regra da unanimidade no Conselho, levaria à paralisia da Europa comunitária alargada. A unanimidade era a norma geral quando a CEE nasceu, com seis países – agora contam-se 27 Estados membros e outros mais poderão vir a entrar. Note-se que o Tratado de Roma já previa decisões por maioria qualificada no Conselho, implicando uma potencial perda de soberania nacional (quando um Estado membro fosse * Jornalista.

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derrotado numa votação e a tivesse que aceitar). O general de Gaulle opôs-se, em 1965, a esta manifestação de supranacionalidade, originando a primeira crise grave na CEE. Foi o período da «cadeira vazia» (a França deixou de participar no Conselho durante sete meses), ao qual o «compromisso do Luxemburgo» pôs fim em 1966, garantindo que os Estados membros manteriam, na prática, o seu direito de veto (ou seja, prevaleceria a regra da unanimidade) quando estivessem em causa interesses vitais desses países. Em 1997, o Tratado de Amesterdão foi uma primeira, e falhada, tentativa de resposta à necessidade de multiplicar as decisões por maioria no Conselho. Seguiu-se o Tratado de Nice (2001), em vigor até 30 de Novembro de 2009, um documento negociado numa cimeira tempestuosa e que logo foi visto como inadequado. Contrariamente a muitos que defendiam estar a UE perante um dilema – alargar ou aprofundar a integração europeia – tornou-se claro que apenas se poderia alargar a União se esta aprofundasse a sua integração política, nomeadamente permitindo mais votações por maioria. Assim, no final de 2001, o Conselho encarregou uma Convenção de preparar um projecto de Constituição para a UE. Nessa Convenção, presidida por Giscard d’Estaing, participaram individualidades públicas e privadas dos Estados membros, bem como representantes dos órgãos comunitários.

Um passo em falso Em Junho de 2003 a Convenção concluiu os seus trabalhos apresentando um projecto de Constituição europeia. Menos de um ano depois dez novos países entravam para a UE; e em 2007 vieram juntar-se-lhes a Roménia e a Bulgária. Só que não se havia ainda concretizado a reforma institucional da UE. Enquanto Bruxelas impunha aos candidatos à adesão, e bem, a realização de profundas e difíceis reformas, a própria União mostrava-se incapaz de concretizar a sua reforma institucional. Não era uma situação simpática, embora possa 742


perceber-se que as negociações são sempre delicadas quando está em jogo o poder na UE, como era o caso. A Constituição europeia foi, na minha opinião, um passo em falso. Desde logo porque Giscard D’Estaing e outros participantes na Convenção assumiram desempenhar um papel semelhante ao dos convencionais norte-americanos, que em Filadélfia (1787) forjaram a Constituição dos Estados Unidos da América. E depois porque, em rigor, não se tratava de uma verdadeira constituição, mas tão só de um tratado constitucional. O problema é que as imagens federalistas, de um super Estado europeu, associadas à palavra constituição suscitaram reacções negativas em muitos países. Por isso, e por outros motivos (alguns totalmente alheios à integração europeia), em 2004 a «Constituição» foi chumbada em referendos realizados em dois Estados fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951) e da Comunidade Económica Europeia (1957), a França e a Holanda. Entrou-se então numa fase de crise aguda na integração europeia.

Enganar os cidadãos Como a França e a Holanda recusaram liminarmente a hipótese de repetir o referendo (ao contrário da Irlanda e da Dinamarca, em casos anteriores…), havia que dar a volta ao impasse criando um novo tratado constitucional, desta vez sem lhe chamar «constituição». Foi o que se conseguiu na capital portuguesa, em Outubro de 2007: nascia o Tratado de Lisboa. O Tratado é substancialmente idêntico à malograda Constituição, só que despido de elementos formais susceptíveis de darem a impressão de se tratar da base jurídica de um super Estado europeu. Os líderes dos 27 fizeram um «acordo de cavalheiros» no sentido de não submeterem a referendo o Tratado de Lisboa, alegando que este era de pequeno alcance. É que um referendo na Grã-Bretanha (onde o Governo havia prometido referendar a Constituição) daria certamente a vitória 743


ao «não», liquidando o novo tratado – que tem de ser aprovado por unanimidade, por todos os Estados membros da União. Este disfarce – fingir que o Tratado de Lisboa é muito diferente da Constituição europeia – foi, do meu ponto de vista, negativo para a imagem da UE junto dos cidadãos. Ninguém gosta de ser deliberadamente enganado. Adiante voltarei a este assunto. Num Estado membro da UE, porém, é constitucionalmente obrigatório referendar qualquer alteração aos tratados europeus: na Irlanda. Para surpresa de muitos, a Irlanda rejeitou o Tratado de Lisboa num referendo em Junho de 2008. Afinal, o impasse da reforma institucional ainda não tinha chegado ao fim. Aliás, não foi a primeira vez: em 2001 os irlandeses tinham rejeitado o Tratado de Nice, sendo necessário um segundo referendo no ano seguinte para conseguir o «sim» da Irlanda. A solução para o Tratado de Lisboa – que suscitou naturalmente críticas e ironias sobre a falta de democracia na UE – foi a mesma: repetir o referendo, fazendo certas concessões à Irlanda e dando-lhe algumas garantias. Uma dessas concessões alterou o Tratado de Lisboa na parte em que este previa que, a partir de certa altura, os países não poderiam manter sempre um nacional seu na Comissão Europeia, passando a rodar, de forma equitativa entre todos os Estados membros, um período sem comissário. Por causa da Irlanda, manteve-se afinal a regra de um comissário por Estado membro. A Comissão fica, assim, um órgão com demasiados elementos (sendo preciso «inventar» pelouros para alguns deles). Em contrapartida, é importante, sobretudo para os países que não são grandes, manterem no centro do processo de decisão comunitário um nacional que os possa informar do que está ali a ser preparado como proposta da Comissão ao Conselho (recorde-se que os comissários, embora tendo cada um o seu pelouro próprio, devem acompanhar e pronunciar-se sobre todos os assuntos da competência da Comissão). Mas para que o Tratado de Lisboa finalmente entrasse em vigor ainda foi preciso ultrapassar um último obstáculo: 744


a resistência do presidente checo, um eurocéptico que discorda deste documento e que o chegou a enviar para o Tribunal Constitucional da República Checa. Todas estas dificuldades, ao longo de tantos anos, fazem prever que tão cedo não teremos um novo tratado europeu. Dez ou quinze anos, pelo menos.

Novas regras para decidir Pouco falada agora, mas importante, foi a alteração da fórmula para definir o que é uma maioria qualificada no Conselho, quando não vigorar a regra da unanimidade. Agora é necessária uma dupla maioria para obter uma decisão: 55% dos Estados membros e 65% da população da União. Esta solução é razoável e responde à crítica dos grandes países de que era pouco democrático o sistema anterior, cuja atribuição de votos no Conselho a cada Estado favorecia claramente os pequenos países, permitindo decisões contra as quais estivesse virtualmente uma larga maioria da população da Europa comunitária. O novo sistema entra em vigor em 2014, mas até 2017 qualquer Estado membro pode pedir que a votação seja feita segundo o regime do Tratado de Nice. Por outro lado, o Tratado de Lisboa aumentou as áreas que não exigem unanimidade no Conselho, bastando a maioria qualificada para decidir. Paralelamente, o Parlamento Europeu intervirá num maior número de decisões. Antes do Tratado de Lisboa a co-decisão (Conselho e Parlamento) era necessária para 75% das medidas; agora sê-lo-á para 95%. O Tratado de Lisboa dá também um passo, embora ainda tímido, no envolvimento dos parlamentos nacionais no processo comunitário de decisão. Um terço dos Estados membros pode pedir à Comissão que reconsidere uma proposta, quando considerar que esta extravasa a competência daquele órgão (princípio da subsidiariedade). É essencial que os políticos nacionais comecem finalmente a interessar-se pelas questões europeias. De resto, o parlamento dinamarquês há muito que 745


segue de perto o processo de decisão na UE, dando instruções rígidas aos representantes do país nas instâncias comunitárias. Outra alteração de peso trazida pelo Tratado de Lisboa foi comunitarizar o antigo «terceiro pilar», o espaço de liberdade, segurança e justiça. Estas questões deixam de ser tratadas no âmbito meramente intergovernamental, passando para o chamado «método comunitário», que exige uma proposta da Comissão Europeia para que o Conselho tome uma decisão. Anexa ao Tratado encontramos a Carta dos Direitos Fundamentais. Uma Carta assinada em 2000, mas só agora tornada juridicamente vinculativa – excepto para o Reino Unido. Outros Estados membros conseguiram cláusulas de salvaguarda nesta matéria.

Perfil baixo As novidades do Tratado de Lisboa mais faladas são os dois novos cargos criados: Presidente do Conselho Europeu e Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança. As presidências rotativas, semestrais, dos Estados membros não acabam. Neste momento, com o Tratado de Lisboa em vigor, essa presidência cabe à Espanha. As presidências rotativas apenas ficam mais limitadas, visto que passa a haver um Presidente do Conselho, eleito por este órgão para um mandato de dois anos e meio (renováveis uma vez). O Tratado não define em pormenor as tarefas deste Presidente, mas a ideia prevalecente é a de que ele será sobretudo um promotor de consensos e um porta-voz do Conselho. Potencialmente mais importante é o Alto Representante, que pertence ao Conselho, mas é também vice-presidente da Comissão. Esta dupla qualidade permitirá eliminar da acção externa da UE certas duplicações e contradições que antes se verificavam. Por exemplo, algumas decisões do Conselho em matéria de política externa nem sempre eram coerentes com as políticas concretizadas por comissários com os pelouros da cooperação externa, do comércio, etc. 746


O Alto Representante dispõe do maior serviço diplomático do mundo. Significa isto que a União vai passar a falar a uma só voz na cena internacional? Talvez esta mudança institucional signifique um passo nesse desejável sentido – mas um tratado, qualquer tratado, por si só não cria políticas. Tudo vai depender da vontade dos governos. Se estes não manifestarem vontade política de avançar numa certa unidade na acção externa e na concretização de uma defesa europeia digna desse nome (sem a qual a política externa da UE continuará a ser uma miragem), então a Alta Representante, Catherine Ashton, poderá não valer muito mais do que valeu Javier Solana. E a nomeação desta britânica para Alta Representante e a do ex-primeiro ministro belga Herman van Rampuy para Presidente do Conselho indiciam que os governos querem gente de perfil baixo nestes novos cargos. O que não afasta a ameaça de uma União dirigida por um directório dos grandes países (França, Alemanha, Grã‑Bretanha) mas, em contrapartida, reduz as possibilidades de conflito entre órgãos da UE, em particular entre o Presidente da Comissão e os titulares dos novos cargos. Por isso Durão Barroso se mostrou tão satisfeito com estas nomeações.

Liderança política Este Tratado dá alguns pequenos passos para democratizar a UE. Mas não chega. O projecto europeu tem vindo a perder terreno nas opiniões públicas dos vários Estados membros, incluindo nos que entraram há pouco tempo e antes faziam parte do império soviético. Reforçam-se os poderes do Parlamento Europeu, mas desde que, há trinta anos, as eleições para esta assembleia começaram a ser directas a abstenção subiu sempre. Os «nãos» em vários referendos – em França, na Holanda, na Irlanda, etc. – indiciam, também, um preocupante alheamento dos cidadãos em relação à UE. Tendência inequívoca que as sondagens do Eurobarómetro têm vindo a confirmar, ano após ano. 747


E o mais preocupante é que os responsáveis políticos nacionais e os dirigentes comunitários não têm encarado a sério este problema, que poderá liquidar a integração europeia. A maneira ínvia, atrás referida, como «passou» o Tratado de Lisboa é um exemplo do desprezo com que são tratados os cidadãos europeus. E não faltam ameaças, desde logo ao Mercado Interno, posto em risco pelo reacender dos nacionalismos e das pressões proteccionistas, agora agravadas pela crise. Ora se esta essencial base económica de unidade falhar, é todo o notável edifício já concretizado da integração europeia que poderá ruir. Hoje, esse é o grande desafio da UE. Só por si, o Tratado de Lisboa pouco adianta nessa área decisiva. Falta à Europa comunitária liderança política.

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Entre a crise e o colapso. O desafio ontológico das alterações climáticas

Viriato Soromenho-Marques  *

O

fracasso da Conferência Climática de Copenhaga não pode ser entendido como o final dramático de um processo diplomático, mas antes como um obstáculo num processo que deverá conduzir, desejavelmente em 2010, a um regime internacional vinculativo. Na verdade, a humanidade já perdeu a oportunidade de prevenir, pela raiz, as alterações climáticas. Interesses instalados, vistas curtas, incompetência política, e muita inércia moral e intelectual condenaram-nos – a nós e às gerações futuras – a uma experiência sem paralelo no passado histórico. O que se terá de decidir, depois de Copenhaga, nas reuniões de Bona e do México, é o nível de alterações climáticas que estamos dispostos a suportar. E como vão ser repartidos os respectivos custos e riscos. Mas, só poderemos compreender todas as implicações políticas e diplomáticas se compreendermos o significado mais profundo das alterações, isto é, a sua radical dimensão ontológica.

1. A singularidade da crise ambiental Há uma tendência, tanto na cultura erudita como na cultura popular, para banalizar o conceito de crise. Na verdade, já Hegel referia que só os períodos de tensão e luta constituem o objecto de que se alimenta a história universal. Pelo contrário, os momentos felizes, sem a marca dolorosa da crise, seriam páginas vazias da história1. No plano da linguagem comum, por seu lado, o conceito de crise é semanticamente distorcido * Professor da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Membro do Grupo Consultivo da Presidência da União Europeia para a Energia e Alterações Climáticas.

Brotéria 169 (2009) 749-759

1

«A história universal não é o chão da felicidade. Os períodos de felicidade são nela páginas vazias.» (Die Weltgeschichte ist nicht der Boden des Glücks. Die Perioden des Glücks sind leere Blätter in ihr), Hegel, Vorlesungen Über die Philosophie der Geschichte, Werke, vol. 12, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986, p. 42.

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2

Crutzen, P. J.; Stoermer, E. F. – «The Anthropocene», Global ChangeNewsletter, 41 (2000), 17-18.

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pelo seu uso e abuso em situações inadequadas, contribuindo, desse modo, para se perder a noção de alerta e perigo, prejudicando-se, com isso, a capacidade de destrinça da singularidade e particularidade de cada situação crítica, bem como das medidas que seria conveniente adoptar. As alterações climáticas são hoje a maior ameaça que se coloca à humanidade no seu conjunto, na medida em que, pela primeira vez desde que há memória histórica, a acção humana atingiu uma tal capacidade de alterar a estrutura profunda do Planeta, de modelar o frágil equilíbrio da sua complexa rede de sistemas – da atmosfera à hidrosfera, passando pela criosfera, litosfera e biosfera – que alguns cientistas proeminentes falam já da existência de uma nova, e provavelmente efémera, era geológica caracterizada por esse poderio plástico da humanidade, o Antropocénico2. Na verdade, para compreendermos as alterações climáticas temos de compreender a crise ambiental, que é o lugar conceptual onde ela ganha sentido. Com efeito, nem todas as crises são idênticas, e o facto de termos mergulhado numa complicada deriva económica que parece querer prolongar-se não nos deve fazer perder a capacidade racional de estabelecer critérios e determinar graus de grandeza e hierarquias de prioridade. Isso será evidente, se comparamos a presente recessão económica com a Grande Depressão, iniciada em 1929, e que se prolongou até à II Guerra Mundial. No seu primeiro discurso inaugural, proferido em 4 de Março de 1933, o Presidente Franklin Delano Roosevelt traçou um doloroso e sombrio retrato do seu país, devastado pela pobreza, desemprego e desespero. Contudo, ele conseguia vislumbrar, no meio da amargura geral, uma fímbria de esperança: «A Natureza ainda nos oferece a sua abundância…» Muito recentemente, numa Conferência realizada em Nova Deli, tive a oportunidade de escutar as fortes e comoventes palavras de Anote Tong, o Presidente da República do Kiribati, um país insular disseminado por milhões de quilómetros quadrados do Pacífico central, fortemente ameaçado pela subida do nível médio das águas do mar. Ele apresentou-se, perante


uma silenciosa assembleia desta forma: «Eu sou o Presidente de um país que está a desaparecer debaixo de água…» Em 2010, tal como em 1933, o mundo está ameaçado por um profundo e vasto colapso económico e financeiro. Todavia, em 2010 já não podemos partilhar a esperança de Roosevelt. Hoje, a Natureza já não nos oferece as suas bênçãos, mas antes a sua reacção hostil, como resposta a décadas e séculos de agressão e abuso por parte da ganância e loucura humanas. Num planeta povoado já não por dois mil milhões de pessoas, como no tempo de Roosevelt, mas por quase sete mil milhões, a maior crise que se interpõe entre nós e um futuro sustentável não é, na sua essência, de natureza económica, mas sim a crise global do ambiente. Uma crise que se tornou visível para todos através dos cada vez mais numerosos eventos extremos associados ao processo de alterações climáticas.

2. O que Copenhaga não resolveu A reunião climática que decorreu entre 7 e 18 de Dezembro (2009), na capital dinamarquesa, tinha uma designação curiosa que poderá ter surpreendido alguns leitores, ela era a COP 15. Isso significa que não se trata de um evento único, mas sim a 15.ª Conferência das Partes, isto é, a reunião de todos os países que desde 1992 foram aderindo à Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC, na sigla inglesa). Por exemplo, o famoso Protocolo de Quioto foi assinado no decurso da COP 3, realizada em Dezembro de 1997, na cidade japonesa com o mesmo nome. Importa pois perceber quais as razões que fizeram da COP 15 uma reunião tão diferente e decisiva. Hoje sabemos mais do que o suficiente sobre o processo de alterações climáticas em que o nosso planeta se encontra mergulhado, para compreender a enorme gravidade da situação. Desde 1988, com a criação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), constituiu-se a maior rede científica da história humana, concentrada sobre a troca e validação de informação sobre clima, a nível 751


mundial. Hoje existe um consenso esmagador sobre a realidade das alterações climáticas. As divergências que existem são apenas sobre o ritmo e o modo da sua expansão, bem como acerca dos meios para lhes oferecer combate. Nos quatro relatórios já publicados pelo IPCC, bem como em centenas de estudos sectoriais de universidades e institutos de todo o mundo, ficámos a saber que o actual motor das alterações climáticas é induzido pela modificação humana da estrutura química da atmosfera, nomeadamente, pelo incremento das quantidades de dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O), entre outros gases com efeito de estufa (GEE). O gás referencial é o CO2, por ser o que maior impacto tem, mas também por ser aquele que aprendemos a medir com mais rigor. Desde 1750, no início da utilização de combustíveis fósseis em larga escala, até Setembro de 2009, a concentração de CO2 na atmosfera passou de 270 ppm (num milhão de partes da atmosfera, 270 eram constituídas por dióxido de carbono) para 384,79 ppm! É um aumento assombroso. Basta ter em conta que nos últimos 600 000 anos as variações do CO2, oscilaram entre um mínimo de 180 ppm (nos períodos de glaciação, mais frios) e 300 ppm (nos períodos interglaciares, mais amenos). Se o mundo não conseguir mudar o seu paradigma civilizacional, baseado na libertação, pela sua queima, de carbono da litosfera (onde se esconde o carvão, o petróleo e o gás natural) para a atmosfera, poderemos chegar ao final deste século com uma concentração de CO2 que será superior ao dobro do período pré-industrial… O aumento médio global da temperatura poderá atingir mais de 6º C!

3. As alterações climáticas fazem parte da crise do ambiente Mesmo se, por magia, retirássemos da equação contemporânea as alterações climáticas, as perspectivas de sobrevivência da humanidade ao longo do próximo século seriam bastante complicadas e angustiantes. Estamos a perder diariamente a capacidade de carga dos ecossistemas, de que dependemos 752


para viver com dignidade. A população humana continua a crescer num planeta que perde diversidade biológica, que erode ou esgota a produtividade dos solos aráveis, que contamina e desperdiça os recursos hídricos, que delapida o ambiente marinho, que continua, teimosamente, a depender de fontes energéticas não renováveis. Mais do que qualquer outro tema da crise ambiental, as alterações climáticas evidenciam, com clareza, que todos partilhamos a mesma atmosfera (e o mesmo planeta). Somos obrigados a cooperar na sua gestão racional, se não quisermos sofrer todos as consequências da subida incontrolada da temperatura média, do nível dos mares, do incremento das catástrofes naturais, dos riscos de instabilidade social acrescida pela multiplicação dos refugiados ambientais, entre muitas outras nefastas consequências. 3.1. Mitigar e Adaptar Estas foram as duas matérias principais debatidas em Copenhaga. Através da mitigação procura-se diminuir as emissões de GEE. Isso ocorre de duas maneiras: ou diminuímos a intensidade energética do estilo de vida (exemplo: quando o leitor deixa o automóvel em casa e usa transportes públicos); ou usamos uma fonte energética com baixo ou nulo teor em carbono (a electricidade de origem solar ou eólica, por exemplo). Pela adaptação procuramos prepararmo-nos, como sociedade, para as mudanças inevitáveis que vão ocorrer, mesmo se tivermos sucesso na mitigação. Isto é válido para todo o mundo, mas em particular para os países menos industrializados, que em quase nada contribuíram para a crise climática, mas se encontram entre as suas primeiras vítimas. Basta olhar para a Tabela 1 para ver as dificuldades em chegar a um acordo em matéria de mitigação. No Protocolo de Quioto ficou definido, em termos práticos, o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas, de acordo com o qual os países que mais cedo iniciaram o seu processo de industrialização (lançando em primeiro lugar dióxido de car753


País EUA China UE (27) Rússia Brasil Portugal Moçambique

Emissões em Milhões de toneladas CO2 5 891 5 577 4 102 1 568    352 67 1,7

Percentagem das emissões globais 21,4% 20,26% 14,9% 5,7% 1,28% 0,35% 0,01%

Emissões per capita em toneladas CO2 19,9   4,3   8,4 11   1,9   6,4   0,1

Lugar no ranking das emissões per capita    6º   70º   37º   19º 104º   52º 174º

Tabela 1: Emissões de CO2 em 2005 Fonte: World Resources Institute, Washington DC.

3

Um interessante contributo do Conselho Federal Alemão para a Mudança Global pode ser encontrado no seguinte endereço electrónico: http://www.wbgu.de/ wbgu_sn2009_en.pdf

bono e outros GEE para a atmosfera) seriam aqueles a ter obrigações quantificadas de mitigação (no período de cumprimento que termina em Dezembro de 2012). Contudo, muitas questões estão sobre a mesa: como compensar o passivo histórico das emissões? Como incluir o comércio mundial na contabilidade das emissões, quando sabemos que, por exemplo, uma parte significativa do que a China emite se prende com a satisfação da procura de consumidores ocidentais? Como equilibrar as emissões totais de cada país com o indicador mais fino que são as emissões per capita? Como contabilizar correctamente outras fontes mais difusas, como as que resultam da desflorestação, ou da agricultura (em particular, para o metano)3?

4. A liderança política da União Europeia Ao longo da última década a União Europeia tem estado na liderança do combate às alterações climáticas. Dos grandes emissores, só a União Europeia, para além de cumprir (e talvez ultrapassar) as metas de Quioto, apresenta uma estratégia ambiciosa de redução para 2020, e mesmo para 2050. Mas isso não é suficiente. Por duas razões: a) sem os EUA e a China nenhuma mudança significativa ocorrerá, pois o seu peso bruto em emissões é esmagador; b) a UE tem capacidade para metas

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ainda mais ambiciosas, tanto na mitigação como no apoio aos países menos desenvolvidos. Pode e deve ir mais longe, alargando a sua influência política no mundo, aumentando, simultaneamente, a resiliência, competitividade e sustentabilidade da economia e do mercado europeus. A UE teve o grande mérito de, partindo das melhores informações científicas disponíveis, tomar a decisão política, que hoje é quase consensual, de visar como tecto máximo para a concentração global dos GEE a meta de 450 ppmv de CO2 equivalente (inclui os outros GEE). Isso equivalerá a uma subida da temperatura média global de 2º C. O leitor tem razão em considerar que isso é bastante perigoso. Muitos cidadãos e membros da comunidade científica, como James Hansen, pretenderiam estabilizar em 350 CO2. Mas esse nível já foi ultrapassado! Para Copenhaga o que se pretendia era a meta de 450 CO2 equivalente, a qual implica um grau de ambição que muitos consideram irrealista… O objectivo de Copenhaga seria o de encontrar um novo regime climático mundial, que impedisse rupturas e vazios quando o Protocolo de Quioto terminar em 31 de Dezembro de 2012. Esse objectivo desdobra-se em muitos outros de natureza sectorial: metas e calendário de redução das emissões (mitigação); uso de mecanismos de mercado (o comércio de emissões, por exemplo); a transferência de tecnologia e de recursos financeiros para os países emergentes e menos desenvolvidos (para que as suas emissões aumentem menos do que o estimado); criação de estratégias sectoriais globais de redução das emissões (cimento, papel, siderurgia, etc.); apoio à adaptação; estímulo ao combate à desflorestação, promovendo a gestão sustentável das florestas. Olhando para o estado presente das negociações não seria realista esperar que existisse um pacote completo de soluções já em Copenhaga. A razão principal reside no facto de os EUA não terem ainda uma estratégia robusta e suportada em leis do Congresso, que lhe possa conferir credibilidade. O Presidente Obama trava hoje duas batalhas no Senado, uma pela lei da Saúde, e outra pela lei da Energia e do Clima. São 755


duas batalhas que, de certo modo, se atropelam. Como se viu, a prioridade dada à Saúde impediu Obama de chegar a Copenhaga com uma visão clara para tudo o que está em causa. A boa vontade precisa de compromissos concretos, que ainda não existem. Os EUA deixaram de liderar, há muito, a luta contra as alterações climáticas. Enquanto a Europa baixou as suas emissões, desde 1990, os EUA aumentaram as suas em cerca de 15% (2007). Contudo, sem o compromisso dos EUA não haverá acordo. A China olha para a UE com simpatia, mas só dará passos significativos se Washington estiver de alma e coração no novo regime. Depois do insucesso de 2009, devemos apostar em 2010 para obter um bom acordo, com regras e objectivos claros; é melhor do que abraçar um acordo envenenado em Copenhaga. O relógio do perigo climático não pára, mas para merecer o futuro teremos de reinventar, em conjunto, a habitação humana da Terra. Ninguém deverá fazer a viagem à boleia do esforço alheio.

5. As tarefas da União Europeia para 2010 O que falhou em Copenhaga foi, também, um uso inadequado do «software» da diplomacia internacional. Muitos dirigentes de países emergentes, dominados como estão pelo dinamismo das suas economias e pelos sonhos de grandeza a ele associados, esqueceram-se que um tratado sobre o clima não pode ser obtido sob o modelo de uma negociação de tipo soma-zero, em que os ganhos de um dos parceiros implicam perdas correspondentes dos seus interlocutores. Com efeito, ao olharmos para o curioso grupo de países que se juntaram em volta do Presidente Obama, para desenhar a moção final de 3 páginas, ficamos com a impressão de que, por um momento, os dirigentes do Brasil, da China, da Índia e da África do Sul ficaram encadeados com a efémera glória simbólica de partilharem o palco com o mediático líder da maior potência mundial, esquecendo-se de que, dois anos depois de Bali (2007), Copenhaga deixou a tarefa do novo regime climático 756


num ponto de incompletude e profunda incerteza. O que precisamos para gizar um acordo climático é de uma diplomacia baseada no princípio da cooperação compulsiva. Se queremos preservar a atmosfera comum não podemos fazer batota com as leis da física. Podemos tentar enganar os outros parceiros, mas acabaremos também por pagar, com juros, o resultado do nosso logro. Ao longo de 2010 iremos conhecer vários sinais que nos poderão ajudar a medir o grau de viabilidade de um acordo vinculativo no México (na COP 16), em Dezembro próximo. Até ao final de Janeiro de 2010 tanto os países desenvolvidos como os países emergentes apresentarão ao Secretariado da Convenção do Clima (UNFCCC), localizado em Bona, respectivamente, as suas metas de redução absoluta das emissões até 2020, ou as suas medidas tendentes a diminuir o aumento esperado das suas emissões. No primeiro semestre de 2010 teremos, provavelmente, uma votação favorável do Senado Americano sobre a Lei Federal de Energia e Clima, que tornará possível uma decisão final do Congresso dos EUA sobre as metas de redução, que darão a Barack Obama um mandato claro para prosseguir a diplomacia climática de Washington. Em Junho, teremos, em Bona, uma importante reunião preparatória da COP 16.

6. Vencer a crise evitando o colapso Contudo, o sucesso dependerá em muito de um factor imaterial, que só a União Europeia estará em condições de levar a cabo. E isso implica mudar o ângulo de abordagem sobre as alterações climáticas, da perspectiva defensiva e pessimista, para uma perspectiva de desafio que, apesar da sua enorme gravidade, pode ser vencido, com vantagens para toda a comunidade internacional, sobretudo no médio e longo prazos. A liderança europeia em matéria climática, que ficou expressa em Copenhaga pelo simples facto de as mais recuadas propostas da UE estarem muito à frente das mais avançadas dos 757


outros grandes protagonistas (com excepção do Japão), só foi possível porque a discussão climática dentro dos 27 tem vindo a transitar do perigo para a esperança. E só a esperança alimenta as almas nas horas de crise e coragem. Ao longo de 2010, o Presidente da Comissão Europeia e a sua equipa de negociadores terão de regressar ao périplo das grandes capitais, de Nova Deli a Pequim, de Brasília a Washington, recordando que o combate às alterações climáticas é também o combate para romper os factores estruturalmente patológicos da nossa economia que, a não serem debelados, minarão fatalmente os sonhos de prosperidade, tanto dos ricos, que deixarão de o ser, como dos que, saindo agora da pobreza, a ela regressão, inevitavelmente. O combate às alterações climáticas exige um regime internacional a ser desenhado por políticos e diplomatas, mas será a economia, os mercados, a quantidade e a qualidade dos investimentos, que ditarão se ultrapassaremos, ou não, a perigosa barreira de 2 graus centígrados, ao mesmo tempo que revelarão, pela prova do fogo da realidade, se teremos engenho e capacidade para transitarmos do predomínio de combustíveis finitos, sejam eles o crude ou o urânio, para fontes renováveis e infinitas de energia, como o sol, o vento, a energia das ondas, a geotermia, entre outras. Só na União Europeia, até 2030, metade das centrais de produção de energia eléctrica vão ter de ser substituídas. Isso significa investimentos de mais de 2 biliões de dólares (nove vezes o PIB português de 2007). A nível global, a Agência Internacional de Energia estima em quase 10,5 biliões de dólares (cerca de 50 vezes o PIB português de 2007) o investimento global no sector energético para ficarmos na zona segura dos 2 graus. É essa narrativa, política, económica, mas também ética e cultural, que os Europeus podem e dever partilhar com todos os outros parceiros. A UE não deve ocultar a necessidade de transportar para o novo regime climático os instrumentos e princípios que foram a base do Protocolo de Quioto, garantindo aos países menos desenvolvidos que o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas será escrupulosa758


mente mantido, e que as Nações Unidas serão a casa comum para todas as acções e iniciativas dos seus Estados membros. Sem acordo climático teremos, com probabilidade muito forte, uma espécie de retorno do recalcado, com uma estagnação do investimento inovador, um aumento da parcela do carvão (o mais poluente de todos os combustíveis fósseis) na energia primária global, e a entrada numa era incerta de proteccionismo que quebrará os fluxos do comércio mundial e porá em perigo a própria globalização em todos os seus domínios. Pelo contrário, um acordo climático, permitirá abrir o caminho para uma globalização mais regulada, para a ampliação da intensidade e da escala da investigação e desenvolvimento, aumentando a internacionalização da inteligência, das empresas, e a multiplicação do emprego em sectores sustentáveis, permitindo, também, uma maior autonomia energética das diferentes regiões do mundo. É essa história de um futuro possível, nascido da vitória sobre a crise ambiental e climática, que deverá ser contada nos próximos meses, em todos os lugares, até à exaustão, se quisermos ter direito a ele. O Acordo climático vinculativo, a ser assinado no México, em Dezembro de 2010, abrirá caminho para que na próxima década saibamos encontrar dentro de nós próprios as melhores forças morais da condição humana, se quisermos sobreviver como civilização. A história colocou nas mãos da geração que hoje detém as alavancas do poder, a todos os níveis, a enorme responsabilidade de abrir o futuro e salvar a memória cultural da gesta humana. Cometer erros é abrir a porta aos Cavaleiros do Apocalipse. Não se trata de um exagero retórico; trata-se apenas de uma pobre imagem para descrever o colapso horrendo que pode engolir 7 ou 8 mil milhões de seres humanos, perseguidos pelo pânico, pela escassez de energia e alimentos, e pela desesperança, se falharmos na guerra pelo ambiente e pela sustentabilidade global.

23 de Dezembro de 2009

759



Eutanásia O debate anunciado

O casamento gay, a que me referi em anterior artigo , não 1

é o único tema «fracturante» a estar proximamente em debate entre nós: anuncia-se para breve o da eutanásia, introduzido pelo deputado do P.S. Marcos Sá. O assunto, que há anos foi trazido para a actualidade por dois excelentes filmes – Million dollar Baby e Mar adentro2, este último baseado no caso real de Ramón Sampedro3 – passou a ser notícia com outros casos, como os de Vincent Humbert, Chantal Sébire e Claire Blanche em França, Terry Schiavo nos Estados Unidos, Sue Rodriguez no Canadá, Inmaculada Echeverria em Espanha, Piergiorgio Welby, Giovanni Nuvoli e, mais recentemente, Eluana Englaro em Itália. A maior actualidade que hoje tem o tema da eutanásia resulta em grande parte dos progressos médicos verificados nos últimos tempos: graças a eles, muitas pessoas que noutros tempos já há muito teriam morrido, são mantidas em vida, em condições progressivamente menos satisfatórias quanto a qualidade de vida. Levanta-se assim, com mais frequência, a questão de manter ou pôr termo a essas vidas. Sabendo que tanásia procede da língua grega e significa morte, e que o prefixo eu tem um significado positivo – como acontece em palavras como euforia, eufemismo, etc., facilmente se percebe que eutanásia significa, etimologicamente, «boa morte». Em termos gerais foi este o significado que a palavra eutanásia manteve ao longo dos séculos. Mas apenas «em termos gerais», uma vez que foi variando profundamente a maneira

Roque Cabral, S.J.  *

1

Cabral, R.,«O Casamento Gay», Brotéria 165 (2007), 111-118. 2

Ambos os filmes suscitam nos espectadores sentimentos favoráveis à eutanásia, mostrada como o único comportamento humano e razoável naquelas circunstâncias. 3

Cf. Gafo, Javier, Eutanásia y ayuda al suicidio. Mis recuerdos de Ramón Sampedro, Bilbao, 1999.

* Professor Jubilado da UCP de Braga.

Brotéria 169 (2009) 761-770

761


4

Para uma visão de conjunto da história semântica da palavra Eutanásia, ver: Ermann, Alfred, «Euthanasie», Historisches Wörterbuch der Philosophie, 2 (1972), 828‑829; Gracía, Diego, «Historia de la Eutanasia», em Gafo, J., La Eutanásia y el acto de morir, Madrid, 1990. 5

Zillig, F. G., «����������� Über Euthanasie», Hochland, 1950, pp. 337-382. 6

Trata-se do abandono do doente, invocado por alguns como argumento para a despenalização, se não a própria legalização, da eutanásia. 7

Bacon, F., Du progrès et de la promotion des savoirs (1605), Livre second, Avantpropos et notes par Michel Le Doeuf, Paris 1991, pp. 150-151. Tomo esta citação, bem como a da nota seguinte, da obra de Maret, Michel, L’Euthanasie. Alternative sociale et enjeux pour l’étique chrétienne, Paris, 2000, p. 335.

8

Oeuvres de Bacon, Première Partie, «De la Dignité et de l’Acroissement des Sciences», Livre quatrième, Ch. II. Traduction revue, corrigée et précédée d’une introduction par M. F. Raux, p. 201, Paris 1843, pp. 201‑202. Sublinhados meus.

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como se entendeu a «bondade» da morte por eutanásia. Referida já pelo poeta Menandro, no século quarto antes de Cristo, a palavra significava então uma morte tranquila e sem sofrimentos e dor4. Sentido que se manteve na literatura helenística5. Praticamente desaparecido na era cristã, o termo «eutanásia» reaparece em duas obras de Francis Bacon (1561-1626), autor que é por vezes apresentado como sendo favorável à eutanásia no moderno sentido do termo. Esta afirmação, que tem vindo a ser repetida por muitos, não tem contudo qualquer fundamento. O que Bacon realmente escreveu foi algo muito diferente: num primeiro texto, de 1605, critica a prática que atribuía (ignoro se com razão) aos médicos do seu tempo – de se afastarem dos doentes quando já não havia esperança de cura6 – enquanto que ele pensava que deviam, pelo contrário, «aperfeiçoar a sua arte e aportar socorro para facilitar e suavizar a agonia e o sofrimento da morte»7. Anos mais tarde, em 1623, escreveu: Insistindo sobre este assunto, direi que o ofício do médico não é só restabelecer a saúde mas também aliviar as dores e sofrimentos associados às doenças, e não só (...) mas também procurar ao doente, quando já não há esperança, uma morte doce e pacífica; pois uma tal eutanásia não é a menor parte da felicidade (que Augusto tanto desejava para si mesmo), que se observou também na morte de Antonino Pio, o qual não parecia tanto morrer como entrar pouco a pouco num doce e profundo sono (...) Mas, no nosso tempo, parece que os médicos adoptaram como lei abandonar os doentes desde que estes estão perdidos; em minha opinião, se eles estivessem empenhados em não faltar ao seu dever, e portanto à humanidade, e em aprender mais a fundo a sua arte, não poupariam nenhum cuidado para ajudar os agonizantes a sair deste mundo com mais suavidade e facilidade. Designamos ‘eutanásia externa’ ou exterior esta procura, distinguindo-a da outra eutanásia que tem por objecto a preparação da alma, que nós classificamos entre os desiderata8.

Como aparece claramente, sobretudo no segundo texto citado, a ‘eutanásia’ que, segundo Bacon, ainda é possível quando a morte é inevitável, consiste no que hoje chamamos cuidados paliativos e na preparação espiritual – o que nada


tem a ver com a eutanásia em sentido moderno, a qual, como veremos, consiste numa intervenção letal, com o fim de pôr termo às dores e/ou ao sofrimento. Quanto a Thomas More (1478-1535), outro autor que se costuma citar como favorável à eutanásia, não me parece clara a sua opinião, embora não seja improvável que no livro Utopia 9 tenha admitido a eutanásia, uma vez que mostra inegável simpatia pelas instituições e costumes dessa ilha, que o português Rafael, antigo marinheiro de Américo Vespúcio, lhe dera a conhecer e na qual se praticava a eutanásia. A dúvida que exprimo acerca da opinião de T. More vem da observação com que ele termina a obra em que descreve as admiráveis instituições da Utopia: «não posso concordar com tudo o que esse homem disse, homem aliás muito sabedor»10. Alguns decénios mais tarde, Michel Eyquem, senhor de Montaigne (1533-1592), no c. III dos Essais II, depois de, como de costume, citar pouco ordenadamente11 exemplos e opiniões acerca do suicídio, conclui do seguinte modo: «La douleur insupportable et une pire mort me semblent les plus excusables incitations»12. Onde se pode ver uma certa concordância com alguns suicídios, facilmente extensível à eutanásia. Mas é a partir da segunda metade do século XIX e durante o século XX13 que se foi intensificando a corrente favorável à eutanásia no sentido actualmente mais corrente do termo. Em 1935 foi criada, em Inglaterra, a associação Scottish Voluntary Euthanasie Society, actualmente Exit; em 1938, nos EUA, a Euthanasian Society of America. Eutanasia Educational Fund; em 1990, as organizações pró-eutanásia criaram, em Oxford, a Federação Mundial de Sociedades para o Direito à Eutanásia. Finalmente, como adiante diremos, a legislação de alguns países despenalizou, em circunstâncias determinadas, a prática da eutanásia. Como vimos acima, a palavra eutanásia, mantendo ao longo dos séculos o mesmo sentido geral de «boa morte», foi assumindo sentidos concretos bastante diversos. Na sua história semântica a palavra conheceu assim uma grande variação, tendo passado do sentido de «morrer bem» (estando bem pre-

9

More, Thomas, Utopia, tradução de José Marinho, Lisboa, Guimarães e Cª, Lisboa, [s.d.].

10

Ibidem, p. 210.

11

Defeito que lhe critica Pascal nas Pensées 62 (ed. Brunschvicg). 12

Montaigne, Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la Pléiade, p. 343.

13

Com um compreensível período de silêncio na Alemanha, traumatizada com a experiência nazi da Aktion Gnadentod T4, que terá custado a vida a cerca de 75.000 lebensunwerten Leben (vidas indignas de viver) cf. Osswald, W., «Experiência nazi da eutanásia: memória e lição», Brotéria 142 (1996), 519-542. Republicado em Id., Um fio de ética, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004, pp. 98-113.

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14

A expressão é forte, mas a expressão sinónima «pôr termo à vida» – e menos ainda «ajudar a morrer» – preferida pelos favoráveis à eutanásia – não permitia pôr tanto em evidência o contraste que pretendo aqui sublinhar. 15

Dir-se-á: com a eutanásia procura-se «ajudar a morrer» e não «pôr termo à vida». Mas é inegável que se dá tal ajuda a alguém que pede a morte por não suportar viver em tal sofrimento. 16

Cabral, R., «Eutanásia e Distanásia: clarificações necessárias», em Colóquio sobre a Eutanásia, Lisboa, 1993, pp. 363-360; reproduzido em Temas de Ética, pp. 209-213. 17

No artigo «Si definimos no discutiremos: da importância das formulações exactas» Brotéria 164 (2007), 425-432 exemplifiquei, com exemplos da história da Ética, a importância da correcta definição dos termos que usamos. 18

O texto do manifesto é reproduzido na obra de Michel Maret citada na nota 8. 19

Devido a diversos factores, tais como a crescente valorização da autonomia pessoal, o individualismo, a diminuição da crença religiosa e o prolongamento da vida, que os progressos da medicina vieram trazer. 20

Surpreende-me que a definição de eutanásia da Declaração sobre a Eutanásia, da Congregação para a Doutrina da Fé (1980), retomada no Catecismo da Igreja Católica n.º 2277, não inclua a menção do pedido na definição geral de eutanásia: «a eutanásia directa consiste em pôr termo à vida de pessoas diminuídas, doentes ou moribundas. É moralmente inadmissível». 21

Alguns prescindem desta distinção, que não escapa a certa ambiguidade. Seja

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parado) para o de «ser morto»14 para terminar (ou evitar) o sofrimento (físico ou/e moral). Por outras palavras: praticar a eutanásia passou de significar «ajudar a bem morrer» a significar, nos nossos dias, «pôr termo à vida para eliminar a dor ou o sofrimento»15. Tendo em conta a diversidade de sentidos atribuídos à palavra, apresentei há anos, num colóquio sobre a eutanásia, promovido pela Academia das Ciências de Lisboa, uma comunicação intitulada «Eutanásia e Distanásia: clarificações necessárias»16. Da multiplicidade de sentidos em que a palavra «eutanásia» tem sido usada resulta uma importante consequência, nem sempre tida na devida conta ao debater este assunto: aqui, como antes de qualquer debate, importa que as pessoas envolvidas digam claramente em que sentido empregam a palavra17, sem o quê as confusões e equívocos serão inevitáveis e a discussão sem qualquer interesse. Exemplo flagrante desta falta da necessária clarificação aconteceu no conhecido «Manifesto dos Nobel» acerca da eutanásia, publicado no dia 1 de Julho de 1974 simultaneamente no The Humanist e no Figaro. Nesse texto, várias personalidades, entre as quais os laureados com o Nobel: Jacques Monod (Biologia, 1965), Linus Pauling (Química, 1954) e Georges Thomson (Física, 1937), manifestaram-se favoráveis à eutanásia, mas referindo-se no seu texto a comportamentos muito diferentes entre si – com alguns dos quais estou totalmente de acordo – como se todos eles fossem formas de eutanásia18. Sob pena de não passarem de diálogos de surdos, os debates em torno da eutanásia – mais frequentes nos últimos tempos19 – devem por isso começar por eliminar a ambiguidade do termo, indicando cada interlocutor, bem claramente, o sentido que ao termo atribui. Por minha parte, no que se segue entendo por eutanásia a acção ou omissão pela qual um terceiro põe deliberadamente fim à vida de um doente terminal, a pedido deste20 e para o libertar de um sofrimento insuportável e irremediável. Esta noção de eutanásia contém portanto os seguintes cinco elementos: a) acção (eutanásia activa) ou omissão (eutanásia


passiva)21 letal; b) realizada por um terceiro (mais frequentemente médico); c) a pedido22; d) de um doente terminal 23 que não tem condições de se suicidar24; e) com o fim de pôr termo a insuportável dor e/ou sofrimento. Tendo presente esta noção de eutanásia, serão consideradas eutanásias impropriamente ditas, ou eutanásias em sentido amplo, todas aquelas em que falte um ou mais destes elementos. Assim, tendo em conta o sentido aqui dado à palavra, deve dizer-se que não se verifica eutanásia quando a vida é abreviada em consequência dos analgésicos ministrados para alívio da dor. Importa além disso notar que rejeitar a eutanásia não equivale, de modo algum, a aprovar a distanásia25, o «encarniçamento terapêutico», o qual é igualmente de rejeitar e não deixa o doente «morrer bem». O que se aprova é a ortotanásia26, a morte em que se respeitam correctamente todos os valores em causa27. As principais motivações – muito frequentemente associadas – que levam ao pedido da eutanásia parecem ser as seguintes: libertar a pessoa de um sofrimento (físico e/ou moral) insuportável e insuperável, e poupá-la a um fim sem dignidade28. Cada uma destas situações e, sobretudo, a sua conjugação, podem levar quem as vive a considerar que não tem sentido continuar a viver assim; sem sentido para viver, apenas o morrer aparece com sentido. Acrescento antes uma observação importante acerca do próprio pedido de eutanásia: é opinião comum de muitos que lidam com doentes terminais e/ou muito sofredores, que o pedido de eutanásia tem de ser cuidadosamente interpretado, pois muitas vezes o que o doente pretende ao expressá-lo é ser mais atendido, mais cuidado, etc. Tomar à letra todo e qualquer pedido de eutanásia poderia por isso levar a trágicas consequências. Sem de momento dedicar mais tempo a este ponto, era indispensável chamar a atenção para ele, dada a sua importância. Quanto ao alívio da dor há a dizer que, depois de, durante muito tempo, a medicina pouco se ter interessado com isso29, registaram-se nos últimos tempos grandes progressos

como for, ela diz apenas respeito ao diferente modo de realizar a eutanásia. Do ponto de vista moral, ambas modalidades de eutanásia merecem a mesma avaliação. 22

A chamada eutanásia involuntária, não pedida, não passa de um homicídio, mesmo que «por piedade» ou compaixão. O nosso direito chama a este último caso «homicídio privilegiado». 23

Não costumam muitos autores favoráveis à eutanásia explicitar por que razão só admitem a eutanásia no caso de doentes terminais. Talvez porque pressuponham, implicitamente, que, fora disso, o próprio pode pôr termo à vida, não precisando de pedir a outrem que o faça. Mas tal não se verifica, por exemplo, no caso de um tetraplégico. Aliás, não faltam já autores que não requerem o estado terminal para aprovar a eutanásia. 24

Como adiante direi, o que está em questão na eutanásia e no suicídio é, do ponto de vista ético, fundamentalmente o mesmo. Também por isso, começa a generalizar-se o tratamento do tema geral de «morte assistida», com duas modalidades: suicídio assistido e eutanásia. 25

Cf. Ortiz Villajos, Jose Maria, «Distanasia. Valor y precio de una vida humana», Razón y Fe 181 (1970), 379‑398. 26

Acerca da ortotanásia – termo criado pelo psiquiatra Chabot – cf. Higuera Udías, Gonzalo, «Ortotanásia», Miscellanea Comillas 44 (1986), 427-462 (com bibliografia). O professor de Ética de Harvard, Dyck, propôs, sem grande êxito, o termo «benemortasia». 27

Quanto ao «deixar morrer», dizemos que ele é condenável quando equivale,

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moralmente, a «matar», isto é quando a morte resulta de não se fazer algo que se podia e devia fazer. Mas quando com essa expressão se quer significar o não recurso à distanásia, o «deixar morrer» é obviamente admissível. 28

Ou, numa formulação positiva: possibilitar ao doente morrer com dignidade. 29

A Igreja antecipou-se neste campo à medicina: Verspieren, Patrick, «Médicine et soulagement de la souffrance humaine» Laval Théologique et Philosophique 54 (1998), 23-39; Id., «Les discours sur la souffrance dans le catholicisme», Cahiers Laennec 44 (mars 1996), 7-11. 30

Para muitos destes casos haverá a solução da sedação. O que alguns consideram indigno da pessoa. 31

O texto do episcopado alemão de 1975 considera expressamente este argumento. La Documentation Catholique (1975), 686.

32

Cf. F. Elizari, Javier, «Dignidad en el morir», Moralia 25 (1992), 397-422.

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na medicina paliativa, particularmente no contexto dos Hospices, criados em 1967 pela enfermeira (mais tarde médica) Cicely Saunders, das Pain Clinics fundadas pelo americano John Bonica, a quem se deve também a International Association for the Study of Pain, e outras instituições similares. Os grandes progressos verificados no tratamento da dor levam alguns a dizer que já não há, hoje em dia, dores «intratáveis». Mesmo que assim seja, não podemos esquecer que, uma vez que esses progressos não estão infelizmente ao alcance de todos, forçoso é reconhecer que, para muitas pessoas, existem de facto dores verdadeiramente intratáveis30. Muitas vezes ouve-se dizer, a propósito da morte de alguém que se extinguiu no termo de longa e dolorosa enfermidade: foi um «despenar»… Por outras palavras: pensa-se que a morte, o não ter continuado a viver, foi, para essa pessoa, um bem. Quem é favorável à eutanásia dirá que é precisamente esse «despenar»31 que com ela se pretende, para bem de uma pessoa que está a sofrer sem esperança. Não proporcionar ao doente essa ajuda, por ele pedida, é então considerado uma injustificável crueldade, que não parece ser exigida por Deus – aspecto que é, compreensivelmente, sublinhado sobretudo pelos crentes cristãos favoráveis à eutanásia. Outra motivação muito invocada para justificar a eutanásia é a preservação da dignidade 32, com especial relevância para a autonomia da pessoa. A vida humana é sempre digna, precisamente porque é a vida de uma pessoa; e é óbvio que esta dignidade, própria de ser pessoa, nunca se perde. Admitir que alguém deixou de ser digno de viver, devido à sua condição física ou psíquica, implicaria uma radical e inadmissível subversão civilizacional. Mas uma coisa é a dignidade essencial de qualquer pessoa, outra, muito diferente, o sentimento de dignidade ou indignidade que alguém pode experimentar a respeito de si mesmo, ou outros a seu respeito. Pode uma pessoa viver (ou prever vir a viver) situações de degradação física ou/e psíquica em que sente como se perdesse a própria dignidade, em que se enver-


gonha de si mesma e foge de ser vista, em que lhe repugna profundamente dar a outros esse deprimente «espectáculo»33. Esta «perda de dignidade», a indignidade experimentada, deixa intacta a sua essencial dignidade como pessoa, mas pode afectá-la muito profundamente. Na medida em que os que a rodeiam deixarem transparecer repugnância na maneira como a olham e cuidam, a sua auto-estima será abalada ou até destruída, levando-a a sentir-se «indigna» de viver e talvez peça que a «eutanasiem». Mesmo independentemente da mensagem que lhe chega dos que a rodeiam, a pessoa pode experimentar como intolerável a degradação34 e o sofrimento que experimenta ou prevê. O sentimento de dignidade, a imagem de dignidade ou indignidade que, em determinadas situações, uma pessoa pode ter de si é algo muito pessoal, que depende de convicções íntimas e outros factores, diferentes de pessoa para pessoa. Assim, há pessoas para quem a repugnância a viver e dar o espectáculo de degradação próprio da doença de Alzheimer, por exemplo, justifica a opção pela morte35. Essas convicções devem ser respeitadas, tanto pelos particulares como pelas autoridades, as quais não têm o direito de impor uma determinada concepção acerca do valor da vida ou da dignidade pessoal36. Muito afim do tema da preservação da dignidade, é o da autonomia pessoal, que além disso constitui o principal argumento invocado por quem é favorável à eutanásia: a autonomia humana incluiria no seu âmbito direito a dispor da própria vida. Adiante me referirei a este ponto. Como avaliar a eutanásia, ou, mais geralmente, a morte assistida, que incluiria a eutanásia e o suicídio assistido37? Para responder a esta questão é indispensável distinguir o aspecto moral ou ético e o aspecto legal. Quanto ao aspecto moral, a resposta depende da amplidão que tiver a autonomia da pessoa. Se esta abranger a livre disposição da própria vida, será lícita a morte assistida desde que os motivos sejam razoáveis. Para ser mais exacto: da autonomia assim entendida seguir-se-ia imediatamente a licitude

33

Cf. Higuera, ‘espectáculo’ de humana, motivo xión moral», Sal (1971), 832-845.

G., «El la muerte de refleTerrae 59

34

O seu «apodrecimento», na linguagem usada em textos da Association pour le Droit de Mourir en Dignité (ADMD). 35

Em 1991 a Comissão do Ambiente, Saúde Pública e Protecção dos Consumidores apresentou uma proposta de resolução acerca da assistência aos moribundos, de que foi relator o prof. Léon Schwarzenberg. No n.º 8 dessa proposta – que foi aprovada por 16 votos contra 11 e 3 abstenções – era dito que se devia satisfazer o pedido de eutanásia «en l’absence de toute thérapeutique curative, et après échec de soins palliatifs, correctement conduits tant sur le plan psychologique que médical, et chaque fois qu’un malade pleinement conscient demande, de manière pressante et continue, qu’il soit mis un terme à une existence qui a perdu pour lui toute dignité, et qu’un collège de médecins constitués à dessein constate l’impossibilité d’apporter de nouveaux soins spécifiques, cette demande doit être satisfaite sans qu’il soit, de cette façon, porté atteinte au respect de la vie humaine». A Société Française d’Accompagnement et des Soins Palliatifs, a Ordre National des Médecins, o Comitè National d’Éthique pour les Sciences de la Vie et de la Santé e a Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia criticaram este ponto da proposta, bem como certas expressões como: «le niveau de conscience définit un être humain», »la vie d’un être humain se définit par la dignité», «arrêter une existence par respect d’une vie humaine» (Textos em La Documentation Catholique 2034.º (1991), 791-796; itálico meu).

767


36

Voltarei a este ponto ao tratar da legislação acerca da eutanásia. 37

A expressão geral «morte assistida» incluiria duas modalidades: morte auto‑assistida (suicídio assistido) e morte hetero-assistida, a eutanásia.

38

Ainda que não parece possível um interesse «quimicamente puro» só sobre o aspecto legal.

39

Abundante e exacta informação em Santos, Laura Ferreira dos, Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do século XXI, Lisboa, Sextante, 2009. Trata-se provavelmente da mais informada obra sobre o assunto, não só em Portugal. A autora já publicara em 2007 o extenso artigo «Hoje não posso, é o dia que meu pai escolheu para morrer. A morte voluntária assistida na cultura ocidental do século XXI», Interacções. Sociedade e as Novas Modernidades 12 (Abril 2007), 7-72. 40

Tendo o Grão-Duque recusado a promulgação da lei, foi alterada a Constituição para a tornar possível.

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do suicídio assistido; quanto à eutanásia, seria ainda preciso mostrar que o doente, incapaz de suicídio assistido, tem o direito de «delegar» noutra pessoa o direito (que se supõe ter) pôr termo à própria vida. É que está longe de ser óbvio e indiscutível que o titular de determinado direito o possa sempre passar a outrem. Os representantes das confissões cristãs são unânimes em considerar a eutanásia moralmente reprovável. Mas o debate que se anuncia não se interessará tanto com a moralidade da eutanásia quanto com a legislação a seu respeito38. Será um debate essencialmente «profano», visando a consagração e regulamentação legal da eutanásia. As hipóteses possíveis são três: proibição (a situação mais frequentemente em todo o mundo), despenalização, legalização. Se exceptuarmos o Estado do Norte da Austrália, até hoje nenhum país legalizou a eutanásia; aliás, a referida legalização australiana, de 1995, foi revogada pelo parlamento federal em 1997. Nesse mesmo ano, o Estado norte-americano do Oregon legalizou o suicídio assistido. Na Suíça – onde, desde 1918, a assistência ao suicídio só é considerada crime se a motivação for egoísta – o actual art.º 115 do Código Penal mantém esta norma, podendo a assistência ser realizada por um não médico. Alguns países, continuando a considerar a eutanásia como um crime, despenalizaram-na em determinadas circunstâncias. Assim o fez em 2002 a Holanda, seguida pouco depois pela Bélgica39, e em 2008 o Luxemburgo40. O facto de a legislação de esses países continuar a penalizar a eutanásia (despenalizando-a só em determinadas circunstâncias, a respeitar rigorosamente) é algo que dá que pensar: não sendo por si só suficiente para concluir a imoralidade da eutanásia, ele mostra que o legislador considerou que ela constitui uma matéria com graves incidências negativas para a sociedade. Este facto talvez se deva ao sentimento, muito espalhado no tempo e no espaço, de que a vida humana é de tal modo «sagrada», que é sempre um mal pôr-lhe termo, mesmo quando tal acontece licitamente.


Trata-se, indiscutivelmente, de um assunto que não é meramente «privado», do qual a sociedade se possa desinteressar, pois ninguém é só «indivíduo», a vida humana é essencialmente relacional. Ao legislar eventualmente sobre a eutanásia (proibindo-a, despenalizando-a ou legalizando-a), o legislador não pode invocar como razão as suas convicções religiosas ou éticas, impondo assim a todos os cidadãos o que pode não corresponder ao pensar de alguns deles41 – coisa que frequentemente acontecerá nas modernas sociedades pluralistas. Se assim procedesse, exorbitaria dos seus poderes; ao falar assim, limito-me a formular um simples corolário da laicidade do Estado42. Sem invocar princípios religiosos ou ideológicos, deve o legislador nortear-se pelo bem comum da sociedade concreta para a qual legisla; ao fazê-lo, não deverá ignorar as opiniões dos cidadãos acerca da eutanásia. Ao contrário do que pensa a generalidade dos favoráveis à eutanásia, julgo que a despenalização e, mais ainda, a legalização da eutanásia apresentam inegáveis inconvenientes e riscos para a sociedade. Poderão alguns ser parcialmente evitados, com uma adequada regulamentação, rigorosamente respeitada. O que não me parece evitável é o efeito negativo dessa legislação sobre a mentalidade comum, quanto ao valor da vida – o que é grave. Como é geralmente reconhecido, as leis têm uma inegável influência modeladora da opinião pública. Este ponto é um dos mais enfaticamente mencionados nos textos cristãos43. Reconheço, por outro lado, que neste campo dificilmente poderemos ir muito além de conjecturas. Além destes inconvenientes – reais e sérios – invoca-se frequentemente o argumento da rampa resvaladiça (slippery slope)44, apontando-se como confirmação o que se diz vem acontecendo na Holanda45. Independentemente da utilização, não simples nem fácil, deste tipo de argumentação, julgo ser um facto que a jurisprudência e a legislação holandesa acerca da eutanásia têm vindo a sofrer algumas ampliações46; mas não seria justo, por não corresponder à realidade, atribuir essas alterações, exclusiva ou sequer preponderantemente, a um abrandamento das exigências éticas.

41

«Os opositores da morte assistida querem obrigar-me a morrer de acordo com as suas interpretações religiosas ou filosóficas da vida. Por favor, peço apenas que respeitem as minhas próprias convicções» (Santos, Laura Ferreira dos, Público de 15.11.2008). 42

Cf. Cabral, R., «A Laicidade do Estado», Brotéria 160 (2005), 423-434.

43

Além disso, numa sociedade em que se fossem multiplicando os casos legais de eutanásia, talvez alguns doentes terminais acabassem por se sentir quase obrigados a pedir a eutanásia, para poupar a outros o seu «espectáculo» e despesa. Não penso que seja inimaginável que assim possa vir a acontecer. 44

A respeito deste tipo de argumentação, ver: Elizari, F. Javier, «El argumento de la pendiente resbaladiza», Moralia 24 (2001), 469‑490; Burg, W. Van der, «Slippery slope arguments», na Encyclopedia of Applied Ethics 4, pp. 129-142 e Lamb, D., Down the Slippery Slope, Beckenham, 1988. 45

A respeito do que acontece na Holanda, Suíça, Oregon, Colômbia, Bélgica e Luxemburgo ver a bem documentada obra de Laura Ferreira dos Santos, citada na nota 39. 46

Mas também restrições, como aconteceu com a proposta de lei de Agosto de 1999, não aceite por ser muito liberal.

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47

Cf. Kass, Leon, «Is there a Right to Die?», em Hastings Center Report 23 (1993), 34-43. 48

Em 1999 o Conselho da Europa rejeitou o projecto de resolução relativo à eutanásia (Recomendação 1418). Em Maio de 2006, a Câmara dos Lordes rejeitou, por 148 votos contra 100, um projecto de lei sobre a eutanásia e suicídio assistido. Nesta ocasião foi enviado à Câmara, a 17.10.06, um texto no qual as autoridades religiosas protestante, católica, budista, muçulmana e sik se declaravam contrárias ao projecto de lei.

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Direito à eutanásia? 47 Muitos o reivindicam, nos nossos

dias. Na hipótese da ilicitude moral do suicídio, é claro que não haveria direito moral à eutanásia voluntária propriamente dita (no sentido aqui usado), já que ela implica uma vontade suicida48. Haverá obviamente direito jurídico à eutanásia, dentro dos moldes legais, nos países em que a lei consigne esse direito.


A ideia de Europa na cultura portuguesa do século XVI: A afirmação da «Europa» como secularização da ideia de Cristandade A ideia de Europa sucede à ideia de Cristandade

José Eduardo Franco *

«A Europa chegou a ser uma noção geográfica precisamente por ter chegado a ser uma noção histórica. Esta última perde a qualidade de estabilidade da primeira, mas adquire dinâmica de génese e transformação. Deste modo, a Europa formou-se e se manteve em caos genesíaco». Edgar Morin 1

O termo e o conceito de «Europa» a ele associado afirmam-se na cultura portuguesa do século XVI em concorrência, paulatinamente triunfante, com o conceito medieval de «Cristandade». A Europa começa de facto a conquistar cidadania cultural, povoando as letras lusitanas precisamente no século de Quinhentos. O Portugal cultural do século XVI pode ser considerado o século do nascimento da Europa. Antes a sua existência era exígua, esparsa, não passando de um mero conceito geográfico ocasionalmente referido em tratados, correspondência e crónicas. Com efeito, a vulgarização progressiva do vocábulo «Europa na Modernidade» é uma das expressões mais eloquentes do processo de secularização desencadeado no crepúsculo da Idade Média e um dos sinais do chamado «desencantamento» ou «dessacralização» do continente europeu, ou melhor, do continente da Cristandade.2 De facto, a modernidade relançou a dialéctica entre política e religião, entre sociedade e igreja, no interior mesmo do continente cristão até ao ponto de produzir uma política e estado livres do religioso, apesar de na origem da afirmação deste mesmo estado, este ter procurado sumamente a legitimação religiosa. John Gray corrobora esta dimensão insubmersível do teológico:

1

Morin, Edgar, Pensar a Europa. La metamorfosis de un continente, Barcelona, Erdisa, 2003, p. 53.

2

Cf. Gauchet, Marcel, Le Désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard, 1985, passim.

* Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Brotéria 169 (2009) 771-792

771


3

Gray, John, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008, p. 13.

4

Todd, Emmanuel, La invencion de Europa, Barcelona, Tusquets Editores, 1995, p. 103. Ver também Baalmas, Enea, «Commynes, Machiavel et l’idée de l’Europe» in Studi sul Cinquecento, Firenze, Leo S. Olschki editore, 2004, pp. 591-600.

772

A política moderna é um capítulo da história da religião. Os maiores levantamentos revolucionários que tanto moldaram a história nos últimos dois séculos foram episódios da história da fé – momentos da prolongada dissolução do cristianismo e da ascensão da moderna religião política. O mundo em que nos encontramos no início do novo milénio está cheio de detritos de projectos utópicos que, embora enquadrados em termos seculares que negavam a verdade da religião, foram, de facto, veículos de mitos religiosos.3

À medida que a Europa medieval se afirmou, graças ao desmembramento do Império Romano do Ocidente, como Cristandade, o vocábulo «Europa» ficou reduzido a uma mera e rara ocorrência significativa de terminologia geográfica. Cristandade torna-se um conceito de geografia cultural e religiosa que passou a ser sistematicamente usado como o outro nome deste continente eleito, o continente bíblico. «Cristandade» em vez de «Europa» ganhou um significado religioso, cultural e civilizacional, um conceito de distinção sacral, de eleição e distinção em relação ao resto do mundo conhecido. A Respublica Cristiana substitui-se, em termos de bloco político, ao Império Romano transfigurando o ideário de Pax Romana em Pax Christiana. A Cristandade prolonga do mesmo modo a mundividência dicotómica romana. Aqueles que estão do lado de dentro enquadrados pelo mesmo horizonte de ordenação social no plano jurídico, político, teológico e cultural; e os que estão do lado de fora são claramente diferenciados por não partilharem dos mesmos valores nem estarem sujeitos a um mesmo horizonte de ordenação colectiva. Os pagãos e os gentios passam a estar para a Cristandade como os bárbaros estavam para o Império Romano. Então, como escreve Emmanuel Todd, «a Europa está unida por uma unidade de fé».4 Até ao dealbar da Época Moderna, não obstante todos os conflitos internos (os cismas, os papas e antipapas, as guerras intestinas entre reinos cristãos e a luta de poder entre o poder espiritual e temporal), a Cristandade fiel ao rito latino romano reconhecia a existência de uma autoridade espiritual única, de uma Igreja única monitorizada pela autoridade papal. A moder-


nidade vai rasgar este quadro de unidade de fé, de doutrina e de autoridade.

Ideia de Europa e processo de secularização Transcorrido o século XV, o século em que a Europa desencadeia, por iniciativa das monarquias católicas ibéricas, o processo de descompartimentação do mundo através da aventura extraordinária das viagens marítimas, o século XVI é o século do humanismo e em que se pensam e se configuram as identidades nacionais e, por essa via, se pensa e repensa o continente em que se está inserido. A voz intelectual começa a fazer afirmar progressivamente o vocábulo «Europa» do ponto de vista cultural, em concorrência e superação progressiva em relação ao termo «Cristandade». «Europa», agora progressivamente desencantada da mundividência sacral, ordenada pelo teológico cristão, começa a substituir-se à ideia de «Cristandade» e a ganhar novos significados que não só o de continente geograficamente entendido. A ideia secularizada do continente Europeu é um produto da Modernidade.5 Essa consciência secularizante de percepção de um continente agora descentrado de si pelo processo de globalização, que inicia o conhecimento dos novos mundos que havia no mundo, torna-se assunto precisamente pelo processo de diferenciação com o Outro cultural, político, religioso…6 O processo extraordinário da proto-globalização inocula um sentimento de crise na consciência de Europa, resultante da nova multiconectividade7 entre culturas e povos que se abrem ao conhecimento da Europa, que a faz repensar-se a si própria e a descentrar-se, procurando uma nova consciência de si. Relatos de viagens, discursos, correspondência, tratados e crónicas historiográficas, gramáticas, obras de geografias e de antropologia, tratados científicos, obras poéticas manifestam essa consciência nova de um continente que, pelo humanismo experiencialista,8 ganha autonomia própria como conceito

5

Sobre a problemática da Modernidade e o conceito dilemático de secularização discutido ver a obra clássica de Blumenber, H., La Légitimité des temps modernes, Paris, Gallimard, 1999. 6

Cf. Coelho, António Borges, Raízes da Expansão Portuguesa, 5.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1985. 7

Cf. Tomlinson, John, Globalization and Culture, Cambridge, Polity Press, 2008; e King, Anthony D. (ed.), Culture, globalization and the world-system, New York, Palgrave/Departement of Art and Art History, 1991. 8

Cf. Barreto, Luís Filipe, Descobrimentos e Renascimento. Formas de Ser e de Pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa, Imprensa Nacional‑Casa da Moeda, 1983; e Bataillon, Marcel, Études sur le Portugal au Temps de l’Humanisme, Paris, Centro Cultural Português, 1974. Ver também os recentes estudos de Gomes, Ana Cristina da Costa, Diogo de Sá: Os Horizontes do Humanista, Lisboa, Prefácio, 2004; e Idem, Diogo de Sá no Renascimento Português. Estudos e Edição Crítica da Inquisição e Segredos da Fé (c. 1562), Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, Texto policopiado, 2008.

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9

Catroga, Fernando, Entre Deuses e Césares: Secularização, Laicidade e Religião Civil, Coimbra, Almedina, 2006, p. 37. 10

Cf. Avelar, Ana Paula, «A Ideia de Europa em Quinhentos: Construções de um Espaço Reinventado», Discursos – Língua, Cultura e Sociedade, Universidade Aberta (Junho de 2002), 95-105. 11

Boia, Lucian, L’ Ocidente: Une Interprétation Historique, Paris, Les Belles Lettres, 2008, p. 92.

12

Cf. Vincent, Bernard, 1492. L’Année Admirable, [s.l.], 1996, p. 149; e Idem, «Les univers des Gama e des Colomb», Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, XXXIX (2000), 3-8. 13

Cf. Saraiva, José, O livro de Marco Polo: A versão portuguesa impressa em 1502 feita pelo próprio impressor Valetim Fernandes, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1962; O manuscrito «Valentim Fernandes», Leitura e revisão de António Baião, Lisboa, Academia Portuguesa da História; Códice Valentim Fernandes, Leitura Paleográfica, notas e índice por José Pereira da Costa, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1997.

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liberto da plena identificação com uma civilização totalmente configurada e definida pelo religioso. A afirmação da ideia de Europa neste século não pode ser desligada, pois, daquilo que Fernando Catroga, no seu livro sobre a problemática da secularização, chama «a depreciação sacral do mundo, a cientificação do universo e a historicização do devir»,9 de que o saber humanístico-renascentista foi protagonista.10 Portugal foi timoneiro deste processo, operando a revolução do conhecimento do mundo com a abertura dos mundos proporcionada pelas viagens marítimas. É então que se vence o medo do desconhecido. Pela ousadia portuguesa, «o desejo revelou-se mais forte que o medo», no dizer de Lucian Boia.11 O termo Europa, além de um conceito geográfico, assume significados diversos nas suas diferentes expressões e contextos. Europa passa a designar ora o conceito cultural e civilizacional, ora um conceito político, sem abandonar a ideia medieval de unidade religiosa cristã (ainda que fracturada pelas chamadas heresia e dissidências várias) e até, em alguns casos, passa a significar um grande mercado, uma poderosa potência económica. Mas o que ressalta neste conceito coberto pelo nome «Europa» é a nova percepção de uma unidade, de um bloco significativo, definido por oposição e por diferenciação contrastiva decorrente da relação com os «outros civilizacionais» que se vão apresentando ao velho continente da Cristandade no processo de planetarização das relações entre os povos, a que alguns autores chamam o processo de «unificação do mundo».12 É logo no dealbar do século XVI que podemos situar a emergência da presença do conceito Europa bem documentado nas publicações levadas a cabo pelo labor tipográfico de Valentim Fernandes, de origem alemã. Com as suas traduções e edições tão importantes, na afirmação histórica da tipografia portuguesa, o seu interesse editorial pelos relatos de viagem manifesta a consciência de uma diferenciação geográfica entre a realidade do conjunto da geografia cultural, política e religiosa entendida como europeia e o mundo extra-europeu,13 na linha humanista da construção de um conhecimento universal. Na modernidade, a Europa descentra-se, expande-se


e multipolariza-se. O conceito medieval de Europeus, como aqueles que resistem ao Islão, tende a relativizar-se, embora ainda permaneça durante muito tempo como um aspecto de definição importante. Aliás é Lopes de Castanheda que define ainda a Europa como o grande reino confinante com o Turco e vitupera a «abominável heresia luterana» que divide a Cristandade.14 A fronteira externa e inimiga mais próxima da Europa vai continuar a ser o império Otomano. A multipolarização interna da Europa em termos de poderes políticos, religiosos e culturais é acompanha da manutenção de uma certa bipolarização potenciada pela ameaça turca. De facto, foi no processo «chocante» de procura e encontro de «outros civilizacionais, culturais e religiosos» que a Europa, pela voz dos seus intelectuais (escritores, cientistas, poetas, geógrafos, gramáticos, missionários…), se repensou e definiu modernamente.15

Proto-globalização e fractura da unidade europeia Curiosamente, o processo de descompartimentação do mundo é acompanhado por um processo contrário de compartimentação ou balcanização da Europa que passa a ser percebida com novas fronteiras que se impõem internamente e põem em causa a ideia de unidade medieval.16 Além da grande fronteira externa representada no inimigo turco, internamente erguem‑se as fronteiras religiosas, quer pela segregação e desejo de exclusão das etnias religiosas judaica e moura, por obra da mitificação conspiracionista e pela perseguição inquisitorial que promove uma propaganda ideológica de diabolização do outro interno. Mas outras fronteiras mais fundas começam a dividir a Europa em duas partes, por razões de confessionalidade religiosa e com expressões políticas diversas: a fronteira confessional entre protestantismo e catolicismo que instaura duas mundividências em conflitualidade.17 O novo horizonte de compreensão do mundo e a fractura interna da Cristandade europeia estão entre os grandes vectores explicativos do sucesso progressivo do nome «Europa». O con-

14

Cf. Castanheda, Fernão Lopes de, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, I, Porto, Lello & Irmão Editores, 1979, p. 868.

15

Cf. Calafate, Pedro (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol. II, Lisboa, Caminho, 2001, passim.

16

Ribeiro, Maria Manuela Tavares, A Ideia de Europa. Uma perspectiva histórica, Coimbra, Quarteto, 2003.

17

Cf. Cunha, Joaquim da Silva, A ideia de Europa. Raízes históricas. Evolução. Concretização actual. Portugal e a Europa, Separata da Revista de Guimarães, Vol. XCI, Guimarães, 1982.

775


fronto com o outro civilizacional – um outro totalmente novo com a descoberta do Novo Mundo – e as divisões provocadas pela proliferação dos diferentes protestantismos, consubstanciados em movimentos religiosos com dimensão política, são factores estruturais evidenciados por Lucien Febvre, na sua análise sobre a ideia de Europa no século XVI:

18

Febvre, Lucien, A Europa: Génese de uma Civilização, Lisboa, Teorema, 2001, pp. 204-205.

19

Ibidem, p. 205.

20

Cf. Chadwick, Owen, A Reforma – História da Igreja, 3.ª ed., Lisboa, Editora Ulisseia, 1966, p. 17.

776

Porque é que nos textos ainda pouco numerosos, mesmo assim bastante frequentes, (…) encontramos cada vez mais a palavra Europa? Correndo o risco de escandalizar, sinto-me tentado a responder, porque Colombo descobriu a América. Sim! Esta descoberta preocupou muito os espíritos (…). O século XVI é o século do grande da Reforma, do grande corte, do cisma, a túnica sem costura rasgada em duas. (…) Deixa de ser possível aplicar esta velha noção de cristandade unitariamente à totalidade das populações do Ocidente que professam o Cristianismo. Cristandade? Rompeu-se.18

É certo que esta consciência emerge de forma progressiva, donde o uso em concorrência dos dois nomes. Naturalmente o nome medieval de «Cristandade» resiste mais nas culturas católicas do sul, sonhando sempre restaurar uma velha unidade rompida. Todavia, perante a assunção de uma ideia de continente cristão cada vez mais plural e secularizado, a velha palavra Europa, a palavra pré-cristã, a palavra antiga, esta palavra da geografia (…) vem a calhar para reunir sob um mesmo vocábulo países, Estados, soberanos que se dizem cristãos (…), mas que já não podem reivindicar a cristandade única e indivisa, ou mesmo indivisível, como pátria comum.19

Esta derrocada do edifício da cristandade unificada é acompanhada pela perda do prestígio do Papado na Europa que a fractura protestante adensará. Ilustrativa da fragilização da autoridade espiritual do Pontífice Romano é esta passagem de Chadwick que descreve a perplexidade da Europa que «fica atónita ao ver o Papa Júlio II a pôr-se, pessoalmente, à cabeça dos exércitos papais, na Itália do Norte».20 Esta consciência de uma Europa-Cristandade fracturada na sua unidade pelas contendas motivadas por razões políticas e ideológicas emerge na poesia portuguesa de Quinhentos de


forma bem expressa. Esse sentimento de des-unidade ocorrida no coração geográfico da Europa, permite a intelectuais como Garcia de Resende, lamentar os confrontos internos fraticidas na velha Cristandade. Resende censura aqueles que descuram aquele que é considerado o principal inimigo externo – o Turco – e, por contraste, sobrevaloriza Portugal que manifesta grandeza na sua pequenez, pelos feitos realizados e pela exaltada paz e concentração naquela que deveria ser a principal missão-preocupação da Europa-Cristã: A corte de Portugal Vimos bem pequenina ser, Depois tanto enobrecer Que não há outra igual Na Cristandade a meu ver (…) Quinze reis, quinze reinados Vimos já na Cristandade, Uns dos outros são tomados Por força ou falsidade, Em sós sete são tornado. O grão poder do Soldam E do grande Tamorlam Vimos tornar para si O Turco e o Sofi Com poder e sem auçam. Por inveja, por cobiça De reinar, senhorear, Vimos ordenar Suíça, Artes de guerra inventar, Que cada vez mais se atiça: Tantos modos de artilheiros, De minas fazer outeiros, Invenções de artelharia Foram mais em nossos dias Que em todos os tempos primeiros. Não deixa de haver agora Tais homens como os passados; Mas, se são avantajados, São mortos em uma hora Antes de ser afamados:

777


Que a muita artelharia Destrói a cavalaria E depois que se usou Nos homens se não falou, Como dantes se fazia. Castelhanos e Franceses Alemães, Venezianos, Navarros, Aragoneses, Napolitanos, Ingleses, Romanos, Sicilianos, Italianos, Milaneses, Suíços e Escoceses Vimos todos batalhar Uns com outros se matar, Salvo Húngaros e Portugueses. Estas mui injustas guerras Fazem o Turco prosperar Nos Mares, campos e serras, Reinos, impérios e terras, Tudo ser a seu mandar, Se os cristãos querem ver Quanto lançam a perder Por não se quererem bem: Nem lembra Jerusalém Que os Mouros têm em poder.

21

Resende, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, IN-CM, 1973, pp. 354-355.

Não sei como Deus consente Tantos males cá na terra E que morra tanta gente Sem causa e inocente Por mandado de quem erra: Vivem em guerra e contenda Sem haver quem se repreenda, De quanto mal faz fazer, Nem há aí satisfazer, Nem corrigir, nem emenda.21

Portugal e a Europa: Distinções e fragilidades A paz e a fidelidade ao que o poeta considera a essencial missão de uma nação da Cristandade, na linha do ideário medieval, permite-lhe caracterizar, numa linha de afirmação identitária, aquela que entende ser a melhor parte da Europa.

778


O contexto cultural do Renascimento inspirou os intelectuais humanistas no sentido de estabelecerem uma percepção unitária da Europa enquanto espaço físico delimitado, mas também permitiu olhar este continente como realidade diferenciada cultural, mental, religiosa e politicamente. Garcia da Orta é um desses escritores portugueses que mais releva um saber positivo, experiencial, sobre esta época da história portuguesa. Tanto caracteriza este tempo como sendo de oportunidade, como também de sintomática fragilidade, no quadro da expansão de que Portugal foi protagonista. Além de nos ter deixado uma análise que procura aproximar‑se da realidade tangível, opera uma crítica por vezes severa da mentalidade e do comportamento intelectual dos portugueses, em ponto de comparação com outros povos europeus. É um dos que, na linha de uma crítica que é comum a vários humanistas seus coetâneos, denunciam a fraca vocação intelectual dos seus compatriotas: Verdade é que os Portugueses não são muito curiosos, nem bons escritores: são mais amigos de fazer do que dizer. Trabalham de adquirir por suas, lícitas mercadorias; porém não tratam mal os Índios, porque os Índios da paz são muito favorecidos pelos governadores.22

Desenha-se nesta passagem, em esboço enunciativo, aquilo que será uma tese desenvolvida mais tarde: a tese luminosa da colonização portuguesa como tendo sido branda, integradora, miscegenadora, por contraste com a dura, implacável e segregacionista colonização europeia. A vocação para acção é exaltada aqui como a condição distintiva, embora depois reconheça que a falta de cuidado dos portugueses com o garantir da construção de uma memória histórica consistente dos feitos realizados, à semelhança do que fazem outros povos europeus, acaba por ser prejudicial à fama e à projecção internacional das suas realizações. Estas corriam o risco de ficarem esquecidas e abafadas, mormente, pelas dos seus vizinhos espanhóis que seriam mais prolixos na escrita das suas gestas.

22

Orta, Garcia de, Colóquio dos simples e drogas da Índia, Vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1895, pp. 247-248. Ver também, na mesma linha, Oliveira, Fernando, Arte da Guerra do Mar novamente escrita per (...) & dirigida ao muyto manifico senhor, o senhor dom Nuno da Cunha capitão das galees do muyto poderoso rey de Portugal dom Johão o terceiro, 1.ª ed., Coimbra, per Johão Alverez Emprimidor, 1555.

779


23

Cf. Coelho, António Borges, João de Barros, Vida e Obra, [Lisboa], GTMECDP, 1997.

Esta será uma crítica recorrente em boa parte dos autores humanistas. Vários intelectuais humanistas denunciavam aquela que consideram ser a débil vocação intelectual dos portugueses, ou melhor, a sua despreocupação com a memória escrita das suas realizações e com a sua divulgação de forma concertada. Encontramos esta acusação da preguiça dos portugueses na dedicação à escrita, em autores como Fernando Oliveira e João de Barros. Com efeito, esta é mais um dos vectores da ideografia humanístico-renascentista que está na base da valorização da imortalização individual e colectiva através da perpetuação da memória histórica. Então, à maneira dos clássicos, reemergia a convicção de que não bastava ser herói e realizar gestas notáveis, era preciso que alguém as traduzisse em letra e cantasse através da historiografia e da poesia épica, para que os feitos brilhantes permanecessem memoráveis na história dos homens.23

Paradigma clássico e vanguarda portuguesa na Europa de Quinhentos

24

Sobre a génese clássica da ideia de Europa ver Maria do Céu (et al.) (coord.), Génese e consolidação da Ideia de Europa, Vol. I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2005.

25

Pereira, Duarte Pacheco, Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1954, p. 13.

780

O paradigma clássico é o lugar sempre revisitado pelos intelectuais humanistas para efeitos de comparação e superação. A exaltação de Portugal em relação à Europa é realizada, utilizando a referência ao mundo greco-romano como alusão recorrente de fundamentação.24 Duarte Pacheco Pereira é um desses homens do saber de experiência feito que não escapa a esta tentação encomiástica. No prólogo da sua obra principal, dedicada ao Rei D. Manuel, exalta o monarca português e a sua singular eleição divina em razão do que fez em prol da expansão do conhecimento do planeta e da expansão universal do Cristianismo: E, entre todos os príncipes ocidentais da Europa, Deus somente quis escolher Vossa Alteza que este bem soubesse, e recebesse e possuísse os tributos dos reis e príncipes bárbaros do Oriente, os quais Romanos, no tempo da sua prosperidade, quando mandavam uma grande parte do Orbe, nunca assim os pôde haver tributários.25


O mesmo sentimento, da auto-percepção exaltante da importância da epopeia de desvelamento do mundo oculto, está patente na Carta de D. Manuel ao Imperador Maximiliano: (…) Aquilo que outrora o império de Romanos, de cartagineses e de outros povos, com suas longínquas fronteiras e incomensurável vastidão, aquilo que a triunfante ventura de Alexandre Magno, ao percorrer o mundo inteiro, deixaram inexplorado e incógnito no orbe terrestre, por ser de caminhos vedados a exceder as forças humanas, ou seja, a circum-navegação de Ocidente para Oriente, através do mar atlântico do Etiópico e do Índico, isso mesmo os desígnios da divina clemência [com a autoridade de] sua santa fé e da República da Cristandade, o tornaram desimpedido, neste nosso tempo, para os reis de Portugal e acessível e submisso, por forma a que o orbe terrestre, mesmo em terra alheia e em regiões de algum modo desterradas do seu poder, pudesse parecer restituído a si próprio e submetido de ora em diante ao seu criador e redentor.

O mesmo tom se pode encontrar na célebre carta que o rei endereçou ao Papa para chamar a si os créditos espirituais e políticos das gestas os portugueses, nomeadamente em termos do que representavam em serviços missionários à Europa cristã e à Igreja.26 Portugal auto-avalia-se como o povo-pioneiro da Europa cristã, designado providencialmente para desimpedir os bloqueios clássicos que impossibilitavam o conhecimento do mundo todo e da humanidade toda. Portugal inaugura assim a diferença, a fronteira de descontinuidade entre a Europa medieval e a Europa moderna.

26

Cf. Epistola serenissimi principis Hemanuelis primi dei gratia Portugallie regis excellentissimi responsoria ad summum romanum pontificem, [Lisboa], [s.n.], 1505.

A Europa diferenciada pela nova geografia religiosa: Europa católica versus Europa protestante A consciência de uma Europa diferenciada pela crítica ao edifício social medieval e cristão vai ser derramada na cultura portuguesa por grandes humanistas como Damião de Goes e Jerónimo Osório. O primeiro, tendo viajado por boa parte do continente europeu, sentiu o pulsar das metamorfoses sociais, da emergência de correntes de pensamento novos, do despoletar das novas confissões cristãs protestantes e de todo o fervilhar, 781


27

Sobre Damião de Goes ver Barreto, Luís Filipe, Damião de Goes: Os Caminhos de um humanista, Lisboa, Correios, 2002.

28

Goes, Damião de, Opúsculos históricos, Tradução do original latino por Dias de Carvalho, Livraria Civilização – Editora, [s.d.]; Idem, Urbis Olisipones Descriptio, Évora, Apud Lodouicum Rhotoringium, 1554.

29

Cf. Idem, Hispania, Lovaina, Belgica Typographica, 1542.

30

Cf. Pinto, António Guimarães da Silva, Humanismo e controvérsia religiosa: Lusitanos e anglicanos. A polémica: Jerónimo Osório, Manuel de Almada e Walter Haddon, Dissertação de doutoramento apresentada à Universidade do Minho, Braga, Texto policopiado, 2000; Carvalhosa, Adelino, D. Jerónimo Osório, um expoente do pensamento político português do século XVI, Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1987.

782

muitas vezes conflituoso da mudança. Ele mesmo conviveu com grandes pensadores como Erasmo de Roterdão, que reflectiam novos caminhos de reforma do cristianismo medieval e institucional, enquadrado pela Igreja de Roma.27 E traduziu essa leitura em escritos de apreciação inteligente e dilemática, nem sempre consonante com a unanimidade da mundividência ortodoxa, imposta pela vigilância inquisitorial que se tinha instalado nas monarquias ibéricas, de uma forma cada vez mais implacável para com os intelectuais de pensamento dissonante. Esta percepção inteligente, crítica e auto-crítica perpassa nos seus escritos de viagens, nos seus discursos, como nas suas descrições geográficas e etnográficas.28 No entanto, na sua obra magna Hispania não deixa de fazer a apologia severa das grandezas humanas, religiosas, sociais e naturais dos povos católicos da Península ibérica, como forma de exaltação da sua diferença cada vez maior em relação aos reinos protestantizados, que olhavam para os reinos fiéis a Roma com desplante crítico.29 Jerónimo Osório, o celebrizado humanista Bispo de Silves e correspondentes de príncipes e princesas das cortes europeias, é marcado pela preocupação fundamental da fractura da Europa considerada herética, produzida pelos movimentos consubstanciados nas novas Igrejas protestantes. O modelo e a parte da chamada túnica ainda não rasgada de Cristo, mantinha-se nas monarquias católicas que se conversavam fiéis ao velho modelo social da cristandade europeia. A sua luta e preocupação era a defesa da fé e da moral, abrigada sob a bandeira do catolicismo contra-reformista.30

Proto-Eurocentrismo e a emergência da ideia de civilização europeia A modernidade traz à noção de Europa a perda lenta da sua configuração de uma identidade marcada pelo religioso e por uma mundividência teológica cristã unificada. Por seu lado, passa a ganhar consciência de uma identidade civilizacional própria que passa a compreender em si diferentes fidelidades,


religiosas ainda que matricialmente cristãs, culturais, políticas, ainda que direccionadas para a participação histórica na edificação de uma civilização que se julga a si própria como superior, modelada e legitimada de algum modo pela ideia de religião superior, que a unificou na Idade Média, a Religião Cristã. Se a Europa, como escreve Martim de Albuquerque, é uma realidade geográfica, «uma realidade histórica», «uma realidade psicológica», «uma realidade política», «uma realidade religiosa», «uma realidade económica», «uma realidade jurídica»,31 e poderíamos acrescentar ainda muitas outras, quase nunca estas coincidem em dimensão, em grau de importância definidora. Como escreve acertadamente Lucian Boia: «A Europa: eis um conceito que parece exprimir um conjunto físico e humano bastante definido, com um contorno traçado por uma mão segura e apresentando uma personalidade incontestável. É pelo menos o que cada um de nós aprendeu na escola e o que o General De Gaulle, que tinha o sentido da fórmula, resumiu numa definição aparentemente irrefutável: «A Europa do Atlântico aos Urais». Mas trata-se de uma realidade ou de uma representação? Ou das duas ao mesmo tempo? Nenhuma representação como esta indica aquilo que pretende exprimir. Os continentes são, por sua vez, reais e fictícios, misturando, como todos os nossos conceitos, realidades, imaginários e ideologias. Existe uma Ásia? Como lembrar, senão pelo imaginário, o Japão e a Arábia, a Índia e a Sibéria? Ou uma África? Com toda a evidência, a África Norte-Sariana apresenta, na verdade, características geográficas e humanas diferentes das da África Negra (e mais próximas da Europa Meridional e do Próximo Oriente asiático). A Europa manifesta, sem dúvida, mais coerência que os outros continentes. Mas será exagerado considerá-la como um bloco uniforme e claramente separado dos blocos vizinhos. Com um destino diferente, ela permaneceu talvez uma península da Ásia e pouco mais.»32 O Eu-civilizacional europeu distingue-se, define-se e exalta-se na confrontação com o Outro-civilizacional, através das crónicas, dos relatos, dos tratados geográficos e antropológicos, ora de forma dualista radical, afirmando o valor abso-

31

Cf. Albuquerque, Martim de, op. cit., p. 8.

32

Boia, Lucian, «Europa e imaginário», in Franco, José Eduardo e Rico, Hermínio (coord.), Padre Manuel Antunes (1918-1985): Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia, Lisboa, Campo das Letras, 2007, pp. 377-399.

783


33

Barros, João de, Panegírico da Infanta D. Maria. Ver também Ásia… Década Terceira, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, passim.

34

Franco, José Eduardo, O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e a sua Função Política, Prefácio de Francisco Contente Domingues, Lisboa, Fundação Maria Manuela e Vasco Albuquerque d’Orey, Roma Editora, 2000.

luto da civilização europeia por desvalorização do estado de barbárie do Outro, ora mitigadamente, fazendo-se concessões em aspectos dignos de valor e de exemplaridade. A Europa é exaltada pela comparação e oposição clara entre o que é entendido como ideal de civilização, por confronto ao extremo da definição da barbárie. João de Barros é um exemplo eloquente da instauração desta distinção em várias obras suas. Podemos referir o que escreve sobre os povos encontrados na sequência das viagens marítimas, subentendendo o auto-conceito de superioridade do seu continente: «(…) viviam de fora de toda a polícia, habitando as cavernas da terra, sem lei, sem justiça, sem direito humano e divino, vivendo ao modo de brutos animais».33 O seu contemporâneo e original pensador humanista Fernão de Oliveira, tanto naquela que foi a primeira Gramática da Linguagem Portuguesa, como na primeira História de Portugal que também escreve no fim da vida, ou ainda nos seus tratados científicos, como a Arte da Guerra do Mar, exalta a novidade absoluta dos feitos europeus modernos realizados sob a liderança portuguesa e advoga para Portugal, como reino mais excelente da Cristandade, o papel de civilizador das gentes descobertas, através da conversão ao Cristianismo, pelo ensino da língua vernácula portuguesa e pela pedagogia dos costumes inspirados no modelo europeu.34 A própria concepção e ideário que preside à elaboração de uma gramática vernácula tem em vista a codificação, o aperfeiçoamento, a valorização, a exaltação e a divulgação de um elemento de teor nacionalizante e estruturante da grandeza e da expansão do reino: a língua. Oliveira revela a consciência da importância cultural e civilizacional da língua, enquanto veículo das doutrinas e das leis, como meio de unificação política; portanto, como instrumento de expansão, domínio e solidificação dos reinos e dos impérios, com garantia de longevidade histórica: O estado da fortuna pode conceder ou tirar favor aos estudos liberais e esses estudos fazem mais durar a glória da terra em que florescem. Porque Grécia e Roma só por isto ainda vivem, porque quando

784


senhoreavam o mundo mandaram a todas as gentes a eles sujeitos aprender suas línguas e em elas escreviam muitas boas doutrinas, e não somente o que entendiam escreviam nelas, mas também trasladavam para elas todo o bom que liam nas outras. E desta feição nos obrigam a que ainda agora trabalhemos em aprender a apurar o seu, esquecendo-nos do nosso. Não façamos assim, mas tornemos sobre nós agora que é tempo e somos senhores, porque melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma, ainda que ela agora tivera a sua valia e preço35.

O missionário e proto-antropólogo jesuíta Luís Fróis é um daqueles que, à luz da sua experiência de evangelização dos povos das Ilhas do Sol Nascente, detentores de uma cultura muito elaborada e muito diferenciada da ocidental europeia, sente o choque da novidade quase absoluta do confronto, que o leva a um exercício diferenciado de comparação. Aqui a ideia de uma cultura Europeia definida como um todo (pelo uso claro de expressões como «na Europa», «nós na Europa», «os homens europeus», (…) e com traços unificadores comuns, aparece bem retratada neste eloquente tratado de antropologia, em relação à sociologia civilizacional daquela outra realidade do Extremo-Oriente. Podemos citar, entre muitas outras, uma passagem daquela obra que é considerada um dos tratados pioneiros da antropologia moderna, escrito em 1585:

35

Oliveira, Fernão de, A Gramática da Linguagem Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975, p. 42.

Pela maior parte os homens de Europa são altos de corpo e boa estatura; o Japões pela maior parte mais baixos de corpo e estatura que nós. Os de Europa têm por formosura os olhos grandes; os Japões os têm por horrendos, e os formosos são fechados da parte das lágrimas. Entre nós ter olhos brancos não se estranha; os Japões o têm por monstruoso, e é cousa rara entre eles. Os nossos narizes são altos e alguns aquilinos; os seus são baixos e as ventas pequenas. Pela maior parte a gente de Europa tem boa cópia de barba; os Japões pela maior parte pouca e não bem composta. A honra e primor que a gente de Europa tem posta na barba, os Japões o põem no cabelinho que trazem atado detrás do toutiço. Os homens entre nós andam tosquiados e têm por afronta pelarem; os Japões se pelam com tenazes para não terem cabelos, e isto com dor e lágrimas. Entre nós há muitos homens e mulheres sardas; os Japões, com serem alvos, há muy poucos que o sejam. Entre nós não é raro serem os homens e mulheres bexigosas; entre os Japões é coisa muito comum e cegam muitos de bexigas. Entre nós trazer

785


36

Fróis, Luís, Tratado em que se contem muito sucinta e abreviadamente algumas contradisões e diferenças de costumes antre a gente da Europa e esta província de Japão (…), c. 1, Tokyo, Sophia Universität, 1955, p. 100.

37

Cf. Pinto, Fernão Mendes, Peregrinação, Selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1979.

786

unhas compridas se tem por sujidade e pouca criação; os Japões, assim homens como mulheres fidalgas, trazem algumas como de gaviões. Entre nós se tem por disformidade ter uma cutilada no rosto; os Japões se prezão delas, e como são mal curadas são ainda disformes.36

Neste período de universalização da presença portuguesa no mundo, Portugal dá à Europa uma nova perspectiva de reunificação e reidentificação, pela via antropológica do confronto com o outro civilizacional. Este confronto é realizado e patenteado por escrito, através do olhar e pela pena de navegadores, missionários, viajantes, aventureiros e comerciantes. Cumpre aqui chamar à colação, entre outros, o viajante e comerciante ex-jesuita Fernão Mendes Pinto e o notável relato das suas viagens realizadas pelo Extremo-Oriente, que hoje constitui uma peça fundamental da literatura de viagens e de aventuras do século XVI: a Peregrinação. Escrita a partir dos anos 60 do século de Quinhentos, depois do regresso do autor a Portugal, e editada postumamente pela primeira vez em 1614, esta obra é um compêndio que descreve, nomeadamente, as aventuras, contactos, costumes, leis, perfis físicos e psicológicos, formas de organização das sociedades com quem o viajante contactou, em particular os povos do Império Chinês. Mendes Pinto assume o olhar de europeu na sua análise e, por essa via, representa aquilo que podemos chamar um primeiro choque crítico de um ocidental marcado pela ideia de superioridade da sua civilização que manifesta espanto e louvor por aspectos da civilização chinesa. A sua admiração chegou ao ponto de louvar a qualidade das leis político‑sociais sínicas em termos de eficácia, ousando classificá-las como superiores às da Roma Antiga, que era o paradigma do direito e da civilidade37. Recorde-se que a civilização greco‑romana era a civilização-referência para a civilização europeia moderna. O olhar do outro civilizacional, protagonizado por Fernão Mendes Pinto relativiza, no momento da emergência do complexo do eurocentrismo, o próprio eurocentrismo que se iria afirmar de uma forma exacerbada.


Portugal, cabeça da Europa Por ter realizado essa missão gnoseológica inédita, de desvelamento do mundo, Portugal arroga-se de prerrogativas de primazia e de superioridade. Via-se à cabeça da Europa e sendo seguido por esta, enquanto desbravador da floresta da ignoticidade de boa parte do planeta terra, isto é, como aquele que traz a luz do conhecimento global da presença humana sobre a terra, como aquele que abre as fronteiras entre os continentes, como aquele que quebra os muros bloqueadores de diálogo entre as diferentes raças humanas e abre a porta à expressão universal da Fé Cristã. Estávamos no momento do apogeu de composição de uma ideia de grandeza de Portugal, que podemos designar como a fase da ideia de superioridade deste reino em relação ao resto da Europa, ideia empolada por autores como João de Barros, Castanheda e André de Resende, hiperbolizada por poetas maiores da nacionalidade portuguesa como Luís de Camões e legitimada por teólogos e historiadores como Fernando Oliveira.38 Camões, poeta cimeiro da literatura da identidade portuguesa, se é o cantor épico supremo da mitificada Idade de Ouro portuguesa, é também um dos tecelões da ideia protoeurocêntrica da superioridade europeia sobre todas as outras civilizações.39 No pico da hierarquia e no centro brilhante do mundo, Luís de Camões coloca a (…) Europa cristã, mais alta e clara Que as outras em polícia e fortaleza.40

38

Cf. Franco, José Eduardo e Mourão, José Augusto, Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa. Escritos de Natália Correia sobre a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo, Prefácio de Luís Machado de Abreu, Lisboa, Roma Editora, 2004. 39

Cf. Moura, Vasco Graça, «Camões e uma Concepção da Europa», Oceanos 16 (Dezembro de 2003), 58‑61. 40

Camões, Luís de, Os Lusíadas, X, p. 92.

A própria descrição geográfica da Europa é feita em tom grandiloquente, que procura associar a ideia-chave de continente detentor de poder e capacidade de domínio, através da utilização de uma aparelhagem de adjectivos semanticamente adequada à produção desse efeito imagético: Entre a Zona que o Cancro senhoreia, Meta Septentrional do Sol luzente, E aquela que por fria se arreceia

787


41

Ibidem, III, 6.

42

Medina, João, «Ideia de Europa: Reflexões a partir da história contemporânea», Revista da Faculdade de Letras 18 (1995), 11. 43

Camões, Luís de, Os Lusíadas, VI, I. 44

Ibidem, VII, 12.

45

Ibidem, II, 80.

46

Ibidem, I, 64.

47

Ibidem, III, 21.

Tanto, como a do meio por ardente, Jaz a soberba Europa, a quem rodeia Pela parte do Arcturo e do Ocidente Com suas salsas ondas o Oceano, E pela Austral o mar Mediterrano.41

O continente europeu, nesta fixação de uma «ideia poética da Europa»42, quer do ponto de vista geográfico como civilizacional, é destacado ao longo do seu poema épico que vai caracterizando de forma sobrevalorizante, colocando expressões valorativas na boca de diferentes personagens, como «as europeias terras abundantes»43, «a vossa Europa rica»44, «da soberba Europa navegando»,45 «nem sou da terra nem da geração / Das gentes enojosas da Turquia; / Mas sou da forte Europa belicosa; / Busco as terras da Índia tão formosa»46. Por confronto com o Outro civilizacional, especialmente o grande inimigo do momento da Cristandade europeia, o Otomano, quer por exaltação de feitos, capacidades e bens, o continente em que Portugal se integra é descrito quase sempre de forma positiva e hiperbolizada. «Luís de Camões, el poeta de Europa» – como foi considerado, em 1675, por Manuel de Faria e Sousa na sua Europa Portuguesa, fazendo da lusitana epopeia camoniana uma epopeia europeia, ou melhor da cristandade europeia – não deixa de colocar o reino da sua pátria amada na posição de liderança, de dianteira, de cume: Eis aqui quasi cume da cabeça De Europa toda, o Reino Lusitano, Onde a terra se acaba e o mar começa E onde Febo repousa no Oceano.47

Todavia, importa salvaguardar que a exaltação da Fé Cristã e da sua defesa, que dá prestígio e liderança aos povos e reinos que a este ideal se dedicam, sendo Portugal colocado no topo dos reinos missionários, deve ser entendida mais como salvaguarda de uma identidade do que como sinónimo de intolerância, em Camões. Como escreve Vasco Graça Moura, «a intolerância religiosa surge fundamentalmente 788


como ingrediente lógico-afectivo e principal expressão de afrontamento e enfrentamento políticos do perigo árabe e da radicalização do conflito quanto ao respectivo imperialismo. Não surge contra outros povos e outras crenças, da África e da Ásia. E a intransigência tem o sentido profundo de defesa contra os fundamentalismos, bem como o de corresponder a esse princípio essencial de uma Europa solidária, como conceito ético, cultural e social».48 Camões define uma espécie de cânone de leitura da identidade portuguesa, ou da posição portuguesa em relação à Europa. A ideia de um Portugal-parte-mais-excelente-da‑Europa vai ecoar, como raiz genealógica da literatura da identidade portuguesa do tempo da idade de ouro, mesmo depois da perda da independência. O filólogo, historiador e geógrafo Duarte Nunes de Leão, em sintonia com os autores da literatura autonomista portuguesa, produzida sob os Filipes, é eloquente herdeiro desta percepção. Na sua célebre Descrição do Reino de Portugal escrita em 1599 e publicado em 1610, escreve:

48 Moura, Vasco Graça, op. cit., p. 61.

Hespanha é a última parte da Europa, assentada entre África e França, rodeada de mar de tal maneira que é quase ilha, cuja figura os geógrafos comparam a um couro de boi, volto o pescoço para a parte onde confina com França, pelos montes Pirinéus.

Neste âmbito ibérico, Portugal é eleito entre as terras mais aprazíveis de Espanha e da Europa, apresentando o seu território como o mais cobiçado desde tempos remotos por Fenícios e Gregos, destacando a abundância de águas, riquezas marítimas como a sua abundante pesca e minérios de ouro. O seu encómio a Portugal vai desde a gastronomia, ao pescado, à luz do sol até aos talentos. Portanto, desde a geografia física até à geografia humana e cultural. Destaca ainda o valor dos talentos lusitanos, no capítulo LXXXVII, intitulado «dos muitos portugueses que por o valor de suas pessoas fora de Portugal fossem estimados e alcançaram honras e dignidades». A prova deste valor é confirmada pelo reconhecimento estrangeiro e no estrangeiro: «A maior 789


49

Leão, Duarte Nunes de, Descrição do Reino de Portugal, Transcrição e notas de Orlando Gama, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p. 279. 50

Ibidem, p. 280.

51

Ibidem.

prova que os homens dão de quem são e das virtudes e valor que neles há, é serem honrados nas terras onde são estranhos».49 Aqui aparece na cultura portuguesa a formulação de um axioma valorativo que se tornará recorrente em grandes autores até aos nossos dias. Portugal é, com efeito, nesta apreciação, apresentado como o mais pródigo em homens capazes da cidadania do mundo: «Destes, temos muitos exemplos em Portugal mais que outras algumas nações».50 E a Europa é o palco por excelência desse reconhecimento, nomeadamente em Castela, França e Inglaterra. Portugal é comparado a um viveiro de talentos que nascem em Portugal e depois são transplantados para as nações de todo o mundo.51

Cabeça caída e futuro levantado da Europa A nova crise dinástica de 1578-1580, que rebentou em Portugal após o desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir travada no Norte de África, fez ascender ao trono português o monarca espanhol D. Filipe II. Com o nome de Filipe I de Portugal, este soberano castelhano iniciou um período de 60 anos de tutela espanhola sobre Portugal. De certo modo, existem dois séculos XVI portugueses: o do século do Portugal-cabeça-da-Europa e o do Portugal cabeça‑caída-da-europa, prolongando-se este até ao ano da Restauração portuguesa de 1640. É neste período de perda que se difunde uma importante e intensa produção de literatura da identidade portuguesa, que Hernani Cidade cunhou com a expressão Literatura Autonomista Sob os Filipes. Esta produção intelectual é herdeira directa do investimento feito pelos autores humanistas para criar «memória memorável», da fulgurante afirmação portuguesa na história do mundo. Perante a queda do Portugal-cabeça-da-Europa nas últimas décadas do século XVI, os autores da literatura autonomista portuguesa tentam reforçar-lhe a distinção da sua identidade, prometendo ao Portugal caído um futuro levantado. Investe‑se na produção historiográfica e mitifica-se, à luz de uma leitura 790


mistificante e providencialista, a deriva portuguesa no tempo. Ao mesmo tempo, promovem-se a produção de obras gramaticais, para reforçar a valorização da língua portuguesa, que poderia correr o risco de diluir-se no acastelhanamento linguístico do país; fomenta-se a escrita de obras de geografia, de obra profética, obras espirituais e pedagógicas, etc. A voz intelectual portuguesa tenta salvar, pela escrita e pela cultura, o que se perdeu pela política. O pioneiro Fernando de Oliveira, já referido, que ao lado de historiólogos de Alcobaça, entre os quais se destaca Frei Bernardo de Brito, vai fazer remontar as origens de Portugal aos tempos patriarcais bíblicos52 e, por esta via, vai procurar prestigiar e dar primazia a Portugal entre os outros reinos cristãos europeus, pela sua maior Antiguidade, pela sua superior Nobreza, pela sua incólume Liberdade e pela sua irrompível Imunidade. Aqui o mito das origens da Europa coincide com o mito das origens de Portugal, para conferir ao continente e ao país origens divinas e uma destinação universalista. Com a mesma convicção apologética, todas as dimensões que fazem a diferença portuguesa são exaltadas: as condições naturais, a religião, os costumes, a harmonia entre governados e governantes, embora em andamentos diferentes, isto é, ritmos marcados por uma ideia cíclica da história de carácter triádico, convivendo internamente com a ideia linear e judeo-cristã do devir histórico ascendente: prosperidade (idade de ouro), decadência (idade de ferro), regeneração (renovatio temporum).53 De forma eloquente, a História é usada como «arma política e ideológica», como recorda Carlos Fabião,54 de modo a estabelecer os fundamentos e conferir legitimação, na linha do que teorizou Marc Ferro.55 Na mesma esteira de procurar atribuir uma distinção para o continente e para o reino, escreve António Sousa de Macedo nas suas sugestivas Flores de España, Excelência de Portugal: Se é certo que «na Ásia viveu e morreu Cristo Senhor nosso para remédio do género humano», Ele vive hoje na Europa no coração dos fiéis.» Se «na Ásia esteve a lei de Deus do Testamento Velho, na Europa está a do Novo, mais perfeita, e a suma cabeça da Igreja

52

Cf. Brito, Frei Bernardo de (et al.), Monarquia Lusitana, 8 vol., Introdução de Raul Rego, Notas de António A. Banha de Andrade, Lisboa, IN-CM, 1973-1988.

53

Cf. Franco, José Eduardo, O mito de Portugal. Ver também Barreto, Luís Filipe, Portugal, Mensageiro do Mundo Renascentista. Problemas da Cultura dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Quetzal, 1989, passim. 54

Fabião, Carlos, «Construindo memórias: O registo arqueológico», in Sousa, Maria de (coord.), Toda a Memória do Mundo, Lisboa, Esfera do Caos, 2007, p. 53. 55

Ferro, Marc, Comment on raconte l’Histoire aux enfants à travers le monde entire, Paris, Payot, 1981.

791


Romana». Se a Ásia produziu ilustres varões, na «Europa nasceram o grande Alexandre, os Romanos, Godos, Espanhóis e outras nações que venceram todo o mundo.

56

Flores de España, Excelências de Portugal, fl. 3 e 6.

792

Sendo geograficamente a Ásia maior que a Europa, a Europa supera a sua pequenez física com as suas «Excelentes qualidades». A condição da Europa é exaltada aqui pelo desempenho revelado na sua história e a distinção legitimada pelo religioso, por ser pátria total do cristianismo, fazendo desta uma espécie de continente eleito. Macedo coaduna a sua admiração apologética pela Europa com o seu imarcescível amor à pátria portuguesa, cuja subjectividade e parcialidade do juízo não esconde: «assim Europa é a melhor parte do orbe, a Espanha como cabeça é a principal da Europa, Portugal como coroa honra a Espanha, e consequentemente o mundo todo».56 A parte melhor da Europa é cada vez mais hiperbolicamente exaltada, na entrada do século XVII, como sendo Portugal: a excelência da sua geografia é muitas vezes apresentada como significativa expressão da preferência, da bênção e da protecção providencial dos céus. Se a literatura da afirmação da identidade portuguesa no tempo dos Filipes ganha uma tonalidade dogmatizante e extremamente defensora do valor português sobre o resto da Europa, tal se compreende como forma de sobrecompensação da situação de sujeição ao reino vizinho. Tinha-se, de facto, derramado então sobre a mentalidade portuguesa um verdadeiro sentimento de interrupção da sua dita sublime missão no mundo. Este entendimento reflectido por literatos e historiadores provocou uma espécie de trauma nacional que se veio a tornar crónico, pois o país nunca mais se viria a libertar deste sentimento de perda grave, nem mesmo depois da restauração da sua independência, em 1640. O movimento sebastianista, de carácter messiânico-político que perdura até aos nossos dias, é a melhor expressão desta consciência traumática da perda do momento glorioso da nação portuguesa. E representa, concomitantemente, o momento da desaceleração de Portugal em relação à Europa que progride científica, tecnológica e socialmente.


Criação e Evolucionismo - I Nos 200 anos de Darwin

António Vaz Pinto, S.J.  *

Nota Prévia – Agradecimento No ano de 2009, em que se comemoram os 200 anos do nascimento de Ch. Darwin e os 150 da publicação de «A origem das espécies», a revista «Brotéria» publicou já dois artigos sobre a problemática fé e ciência, mais concretamente, fé e evolucionismo; de Alfredo Dinis – «Darwin e o cristianismo», em Outubro e de Jean-Pierre Sonnet – «Génesis 1 e a vocação científica do homem», em Novembro. No entanto, devido à vastidão, complexidade e importância da relação fé e ciência, julgamos que se justifica este terceiro artigo, da minha autoria, que agora se publica na 1.ª parte e cuja 2.ª parte sairá em Janeiro, «Fé e Ciência – Criação e evolucionismo». Em obra anterior, «Revelação e Fé – fundamento e conteúdo da fé cristã para o homem de hoje» (Ed. AO, Braga, 2.ª ed., 2001) no cap. 5 – «Criação e evolucionismo. Fé e ciência no problema das origens» – tínhamos já tratado desta problemática, de modo mais alargado, estendendo-a também à questão da origem e modelo do universo, matéria que neste artigo deixamos cair… Este artigo é, pois, resumo e actualização do capítulo acima referido. Como referíamos então, quero agradecer de modo muito especial aos senhores Prof. Doutor Manuel Laranjeira Rodrigues Areia (Professor Catedrático de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra), Prof. Doutor José Nuno Urbano (Prof. Catedrático de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade * Director da Revista Brotéria.

Brotéria 169 (2009) 793-807

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de Coimbra), Prof. Doutor José Teixeira Dias (Prof. Catedrático de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra), Prof. Doutor Luis Archer, S.J. (Professor Catedrático de Genética Molecular nas Faculdades de Ciências das Universidades Clássica e Nova de Lisboa), Prof. Doutor Nuno Ayres de Campos (Prof. Catedrático de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra), Dr.ª Teresa de Matos Fernandes (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra), Prof. Doutor Vitorino de Sousa Alves, S.J., já falecido (Professor Ordinário de Lógica e Epistemologia Geral da Faculdade de Filosofia de Braga, da Universidade Católica Portuguesa), a gentileza de terem lido o manuscrito deste capítulo que muito se enriqueceu com as correcções, sugestões e acrescentos que se dignaram propor.

1 – Ciência e Fé. Actualidade e sentido da questão A relação entre a Fé (cristã) e a Ciência, sobretudo a partir do Renascimento, é muitas vezes problemática e até mesmo conflitual. Basta lembrar, para citar apenas dois exemplos marcantes, a questão de Galileu, sobre o lugar relativo da Terra e do Sol no sistema solar, no séc. XVI e a tese do evolucionismo proposta por Darwin, no séc. XIX. No ano de 2009, em que se comemoram os 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos da publicação da sua obra fundamental. «A origem das espécies» (1859) vale a pena voltar às suas ideias fundamentais, celebradas por todo o mundo com livros, revistas, colóquios, congressos, exposições, etc.. Esta «universalidade» das comemorações não é simples moda. Quer se goste quer não, com Marx e Freud, Darwin é, sem dúvida, uma das maiores figuras de cientista e mentor dos últimos séculos ocidentais, tendo levado a cultura e a ciência a uma verdadeira mudança de horizonte, de paradigma, que veio para ficar… Desde então, para muitos, pôs-se a questão: Fé e Ciência são incompatíveis? A Ciência contradiz e destrói a Fé? Perten794


cerá a religião apenas ao mundo do mito, do rito e do passado infantil de cada um e da humanidade? O problema da articulação entre Fé e Ciência põe-se a muitos níveis e em múltiplos sectores. Mas a problemática das origens, seja do universo, da vida, das espécies ou do homem, é um dos mais significativos «pontos quentes», ao nível teórico, da fricção e até aparente oposição ou incompatibilidade entre Fé e Ciência. E foi precisamente a propósito da questão das origens que no séc. XIX, com Darwin, surgiu a problemática do evolucionismo. Antes de entrar no fundo da questão, impõe-se um esclarecimento de termos. Hoje, nalguns países e em especial nos EUA, é criticado e muito justamente o chamado «criacionismo». Mas, atenção, o que é criticado é o «criacionismo fundamentalista» proveniente de algumas correntes fundamentalistas originárias da América do Norte que fazem uma leitura literal e científica dos relatos da criação, dos primeiros capítulos do Génesis. Pretendem desvalorizar os dados actuais das Ciências, a hipótese evolucionista e afirmar o carácter científico das afirmações bíblicas. Como se verá de seguida, não é este o nosso entendimento, pois afirmamos simultaneamente quer o evolucionismo, quer o criacionismo. Vamos procurar tratar, ao nível teórico, da problemática das origens, como um exemplo típico da aparente incompatibilidade Fé e Ciência. Mas é bom sublinhar que a problemática da relação Fé e Ciência não se esgota nesta questão; hoje, tem uma nova acuidade, sobretudo no que se refere à ordem prática, a aplicação tecnológica dos dados científicos: utilização da energia atómica, raios laser, manipulação genética, meios de comunicação social, esgotamento dos recursos naturais, etc., novas zonas de contacto, cuja importância é vital para a sobrevivência e dignidade do homem. A tese fundamental deste artigo é a da não-contradição entre Fé cristã e Razão humana (neste caso, a razão científica): não se opõem nem contradizem, estão em contacto e influxo mútuo permanente e surgem de perspectivas diferentes no modo de considerar a mesma realidade. Fé e Ciência 795


são, por isso, distintas mas complementares, devendo-se respeitar e estimular mutuamente. Fé e Ciência têm o mesmo «objecto material» (neste caso, a origem do universo, da vida, das espécies e do homem) mas diferente «objecto formal», isto é, diferente ângulo ou perspectiva de abordagem. Os inegáveis conflitos surgidos ao longo da história não provêm de uma contradição real entre conteúdos, mas de uma contradição aparente, derivada de uma confusão de perspectivas. Os conflitos aconteceram ou porque a Fé e as suas instâncias humanas (Igrejas) não tiveram em conta a diferente perspectiva e a correspondente legítima autonomia da Ciência (o «caso Galileu» é um exemplo típico) ou porque a Ciência, extrapolando abusivamente as suas conclusões puramente científicas para o domínio filosófico e religioso, entrou em terreno alheio e procurou arvorar-se em Palavra absoluta e última sobre a realidade e o homem. Se existe um «fundamentalismo religioso», existe também um «fundamentalismo científico»…

2 – A origem do universo A afirmação da criação, por Deus, do Universo ou Mundo, com todos os seres nele existentes, em diferentes expressões culturais e religiosas, explícita e implicitamente, percorre toda a Bíblia e é mesmo o pressuposto permanente, o enquadramento da acção salvífica de Deus, a História da Salvação, de Israel e da Humanidade. Saliente-se, no entanto, pela sua situação e importância, as 2 narrativas da criação, do Génesis (Gn 1, 1-2, 4 e Gn 2, 4b-25), a do Salmo 104, de Job, cap 38 ss e também, pelo seu rigor conceptual, 2 Mac 7, 28. Para entender e interpretar correctamente as afirmações bíblicas, sobretudo os dois relatos da criação, do Génesis, não podemos perder de vista o seguinte: – Os primeiros capítulos do Génesis, referidos à criação do Mundo, do Homem e à Origem do Mal (é hoje opinião comum de biblistas e teólogos, admitida oficialmente pela 796


Igreja), não pertencem ao género literário histórico mas sim ao género literário sapiencial. São uma «etiologia histórica em forma sapiencial», isto é, uma interpretação, à luz da experiência da fé de Israel, da Realidade circundante, Universo material, Homem e Mal, nas suas causas e origens, moldada com elementos e expressões poéticas, simbólicas e míticas. Uma interpretação literal desses capítulos seria, portanto, necessariamente errada e infiel ao sentido pretendido pelo autor bíblico. Sendo Palavra de Deus e simultaneamente Palavra humana, portanto, culturalmente condicionada, a Bíblia utiliza necessariamente as expressões culturais das diversas épocas ao longo das quais foi escrita e os pressupostos e afirmações correntes da Cultura e da Ciência do tempo e do meio dos seus diversos autores humanos. – Mais concretamente, os relatos bíblicos da criação não são nem pretendem ser, de modo algum, históricos, no sentido moderno do termo, descrições propriamente ditas, «reportagens» de testemunhas oculares, mas sim interpretações religiosas. – Os relatos bíblicos da criação não fazem nem pretendem fazer afirmações ou interpretações sobre o modo concreto como Deus criou o Universo, o Céu, a Terra, as «espécies» ou o Homem; não se situam, portanto, ao nível da interpretação científica. – Os relatos da criação do Génesis não pretendem, nem podiam pretender, tomar partido na polémica moderna, científico-filosófica, entre fixismo ou evolucionismo, questão que não era a sua e que então não se punha sequer. A ideia de criação expressa no Genésis é compatível tanto com uma visão evolucionista como com uma visão fixista. Determinar qual das duas concepções responde melhor à realidade, compete precisamente à Ciência e não à Bíblia ou à Teologia. – Os primeiros capítulos do Génesis, comparados com as Cosmogonias dos Povos e Religiões circunvizinhos, por exemplo, Egipto, Fenícia e Babilónia (esta conhecida sobretudo pelo poema Enuma Elish, descoberto em 1875), apresentam, ao lado de indiscutíveis semelhanças, grandes e significativas 797


diferenças. Salientam-se, entre as diferenças significativas, a afirmação de Yavé, Deus Criador, como único (Monoteísmo) e Bom, Autor de toda a Realidade do Universo, incluindo a matéria, também ele radicalmente bom, (sem maniqueísmos nem dualismo ôntico), excluindo-se assim a existência de outros deuses e sobretudo de um deus mau. Refira-se ainda a afirmação da transcendência de Deus face ao Universo, seu Autor mas diferente dele (o que exclui toda a concepção panteísta ou emanentista), e a liberdade do Seu acto criador, que não Lhe é imposto por necessidade externa (destino, fado, etc.) ou interna (carência, necessidade de realização ou acrescento), mas antes acto e decisão gratuita da sua soberana liberdade, sabedoria e poder. Esta consciência da transcendência da acção criadora de Deus é de tal modo clara em Israel que o verbo «bará» é usado exclusivamente para referir a acção criadora de Deus. Em síntese, usando os pressupostos culturais e científicos do seu tempo e uma linguagem sapiencial, não pretendendo fazer «história» (no sentido moderno do termo, descrição objectiva) nem afirmações científicas sobre o modo concreto como o Universo surgiu, os relatos da criação do Génesis afirmam que, com todos os elementos que o integram, incluindo os elementos físicos, materiais, o Universo é obra do poder de Yavé, Deus único, bom, transcendente, poderoso e livre, é criado, é criatura e criação de Deus. Afirmação que a Ciência moderna, no seu conjunto, em nada contradiz. Mas, concretamente, que deve entender-se por criação? O pensamento filosófico ocidental, pós-cristão, chegou à fórmula clássica: «a criação é a produção da coisa (ou realidade) a partir de nada de si e do sujeito» – distinguindo assim rigorosamente a emanação, o panteísmo, a transformação ou a simples fabricação, da verdadeira criação. A criação não é o início ou origem temporal mas a dependência no ser. Não deve pois entender-se como se fosse apenas passada, como se Deus tivesse unicamente dado início ou origem ao Universo, no seu primeiro momento de existência: o contingente (e o Universo é contingente, como 798


vimos) depende do Ser Necessário (Deus) enquanto existe e em todo o seu ser. Existe pelo Necessário, é radical e total dependência do Ser Necessário. Por isso, o acto criador de Deus, a criação, é actual, é presente, é acção contínua de Deus que mantém no ser tudo o que existe. Assim, e para finalizar, podemos dizer que «Deus é Aquele pelo qual tudo existe» ou, em formulação negativa, «Aquele sem o qual nada existe».

3 – A Origem da Vida e das Espécies – Perspectiva científica – Fixismo ou Evolucionismo? A hipótese científica mais provável sobre a origem do Universo (perfeitamente compatível com o criacionismo) é a de ele ter surgido há cerca de 9 a 18 mil milhões de anos, a partir da explosão de um «nucleão» inicial, o Big-Bang, a uma temperatura de cerca de 10 mil milhões de graus. Com uma tal temperatura, a vida era impossível. E de facto calcula-se, por outro lado, que a vida tenha começado há apenas 2 ou 3 mil milhões de anos. Houve, portanto, no Universo e mais em concreto, na Terra, uma era abiótica, anterior à vida. Daí a grande questão científica, filosófica e teológica: donde e como surgiu a vida no Universo e na Terra? Como se explicará o «salto» do inorgânico para o orgânico? Terá a vida provindo de matéria inorgânica? Esta problemática científica levanta imediatamente uma complexa problemática filosófica: caso um ser vivo venha a ser ou tenha sido produzido a partir duma substância inorgânica, fica a questão da causa produtora: a vida só poderá ser causada directamente por Deus ou poderá a matéria inorgânica produzir, por si, a vida (supondo sempre evidentemente, o concurso de Deus)? Até há pouco, a reflexão filosófica, assente nos dados que a ciência lhe fornecia, afirmava entre orgânico e inorgânico, uma diferença essencial. Diferença não assente nos elementos 799


constitutivos, pois há uma unidade físico-química básica entre todos os seres materiais, mas na diversa proporção em que esses elementos se encontram distribuídos, no modo como estão estruturados e reagem e, sobretudo, nas propriedades funcionais: o ser vivo, ao contrário do não-vivo, manifesta-se como uma unidade biológica, dotada de autonomia, que se conserva, aumenta e reproduz. Esta unidade autónoma, própria do ser vivo, era explicada filosoficamente pela existência de um princípio novo, «alma», princípio vital, de natureza diferente dos elementos materiais que compõem o ser vivo, imanente a eles, inatingível pela observação mas exigido por conclusão, a que se chamava tradicionalmente a forma substancial, a alma. No suposto da existência desta forma substancial no ser vivo, então a questão fundamental, quanto à origem da vida, poderá formular-se do seguinte modo: poderá a forma substancial, a alma, característica própria do ser vivo, ser produzida pela matéria não viva? Ou, dado que a vida é uma forma essencialmente diferente e superior de ser, que por isso não pode ser produzida pela inferior (pois ninguém pode dar o que não tem), terá a vida de ter sido criada directamente por Deus? Se passarmos agora do problema da origem da vida para o problema da origem das espécies, a problemática que encontramos é fundamentalmente semelhante. A Ciência embate com a inegável multiplicidade das «espécies» (cerca de 800 000 espécies, só no «Reino Animal») e pergunta-se: qual a explicação da sua origem? Terão as diversas espécies sido produzidas separada e distintamente a partir de matéria inorgânica pré-existente, por criação directa de Deus? É a concepção fixista. Ou as diversas espécies descendem, por geração, de uma ou várias espécies anteriores e primeiras? É a concepção evolucionista. Estas questões podem resumir-se na questão fundamental, semelhante àquela que pusemos sobre a origem da vida, da passagem do inorgânico para o orgânico: pode dar-se o salto do mundo vegetal para o animal e deste para o Homem e 800


podem espécies inferiores produzir espécies superiores, sem uma nova intervenção de Deus? Embora com alguns notáveis antecedentes (entre outros, Buffon, Lamarck, etc., e, ao nível filosófico-teológico, Santo Agostinho, com as suas «razões seminais»), pode dizer-se que até à publicação da «Origem das Espécies», de Charles Darwin, há precisamente 150 anos, em 1859, o paradigma cultural, científico e religioso correspondia a um modelo ou mundividência fixista. Assim, na mundividência fixista, a distância entre o mundo orgânico e o inorgânico era considerada abissal, intransponível e essencial. Os «mundos» vegetal, animal e humano eram entendidos como compartimentos absolutamente estanques e dado que dentro de cada espécie os indivíduos se reproduzem sempre iguais a si próprios, as espécies eram consideradas fixas, imutáveis. A esta visão científica global, estática, fixista, correspondia evidentemente uma análoga visão teológica, também fixista, que a letra da Bíblia parecia não só autorizar como pedir. Assim, segundo a leitura literal dos primeiros capítulos do Génesis, Deus teria criado o Universo em seis dias e de modo sucessivo e estanque, cada coisa «segundo a sua espécie», e no termo da sua obra criadora, insuflando o sopro de vida ao barro da terra, o Homem, radicalmente diferente, separado e superior às «coisas», às plantas e animais. Numa palavra, a Bíblia parecia confirmar inquestionavelmente a própria visão fixista científica: a radical separação entre Mundo inorgânico e orgânico, a divisão do orgânico nos 3 «Reinos» e, dentro de cada um deles, a fixidez ou imutabilidade das diversas espécies; e para terminar, a radical diferença e superioridade do Homem. Nesta concepção, a criação ou acção criadora de Deus teria de ser qualitativamente diferente no seu termo (as diversas criaturas) para que elas surgissem segundo as diversas espécies. Esta acção criadora de Deus, original, teria portanto de ser imediata. Mas, uma vez criada por Deus uma «espécie», dotada cada uma delas de uma forma substancial ou princípio 801


1

In Archer, S.J., Luís – «A representação de Deus para o homem da ciência», As origens do universo, da vida e do homem, Lisboa, Univ. Cat. Portuguesa, 1983, p. 144.

802

vital próprio e imanente, para o crescer e o reproduzir-se, sempre segundo a «sua espécie», já não era precisa uma acção imediata de Deus, bastando a acção «habitual» da «conservação» ou «concurso» divino. Esta visão do Universo, a mundividência fixista, foi profundamente abalada e, podemos dizer mesmo, substituída, pela mundividência evolucionista, com o Evolucionismo de Lamarck e sobretudo de Darwin. Procuremos sintetizar o essencial das teses deste último, socorrendo-nos das palavras de um cientista e biólogo actual: 1.º – «Todas as espécies provêm, por evolução, uma das outras e, remotamente, de um ou poucos seres vivos iniciais; 2.º – o Homem também surgiu como resultado dessa evolução; 3.º – o mecanismo pelo qual a evolução se processa é o da selecção natural; ou seja, das várias inovações que espontaneamente surgem, apenas sobrevivem aquelas que mais adaptadas se mostram ao ambiente e, portanto, vencem «a luta pela vida»1. Desde o aparecimento da «Origem das Espécies» até hoje, apesar de inegáveis dificuldades pontuais, surgidas aqui e acolá, pode afirmar-se que o Evolucionismo se impõe e se tende a impor cada vez mais. Na verdade, uma longa série de «sinais» científicos, no campo da Paleontologia, que não cabe aqui pormenorizar, só na hipótese evolucionista encontram explicação plausível: 1 – o aparecimento sucessivo e progressivo das espécies; 2 – as semelhanças estruturais; 3 – os órgãos homólogos em espécies diferentes, isto é, de conformação idêntica e função diversa, sugerindo a proveniência de um antepassado comum; 4 – os chamados «seres de passagem», de uma espécie a outra; 5 – a ortogénese, a orientação de linhas evolutivas, nos equídeos, elefantes, símios, etc.; 6 – a embriologia que no embrião manifesta caracteres semelhantes aos dos seres vivos;


7 – a biogeografia, no estudo da distribuição geográfica das espécies; 8 – as mutações, hoje não só verificadas como provocadas. Enfim, um conjunto de dados de valor diferente mas claramente convergentes no sentido da confirmação do acerto fundamental do Evolucionismo. A Biologia moderna, por outro lado, tem vindo a confirmar a visão evolucionista de base. Demos de novo a palavra a um especialista: a Biologia não só isola e caracteriza quimicamente os elementos dos fenómenos biológicos, como já «consegue sintetizar, a partir de compostos inorgânicos, as macromoléculas «misteriosas» que os seres vivos biosintetizam» e «está a conseguir a síntese artificial de elementos vitais e a desencadear experimentalmente, in vitro, certas reacções vitais» (in Luís Archer, op. cit., pp. 145-6). «Ao nível bioquímico e molecular, os mecanismos fundamentais são os mesmos desde a bactéria até ao homem: ao nível molecular será portanto difícil (para não dizer impossível) encontrar um hiato qualitativo que justifique a divisão da bioesfera nos três Ramos tradicionais» (in Luís Archer, op. cit., pp. 157-8). E continua ainda Luís Archer: «E também ao nível molecular da vida, não parece tão evidente como para os Antigos, que o crescer e multiplicar-se dentro da mesma espécie seja o simples fluir quantitativo da mesma perfeição qualitativa. Quando uma célula, ao crescer, faz mais das suas proteínas, o que se passa não é uma dilatação ou ampliação das proteínas que já possuía, mas antes uma síntese nova em que aminoácidos isolados reagem de modo a constituir uma proteína. Esta é qualitativamente diferente do conjunto dos aminoácidos que a originaram... Houve, portanto, aqui (como em todos os outros fenómenos do metabolismo celular) um salto qualitativo do menos para o mais, um devir para o qual se terá de encontrar causa adequada». Em síntese, «o ponto de partida para a explicação causal do devir biológico qualitativo foi transferido, pelo progresso 803


da ciência, do nível dos graus da vida para o metabolismo habitual de qualquer ser vivo, ou seja, dos Reinos da Natureza para a estrutura molecular da vida e da matéria» (Luís Archer, op. cit., pp. 158-9). Numa palavra, as diversas Ciências e em concreto a Paleontologia e a Biologia, pelas suas descobertas e pelas suas interrogações, confirmam a intuição básica da mundividência evolucionista: ao nível das espécies e ao nível da estrutura molecular de qualquer ser vivo, realizaram-se verdadeiras alterações qualitativas, passagens de menos a mais, autênticos fenómenos evolutivos. Como explicá-los filosófica e teologicamente? Será esta mundividência evolucionista compatível e aceitável para uma correcta perspectiva filosófica e teológica? – Perspectiva filosófica Aqui, na questão das origens da vida e das espécies, a problemática que a Ciência e mais ainda em concreto a mundividência evolucionista levanta à Filosofia, pode resumir-se nas seguintes questões: – pode o inorgânico gerar o orgânico, o não-vivo o vivo? – podem espécies inferiores gerar espécies superiores, mais complexas e ricas? – E se, num caso como noutro, tal se verifica, como a Ciência e o Evolucionismo apontam, como se explica tal «acréscimo», tal «salto qualitativo», para usar esta expressão que ganhou foros de cidade? A resposta filosófica tradicional a esta questão era negativa e assentava ultimamente no princípio da razão suficiente: «tudo o que é tem a sua razão de ser», uma razão proporcionada de ser. Se tal salto qualitativo se verifica, de facto, então só pode explicar-se pela intervenção de uma outra causa (que não a matéria inorgânica ou espécie inferior), que seria uma intervenção criadora e directa de Deus. A reflexão filosófica tem-se entretanto afinado e é opinião actual corrente que nada impede que Deus tenha criado a 804


matéria inorgânica com a virtualidade ou capacidade de, verificadas certas circunstâncias, dar origem à vida. E opinião análoga vale para o problema da origem das espécies: nada impede que Deus tenha dotado as espécies inferiores com a potencialidade de, em certas circunstâncias, gerarem espécies superiores. Na perspectiva Criacionista de que partimos, dada a radical contingência do universo material e aceitando por outro lado a mundividência evolucionista, nada se opõe a que Deus, Criador permanente e actual de um Universo em evolução e portanto também seu «Evolutor», se tenha servido da matéria inorgânica já criada para produzir a vida, ou da espécie inferior para produzir a superior, transformando-as ou servindo-se delas como instrumento, sem se exigir da parte de Deus uma nova acção criativa, directa, uma nova e pontual intervenção de Deus. Ao nível filosófico, esta mesma hipótese tem uma outra formulação: a matéria inorgânica ou a espécie inferior foi causa instrumental ou material da acção simultaneamente criadora e evolutora de Deus, da tradicionalmente chamada «conservação ou concurso divino», sem que tenha de se introduzir nos pontos-chave da evolução, nos saltos qualitativos, uma artificial intervenção «directa» de Deus, rebaixando a sua intervenção no Universo material ao nível de uma mera «causa segunda». Em qualquer das duas hipóteses, intervenção directa e imediata de Deus nos momentos-chave da Evolução, ou criação por Deus da matéria inorgânica e orgânica já dotada de potencialidades autónomas de auto-superação e evolução, em qualquer das duas hipóteses, dizíamos, a necessidade da presença e acção de Deus, como Causa Primeira e permanente da Realidade, está assegurada e a exigência da Filosofia está respondida. Mas é à Ciência e não à Filosofia que compete dirimir a questão, esclarecendo em qual dos dois modos ou modelos concretos e possíveis, de facto, Deus exerce a sua acção criadora e transformadora. E, como vimos, sobretudo a Paleontologia e a Biologia optam fundamentalmente pelo modelo evolucionista. 805


– Perspectiva teológica Depois da consideração da perspectiva científica e filosófica, resta-nos referir, sobre o mesmo problema, a perspectiva teológica, radicada basicamente na Revelação bíblica de Deus. É evidente que o autor humano da Bíblia, e do Génesis em concreto, não podia deixar de se servir dos quadros científicos e culturais do seu tempo e do seu meio. Literalmente, serviu-se de quadros fixistas, a criação sucessiva em 6 dias, e cada coisa «segundo a sua espécie». Mas estes quadros fixistas, únicos então existentes, por isso inevitáveis na situação cultural do autor, são apenas o modo, o invólucro, a expressão de um conteúdo religioso e humano que pretende afirmar sim a criação de toda a Realidade por Deus, mas que não tem nem podia ter qualquer interesse em pronunciar-se quanto ao modo concreto como Deus criou e cria, fixismo ou evolucionismo. À Bíblia interessa-lhe o que e não o como… A problemática científica, fixismo ou evolucionismo, é totalmente alheia à Bíblia, porque não se punha então e porque não lhe interessa. A mensagem da Bíblia não é uma mensagem essencialmente científica ou filosófica mas religiosa e esta é a perspectiva que lhe interessa e que a orienta e na qual deve ser lida. A criação do Universo por Deus pode pensar-se tanto em modelos fixistas como evolucionistas, pois como acabamos de ver, a evolução não se opõe à criação, é antes compatível e conciliável com ela. Se fixismo, se evolucionismo, e em que modelos concretos, cabe precisamente à Ciência e à Filosofia investigar, reflectir e decidir. Se, como parece ser o caso, ao nível científico o Evolucionismo se vier a impor, isto significa apenas que a evolução é o modo concreto como Deus cria. Ou, na lindíssima expressão do P. Teilhard de Chardin, paleontólogo, filósofo e teólogo e grande adepto e defensor do evolucionismo, «a evolução é a mão de Deus que nos reconduz a Si». Podemos ainda afirmar que se não temos de Deus a compreensão infantil de ser o «factor desconhecido» da Realidade, a que a Ciência continuamente rouba espaço, até que um dia 806


o lugar de Deus desapareça, ingénua opinião partilhada por tantos contemporâneos nossos (incluindo Comte, Marx, Freud, Russell), se não temos tal compreensão infantil, dizíamos, pode afirmar-se que uma visão evolucionista manifesta ainda melhor a maravilha da criação e da obra criadora e indirectamente o seu próprio Autor, Deus.

Bibliografia Koch, S.I., Giuseppe, «Anniversari darwiniani: un dialogo in evoluzione», Aggiornamenti sociali (Maio 2009). Oviedo Torro, Lluis, «La Teologia también celebra a Darwin», Razón e Fe (Set. 2009). Sequeiros, Leandro, «Seis tópicos sobre Darwin», Razón e Fe (Set. 2009). Vaz Pinto, S.I., António, Revelação e Fé, Vol. I, Cap. 5 – Criação e Evolucionismo. Fé e Ciência no problema das origens, Braga, Ed. A.O., 2001.

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Justiça, paz e reconciliação em África

O desafio dos Sínodos Africanos

Tony Neves *

Introdução O Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar (SCEAM) organizou o I Seminário Pan-Africano sobre Justiça e Paz, em 1988, no Lesotho. Nas Resoluções, em dez pontos, afirma-se que: (…) a acção pela justiça e paz é um elemento constitutivo do anúncio do Evangelho de Cristo e a opção pelos pobres, marginalizados e proscritos da sociedade não é uma questão opcional para a Igreja em África. (SCEAM, Séminaire Pan-Africain sur ‘Justice et Paix’. Résolutions, in ‘SPIRITUS’ 114 (1989), p. 83).

Os participantes no Seminário mostraram a convicção de que a África enfrenta problemas complexos e preocupantes e que o trabalho pela Justiça e Paz é ingrato e, muitas vezes, até perigoso. Mostraram a sua preocupação por tanta pobreza, doenças, fome, miséria, indigência e analfabetismo no Continente; lamentaram a instabilidade de muitas nações, a violação dos direitos humanos, as numerosas formas de racismo (sobretudo, o ‘apartheid’), o agravamento da situação económica de muitos países e o facto de haver tantos africanos sem casa nem esperança de uma vida digna. Deploraram os sentimentos tribais que provocam ódio inter-étnico e a consequente destruição de vidas humanas. Alertaram para a situação difícil de muitas mulheres, a interferência das grandes potências mundiais na exploração da África, a venda de armas para que os africanos se matem uns aos outros. Finalmente, referem alguma tensão * Missionário Espiritano. Doutorando em Ciência Política com tese sobre a Igreja em Angola.

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existente entre cristãos e muçulmanos, em certos países (cf Ibidem, pp. 83-84). A violência utilizada para regular problemas, a poluição crescente e a ganância tornam a situação explosiva. Pretendem os participantes que a Paz se funde no amor, porque quando não é fundada no amor é como a paz entre o gato e o rato que acontece quando o rato está na barriga do gato. Para concretizar este ‘Amor’, os ‘Seminaristas’ decidiram: trabalhar mais pela Justiça e Paz; estabelecer Comissões Justiça e Paz em todas as Dioceses e Paróquias; exortar o SCEAM a estabelecer um departamento especializado nos problemas de justiça e paz e criar um centro de recursos com materiais sobre justiça e paz; ajudar a formar jornalistas nesta área; desenvolver uma Igreja sensível às questões de justiça e paz ‘(…) que será a voz autêntica dos que não têm voz, a consolação dos aflitos, a força dos que não têm poder e o refúgio dos que não têm lar’ (Ibidem, p. 85). Finalmente, há um pedido de mais atenção para o problema dos refugiados e da SIDA.

1. As intervenções da IMBISA A Conferência Inter-Regional dos Bispos da África Austral (IMBISA) publicou, em 1988, a Carta Pastoral sobre a Justiça e Paz na África Austral. Trata-se de um longo documento, com 97 números, apresentado na II Assembleia Plenária da IMBISA, em Harare, a 10 de Setembro, na presença do Papa João Paulo II. A I Parte é sobre os Direitos Humanos. Defendem os Bispos que os Estados não têm o poder de dar, suprimir ou retirar direitos. Compete-lhes reconhecê-los e protegê-los (cf. IMBISA, Justiça e Paz na África Austral, CEAST, Luanda, 1988, n.os 11-17). Os Bispos da África Austral saúdam os esforços em curso para melhorar o respeito pelos Direitos Humanos, mas denunciam algumas das injustiças mais graves: execuções arbitrárias, caça aos jovens por rusgas armadas, raptos de crianças, imposições de ideologias, neocolonialismos, má gestão dos recursos e materiais, apartheid, discriminação religiosa, guerra, deslocados e outras calamidades (cf. Ibidem, n.os 27-32). 810


A I Parte termina com um apelo às negociações políticas, em países onde há guerras, atendendo a que as armas já demonstraram que não resolvem nada. Na II Parte, os Bispos referem a necessidade urgente de trabalhar pela ‘Justiça e Paz’, começando o combate pela raiz: investigar as causas das injustiças e denunciá-las, mesmo que a Igreja seja acusada de se meter em assuntos políticos. Quando se multiplicam os casos de injustiça, cria-se o ‘pecado social’ de que há exemplos típicos: ‘injustiças de discriminação nas suas diversas formas, a negação dos direitos humanos, a exploração do homem, a violência, a guerra (…). Quer queiramos quer não, somos apanhados nesta rede de maldade e injustiça só por vivermos na África Austral’ (Ibidem, n.º 62). Numa III Parte, os Bispos apontam formas concretas de trabalhar pela justiça e paz na parte austral do continente africano. Quando, em pequenas comunidades, os católicos reflectem sobre a vida, tomem consciência da situação do povo e das causas do seu sofrimento. Depois, procurem soluções. Os prelados sugerem ainda o estudo da DSI (Doutrina social da Igreja) e o compromisso político dos leigos. Estes ‘(…) têm o direito de votar em eleições livres e legítimas (…) e, em casos de grave e prolongada injustiça, poderá ser necessário tomar parte numa acção não-violenta de protesto, desobediência civil ou resistência passiva’ (Ibidem, n.os 88.90). Os Bispos Católicos da IMBISA voltaram a intervir, em 1998, por ocasião da 5.ª Assembleia Plenária, realizada na Suazilândia. Há uma palavra especial para Angola: Queremos expressar a nossa solidariedade com o povo de Angola ainda ameaçado pela guerra, e pedir aos detentores do poder e das armas que se decidam a entrar pelos caminhos do diálogo, da reconciliação e da concórdia, que levam ao bem comum e à paz. (CEAST, A Igreja em Angola entre a guerra e a paz. Documentos Episcopais 1974-1998, Secretariado de Pastoral, Luanda, 1998, p. 422)

Ao referirem a situação política e social da parte sul do continente, os Bispos lamentam a existência da corrupção, do egoísmo, da violência, da discriminação racial e étnica (cf. Ibidem, p. 423). 811


2. I Sínodo Africano

1

‘Ecclesia in Africa’ (ou, traduzindo, ‘A Igreja em África’) é o título da Exortação Pós-Sinodal que João Paulo II escreveu depois de trabalhar toda a documentação saída do I Sínodo Africano, realizado em Roma em 1994. É um documento com 144 números, distribuídos por sete capítulos. Esperava‑se que o Papa agarrasse os cinco grandes temas que as Igrejas em África estudaram a fundo durante quatro anos, uma vez que os ‘Linea-menta’ (texto produzido pelo Secretariado Geral do Sínodo, enviado a todas as Conferências Episcopais) foram publicados em 1990. Mas não foi essa a opção de João Paulo II, insistindo quase exclusivamente nas questões ligadas directamente à Evangelização.

A Igreja Católica realizou em 1994 o I Sínodo Africano, em Roma. O tema escolhido por João Paulo II foi ‘A Igreja em África e sua Missão Evangelizadora – Rumo ao ano 2000’. Em 1995, o Papa publicou a Exortação Apostólica Pós-Sinodal 11, onde estão gravadas as partilhas, preocupações e perspectivas de futuro para a Igreja em África, segundo o Sínodo. De realçar que, nos documentos preparatórios, havia cinco grandes temas em cima da mesa: 1. Anúncio da Boa Nova; 2. Inculturação; 3. Diálogo; 4. Justiça e Paz; 5. Meios de Comunicação Social. Mas, na Exortação Pós-Sinodal, só a Inculturação se juntou à Evangelização como temas de destaque (cf. João Paulo II, A Igreja em África, Lisboa, Rei dos Livros, 1995). André Lukamba, teólogo angolano, avaliou este Sínodo, concluindo que Deus não abandonou a África. Começa por citar o salmo 22 que apresenta um povo desfeito pela desgraça, a gritar ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ (Sl 22). A África vive momentos de instabilidade política e desorientação social e a Evangelização do continente não pode passar ao lado dos dramas que vivem as suas populações. Lukamba quis colocar os africanos de hoje a ler a ‘parábola do Bom Samaritano’ (Lc 10, 25-37), para daí deduzir implicações para uma pastoral social na África actual. Tal como a vítima da parábola, também os africanos foram batidos e espoliados dos seus bens. E, tal como na história bíblica, os africanos não conseguem reanimar-se e tornar a viver sozinhos; precisam de ‘bons samaritanos’ que ajudem a reabilitação. Há que distinguir bem quem são os ‘bons samaritanos’ ou quem apenas se quer fazer passar por um deles (cf. Lukamba, «Deus não abandonou a África. Mensagem Social do Sínodo Africano», in Didaskalia 22 (1996), 40-49). É que, segundo este autor, a África está cercada, submetida e telecomandada. Regimes, alguns deles desaparecidos, sujeitaram (e sujeitam) os africanos a dura prova, enfraquecendo a sua capacidade de reacção: (mas) a África, ferida como aquele homem que descia de Jerusalém para Jericó (Lc 10,30), deve recobrar todos os recursos da sua humanidade. (Ibidem, p. 52)

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É urgente um novo debate sobre a situação em que vive África, para que acabem as guerras, se contornem os interesses estratégicos e geopolíticos estrangeiros, se despertem as consciências para o perigo do neocolonialismo, se combata o analfabetismo através da convicção de que esta é, para África, uma questão de vida ou de morte (cf. Ibidem, pp. 53-55). Conclui o autor que Deus não abandonou a África, mas a situação é deveras dramática e há que despertar da letargia da despersonalização colonial: ‘O maior sucesso do colonialismo, portanto pior que o selvático saque das riquezas africanas, foi sem dúvida a despersonalização do homem africano. Recriar o negro foi a estratégia mais bem sucedida no domínio estrangeiro em África’ (Ibidem, p. 59). A Igreja Católica, na sequência deste I Sínodo Africano, tem um grande papel a desempenhar. Se há uma mão que pesa sobre a África, ‘a solução africana não é lamuriar nem bisbilhotar. É arregaçar as mangas e juntos levantar (estrategicamente – e Deus ajudará!) essa mão que nos quer esmagar irremediavelmente’ (Ibidem, p. 62). É tempo de os africanos se assumirem e mostrar o que valem em relação a si próprios e aos seus ideais, reinterpretando os valores culturais africanos (solidariedade, hospitalidade, família, sentido religioso). Fiel à sua Missão – lembra Lukamba: a Igreja deve considerar-se enviada a aliviar a miséria dos homens e a combater toda a forma de marginalização (…). Se o Reino de Deus é Justiça e Paz, a Igreja, colaborando com os outros crentes, há-de anunciar e testemunhar este Reino, preparando igualmente elites que possam viabilizar uma boa gestão da vida pública, construir uma verdadeira nação, na senda do direito e na gestão responsável do património comum, conscientemente abertos à dimensão internacional. (Ibidem, p. 70)

André Lukamba termina esta sua investigação com um recurso simbólico a um provérbio que diz que, nas aldeias, quando alguém está doente, todos vão visitá-lo, mas não ajudam a comprar medicamentos. Depois, quando o doente morre, todos ajudam nas despesas do óbito. Ora, em relação à situação actual de África, Lukamba lança um apelo geral: 813


‘(…) pode vir a valer mais, por exemplo, visitar e ajudar economicamente o doente para se curar, do que subsidiar as despesas do seu óbito’ (Ibidem, p. 71).

3. II Sínodo Africano Bento XVI, a 13 de Novembro de 2004, tornou pública a decisão de convocar um II Sínodo Africano e os ‘Lineamenta’ foram distribuídos em 2006. O ‘Instrumentum laboris’ (Instrumento de trabalho) foi entregue aos Bispos Africanos, nos Camarões, em Março de 2009. A Assembleia Sinodal reuniu-se em Roma, de 4 a 25 de Outubro de 2009, de que resultou uma ‘Mensagem Final’ que estará na origem de uma ‘Exortação Apostólica pós-Sinodal que Bento XVI deverá publicar em 2010. 3.1. Lineamenta O tema do Sínodo é ‘A Igreja em África ao serviço da Reconciliação, da Justiça e da Paz’ (cf. Sínodo dos Bispos. II ASSEMBLEIA ESPECIAL PARA A ÁFRICA, Lineamenta, Libreria Vaticana, Vaticano, 2006), tema muito relacionado com este nosso trabalho. Quis Bento XVI o aprofundamento de alguns temas específicos, importantes para o presente e o futuro da Igreja Católica em África, onde ‘(…) existem graves problemas que interpelam os cristãos e todos os homens de boa vontade. São situações de pobreza, injustiça, doença, exploração, falta de diálogo, divisão, intolerância, violência, terrorismo e guerra’ (Ibidem, Prefácio). Diz o documento preparatório que a Igreja deve empenhar-se, com urgência, em prol da reconciliação, da justiça e da paz em África, enfrentando os desafios que a situação de desumanização e de opressão que aflige os povos africanos coloca à Missão. O facto de a Igreja dispor de grande credibilidade em África, por parte das populações, acrescenta‑lhe responsabilidades. O continente está a ser vítima de alguns desenvolvimentos negativos que trazem deterioração generalizada da qualidade de vida, sida, dívida externa, guerras, tráfico de armas, deslocados, refugiados, altos indicadores de mortali814


dade infantil, dificuldade de acesso a água potável, etc. Diz o texto: ‘A África é conscientemente esquecida neste mundo em construção. Só se lembram dela quando querem alardear as suas misérias ou explorá-la’ (Ibidem, n.º 8). Há a constatação do insucesso do Estado pós-colonial na grande maioria dos países africanos, com culpas para a má governação e a inexistência de uma classe política bem formada. Constata-se ainda a violação dos direitos humanos em muitos países, bem como a existência de guerras e outras formas de violência generalizada. A situação socio-económica de boa parte dos africanos é desastrosa e escandalosa a situação que permite a um continente cheio de recursos manter em pobreza extrema as populações. Cita-se o paradoxo africano: ‘A África não produz o que consome e não consome o que produz’ (Ibidem, n.º 16). E concluiu-se: ‘A África parece ser uma das regiões do mundo onde não se dá a devida atenção aos próprios habitantes’ (Ibidem, n.º 19). A Religião Tradicional apresenta a reconciliação como pacificação e referência a uma harmonia vital existencial. Há uma justiça social na base destas convicções religiosas ancestrais, pois os bens só são bens na medida em que servem para a realização plena da vida da comunidade. A Missão da Igreja neste contexto deve orientar-se no sentido da fraternidade: Se a África é vítima da pobreza, da corrupção, da injustiça e da violência, a Igreja deve ser uma comunidade que cura, reconcilia, perdoa e encoraja. (…) Na Igreja não pode haver ninguém que sofra por falta do necessário. (Ibidem, n.º 40)

Este documento romano considera que a reconciliação, a paz e a justiça só tomarão conta do continente africano se houver uma melhoria significativa nas áreas da política e da economia. (cf. Ibidem, n.º 52). Sobre as formas de intervenção em contextos de violência, os Lineamenta defendem que: o Bispo deve reconciliar, não tomar partido. Nos conflitos que abalam a África, a Igreja deve ser um árbitro, cuja imparcialidade não deve ser posta em discussão. (…) A unidade no seio da Conferência

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Episcopal é de importância capital, sobretudo em situação de crise social e política. É essa unidade que fará com que a acção da Igreja seja credível e promissora de um futuro melhor. (Ibidem, n.º 55)

A existência de uma Comissão ‘Justiça e Paz’ nas Conferências Episcopais e nas Dioceses é uma exigência Pastoral, pois o empenho em favor da reconciliação, da justiça e da paz, é intrínseco à sua vocação. A missão destas comissões aparece clarificada: ‘Esta deve ser o olho vigilante da Igreja local no seio da sociedade, no que toca a todos os problemas espinhosos com que ela se debate, de modo especial os relativos à justiça social, à equidade, aos direitos do homem, à promoção do bem comum, à coexistência democrática, à reconciliação, ao desenvolvimento’ (Ibidem, n.º 57). Neste âmbito, os leigos devem ser os protagonistas, o que exige deles uma boa preparação científica, doutrinal e espiritual. Os Lineamenta apontam alguns aspectos que devem requerer uma atenção especial: a estima e a aceitação recíprocas (ultrapassando questões étnicas e religiosas); a reconciliação e perdão, como caminho para eliminar inimizades e pôr fim à violência; a violência e a pobreza que obrigam a uma aprendizagem da não-violência e da paz; o fim do tráfico e comércio de armas; o reconhecimento das minorias. (cf. Ibidem, n.os 67-81). Na conclusão, há um apelo a que, nas pequenas comunidades haja também empenho neste âmbito: ‘É nestas comunidades que se abordam os verdadeiros problemas da reconciliação, da justiça e da paz e é nelas que, aos poucos, se encontrarão as respostas para os problemas reais das comunidades’ (Ibidem, n.º 91). 3.2. Instrumento de Trabalho Após três anos de intenso debate em torno dos ‘Lineamenta’, Roma recebeu muitas respostas e sugestões que permitiram redigir o ‘Instrumentum Laboris’, documento que Bento XVI entregou aos Bispos Africanos nos Camarões, em Março de 816


2009. Tem quatro capítulos. Começa por fazer uma breve apresentação sobre o estado da Igreja em África na actualidade e conclui que houve mudanças significativas desde o Sínodo de 1994, dando o exemplo do trabalho da Comissão Verdade e Reconciliação, na África do Sul, pós-Apartheid (cf. SÍNODO DOS BISPOS. II ASSEMBLEIA ESPECIAL PARA A ÁFRICA. Instrumentum Laboris, Libreria Vaticana, Vaticano, 2009, n.º 8). São denunciadas as forças internacionais que exploram a miséria em África: Fomentam guerras para vender armas. Apoiam os poderes políticos que não respeitam os direitos humanos e os princípios democráticos para garantirem, em contrapartida, vantagens económicas (…). Ameaçam desestabilizar as nações e eliminar as pessoas que procuram emancipar-se da sua tutela. (Ibidem, n.º 12)

Sobre o empenhamento da Igreja após o I Sínodo, a avaliação é positiva: a Igreja criou Comunidades Eclesiais Vivas; serviu de mediadora em alguns conflitos e defendeu e apoiou a causa dos mais vulneráveis da sociedade; criou e dinamizou Comissões Justiça e Paz, que defenderam os direitos humanos e contribuíram para a formação cívica dos cristãos e seu empenho na promoção da justiça, da paz e da reconciliação; foi atacada em força a SIDA; ajudou a formar politicamente os povos (cf. Ibidem, n.os 19-23). Mas há um reconhecimento dos entraves que ainda se colocam à acção da Igreja: Alguns dirigentes políticos dão sinais de insensibilidade quanto às necessidades do seu povo, procuram os seus interesses pessoais, desprezam as noções de bem comum, perdem o sentido de Estado e dos princípios democráticos, elaboram políticas tendenciosas, facciosas, de clientelismo, etnocêntricas e fomentam a divisão para reinar. (Ibidem, nº 23)

Na área socio-económica, o mau funcionamento das instituições estatais, com ‘salários indecentes’ e ‘impostos excessivamente elevados’, levam a uma certa escravatura que urge combater (cf. Ibidem, n.º 25). Os programas de reestruturação das economias africanas imposto pelas instituições financeiras internacionais tiveram como consequência 817


(…) a fragilização das economias africanas e, por outro, a degradação do tecido social, causando o aumento das taxas de criminalidade, o alargamento do fosso entre ricos e pobres, o êxodo das zonas rurais e a superpopulação das cidades. (Ibidem, n.º 26)

Entre os factores que influenciam negativamente a vida dos africanos, o documento cita a crise alimentar e energética, a invasão das multinacionais (que esmagam as empresas locais e deterioram o ambiente, com a cumplicidade dos dirigentes africanos) e a actual crise financeira (que diminui o investimento e a ajuda ao desenvolvimento em África) (cf. Ibidem, n.os 27-29). O II Capítulo, com o título ‘Reconciliação, Justiça e Paz: uma necessidade urgente’, começa com uma afirmação de Bento XVI: ‘O empenho dos fiéis no serviço da reconciliação, da justiça e da paz é um imperativo urgente’ (Ibidem, n.º 48). Há críticas fortes a alguns governantes que levaram os seus povos à ruína e a certos partidos que utilizaram a fibra étnica, tribal ou regional. As consequências da má gestão e da miséria que ela gerou (…) provocaram o tráfico de seres humanos, a exploração comercial da prostituição e o trabalho de menores; contribuiu, em grande parte, para destruir os laços de família, desestabilizar comunidades humanas inteiras e mandar para a estrada milhares de refugiados. (Ibidem, n.º 51)

Há ainda críticas abertas aos focos de conflito gerados em áreas mineiras e à violência e ódio provocados pelas informações e imagens difundidas pelos media. O Secretariado Geral do Sínodo, ao analisar as respostas das conferências episcopais aos ‘Lineamenta’, concluiu que ‘(…) o conceito africano de justiça é sinónimo de reconciliação e de paz porque está enraizado na ideia de restaurar a harmonia entre o ofendido e o ofensor e com a sociedade no seu todo’ (Ibidem, nº 55). A injustiça tem outros indicadores: a delapidação dos recursos naturais, a má gestão, os desvios de fundos públicos, o êxodo de capitais para bancos estrangeiros, o desprezo pelo trabalho dos agricultores, a subjugação 818


das mulheres. Por isso, ‘a Assembleia Sinodal deveria fazer ouvir o grito dos pobres, das minorias, das mulheres desprezadas na sua dignidade, os marginalizados, os trabalhadores mal pagos, os refugiados e migrantes, os prisioneiros’ (Ibidem, n.º 62). Sobre a Paz, o documento refere os atentados de que ela é vítima no continente: a instabilidade política (com raízes na escravatura e no (neo)colonialismo), o desemprego e emigração massiva e clandestina, os investimentos exagerados em armamento. Surgem duas conclusões: A paz é certamente mais que o silêncio das armas, mas os conflitos são a sinfonia da sua ausência. (…) As guerras que atingem as regiões africanas são, em grande parte, ligadas á economia em geral. (Ibidem, n.os 64-65)

Sobre a missão da Igreja Católica em África, este Instrumento de Trabalho recorda o papel notável desempenhado durante os conflitos, o que trouxe grande credibilidade à Igreja. Mas o trabalho tem de continuar em todas as áreas: na saúde, na educação, na solidariedade, no ecumenismo. Sobre os actores destas intervenções da Igreja, o documento atribui aos bispos a grande responsabilidade de serem como que as sentinelas da cidade: Perante os problemas políticos que dizem respeito às constituições, eleições, injustiças, violações dos direitos humanos, etc., uma palavra profética sua constitui uma resposta à sede de justiça e paz por parte do povo. (Ibidem, n.º 107)

As pessoas consagradas, com os carismas próprios dos seus Institutos, trabalham na implementação (…) do Reino de justiça, de paz e de amor de Cristo, apoiando a juventude (escolarizada, da rua…), ajudando os pobres preocupando-se com as mulheres (nomeadamente as viúvas), apostando no cuidado dos doentes e dos deficientes. (Ibidem, n.º 113)

Aos leigos é confiada a missão de serem agentes de reconciliação nos contextos em que a justiça e a paz não são respeitadas. Sobre o trabalho das Comissões Justiça e Paz, diz‑se: 819


Formaram para o respeito dos direitos do cidadão e para a luta contra a impunidade, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade, o tratamento indigno dos prisioneiros, etc. (…). Mostraram‑se activas no acompanhamento de vítimas de todo o tipo de violência, sobretudo mulheres e crianças, em busca de justiça. (Ibidem, n.os 123-124)

A conclusão é clara: A necessidade de reconciliação, nos dias de hoje do continente, é cada vez mais urgente. A reconciliação, da qual a África está sedenta para regenerar a família humana, consegue-se com uma justiça mais humana, uma paz mais profunda do que a simples ausência de guerras e o silêncio das armas. (Ibidem, n.º 147)

José Vieira, missionário-jornalista no Sudão diz que os cristãos em África devem convocar a sociedade para uma união de corações e dar o exemplo através do testemunho de vida. É preciso sarar o coração. Salienta ainda as ideias mais fortes do Instrumento de Trabalho do II Sínodo Africano que reconhece as mudanças profundas operadas em África nestes 15 anos que separam do I Sínodo: a democracia tem feito alguns ganhos, a sociedade civil tornou-se mais activa, houve importantes reformas na economia e a cultura continua pujante. Contudo, o continente tem um grande desafio pela frente para iluminar as próprias sombras em áreas tão díspares como tribalismo, nepotismo, corrupção, violência, globalização – para mencionar apenas algumas. (Vieira, J., “Sarar o coração”, ALÉM-MAR (Junho 2009), 58)

3.3. Mensagem Final A Mensagem Final, ‘África, levanta-te e anda!’, começa por olhar para o panorama actual do continente, marcado pela situação trágica dos refugiados, uma pobreza escandalosa, as doenças e a fome continuam a matar diariamente milhares de pessoas (…). A África é rica em recursos humanos e naturais, mas a grande parte do nosso povo continua a arrastar-se no meio da pobreza e de misérias, de guerras e conflitos, de crises e desordens (…), consequências de decisões e acções humanas levadas a cabo por pessoas

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que não se interessam pelo bem comum e, muitas vezes, numa trágica e criminosa cumplicidade de dirigentes locais com interesses estrangeiros. (SÍNODO DOS BISPOS. II ASSEMBLEIA ESPECIAL PARA A ÁFRICA, “Mensagem Final”, in ‘L’OSSERVATORE ROMANO’, (31.10.2009), n.º 5)

Mas há sinais positivos: nações que alcançaram a paz, outras que consolidaram a democracia (cf. Ibidem, n.º 6). Há uma referência no reforço do combate à SIDA: A Igreja não se deixa relegar a um segundo plano na luta contra a SIDA e na assistência às pessoas infectadas e afectadas por esta doença em África (...). Apelamos para que se dê uma ajuda continuada que vá ao encontro da necessidade que tantos têm de assistência. (Ibidem, n.º 31)

As grandes potências deste mundo são interpeladas pelos Bispos Sinodais: ‘tratai a África com respeito e dignidade (...) Muitos dos conflitos, guerras e pobreza em África derivam em grande parte destas estruturas injustas’ (Ibidem, n.º 32). Os número 36 e 37, integrados na Parte VI, com o título ‘África, acorda!’, são dos mais duros: há referências a situações dramáticas como as que se vivem nos Grande Lagos, na Somália, no Sudão (incluindo o Darfur) e na Guiné-Conacri. Há a denúncia: Seja qual for o nível da responsabilidade imputável aos interesses estrangeiros, não é menos vergonhoso e trágico a conivência dos governantes locais: políticos que vendem suas nações, homens de negócios que se unem a vorazes multinacionais, africanos que vendem e traficam armas, sobretudo leves, que provocam a destruição de vidas humanas. (Ibidem, n.º 36)

Finalmente, são apresentadas as consequências: pobreza, miséria e doenças; refugiados dentro e fora do país e no estrangeiro, a busca de pastagens frescas, a fuga de cérebros, as migrações clandestinas, tráfico de seres humanos, guerras, derramamento de sangue, não raro por encomenda, a barbaridade das crianças-soldado e indizíveis violências contra as mulheres. Como é que alguém se pode orgulhar de «governar» em semelhante situação? Onde pára o nosso sentimento tradicional africano de vergonha?

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Este Sínodo proclama-o claramente, alto e bom som: é tempo de mudar de atitudes para o bem da geração presente e das futuras. (Ibidem, n.º 37)

A última palavra é de esperança: ‘a África não está abandonada ao fracasso (…). A África apenas pede espaço para respirar e para se desenvolver’ (Ibidem, n.º 42).

Conclusão D. Gabriel Mbilingi, Presidente da IMBISA e Presidente da CEAST, interveio no Sínodo e, em entrevista, disse que a Mensagem Final deste II Sínodo Africano lança um apelo à África para que acorde e se levante. Ela deve tomar consciência da sua realidade, potencialidades e capacidade interna de ser ela mesma nos seus valores fundamentais, de modo a contribuir para uma humanidade melhor. A Igreja deve trabalhar para a sua reconciliação, para uma maior justiça, para ser um continente pacificado e poder olhar, de igual para igual, com os outros continentes. Há ainda que evitar a fuga de cérebros. O Arcebispo vai mais longe: a África deve ser mais respeitada por todos, não pode ser só objecto de debate, mas seu sujeito. Ela é rica em recursos naturais, mas pobre em recursos humanos colocados ao serviço das populações. Ela continua a ser objecto de exploração dos seus recursos, com a presença e intervenção das multinacionais, com a cumplicidade local. Pratica-se uma injustiça, pois esta exploração dos recursos é feita não tendo em conta os benefícios das populações locais. A África deve estar nos locais de decisões nas questões que dizem respeito ao mundo inteiro. (Mbilingi, G., “Justiça, Paz e Reconciliação em África”, ACÇÃO MISSIONÁRIA (Dezembro 2009), 8)

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rec ens õ es

Bíblia Gourgues, Michel: Les deux lettres à Timothée. La lettre à Tite. 433 págs. Cerf, Paris, 2009. (42 �)

o

frade dominicano que surge como autor deste precioso estudo é professor de exegese do Novo Testamento na Faculdade de teologia do Colégio universitário da Ordem, em Ottawa, e professor convidado na Escola Bíblica de Jerusalém. A obra aparece inserida, com o n. 14, na colecção de comentários científicos, intitulados Comentário bíblico: Novo Testamento, sob a sapiente direcção de cinco conhecidos peritos: H. Cousin, C. Focant, J.-P. Lémonon, Chantal Reynier e J. Schlosser. De acordo com o A., é o segundo comentário em francês depois do de Spicq (Saint Paul. Les épîtres pastorales) aparecido no já longínquo 1947, enquanto nos últimos dez anos foram publicados cinco volumosas obras em inglês. Na obra em apresentação trata-se de um comentário em certo modo inovador que aborda as epístolas Pastorais como um corpo diversificado, estudando cada uma das três cartas por si mesma – tal como se costuma proceder com qualquer outro escrito neo-testamentário – e envidando exegeticamente esforços para conseguir captar as particularidades, as aproximações bem como as diferenças de cada uma delas em relação às demais.

O objectivo principal deste comentário é, assim, o de fazer vir à tona o dinamismo do texto, tomado como um todo, abordando as questões de crítica textual, fornecendo uma explicação do conjunto de cada perícope, tendo porém em conta a articulação do texto, e procurando ainda, numa linha mais técnica, esclarecer também os pontos que dizem respeito à filologia ou à história. A partir do fim do século XIX foi‑se prestando atenção prioritária às afinidades entre as três cartas Pastorais. Assim, uma boa maioria de investigadores considerava-as como um conjunto único do ponto de vista literário e teológico ou como um corpo homogéneo (Corpus pastorale, segundo P. Trummer 1981) em três partes, asseverando, com von Lips (1994) ou L. Fatum (2005), por exemplo, que podiam ser lidas e interpretadas como uma unidade. Há duas décadas, porém, foram-se levantando vozes cada vez mais numerosas contra esta abordagem, sobretudo na América. Batem-se tais exegetas pela leitura de cada carta como uma entidade autónoma, fazendo assim jus às inegáveis diferenças entre elas e, em particular – como aliás sublinha o A. – entre a II a Timóteo e as outras duas. Mais ainda: «Interrogamo-nos ademais por que é que as Pastorais não poderiam beneficiar, a igual título que qualquer outro escrito do Novo Testamento, da aplicação do princípio metodológico elementar segundo o qual qualquer escrito se deve ler primeiro em si mesmo, na sua coerência interna, no seu conteúdo, nos seus acentos e

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características próprias, seja qual for o juízo a que este aprofundamento possa eventualmente conduzir no que concerne à sua autenticidade. De momento, esta tendência permanece largamente minoritária…» (39). A designação epístola pastoral figura num comentário da epístola a Tito publicado em Halle (Alemanha) no princípio do século XVIII (1703) por um certo D. N. Berdot («In hac itaque Epistola, quae Pastoralis est»), mas este remete, por sua vez, para uma afirmação de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual aqueles que se destinam ao ministério deviam ter constantemente sob os olhos as epístolas a Timóteo e a Tito. Sobre a pertinência dessa designação assim se pronuncia o nosso A.: 1. «Se ‘pastorais’ pretende significar que estas cartas tratam do serviço que pastores cristãos têm de exercer no seio de comunidades, I Tim. e Tito contêm efectivamente indicações nesse sentido. Mas, na realidade, elas têm menos que ver com a acção pastoral em si mesma do que com a situação, os problemas e a experiência concreta das comunidades onde se exerce, as de Timóteo e de Tito. A esse título não são nem mais nem menos ‘pastorais’ do que as cartas de Paulo em geral que abordam regularmente questões em relação com a vida das Igrejas» (42); 2. «Se ‘pastorais’ quer dizer que estas cartas contêm indicações, como não se encontram em nenhuma parte senão no NT, sobre os ministérios da Igreja, isso vale para I Tim. e Tito, que tratam em particular dos do epíscopo e dos presbíteros, mas não para a segunda a Timóteo onde isso não é tratado. Se esta última pode dizer-se ‘pastoral’, é menos enquanto contém indicações para pastores do que enquanto ela diz

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qualquer coisa do sentido e das exigências do serviço do Evangelho» (43). Em conclusão: «Estudando cada uma das três cartas por elas mesmas, há autores que fazem ressaltar as particularidades da 2 Tim., tanto no seu género literário como no seu conteúdo e afinidades mais estreitas em relação a Paulo. (…). A posição dominante sustenta que as três cartas, mais frequentemente consideradas como um todo homogéneo, foram redigidas não pelo próprio Paulo mas por outros que dele se reclamavam como discípulos, no decurso do último terço do século I ou, para alguns, mais tardiamente ainda. (…). Podemos ao menos supor que, se a segunda carta a Timóteo tivesse já sido recebida como sendo substancialmente de Paulo, isso terá facilitado a recepção das outras duas que se apresentavam como o seu prolongamento» (45 e 59). – Isidro Ribeiro da Silva.

Espiritualidade Cottier, Cardinal George: Consacrés dans la vérité. Méditations sur l’évangile de saint Jean. 206 págs. Parole et Silence, Paris, 2008. (18 �)

R eúne

o vol. um conjunto apreciável de textos provenientes do retiro pregado pelo A. no Vaticano, na presença de João Paulo II e membros da Cúria romana (cardeais, bispos, sacerdotes e religiosos), no decurso da I semana da Quaresma de 1990 (4-9 de Março). Da série de medi-


tações ali propostas na altura, apenas algumas foram posteriormente retocadas e desenvolvidas, em vista de serem dadas à estampa, mas sem que isso tivesse representado uma modificação substancial do seu conteúdo. Reconhecendo de início que «… não é sem uma certa angústia que se aceita a responsabilidade de tal pregação», acabou o ilustre dominicano por aderir à sugestão, fornecida por um dos seus confrades (Bernard Bonvin), de recorrer directamente, como apoio para a pregação do dito retiro, ao evangelho de S. João. Foi assim que Cottier confessa ter sido motivado a optar pela temática do IV evangelho – «Não era preciso mais do que deixar falar o evangelho por si mesmo» – que gira basicamente em torno do testemunho prestado à verdade. Para tanto, socorreu-se o dominicano de «trabalhos de exegetas» e, «em atenção à sua finura espiritual» (7), das notas do P. Mollat, S.J., que acompanham a sua tradução da Bíblia de Jerusalém (edição em fascículos): «O tema do testemunho, tal como ele se apresenta sob os seus diversos aspectos, constituirá assim o fio condutor que nos guiará nas nossas meditações sobre a vocação à verdade» (11); para esse efeito, é tomada em consideração uma série de testemunhos organicamente ligados entre si: «Jesus, a testemunha fiel, exerce uma força de atracção que faz convergir para ele – anunciando-o, preparando-o, autentificando-o, prolongando-o – um conjunto de testemunhos complementares: os da Escritura, dos profetas e do Baptista, os do Pai e dos sinais, o do Espírito Santo, os dos apóstolos e dos discípulos. Estes testemunhos não são discordantes, estão organicamente ligados numa harmoniosa

unidade. O próprio evangelho situa-se nesta perspectiva» (Ib.). Tratava-se, fundamentalmente, em dias com mais tempo consagrado à oração e à meditação, de deixar ressoar no fundo da alma dos retirantes a palavra de Jesus que «tem a profundeza do infinito» (9) para o qual somos feitos: Se soubesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: ‘Dá-me de beber’… (Jo. 4,10). Com perseverante invocação da indispensável ajuda do Espírito Santo, foi-se empenhando o pregador em atiçar essa sede da água viva no espírito dos seus ouvintes, percorrendo passo a passo as páginas mais significativas do IV evangelho e colocando-se como que à sombra desse livro neo-testamentário para mais livremente deixar falar a própria palavra de Deus. Mas isso com o propósito, também, de fazer irromper daí, em força, novos harmónicos – momentos mais agudos e intensos da palavra evangélica –, cuidando, simultaneamente, de projectar essa «exegese contemplativa» (J. Paulo II) sobre os problemas mais candentes, mais dolorosos e mais decisivos da humanidade contemporânea – problemas esses aqui observados, segundo o Papa de então, «com grande penetração de análise e profundeza de pensamento» (203). Bem consciente de que meditar é, segundo Santo Agostinho, ser ouvinte por dentro (intus auditor) ou ter uma alma bastante silenciosa para se tornar escuta por inteiro da palavra de Deus, classifica Cottier o evangelho de S. João como um guia incomparável para conseguir entrar em contacto com as fontes de água viva: «Contém relatos e diálogos cuja perfeição e densidade de sentido vão a par com uma frescura poética única. É rico de fórmulas lapidares, que são como outros

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tantos raios de luz, abrindo cada qual uma clareira sobre o abismo infinito dos mistérios da agapé divina» (12). Registemos, a concluir, uma palavra luminosa de esperança e de intensa consolação, haurida na perscrutação das derivas da história da salvação e da revelação, sempre impelidas por um dinamismo que as projecta para além delas próprias: «Devemos estar atentos à obra de Deus em nós. Ele não cessa de me chamar à conversão, a sua paciência é mais forte do que as minhas recusas, a sua misericórdia é a resposta às minhas infidelidades; quando ele exige de mim, gere as minhas etapas; não obstante os meus desânimos e tibiezas, ele suscita o fervor da esperança e do amor. Todas estas tentativas de Deus conduzem-me, como o povo da Aliança, para um acolhimento de Cristo sempre mais profundo, mais total» (22). Assim, a uma alma de fogo, que anela visceralmente pela «grandeza e esplendor do dom de Deus», não se pode apresentar um cristianismo descaracterizado e insípido, «por olvido prático do primado do teologal» (149); são por demais conhecidos os frutos amargos que isso tem produzido na história do cristianismo. Todavia: «…a Igreja sabe que atinge o que há de mais profundo no homem, essa sede de absoluto que permanece talvez para muitos escondida mas que aspira imperativamente a ser saciada sob pena de asfixia espiritual. Ela sabe também que a acção secreta do Espírito Santo suscita nessas profundezas o alerta para o acolhimento da luz» (50), uma vez que «a voz daquele que é a Palavra divina domina todas as vozes humanas e não pode ser abafada» (104) – Isidro Ribeiro da Silva.

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História Clark, Martin: Mussolini. 496 págs. Europa-América, Mem Martins, 2007. (32,90 �)

Diz-se que a política adormece à direita e acorda à esquerda. A imagem de capa corta a cabeça do cavalo para evidenciar a cabeça do cavaleiro: Mussolini (1883‑1945). Ela por ela, ganho para quem se quis dono de um império. Na altura foram vários os países que acordaram à direita com ditadores a cavalgarem os povos. Dos revolucionários talvez se possa dizer que adormecem à esquerda e despertam à direita, com tantos comparsas falidos. Aos 28 anos já se exaltava autobiograficamente em La vita mia. Para o autor desta ‘Grande biografia’ (2005), Mussolini figura entre os mais importantes ditadores do século XX: o fascista típico, ao lado do nazista típico, Hitler. Presidiu aos destinos da Itália entre 1922 e 43. Mas o desaire acabou em derrota militar e humilhação pessoal. O fascismo nasceu cadáver político – 17% dos votos nas suas primeiras eleições em 1919 – a prenunciar triunfo de vida curta. De resto a lógica do tempo era ilógica. A memória dos homens é curta. E mais ainda a das gerações. Parece que entre nós Salazar ficou na moda com um discutível concurso na TV. Também o duce/ Duce/DUCE mantém admiradores modernos que o consideram ‘o último Homem na Europa’ – assim com maiúsculas e o resto. E Napoleão continua a cavalgar nas mentalidades, nas políticas e no mundo.


Mussolini foi sobretudo uma personagem ‘histriónica’. Adormeceu à direita para acordar à esquerda? E se esse fosse afinal o pesadelo da direita e dos poderes incontrolados? Postos em alta, os homens julgam-se divinos (tanto mais quanto menos santos). Ajudando-nos a despertar em tempo útil, «esta reveladora biografia debruça-se sobre as contradições do ditador fascista: os seus talentos e as suas inseguranças, a sua imagem ditatorial e a sua submissão efectiva a outros poderes. E reflecte como o retrato de um político que foi pioneiro da ‘mediocracia’ apresenta uma chocante semelhança com o governo de políticos contemporâneos». Não se diz há muito – e a partir dos Estados Unidos – que os media é que fazem os políticos de hoje? Estranhíssimas convergências ou evidentíssimas confusões? Afinal, o problema dos poderes e das suas tentações: eleger ou enganar um novo povo. A luta contra a máfia levou muitos assassinos a refugiarem-se na América. O minucioso trabalho de investigação do autor é digno de o acompanharmos com leitura atenta e meditação cuidada. Para que nem o livro nem a história sejam inúteis – apesar de a leitura ser agradável e proveitosa. É que, associando duas histórias (a de Hitler e a do Duce) tenta «explicar até os mais catastróficos acontecimentos, como crises económicas, guerras mundiais, etc., em termos da personalidade aberrante de Mussolini ou da sua infância infeliz» (com pai despótico). Exibia-se em palco de actor velha‑guarda – pela encenação e pela retórica os conhecereis: ‘na varanda’ e ‘uber alles’ como ‘omnisciente’ e de superior competência segundo o retrato do bom (?)

populismo e da política espectáculo. Porque o seu ego não cabia nele, ‘o poder corrompeu-o’ sem remédio. Com oportunismo foi urdindo a sua malha política, até as fraquezas da I Guerra lhe servirem de degrau para o poder. Na primavera de 43, aliado de Hitler, aderiu à II. A pose já não era suficiente. Em Julho de 43 foi preso. A cómica República de Salò fora apenas o último estrebuchar. Desertores e maquis (com reforço da máfia) operaram a reviravolta. Ainda tentou ‘fugir da sua vida’ inútil: ignominiosamente morto e depois suspenso pelos pés. Como outros do tempo, quis forçar o futuro, mas não lhe serviu de nada. Antes de começar a guerra, Hitler escrevera a Mussolini que «se as potências ocidentais derrotassem a Alemanha, a Itália fascista seria logo depois derrotada» (369) e Mussolini «disse a Hitler que ele nunca derrotaria as democracias, uma vez que os Estados Unidos nunca o permitiriam», ainda que «as decadentes plutocracias iriam acabar por ruir» (372). Que era «idiota e casmurro» (402) provara-o a guerra. Fora de ideologias sempre discutíveis e discutidoras, os historiadores ainda não assentaram numa visão pacífica sobre Mussolini, a não ser que foi personagem importante e sem precedentes familiares, mais dado ao culto da imagem que à felicidade do povo. Ambicioso de poder, travou duelo com quem lhe chamou palhaço. Mas ‘estar no topo e dominar o mundo’ é poder de fachada, porque dependendo dos outros não pode confiar neles – questão de interesse, não de fidelidade. Em resumo: «sabia dar espectáculo e respeitava os limites impostos pelas excepcionalmente fortes tradições legais, culturais e eclesiásticas de Itália» (185).

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Quando queria alguma coisa a sério, era mesmo como ele queria. O militarismo, o centralismo, a intriga deitaram tudo a perder. Obviou à dissidência fácil pagando para «manter felizes as classes faladoras» (245). Mas a imprensa e a Itália censuradas tornaram-se monótonas. A principal lição a colher é que «foi um fruto do seu tempo» e da sua educação republicano‑socialista e anticlerical, ateada pela cultura dominante na época e numa Itália ainda muito fragilizada. O texto segue bastante os pormenores factuais narrativos, mas oportunamente também foca dimensões interpretativas. Além de evidentes brasileirismos, nem o tradutor, nem o dactilógrafo, nem o editor cuidaram de corrigir erros patentes de concordância (ex.: a RSI, República Social Italiana/Salò, apenas referida passa a masculino, o RSI). – F. Pires Lopes.

Vária Portugal, Lauro: Gente famosa continua a dar pontapés na gramática – Manual de erros e correcções de linguagem. 224 págs. Roma Editora, Lisboa, 2006. (12 �)

Os

tão frequentes como vergonhosos ‘pontapés na gramática’, em especial nos media, continuam a exibir o pior futebol entre a equipa ‘O rei vai nu’ e a dos que pouco sabem de gramática. Bem andou o autor na defesa das regras e do uso correcto do português.

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O primeiro livro com aquele título teve duas edições em anos seguidos e ao terceiro surge outro volume sobre a mesma matéria. E um dirigente da Sociedade Portuguesa de Autores anima-o agora, em prefácio, a «desembainhar armas» para apontar gente ainda não receosa de ser ‘antologiada’, «não por mérito mas por manifesta falta dele». Da mesma autoridade vem a lição-acusação: quando «não havia escolas de jornalismo, havia escolas de ensino da língua portuguesa». Pior: «As maiores barbaridades ficarão impunes» porque sem vergonha continuaram «os carrascos da nossa língua», incapazes de «dizer uma frase inteira sem asnear», como públicos e impunes carrascos da pobre língua portuguesa – passamos para Lauro Portugal – «uma riqueza que é de todo o país» (13), «tesouro nacional» (17) que merece e exige «no mínimo, respeito para com o público» (15). E do ‘asnear’ com «asneiras de todo o tamanho» não se poderá concluir da dimensão do asno? Em rigor lógico, quem não sabe pensar, não sabe falar, não sabe agir. Mas governa e preside e dá cartas ao país de bacocos que engole tudo. Até o vírus H5N1 das ‘aves raras’ que empestam a língua e o ambiente. Sem apontar os nomes próprios, títulos e editoras a que se verberam menos reparos do que os merecidos pela constante reincidência – nem todos assinalados, senão «fico sem apito para próximo jogo» (139). Reconhecemos que muito repisar princípios a propósito de cada caso pode tornar o texto fastidioso. Concordamos com o índice de ‘revisão’ que em sete páginas finais aponta as correcções. – F. Pires Lopes.


ÍNDICES DO VOLUME 169

1. DE AUTORES Astorgano Abajo, Antonio – Para uma periodização da literatura dos jesuítas portugueses expulsos (1759-1814)................................................................................

315-336

Castello Branco, José Tomaz – Tolerância ou apatia? O problema da diferença nas democracias liberais contemporâneas...........................................................................

655-667

Brito, José Henrique Silveira de – A Bioética – um saber transdisciplinar?...................................................

669-676

Cabecinhas, Carlos – Manuel de Azevedo, S.J. – um ilustre exilado (1713-1796)....................

337-347

Cabral, Francisco Sarsfield – Caritas in Veritate: a importância dos fundamentos.............................. – Tratado de Lisboa: o fim de um longo impasse.....................................

9-16 741-748

Cabral, S.J., Roque – Eutanásia. O debate anunciado ...............................................................

761-770

Castro, Zília Osório de – Sob o signo da unidade. Regalismo vs. Jesuitismo ...............................

113-134

Coelho, Francisco Senra – A Universidade de Évora e a Restauração de Portugal.......................... – A I República e a Igreja Católica – D. Augusto Eduardo Nunes e a redacção dos Documentos Colectivos do Episcopado Português .........

693-716

Craveiro, Maria de Lurdes – O espaço jesuítico em Coimbra – em torno da expulsão e depois ......

239-253

17-24

829


Czerny, S.J., Michael – O Papa e a SIDA em África: Um despertar humano e espiritual..........

37-46

Dinis, S.J., Alfredo – Desafios da teoria da evolução ao cristianismo .....................................

529-550

Fernández Arrillaga, Inmaculada – O desamparo dos Jesuítas Portugueses durante o seu desterro nos Estados Pontifícios.....................................................................................

271-285

Franco, José Eduardo – A universalidade de Nun’Álvares Pereira. Um santo português entre a medievalidade e a modernidade .......................................................... – A ideia de Europa na cultura portuguesa do século XVI: A afirmação da «Europa» como secularização da ideia de Cristandade  ....................

830

603-606 771-792

Franco, José Eduardo e Vogel, Christine – Um acontecimento mediático na Europa das Luzes: A propaganda antijesuítica pombalina em Portugal e na Europa..................................

349-505

García Arenas, Mar – Ecos de uma expulsão: paralelismos e divergências no desterro dos jesuítas ibéricos .........................................................................................

191-207

Leitão, Ana – O significado da expulsão dos jesuítas na educação brasileira.............

225-237

Leone, Carlos – Portugal como Nação europeia ou como Estado europeu: o dilema da sociedade dual no século XX português ...........................................

61-82

Martínez Tornero, Carlos A. – Estudo comparativo sobre a aplicação das temporalidades espanholas e portuguesas ............................................................................................

255-270

Matumona, Muanamosi – A Reconciliação na Teologia Africana .....................................................

47-60

McDade, S.J., Pedro – A Economia e o apóstolo Paulo – I ........................................................ – A Economia e o apóstolo Paulo – II.......................................................

569-586 683-692


Miranda, Tiago C. P. dos Reis – Seis unidades de investigação – um colóquio internacional................. – Memória por alvará: registos legais / monumentos políticos..................

83-87 135-148

Monteiro, Miguel Corrêa – Inácio Monteiro, S.J. – Matemático e Cientista........................................ – O pagamento das côngruas aos Jesuítas portugueses exilados em Itália no reinado de D. Maria I ................................................................

287-314

Mumford, Peter Mil-Homens – Europa em Crise ou Crise da Utopia Europeia. Reflexões à margem do Congresso Ideas of/for Europe............................................................

563-568

Neiva, Adélio Torres – O fundador dos «Espiritanos» e a reforma do Clero...............................

587-602

Neves, João César das – Nobel da governação ...............................................................................

551-554

Neves, Tony – Justiça, paz e reconciliação em África. O desafio dos Sínodos Africanos....................................................................................................

809-822

Osswald, Walter – Ecologia e ética: moda ou dever?............................................................

555-562

Perestrello, Francisco – Crítica e Imprensa Cinematográfica.........................................................

607-609

Porto, Manuel – A Encíclica Caritas in Veritate e a problemática da globalização.........

677-681

Real, Miguel – Padre Gabriel Malagrida e o Marquês de Pombal ..................................

169-189

Russo, Mariagrazia – O ensino linguístico dos Jesuítas e a oposição no Século das Luzes...

209-224

Sonnet, S.J., Jean-Pierre – «A origem das espécies»: Génesis 1 e a vocação científica do homem.

639-653

25-36

831


Soromenho-marques, Viriato – Entre a crise e o colapso. O desafio ontológico das alterações climáticas ...................................................................................................

749-759

Trigueiros, S.J., António Júlio Limpo – «O Negócio Jesuítico» e o papel da política regalista portuguesa .........

149-167

Vaz

Pinto, S.J., António – Face às eleições ........................................................................................ – 250 anos da expulsão dos Jesuítas: 1759-2009 ....................................... – Infelizmente, Saramago ............................................................................ – Preparando a «República» ......................................................................... – «O sexo dos anjos» .................................................................................... – Criação e evolucionismo – I. Nos 200 anos de Darwin ........................

7-8 111-112 527-528 635-637 739-740 793-807

Vogel, Christine e Franco, José Eduardo – Um acontecimento mediático na Europa das Luzes: A propaganda antijesuítica pombalina em Portugal e na Europa..................................

349-505

2. DE MATÉRIAS AMBIENTE – Entre a crise e o colapso. O desafio ontológico das alterações climáticas ...................................................................................................

749-759

CIÊNCIA – Desafios da teoria da evolução ao cristianismo ..................................... – «A origem das espécies»: Génesis 1 e a vocação científica do homem. – A Bioética – um saber transdisciplinar?................................................... – Criação e evolucionismo – I. Nos 200 anos de Darwin.........................

529-550 639-653 669-676 793-807

CINEMA – Crítica e Imprensa Cinematográfica.........................................................

607-609

CULTURA RELIGIOSA – O fundador dos «Espiritanos» e a reforma do Clero...............................

587-602

ECONOMIA – Nobel da governação ............................................................................... – Europa em Crise ou Crise da Utopia Europeia. Reflexões à margem do Congresso Ideas of/for Europe............................................................

832

551-554 563-568


ÉTICA – Ecologia e ética: moda ou dever?............................................................ – Eutanásia. O debate anunciado ...............................................................

555-562 761-770

FILOSOFIA – Tolerância ou apatia? O problema da diferença nas democracias liberais contemporâneas...........................................................................

655-667

HISTÓRIA – A Universidade de Évora e a Restauração de Portugal .......................... – Inácio Monteiro, S.J. – Matemático e Cientista ....................................... – Portugal como Nação europeia ou como Estado europeu: o dilema da sociedade dual no século XX português ........................................... – Seis unidades de investigação – um colóquio internacional................. – 250 anos da expulsão dos Jesuítas: 1759-2009 ....................................... – Sob o signo da unidade. Regalismo vs. Jesuitismo ............................... – Memória por alvará: registos legais / monumentos políticos................ – «O Negócio Jesuítico» e o papel da política regalista portuguesa ......... – Padre Gabriel Malagrida e o Marquês de Pombal.................................. – Ecos de uma expulsão: paralelismos e divergências no desterro dos jesuítas ibéricos ......................................................................................... – O ensino linguístico dos Jesuítas e a oposição no Século das Luzes... – O significado da expulsão dos jesuítas na educação brasileira............. – O espaço jesuítico em Coimbra – em torno da expulsão e depois...... – Estudo comparativo sobre a aplicação das temporalidades espanholas e portuguesas ............................................................................................ – O desamparo dos Jesuítas Portugueses durante o seu desterro nos Estados Pontifícios .................................................................................... – O pagamento das côngruas aos Jesuítas portugueses exilados em Itália no reinado de D. Maria I ................................................................ – Manuel de Azevedo, S.J. – um ilustre exilado (1713-1796) ................... – Um acontecimento mediático na Europa das Luzes: a propaganda antijesuítica pombalina em Portugal e na Europa.................................. – A universalidade de Nun’Álvares Pereira. Um santo português entre a medievalidade e a modernidade .......................................................... – Preparando a “República” ........................................................................ – A I República e a Igreja Católica – D. Augusto Eduardo Nunes e a redacção dos Documentos Colectivos do Episcopado Português......... – A ideia de Europa na cultura portuguesa do século XVI: A afirmação da «Europa» como secularização da ideia de Cristandade .....................

17-24 25-36 61-82 83-87 111-112 113-134 135-148 149-167 169-189 191-207 209-224 225-237 239-253 255-270 271-285 287-314 337-347 349-505 603-606 635-637 693-716 771-792

833


IGREJA – Caritas in Veritate: a importância dos fundamentos.............................. – O Papa e a SIDA em África: Um despertar humano e espiritual.......... – A Reconciliação na Teologia Africana ..................................................... – A Economia e o apóstolo Paulo – I......................................................... – A Encíclica Caritas in Veritate e a problemática da globalização......... – A Economia e o apóstolo Paulo – II....................................................... – Justiça, paz e reconciliação em África. O desafio dos Sínodos Africanos.................................................................................................... LITERATURA – Infelizmente, Saramago ............................................................................ – Para uma periodização da literatura dos jesuítas portugueses expulsos (1759-1814)................................................................................................

9-16 37-46 47-60 569-586 677-681 683-692 809-822

527-528 315-336

POLÍTICA – Face às eleições ........................................................................................ – «O sexo dos anjos» .................................................................................... – Tratado de Lisboa: o fim de um longo impasse.....................................

7-8 739-740 741-748

SAÚDE – O Hospital na Vida do Homem...............................................................

385-389

3. DE RECENSÕES Abreu, Luís Machado de (coord.) – Novas variações sobre tema anticlerical ......... – Incidências anticlericais ................................................................................... Archer, Jeffrey e Moloney, Francis J. – O Evangelho segundo Judas por Benjamin Iscariotes .......................................................................................................... Bernstein, David; Fraser, Beau; Schwab, Bill – Morte às vacas sagradas ................. Cazeaux, Jacques – Le Cantique des cantiques. Des pourpres de Salomon à l'’ané mone des champs.................................................................................................. Chantraine, Georges – Henri de Lubac. Tome II. Les années de formation (1919-1929). Clair Segurado, Eva Maria – Dios y belial en un mismo altar – Los ritos chinos y malabares en la extinción de la Compañía de Jesús....................................... Clark, Martin – Mussolini ............................................................................................ Cottier, Cardinal George – Consacrés dans la vérité. Méditations sur l’évangile de saint Jean ......................................................................................................... Fráguas, Hélder – Sucesso nas carreiras jurídicas – Guia para licenciados em Direito e estudantes ......................................................................................... Giménez López, Enrique – Misión en Roma – Floridablanca y la extinción de los Jesuitas...................................................................................................................

834

620 620 96 613 717 615 507 826 824 728 509


Gisel, Pierre (éd.) – Le corps, lieu de ce qui nous arrive. Approches anthropologi ques, philosophiques, théologiques ................................................................... Gourgues, Michel – Les deux lettres à Timothée. La lettre à Tite .............................. Heisig, James W. – Les philosophes du néant. Un essai sur l’école de Kyoto ............. Honoré, Cardinal Jean – Les mots qui disent la foi................................................... Lelait-Helo, David – Evita – O destino mítico de Eva Perón.................................... Léon-Dufour, Xavier – 25 noms propres pour entrer dans la Bible ........................... Marcel, Gabriel – Dieu et la causalité ......................................................................... Marquês de Pombal / Junta de Providência Literária – Compêndio histórico da Universidade de Coimbra..................................................................................... Metz, Jean-Baptiste – Memoria passionis. Un souvenir provocant dans une société pluraliste .......................................................................................................... Mies, Françoise – L’Espérance de Job ........................................................................ Monroe, Laurence – États-Unis, la métamorphose hispanique ................................. Nebgen, Christoph – Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch – und Spanisch – Amerika, Ein bio-bibliographisches Handbuch mit einem Überblick über das außereuropäische Wirken der Gesellschaft Jesu in der frühen Neuzeit – Neugranada (1618-1771).................................................................................... Portugal, Lauro – Gente famosa continua a dar pontapés na gramática – Manual de erros e correcções de linguagem ..................................................................... Reynier, Chantal – Saint Paul. Sur les routes du monde romain. Infrastructures, logistique, itinéraires........................................................................................ Sen, Amartya – The Idea of Justice............................................................................ Service, Robert – Estaline ......................................................................................... Sesboüé, Bernard – Invitation à croire. Des sacrements crédibles et désirables........ Sholes, Lynn e Moore, Joe – O último mistério ....................................................... Silverberg, Robert – Roma eterna ............................................................................ Smith, David – O dragão e o elefante – China, Índia e a nova ordem mundial...... Von Loringhoven, Bernd Freytag – No bunker de Hitler. 23 de Julho de 1944-29 de Abril de 1945 ...................................................................................................

718 823 618 614 621 98 91 513 727 89 622

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o b r a s  r e c e b i d a s  n a  r e d a c ç ã o

OFERTA DOS AUTORES

Pinto, Sílvia Pereira, Silêncios do convento, Porto, Papiro editora, 2008.

OFERTA DOS EDITORES

JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados – Rua 8 ao Alto do Lumiar, lote 59 - 1750-342 Lisboa:

1) Gonçalves, Nuno da Silva [et al.], Direitos Humanos e Destituição. Actas do Seminário, 23 de Julho de 2009, Lisboa, JRS, Paulinas, 2009.

Publicações Europa-América – Apartado 8 - 2726-901 Mem Martins. 1) Archer, Jeffrey, Caminhos de glória, 2009. 2) Brandreth, Gyles, Oscar Wilde e o sorriso do morto, 2009. 3) Carmelo, Luís, A falha, 2009. 4) Denimal, Éric, Calvino, o arauto de Deus, 2009. 5) Heiney, Paul, Será que os gatos têm umbigos? 244 perguntas-respostas sobre o mundo da ciência, 2009. 6) Newkey-Burden, Michael Jackson. A lenda: 1958-2009, 2009. 7) Santos, José Alberto Loureiro dos, As guerras que já aí estão e as que nos esperam se os políticos não mudarem. Reflexões sobre estratégia VI, 2009.

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R E V IS TA

Brotéria ASSINATURA PARA 2010 Portugal: 50,00 E Estrangeiro: U. Europeia 90,00 E; Outros Países 95,00 E

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