Portfólio BP-CN

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP L735

Linardi, Fred. Circo Navegador: uma história de prosa e verso. / Fred Linardi. São Paulo: Biografias e Profecias, 2012. 32 p. ISBN 978-85-65004-04-6

1. Arte Circense. 2. Circo. 3. Circo Navegador. 4. História do Circo Navegador. 5. Espetáculo Circense. 6. Oficina Circense. 7. Circo Exposição. 8. História em Prosa. 9. História em Verso. I. Título. II. Uma história de prosa e verso. CDU 792.7 CDD 790 Catalogação elaborada Ruth Simão Paulino

Imagens Fábio Pagan: Capas e p. 2, 10, 24, 25 Lilian Baron: p. 6 Rafael Pilleggi: p. 7, 22 Alexandre Pestana: p. 9 Isabele Neri: p. 20 Sueluz Almeida: p. 26, 30 Produção Biografias & Profecias www.biografiaseprofecias.com.br

Projeto Gráfico, Diagramação e Impressão ArteMídia

Edição Regina Magalhães Rodrigo Casarin

É proibida a comercialização desta publicação. Todos os direitos, informações e imagens são do acervo e de responsabilidade do Circo Navegador, exceto as listadas acima.

Texto Fred Linardi

Se você quiser se comunicar com o Circo Navegador, escreva para producao@circonavegador.com.br

Revisão Izabel Cristina Lourenço

Esta publicação também está disponível em PDF na página www.circonavegador.com.br/downloads

Nota do Editor Quando conheci o Luciano Draetta, todo o propósito de seu trabalho – desde a criação, produção, atuação, até aulas de yoga e circo – logo me chamou a atenção. Para uma editora e biógrafa, ali estava uma curiosa e admirável trajetória, digna de ser eternizada. Afinal, vidas contam a história da humanidade. Apesar de narrarmos sobre o Circo Navegador a partir do Luciano, ninguém faz circo sozinho, nem mesmo o Palhaço Surubim. Tanto o palco quanto o picadeiro precedem incontáveis encontros e valiosos talentos que transpiram ao nos fazer suspirar. Então, conheça quem, desde 1997, navega pelos mares do público, levando arte e alegria. Em prosa e verso, através das palavras de Fred Linardi, nós te convidamos a desbravar a história deste timoneiro e sua trupe. Boa leitura!

Regina Magalhães Circo Navegador ·

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O circo é construído por todos aqueles que o fazem acontecer. Cada movimento gera uma realização e não há medidas diferentes para classificar a importância de todos esses nomes que compõem o nosso passado e presente. Para todos eles, nossos agradecimentos!

O Circo Navegador:

Elenco, diretores e criadores dos espetáculos: Acácio Abreu de Oliveira, Akito Ywai, Alejo Linares, Alexandre Pestana, Ana Paula Santos, André Teles Alves, Andreia de Almeida, Aurea Lima, Beto Teixeira, Carlos Lotto, Celso Hare, Celso Nascimento, Cesar Negro, Cida Ferreira, Daniel Ortega, Daniele Farnezi, Edson Augusto, Elaine Cristina Frere, Eloi Rodrigues, Evelin Sabará, Fabek Capreri, Fermin Ivora, Fernando Mastrocolla, Gabriel Draetta, Jeisel Bomfim, Janaina Perezan, Joao Grembeck, Juçara Marçal, Júlio Ferreira da Silva, Junior Capoeira, Luciano Draetta, Marcio Iche, Marcos Pavanelli, Marcos Sanches, Mário Bolognesi, Mauricio Maas, Michele Rebulho, Mirtes Ladeira, Neto de Oliveira, Rhena de Faria, Renata Kamla, Renata Pinotti, Sérgio Soler, Soledad, Perez, Victor Paulo de Seixas.

Produtores e colaboradores: Adelina Marques Diniz de Almeida, Adem Anita Draetta Ferreira, Adriana Goes, Amaragy Soares Ferreira, Ana Clara FerreiraMarques, André Gaiarça, Caco Galhardo, Graça Gremon, Gustavo De Gaspari, Luis Buarque de Gusmão, Luiz Henrique Góes, Marcela Sobral, Marco

Pagioro, Michel Rodrigues de Moraes, Nina Sena, Patricia Baudakian, Priscila Enrique de Oliveira, Renata Lemes, Ricardo Fera, Ricardo Lemes, Rogelio Minada, Rosangela Schardong, Rosemeire da Silva, Rubens José de Souza Brito (in memoria).

Mais agradecimentos: Às árvores, que concederam a celulose onde essas letrinhas estão escritas! E à Amanda Minucelli, Alexandre Roit, Bel Toledo, Ciça Nogueira, Danilo Cavalcante, Débora Serritiello, Dr. Gusmão, Fábio Pagan, Fábio Zanin, Francisco Americo Dourado, Francismar Minucelli, Gabriel Guimard, Hugo Possolo, Isabele Neri, José Wilson Leite, Lilian Baron, Luciana Marques, Luis Amorim, Luis André Querubini, Meu Amigo José, Miguel Velinho, Orlando Moreno, Paulo Caverna, Rafael Pilleggi, Raul Barretto, Roberto Rosa, Rodrigo de Abreu, Rodrigo Matheus, Roger Avanci, Sandra Vargas, Sebastião Milaré, Sueluz Almeida, Zé Carlos, Zico e a todos que colaboraram para que tudo isso se realizasse. Circo Navegador ·

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Bem vindo a bordo!

Obrigado, obrigado, obrigado! Obrigado por se sentarem e prestarem bastante atenção nesta história que vai começar e parece fruto da imaginação

Mas vamos começar do começo!

Era uma vez um rapaz chamado Luciano Que, de menino tímido, descobriu o dom da comunicação Mas oras, oras... com o passar de cada ano Que sentido faria termos vivido essa bela história e não contá-la de acordo Aos poucos seus gostos com o que lembra a nossa memória? pela agenda cultural se atraíam Teve a sorte de ter amigos Então vamos lá, puxe a cadeira com interesse semelhante, e sente-se com conforto Na escola, topavam fugir das aulas pois este barco navegante para ver algo mais empolgante já vai deixar o seu porto Iam às mostras, cinema, teatros... Tudo começou em 1997, Enfim, onde havia arte finalzinho do século passado Rodavam a cidade por toda parte quando artistas de teatro se reuniram para algo que nunca haviam imaginado Na adolescência descobriu uma vocação Era na empresa do pai, Em diversos palcos, festas e ruas ao lado do irmão, que ajudava nas vendas já haviam encenado Nada a ver com artes, lonas ou tendas Mas era preciso rumar para um novo chamado De juntar música, corpo e risada Num mesmo compasso e espaço

Na hora de fazer faculdade, foi a realidade de vendedor que deu mais entonação E Luciano escolheu o curso de administração Mas que furada! Em pouco tempo a matrícula estava trancada Um dia resolveu procurar uma explicação. De onde vim, para onde vou... o que eu vim fazer neste mundo, afinal? Procurou uma astróloga de confiança, que fazia um ótimo mapa astral Revelou-lhe algo que ele não havia pensado antes. Disse àquele futuro Quixote a estrada para seguir com seu Rocinante... – Vejo que seu caminho está trilhado pelas artes e pela espiritualidade. – Mas eu já estou bem. Trabalho numa empresa e está indo tudo bem. Se seguir assim, já estarei contente. – Pois bem. Você pode fazer o que quiser e colher seus frutos. Só lhe digo que as coisas lhe serão bem mais fáceis se você se dedicar à arte e ao espiritual. Seu espírito é livre e libertador.

Para as artes Luciano se atentou. Ia aos espetáculos e conversava com músicos, atores e diretores. Começou pelas notas musicais, tentando alguns instrumentos. Seu professor Celso Nascimento, que acabou se tornando um amigo, foi sincero assim que percebeu:

Meu caro aluno, escute bem o palpite de amigo Você gosta de música, mas para isso não tem ouvido Tem talento para as artes, mas não para as notas Porém, não veja isso como uma derrota Circo Navegador ·

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Luciano já se atentara às artes cênicas para superar a timidez, mas agora ingressaria na Escola Paulista de Circo e, mais tarde, no Circo Escola Picadeiro. Então, o amigo Fábio Zanin o apresentou a um outro amigo ator. Seu nome era Fermin Ivora, que confeccionava marionetes para vender e ajudar no sustento. Eram fantasminhas com corpo de tecido e cabeça de isopor, sem muitas firulas. Com os fios, pedaços de madeira e um tanto de criatividade, o artesanato ganhava vida para os transeuntes que passavam pelas vias da cidade.

De volta a São Paulo, pensou: Depois dessas férias de Natal não posso perder o Carnaval! Disse a todos que ia novamente e voltaria depois do feriado Transformou arte em prata e seu bolso ficou recheado Agora as marionetes eram feitas por suas mãos De forma que logo avisou os pais e os irmãos: A arte é meu espaço e nela eu caminho com felicidade e paz.

Aquele era um ótimo artifício para treinar seu talento como ator, e o aspirante Luciano não pensou duas vezes. Aquela experiência foi a primeira que lhe deu a noção de como formar uma roda com dezenas e centenas de pessoas numa praça ou num calçadão. De como fazer Os dias viraram semanas, que viraram seis meses em terras um show rápido e passar o chapéu; o talento para baianas. Ia aos mercados de Salvador e às cidades turísticas do litoral. Depois foi descendo para o sul, até chegar nas recomeçar outra roda. praias de São Paulo. Fazia uma bagunça onde tudo ficava Quando acabava o produto, voltava à casa do misturado: turistas, nativos, bêbados e andarilhos. Fazia amigo para encher a mala que esvaziara. Depois pequenos shows de cinco minutos e mostrava o encanto. A de experimentar as ruas de São Paulo, resolveu tática era mostrar do que aqueles fantasminhas eram capazes, num esforço passar umas férias em Salvador, na Bahia. Além de para que o público não se dissipasse. Viu que sua linha dramatúrgica estava descansar um tantão, levava suas marionetes para muito bem, obrigado. Era o momento de voltar para São Paulo e dar todos os lugares. sequência aos movimentos da sua própria vida.

Participou do grupo do amigo e ator Neto de Oliveira, a Farândola Trupe, composta por eles, por Renata Kamla e Armando Junior. Foram alguns anos de muita dedicação, alegrias e aprendizados. O quarteto, sob direção de Alexandre Roit e texto de Hugo Possolo, apresentava uma adaptação bem circense da farsa O Pastelão e a Torta. Encenar era um prazer, só que ainda havia algo a ser preenchido em seus quereres. O legado dos esquetes tradicionais aprendidos na escola de circo e aprimorados com este grupo começaram a ser apresentados fora da trupe por Luciano e Neto. Só que o novo trabalho precisava de um nome de circo. E agora?

O começo e o recomeço


Luciano abriu o dicionário para procurar por termos relacionados a circo.

Circo... circum, circunflexão, circunflexo, circunfluir, circunfundir, circunfuso. Que confuso!

Cincunlocução, circunscrito, circungirar, circunstante, circundar, circuncisão... Ah, não!!

Circunavegar, circunavegação!!

Eureka!

Circo Navegador!

Lembrou-se de uma vez em que acampou na Ilha Grande, onde não havia nem rastro de modernidade. Muito menos que isso, aliás. Não tinha energia elétrica para geladeira, chuveiro, nem televisor! No meio da natureza e ao ar livre, aproveitou para treinar malabares. Os olhos de uma menina que lá morava observavam. Num piscar, aquela criança ficou enfeitiçada. – O que é isso? – Malabares! Você não conhece? – Não. – Que tem no circo. Sabe circo? – Não. – Aquele lugar onde tem mágico, palhaço...

E quanto mais explicava, mais o rosto da menina o interrogava. Palhaço: rosto pintado Nariz vermelho, todo engraçado. É um bobão! Nunca viu nem na televisão?

A menina desistiu de entender e ele desistiu de explicar quando se lembrou que na ilha não tinha a caixa da ilusão. Perguntou à garota se ela nunca havia saído dali. Ela disse que não. Meses depois, quando pensou no nome para o circo, lembrou-se desse acontecido. Navegação tinha tudo a ver com o acesso a lugares que se chega além de estrada. Mas também o fez pensar em como o circo um dia havia chegado ao Brasil. Antes de ser por jegue, carroça ou comboio, essa arte fora trazida para nós de navio! Se um dia ele tivesse que visitar novamente aquela criança ou outras tantas como ela, teria que ser navegando. Mas por enquanto as coisas seriam por terra. E foi no dia 25 de julho de 1997 que o Circo Navegador fez sua primeira apresentação. Seus artistas foram de coração aberto participar do Festival de Inverno de Ouro Preto, com os espetáculos Hoje Tem Marmelada e Navegador, integrado por Neto de Oliveira, Mirtes Ladeira e Marcos Pavanelli. A experiência mostrou que ainda tinham muito que melhorar. A crítica local adorou a marmelada e bombardeou o navio! Mas o mergulho em ensaios e pesquisas contínuas os levaria cada vez mais ao profissionalismo. Circo Navegador ·

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Os tesouros do caminho Andreia de Almeida Fiel companheira e atriz sonhadora do grupo. É apaixonada pela forma como esta arte circula pelos diferentes territórios. Idealiza e realiza com a trupe desde 2004.

Vitor de Seixas Pensador, palhaço e filósofo. Contribui muito com as criações do Circo Navegador desde 2000.

Gabriel Draetta Em 2003, o garoto de apenas 14 anos, que já era músico, entrou para o circo e tornou-se palhaço, dando ritmo aos espetáculos com seus instrumentos e sensibilidade.

Fernando Mastrocolla Mente criativa chegou à trupe em 1999. Veio como músico, tocando violão. Um dia, quando lhe tiraram o instrumento, descobriram que havia lá também um palhaço maravilhoso.

O mundo das artes e do circo circula mais do que o espectador pode ver. Desde aquele começo, o Navegador encontrou com gente pra caramba! O suficiente para peças, inovações, emoções, músicas e charangas.

Além do Neto, chegou gente pra dedéu Tem a Andreia, o Vitor de Seixas, o Fernando E o sobrinho do Luciano, o Gabriel

E tantos artistas passam construindo lembranças que o Navegador jamais esquecerá Como o Marcos Sanches, a Daniele Farnezi O Cesar Negro e a Evelin Sabará Além do Júlio, da Elaine Frere, Do Junior Capoeira e do Fabek Capreri.

Mário Fernando Bolognesi É um filósofo que fala a língua dos palhaços. Dirigiu o espetáculo Quixotes e orientou a pesquisa Palhaço de Todos os Tempos do Circo Navegador.

Uhm! E teve um encontro que extrapolou as fronteiras. Aconteceu em Londrina, no Festival Internacional de Teatro. Uma produtora do evento foi designada a receber o grupo. Seu nome era Priscila Enrique de Oliveira, uma intelectual, antropóloga que estudava o mundo dos índios – mas acabou por descobrir um palhaço. Aquele encontro seria o início de uma jornada maior. Seguiriam pelo caminho que dá nos mares do coração.

Um produtor à parte, com sua visão peculiar das coisas e seu jeito articulado de falar com as pessoas de diferentes patentes e regiões.

A fama foi crescendo e o reconhecimento pelo trabalho também. E olha o que rendeu: do comecinho para cá, já foram mais de mil apresentações. Só o espetáculo Om Co Tô?, Quem Co Sô?, Prom Co Vô?, já foi apresentado pra mais de 20 mil pessoas! Sempre movidos pela mesma inquietação: a de buscar uma expressão artística livre das amarras estéticas e limitações mercadológicas, mas de mãos dadas com a poesia! E levá-la para lugares onde arte tem dificuldade – muita dificuldade mesmo – de chegar!

Entre os produtores, Ana Clara Marques anjos da guarda celestial, Produtora e captadora de recura Priscila Enrique, o Ricardo Fera sos, companheira e batalhadora a Nina Sene e a Marcela Sobral. que usa toda a sua criatividade e sensibilidade pra viabilizar os É gente que nunca pode dar bobeira projetos do circo. como o Marco Paggioro, a Ana Clara Marques e o Amaragy Ferreira

Uma das maiores conquistas foi o projeto Palhaço de Todos os Tempos, premiado pela Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, com duração de 14 meses, que levou a mais de 50 praças e lugares públicos o repertório criado ao longo dos anos. Foi um divisor de águas! Tratava-se de um circo-exposição, do tipo “Tomara Que Não Chova”, que revisita a antiga arquitetura circense. Era um circo sem cobertura para 300 pessoas, com a

Na direção, verdadeiros mestres! Fermin Ivora, Renata Kamla e Mário Bolognesi!

Marco Paggioro

história de diversos palhaços do século 20 estampados no pano de roda. Em 2008 o assunto tomou mais fôlego! Transformouse na pesquisa acadêmica de Luciano Draetta, na conclusão da Faculdade de Letras, intitulada A Comunicação no Circo – dramaturgia circense no início do século XXI, em que ele buscou enxergar a prática na academia e a academia na prática artística. Em tantas viagens que se dariam, o Circo Navegador jamais imaginaria que o mais distante muitas vezes está bem do lado da gente! Muitas vezes na própria cidade de São Paulo, como conta esta história virando a página... Circo Navegador ·

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A Geografia da Navegação Projeto aprovado pela lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Os deslocamentos As pessoas viram e foram subindo eram coisa de amedrontar. atrás do carrinho Para chegar à Vila da Roseira, E graças a Deus elas estavam lá, andavam, andavam, andavam... caso fosse preciso um empurrãozinho e nada de chegar! A trupe assim chegou com muita disposição e categoria O olhar da atriz Andreia ficou maravilhado Já em Guaianases, e olha que já se apresentara em lugares chiques, outro bairro de São Paulo, até para chefes de Estado! Tinham que subir, subir, subir. O asfalto acaba e a luz elétrica rareia Quase nenhum acabamento. Muita tábua e poeira No morro, a subida era quase reta, nem se podia chamar de ladeira

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Mas nunca se sentira numa apresentação tão especial na presença daquelas pessoas da extrema periferia, num pico qualquer da Terra da Garoa.

Gente que não teria teatro se até eles os artistas não chegassem Mas vivem sedentas pelo encontro anunciado. Por isso todo artista precisa estar sempre preparado

O Circo Navegador Tem a ajuda de Marco Paggioro, conhecido como Marcão, um fiel companheiro que fazia um tipo de demarcação

Era o projeto Palhaço de Todos os Tempos, realizado com recursos do “Fomento”. Era o dia da solidariedade, quando os moradores ajudavam o espaço a ser montado: Visitava os bairros, procurava por líderes o palhaço armar seu picadeiro, Estudava terrenos em toda a região o músico a ligar seus equipamentos, Depois que encontrava, o respeitável público ter onde se sentar, pedia autorização abrindo espaço para o vento soprar, o sol alumiar e a vista aplaudir. Feita a ponte, O final de semana sorriria diferente as fronteiras se abrem na comunidade para toda aquela gente. E num lugar tão longe e tão perto vibra a uma invejável solidariedade Metade do campo foi ocupado para que o picadeiro fosse armado Quando chegaram lá em cima naquele dia, Na outra metade, o bate-bola durou o espaço a ser usado era o campo de futebol! até que o começo da apresentação se anunciou O lugar preferido para a pelada Tanto dos adultos quanto da garotada E teve um dia, numa outra comunidade lá da zona sul de São Paulo Sobre a terra vermelha do chão, que foi feito assim, desse jeitim: a equipe se deu conta da vista linda em sua vastidão. Era possível ver São Paulo em toda sua densidade Do outro lado, Ferraz de Vasconcelos e a sensação de estar longe de uma grande cidade.



Estava tudo pronto desde a véspera. Carro preparado com o equipamento, mapa traçado com capricho e na marmita o sustento. Dois carros e duas carretinhas anunciavam Os artistas chegaram O CIRCO NAVEGADOR CHEGOU! naquele mar de casinhas de papel. Todo mundo se surpreendia Iam passando Até o dorminhoco rabugento e a criançada acompanhando. que sua janela abriu Ajudavam também no coro e ao invés de xingar, sorriu. Pois antes de tudo, os circenses com elas haviam combinado: O barulho era de alegria, a música tocava liberdade. – Eu ensino uma música para vocês Uma mensagem que o artista traz Mas não contem para mais ninguém e ninguém mais faz Só para seus amigos, tudo bem? Era o circo chegando com perna-de-pau, O efeito inverso estava garantido Malabares, acrobacias e a notícia logo se espalhava e charanga em forma de cortejo. Nos barracos, becos, corredores Tinha música, sorriso e cantoria! no caminho estreito E naquela área Quem podia, via do parapeito. não havia melhor ensejo. Desde cedo muita gente se contagiou – Podem nos ajudar a montar? – Andreia perguntou – Podemo, sim senhora! – disse o rapaz – E se precisar usar nossa casa, muito nos satisfaz!

Foi chamada uma moradora influente Assim, quando o show começasse, para fazer a apresentação. todo mundo lá tinha ajudado a realizar, garantindo o próprio orgulho e o silêncio respeitoso Microfone na mão, “agradecemos a todos por aqui estar! para o artista poder se expressar. Preparem-se que vai começar! Aplaudam todos com calor, Tinha até um jovem feliz da vida, este que é o Circo Navegador!” que começou a designar funções, – Vocês vão assistir No Olho da Rua! tomando cuidado com tudo Tenham todos um bom espetáculo! para ficar uma festa bonita. De vez em quando, ia até a esquina, sob o peculiar calor. Dava um gole de uma bebida Três, dois, um e... BRUMM!! escura e amarga, dita para adultos, O céu se emocionou e chorou, chorou! e voltava a todo vapor. Cruzou a rua de volta para uma infância que se perdera antes da hora descobrindo tardiamente um encantamento. Era o mais empolgado – Vamo lá, rapaziada!! Em busca de um entrosamento. E tudo estava pronto para começar! A excelência na vista! O terreno cheio de crianças e adultos.

As crianças se entreolharam, os velhos se apiedaram. O cachorro se encolheu. Enquanto o céu chovia, como remediar? Ninguém sabia! E quando isso acontece, não tem outro jeito. Sem lona, a primeira coisa a fazer é a rede elétrica desligar.

O chão de terra virou lama. Não aconteceu nada grave, ainda bem! Os artistas orientaram que era preciso em casa aguardar Principalmente as crianças, esperando o fim da chuva sempre com esperança. Os eletrônicos foram cobertos, a trupe se ensopou. Em quinze minutos a água tudo lavou. Depois da trégua, o que ficou foi um caldo marrom O chão virou mingau, mas no fundo, no fundo, algo acabou sendo legal. Circo Navegador ·

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A trupe, sem forças, Assistiu à comunidade se levantando para limpar o local. Com uma mangueira lavaram todas as peças de metal Separando e organizando por categoria. Lavavam, lavavam por dentro e por fora A trupe sorria com alegria Mas não tinha como solucionar. Entregaram tudo limpo para o circo poder zarpar. Foi assim: um espetáculo só de bastidor. Para as crianças, teve um tanto de dor. Mas naquele dia, naquele domingo diferente, as pessoas deixaram suas casas e foram conviver. A televisão perdeu a feição e ficou muda, Como quase sempre deveria ser. Para o grupo, o espetáculo foi o não-acontecido. Ver como aquilo tudo havia sido montado e depois, mais rápido ainda, adormecido.

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O circo jamais havia lhe chegado e seus pais nunca o haviam levado. Agora ele era um pai realizado. Às crianças com os rostos molhados, Pois não há no mundo algum dinheiro a promessa de que um dia voltariam. que compre a felicidade Mas como tudo de patrocínio depende de estar diante de um picadeiro. e essas coisas não são fáceis, foi preciso esperar até a próxima vez, E então o que brilha são os olhares, talvez. pois são os olhos que fazem a magia de juntar num só todos os mares Mesmo assim, o circo se foi Não importa mais se é numa comunidade com a sensação de dever cumprido, ou num bairro chique e bacana já que o encantamento, de algum modo, A linguagem que impera é a felicidade aquele espaço havia preenchido. Desde o homem que vive de um mísero salário Até o filho do milionário Teve até um dia que discretas lágrimas se puseram a rolar. Quando o artista passa Eram dos olhos de um temido líder e o encantamento acontece, que chegou para conversar. iguala todo tipo de gente! Naquele lugar, era ele É quando as fronteiras somem quem mandava soltar ou e não existe mais geografia diferente matar sem perdão. Saiu de sua toca para uma importante declaração: – Vocês que aqui chegaram no estreito desse declive, estão dando para o meu filho algo que eu nunca tive.


Mais mares navegados

É interessante ver o que tanto trabalho já rendeu. O espetáculo Quixotes foi um desses resultados, pois teve como inspiração as andanças da trupe pelo país afora. Já as oficinas de circo, mímica, teatro e canto, oferecidas pelo projeto Palhaço de Todos os Tempos, frutificaram mais do que planejado. Elas ocorriam no Centro Cultural São Paulo e principalmente no galpão sede do Circo Navegador, de mais de 1500 m2, cedido em contrato de comodato junto a FUNSAI - Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga. A procura era imensa e, para as oficinas mais especializadas, vinha gente de outros estados para ter aula com a trupe. Um dos diretores da FUNSAI, João Luís Buarque de Gusmão, admirava tanto

as ações do Circo Navegador, via tanta qualidade que garantiu a continuidade dessa iniciativa, no bairro do Ipiranga (São Paulo), criando o Quixote Espaço Comunitário de Cultura, projeto oficialmente aberto em 2008, fundamentado nos princípios do grupo e orientado pela atriz Andreia de Almeida.

O gesto foi sem igual, contribuindo para os artistas e moradores da região, que continuam a ter acesso às aulas de arte. Arte que celebra a vida. Em São Sebastião, anos depois, surgiria algo mais inusitado: uma sede para o Circo Navegador e mais uma longa história pra contar...

O trapézio e o tecido envoltos em sua beleza mostram que o circo é nada menos do que a vida se arriscando nas leis da natureza E um belo dia Apareceu a Ciça Nogueira Uma aluna vinda do mundo zen E fez o convite para as aulas dela também Era professora de yoga E foi falar justo para quem? Luciano, curioso sem igual, rumou também para esta filosofia oriental. Anos depois, no espaço do Circo Pessoas se sentam no chão e se atentam na respiração Pensam no corpo e o movimentam com consciência São as aulas de yoga e circo que, para Luciano, encontram-se na mesma essência

Sim, todo circense deveria praticar (para não dizer todo ser humano) Pois a melhor maneira de existir é pensar, sentir, questionar! E isso é o ponto que para o Yogui é fundamental Certamente aí está o encontro da arte com o espiritual!

A disciplina é fundamental a conduta, no bom sentido, é militar e justifica o risco da gravidade para aqueles que a querem desafiar E com tal formação, o artista acaba levando as coisas bem a sério. Não com mau humor ou cara sisuda, mas sim de maneira mais objetiva e realizadora. Como num domingo chuvoso, em que a trupe precisava organizar a apresentação numa praça pública. Montaram sua estrutura debaixo de chuva. Ninguém do elenco acreditava que um gato pingado apareceria, mas, surpreendentemente, à tarde fez sol e 300 pessoas saíram de suas casas para assisti-los. Isso nos lembra o princípio: “faça o que tem que ser feito”. É questão de cumprir a missão, e ponto final! Circo Navegador ·

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Riso que liberta

Quando a magia do palhaço chega, tudo vira brincadeira e não há medo que perdure Não tem discórdia, ameaças ou palmatória Pode até brincar com Deus diante do padre, sem ferir qualquer oratória Igual como foi numa pequena cidade mineira. Quando Luciano, como Palhaço Surubim, Fernando de Dum-Dum – e no som o Gabriel – pediram para divulgar o espetáculo ao querido público fiel A produtora lhes dera essa ideia: com a maior concentração da cidade num único espaço – a igreja – aquele era o momento: O ponto certo para divulgar um evento! A moça pediu e o padre permitiu. Entre os avisos da semana na paróquia, o par de palhaços o altar invadiu. Que momento propício para rezar! Entre as paródias que os palhaços carregavam no repertório, tinham exatamente uma cena de oração, quase igual ao dos Apostólicos Romanos em sua imaculada tradição...

São Luís era o santo homenageado. Ajoelhados, logo apresentaram o que tinham preparado. Um falava certo e outro, coitado, todo atrapalhado. – “Bendito louvado seejaaaaaaa” – Que a Benedita lavada seejaaaaaa! – “A oração de São Luiiiiiiiiiis” – O coração do Seu Luiiiiiiiis! – Eu conheço um palhaço bobão que bateu com o nariz no chão! (disse Surubim, empurrando o corpo de seu companheiro para frente). Era o castigo por não saber direito a oração!

Mesmo com alguma carola mais séria, o que dominou foi o encanto Os dois palhaços no altar nunca viram uma igreja rir tanto.

É o poder do palhaço de pôr à prova qualquer coisa, até mesmo a Igreja. É que para ele, a seriedade é combustível para a transgressão ao que quer que seja.

Será que para isso existe algum outro santo? Se existe, o palhaço não sabe. Só que rir é mesmo coisa séria. Só sabe que as pessoas estão mais perto de Deus Já pensou que quem está no poder no riso do que no pranto não gosta de muito humor? Não que eles prefiram viver na dor E foi assim que Surubim e Dum-Dum É porque o humor leva as pessoas tiveram a fé alcançada à crítica e a um entendimento. Na noite do espetáculo E isso, minha gente, é perigoso ao tribunal, se depararam com a casa lotada. à cúria e ao parlamento.

O padre na hora agradeceu e sorriu com simpatia e paciência. Talvez no fundo tenha se arrependido, pensando numa boa penitência.

O boca a boca deu certo e todo mundo comprou ingresso para vê-los de perto Amém? Amém!

Se alguém ri muito do rei, do presidente, da polícia ou do padre, uma nova mentalidade se abre.


O mapa da mina Tudo o que o Navegador fez em capitais, interior e litorais só foi possível graças à boa vontade não só da ilustre plateia que vem ver, mas também a de programas de fomento. E isso não tem muito segredo! Basta que as portas sejam abertas pelos incentivos culturais do governo, pois é preciso haver do Estado um compromisso: em sua função, o governo não pode ser omisso. É mais ou menos como acontece em outros setores representativos da sociedade, como a saúde e educação: se uma escola ou um hospital fossem viáveis para suprir toda a população, não precisaria do Estado para funcionarem. Com a arte é a

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mesma coisa. Para as pessoas, ela também é necessidade, alimentando a essência e história de cada um. E com tudo nos termos do edital, a proposta, o objetivo e o conceito se tornam realidade, garantindo que venha ao público um espetáculo bem feito, cheio de arte e poesia! E é bom hoje poder contar que o Circo Navegador tem tido muito sucesso. Mas saiba que conseguir não é para qualquer um. Mesmo que os prêmios tenham contemplado cada vez mais pessoas, ainda é pouco, perto de tantos grupos que propõem seus projetos.

Então pode cair da cadeira e arrepiar a cabeleira porque com oito prêmios desses O Circo tem feito sua carreira Foram programas de incentivo como Funarte e ProAC para circo, teatro e festivais E outros programas de fomento Importantes em níveis municipais e nacionais E por mais que com isso dê para realizar, o dim-dim fica pequeno quando distribuído para toda a equipe trabalhar E tem ainda os técnicos, os materiais e até a grana para a boquinha Sem falar no preço da gasolina para transportar nossa carretinha No final das contas, é normal que um simples palhaço, ator ou malabarista, por melhor que seja seu pagamento, tenha trabalhado mais do que um jumento Pois na hora do vamos ver e do palco montar, é um Deus nos acuda e é preciso de todos muita ajuda

Mas é assim que funciona o circo E ao encontrar o mapa da mina, O artista cumpre sua sina. Se recusamos essa missão, não conseguimos levar a alegria E acabamos recusando um nobre chamado O chamado da arte O chamado da poesia O chamado do risco de viver De viver dentro e fora do picadeiro!


Entre tantas informações, tecnologia e supercomunicação, é importante parar e pensar para onde vai o circo, seus artistas e a arte que tanto emociona a plateia. O Circo Navegador continuará riscando o mapa, com o propósito de proporcionar algo que está cada vez mais raro. Uma coisinha tão simples, mas que está virando um privilégio, um artigo de luxo que nenhum dinheiro paga...

O futuro ao encontro pertence Circo Navegador ·

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É o ENCONTRO!

É verdade, isso é uma ambição Mas o que melhor fazer neste mundo Do que levar a felicidade ao coração? O encontro entre jovens e crianças, adultos e velhinhos Bem lá no fundo Entre altos e baixos, magros e gordinhos No fundo da alma, com muita alegria Entre artistas e padres, Para que a vida não se perca na realidade patricinhas e comadres sem a tão necessária magia! É o encontro entre gente! Pessoas daqui, de acolá E assim segue o Circo Navegador que chegam para algo espetacular por mares conhecidos ou para onde para qualquer idade quer que o vento resolva soprar Uma apresentação que traz Se você neste barco já entrou, O contato com a subjetividade somos muito agradecidos A arte com delicadeza e emoção E para aqueles que ainda não nos viram Com a capacidade de sublimação São sempre muito bem-vindos! Que eleva a alma de quem executa E daquele que assiste

Que a qualidade do nosso encontro por meio dessas palavras seja compartilhada com todos os seres vivos. E esperamos em breve por um encontro pessoalmente para que você também ajude a construir essa história!


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