Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa

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Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

36 a Bienal de São Paulo

Recursos de acessibilidade

Acesse nosso canal no YouTube e confira o registro da Invocação #1

Souffles:

Sobre escuta profunda e recepção ativa

Desde 1953, ano de sua segunda edição, a Bienal de São Paulo se destaca por seu compromisso educacional, promovendo iniciativas que facilitam o acesso de diversos públicos – incluindo professores, estudantes e educadores – aos conteúdos das exposições. Em 2009, a Fundação Bienal estabeleceu uma equipe permanente de educação que vem, a partir de então, desenvolvendo e implementando projetos educativos para cada edição. Esses projetos incluem a realização de publicações, visitas mediadas, oficinas e programas de formação para professores e educadores, visando atender à missão da Fundação Bienal de ampliar o acesso à arte contemporânea.

Para a 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas –Da humanidade como prática, a Fundação apresenta uma série de quatro volumes de publicações educativas que têm dois objetivos que se complementam, ambos de fundamental importância para a Bienal. O primeiro deles é registrar e compartilhar as contribuições das Invocações – encontros curatoriais com artistas e poetas, que investigam as noções de humanidade, tema da mostra, a partir de quatro geografias distintas: Marrakech, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio. O segundo objetivo é atender às demandas do projeto educacional da 36ª Bienal, com os livros sendo utilizados na formação de mediadores e em ações de difusão, tanto durante os meses de preparação e realização da exposição quanto ao longo do programa de mostras itinerantes que ocorrerá logo depois dela.

Como é próprio da Bienal de São Paulo, os conteúdos dessas publicações articulam elementos locais e globais, conjugando práticas e questões do contemporâneo. Fruto de uma parceria com a Center for Art, Research and Alliances (CARA), que coeditou os livros com a Fundação Bienal, e a A&L Berg Foundation, que apoiou o projeto desde o início, pela primeira vez as publicações educativas da mostra contam com uma versão em inglês que será distribuída entre leitores estrangeiros, possibilitando um maior alcance das experiências das Invocações e dos nossos conteúdos educacionais, reafirmando a vocação internacional que há mais de setenta anos vem sendo colocada em prática.

CARA tem a honra de coproduzir esta publicação com a Fundação Bienal de São Paulo, reforçando nosso compromisso compartilhado com expandir os espaços para investigações artísticas e intelectuais. O programa das Invocações e os quatro volumes educativos ecoam a dedicação de CARA para transformar as publicações em agentes de mudança, nas quais o conhecimento não é apenas registrado, mas ativado por meio de encontros entre várias disciplinas e geografias. Nossa abordagem institucional fomenta pesquisas abertas, incentiva o desafio a narrativas fixas e adota a contação de histórias como uma forma de manter as ideias em movimento, abalando discursos dominantes e abrindo caminhos para que esses sejam desaprendidos.

Com base nesses valores, o programa editorial de CARA amplifica vozes negligenciadas, apoiando profissionais mais experientes e em fase intermediária da carreira, além de historiografias alternativas. Nossos livros incluem práticas literárias e poéticas, artes visuais, performáticas e de imagens em movimento e a ação radical como forças entrelaçadas que moldam nossa compreensão dos mundos interconectados. Por meio das Invocações, CARA mantém seu comprometimento em transformar o setor editorial em um espaço de ressonância, no qual o trabalho artístico e intelectual resiste a narrativas singulares. A colaboração com a 36ª Bienal de São Paulo fortalece nossa missão de reverberar artistas, estudiosos e trabalhadores da cultura, cujas contribuições desenham o discurso crítico, incentivam novas conexões e expandem os limites do pensamento.

Aqui na CARA, perguntamos: como podemos sonhar para além de nós mesmos? Essa é a questão que orienta nossa visão editorial, convidando-nos a criar espaços nos quais o conhecimento é compartilhado e aprofundado em uma relação dinâmica. Para nós, a publicação é um processo de criação de uma constelação generativa, onde vozes convergem, entrelaçam-se e ampliam o que pode ser imaginado em conjunto. Essa colaboração dá corpo aos nossos valores para oferecermos livros que desafiam, desestabilizam e inspiram novas formas de ser e pensar no mundo.

A A&L Berg Foundation, criada em 2023 por Allison e Larry Berg, oferece acesso, ferramentas e recursos para criar, desenvolver e sustentar perspectivas e narrativas diversas nas artes visuais dos Estados Unidos. Apoiamos e fortalecemos indivíduos comprometidos em gerar impactos sistêmicos e escaláveis em suas práticas e comunidades. O principal programa da instituição é a ESAP Fellowship, que apoia e capacita curadores, educadores e administradores das artes visuais em início de carreira, atuantes em espaços e instituições de arte nos Estados Unidos. Ao construir uma duradoura rede de apoio entre pares e ao oferecer ferramentas de orientação e oportunidades para expandir grupos e comunidades profissionais, a Foundation cria caminhos de carreira mais equitativos nas artes visuais e busca, em última instância, fortalecer e diversificar os ecossistemas internos das instituições artísticas do país.

Nossos programas oferecem acesso a redes de contato, oficinas de desenvolvimento profissional, viagens de pesquisa internacionais, mentoria, coaching em habilidades relacionais e interpessoais, além de apoio financeiro para enfrentar desigualdades sistêmicas. Todos os anos, um júri diferente, composto por renomados profissionais das artes, indica candidatos com base em um conjunto de critérios previamente acordados, e convidamos seis dessas pessoas para integrar a nova turma da fellow. Nosso diretor de programa convidado – um profissional das artes que já superou com sucesso os desafios enfrentados pela respectiva turma – é responsável por desenhar os detalhes do programa anual, com foco nas habilidades relacionais específicas que cada grupo necessita para o crescimento de suas carreiras.

Durante os dez meses da fellow, a Foundation oferece cinco pilares de apoio: mentoria com um profissional mais experiente da área de artes; oficinas de habilidades relacionais com especialistas de diversas indústrias; um subsídio financeiro irrestrito; uma viagem internacional de pesquisa robusta, que abre portas e proporciona engajamento com líderes e pares do ecossistema global das artes visuais; e suporte contínuo para o crescimento profissional.

A&L Berg Foundation

A Fundação Bienal de São Paulo agradece aos parceiros CARA e A&L Berg Foundation pela colaboração especial nas publicações educativas da 36ª Bienal.

O Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, celebra a realização da 36ª Bienal de São Paulo em parceria com a Fundação Bienal de São Paulo. Assim como os grandes festivais de cinema, a Bienal de São Paulo – a segunda mais antiga do mundo – desperta enorme expectativa no circuito global de exposições. Neste ano, com o título Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, inspirado em um poema da renomada escritora brasileira Conceição Evaristo, a Bienal reafirma sua vocação como grande vitrine para as produções mais atuais do cenário artístico nacional e global, sem perder de vista sua ampla atuação educativa na formação de novos e conhecidos públicos.

O Ministério da Cultura tem trabalhado para fortalecer o setor cultural por meio de diversas iniciativas e instrumentos de fomento. Políticas como a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura fomentam outras linguagens artísticas, criando oportunidades para artistas, produtores culturais, gestores e visitantes. Criar condições sólidas para a cultura é fortalecer a economia criativa e estimular a implementação de políticas culturais perenes, permanentes e democráticas.

Estar ao lado de projetos como a nova sala de cinema da Bienal é motivo de orgulho por reunir, ao mesmo tempo, duas questões caras ao Governo: a ampliação do acesso democrático aos equipamentos culturais aliado a um braço educacional capaz de mediar e dar sentido àquilo que é exposto. Ao prever sessões de filmes gratuitas acompanhadas de ações educacionais, cria-se mais um palco para fortalecer a cultura do nosso premiado e cada vez mais atuante campo audiovisual do país.

O Governo Federal segue comprometido com a arte e a educação, frentes indispensáveis para assegurar o direito à cidadania e a um futuro mais justo para todos. Seguiremos investindo em iniciativas que encorajam a criação e a inovação cultural, garantindo que eventos como a Bienal de São Paulo continuem a inspirar e a transformar gerações.

Ministra da Cultura – Governo Federal do Brasil

Há mais de 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem desempenhado um papel fundamental para a valorização da arte, cultura e educação de uma sociedade complexa e heterogênea como a brasileira. Essa atuação se expande por meio de parceiros essenciais para o desenvolvimento do setor da economia da cultura e das indústrias criativas, como a Fundação Bienal de São Paulo.

O Itaú Unibanco se orgulha de ser um dos patrocinadores da Fundação Bienal de São Paulo – há 27 anos, sendo esta a 12ª edição realizada nesse período –, reafirmando o compromisso com a promoção das artes visuais e o seu papel transformador. A Bienal de São Paulo é um importante espaço de encontro e intercâmbio entre artistas, curadores, críticos e público.

Nesse campo, o Itaú Cultural articula ações de fruição, formação e fomento, entre elas, as exposições individuais e coletivas que acontecem tanto na sede na Avenida Paulista, 149 (com entrada gratuita) quanto em equipamentos nas cinco regiões do país. Entre as exposições de 2025, destaque para Carlos Zilio – A querela do Brasil, com curadoria de Paulo Miyada, que trará uma retrospectiva desse artista que, com erudição e irreverência, explorou as tensões da arte brasileira. Também serão dedicadas mostras à artista visual Rivane Neuenschwander e ao curador e crítico Paulo Herkenhoff.

Acesse itaucultural.org.br para navegar pelas exposições virtuais Filmes e vídeos de artistas, com produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na Coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. Já na Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia.itaucultural.org.br) você tem acesso a centenas de verbetes de personagens, de obras e de eventos de artes visuais.

Estar presente na Bienal de São Paulo reforça nosso objetivo de construir vínculos com diferentes públicos, prezando pela diversidade de formatos, pensamentos e subjetividades e fomentando o fazer criativo e crítico através da arte e da cultura brasileiras.

Itaú Cultural

A Bloomberg se orgulha de patrocinar a 36ª edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano continua a tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas ao público.

Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, a qual, segundo acreditamos, é um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos.

Bloomberg

Para o Bradesco, um banco brasileiro por excelência e que completou 83 anos, arte e cultura não são apenas elementos fundamentais à formação da identidade de um povo ou de construção de seu patrimônio imaterial, mas também uma jornada de inclusão e cidadania, uma saudável convergência entre diferentes pontos de vista. É, por assim dizer, um caminho em direção ao novo, mas com o cuidado de valorizar aquilo que é especial o bastante para ser história ou tradição.

Portanto, quando se fala em arte e cultura, perdem sentido as fronteiras entre passado, presente e futuro, entre o que é forma ou conteúdo. Tudo vira reflexão e aprendizado, tudo se transforma em provocação e surpresa.

Foi a partir dessa interpretação, combinada à visão positiva do papel das empresas na viabilização do que a sociedade considera importante, que o Bradesco se tornou patrocinador da 36ª edição da Bienal de São Paulo, seguramente um dos principais eventos do país voltado a estimular o circuito artístico, divulgar as diversas expressões de arte e promover o intercâmbio cultural, com tudo de bom que ele agrega.

Ao participar de algo a um só tempo grandioso e de muitos significados, o Bradesco compartilha com a Fundação Bienal de São Paulo – que organiza o evento há mais de seis décadas – o propósito de democratizar o acesso à cultura, multiplicar seu alcance e promover a valorização da arte.

É um caminho sem fim, sem volta, repleto de desafios e ao menos uma certeza: quanto mais gente participando dele, melhor!

Bradesco

A Petrobras possui uma história de mais de quarenta anos acreditando de forma contínua na cultura como elemento transformador e fonte de energia para a sociedade. Apoiando projetos únicos e parcerias de longo prazo, construímos uma relação de respeito e colaboração com realizadores e iniciativas em todo o país.

O Programa Petrobras Cultural tem a brasilidade como elemento norteador, que se materializa nas temáticas, origens, curadoria, história e características de cada projeto que selecionamos. Por meio do incentivo a diversos projetos, colocamos em prática nossa crença de que a cultura é uma importante energia que transforma a sociedade. Acreditamos que, com criatividade e inspiração, promovemos crescimento e mudanças.

A Bienal de São Paulo é um dos mais prestigiosos eventos do setor no país e no mundo. O patrocínio da Petrobras reforça o papel da empresa na promoção da cultura, em suas diversas formas, consolidando a companhia como uma das maiores apoiadoras das artes no Brasil.

Eventos como a Bienal de São Paulo contribuem de forma relevante para a economia, promovendo inovação, criatividade e sustentabilidade à dinâmica econômica. A Petrobras é uma aliada do desenvolvimento do país em seus diversos setores. Investe em muitas formas de energia, e a cultura certamente é uma delas.

A Petrobras tem orgulho em apoiar a cultura brasileira em sua pluralidade de manifestações, levando a arte a todos os públicos, por todo o país. Porque cultura também é nossa energia.

Para conhecer mais sobre o Programa Petrobras Cultural, visite petrobras.com.br/cultura.

Petrobras

O Instituto Cultural Vale acredita no poder transformador da cultura. Como um dos principais apoiadores da cultura no Brasil, patrocina e impulsiona projetos que promovem conexões entre pessoas, iniciativas e territórios. Seu compromisso é tornar a cultura cada vez mais acessível e plural, ao mesmo tempo em que atua para o fortalecimento da economia criativa.

Assim, é uma alegria fazer parte da realização desta 36ª Bienal de São Paulo e de seu programa educativo, que experimenta novos formatos e abordagens. Formulado a partir das Invocações propostas pela curadoria – encontros com poesia, música, performance e debates que investigam noções de humanidade em diferentes geografias –, o programa educativo expande a comunicação da Bienal com os diferentes públicos e promove sua difusão para além do espaço e do tempo de exposição, de maneira interdisciplinar.

A cada nova edição, a Bienal nos convida a repensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado. Nesse sentido, conecta-se ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil.

Onde tem cultura, a Vale está.

Instituto Cultural Vale

Há 110 anos, o Citi faz parte da história do Brasil, acompanhando suas transformações e impulsionando seu desenvolvimento. Nossa trajetória se confunde com a do país: somos testemunhas e participantes de um Brasil que se reinventa e que avança.

Mais do que uma instituição financeira, somos uma presença que acredita na força da cultura e da educação como motores de um futuro mais inclusivo, inovador e sustentável. Investir nesses pilares é também valorizar a pluralidade, a criatividade e o talento que definem o espírito brasileiro.

É com esse compromisso que, pela primeira vez, temos orgulho de apoiar a 36ª Bienal de São Paulo – um dos mais importantes espaços de expressão artística da América Latina, onde o Brasil pensa, sente e se reinventa através da arte.

Acreditamos na arte como agente de transformação social. A criação artística tem o poder de provocar diálogos, ampliar repertórios e inspirar novas possibilidades de mundo. Ao patrocinar a Bienal, reafirmamos nosso compromisso com a cultura, com a inovação e com todos aqueles que, por meio da arte, constroem novas narrativas para o presente e o futuro.

Citi

A Vivo acredita na cultura como meio de transformação social e é uma das principais marcas apoiadoras das artes visuais, cênicas e da música no Brasil. A arte, como a tecnologia, cria conexões entre as pessoas e incentiva a busca do equilíbrio entre a história, a natureza e o tempo.

Atualmente, a Vivo é patrocinadora dos principais museus do Brasil, como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), a Pinacoteca de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS-São Paulo), o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), além do Instituto Inhotim e do Palácio das Artes, ambos em Minas Gerais, e o Museu Oscar Niemeyer, no Paraná.

O Teatro Vivo, localizado em São Paulo, conta com uma curadoria de peças contemporâneas, que promovem reflexões sobre questões atuais e valorizam a diversidade cultural. Além disso, o espaço é totalmente acessível, oferecendo recursos como tradução em libras, audiodescrição e equipe treinada, garantindo inclusão para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Em 2024, recebeu mais de 50 mil pessoas.

A marca também apoia projetos no universo da música que são genuinamente brasileiros e regionais, reforçando a proximidade com a cultura local em eventos icônicos e tradicionais do nosso país, como Festival de Parintins, Galo da Madrugada, Festival Çairé, Lollapalooza, The Town e Vivo Música.

As iniciativas da marca no âmbito cultural ampliam o acesso ao conhecimento com novas formas de vivência e aprendizado, fortalecidas nos aspectos de diversidade, sustentabilidade, inclusão e educação. Todas as informações estão reunidas e são compartilhadas nos perfis @vivo.cultura e @vivo no Instagram. Vivo

Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir processualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos.

O encontro entre arte e educação – ambas entendidas como campos do saber – permite a torção do tempo e espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e sobre ele interferir? (Re) povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas, e, assim, talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente com as questões que atravessam a existência.

É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 36ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade.

Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado a promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários, formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante, com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito, e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.

Sesc São Paulo

Omar Berrada

Taoufiq Izeddiou

Amina Agueznay

Fatima-Zahra Lakrissa

Ghassan El Hakim

Alberto Pitta

Maha

Apresentação

Fundação Bienal de São Paulo

Este livro é uma extensão das pesquisas sobre as noções de humanidade em diferentes partes do mundo, dialogando com as ideias da 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática a partir da primeira das Invocações, Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa, que aconteceu em Marrakech, em novembro de 2024.

As Invocações são encontros com apresentações de poesia, pesquisa, música e dança, que precedem a realização da mostra em São Paulo. Além de Marrakech, elas aconteceram também em três outros territórios: Guadalupe, ocorrida em dezembro de 2024, e Zanzibar e Tóquio, ocorridas em fevereiro e abril de 2025, respectivamente.

A organização desta publicação partiu da proposta de ouvir e contar histórias como uma ferramenta de aprendizado e de enfrentamento aos processos de desumanização em curso no mundo. Pensar a 36ª Bienal de São Paulo passa então pela metáfora do estuário – um dos conceitos curatoriais que norteiam o evento –, como um espaço de coexistência, de encontro. Assim, o cocurador Thiago de Paula Souza, nos instiga com uma interrogação: “E se o rio Capibaribe encontrasse a baía de Tóquio?”.

Desdobrando a provocação que surge desse estuário, e diante da multiplicidade de conteúdos aqui reunidos, ensaiamos ainda uma outra reflexão: e se diferentes investigações sobre educação relacionadas ao território brasileiro encontrassem aquelas mobilizadas em Marrakech? E se a música gnawa1 encontrasse uma roda de samba?

A halqa e a roda: ouvir e transmitir

No contexto da cultura marroquina, e do norte da África de forma mais ampla, halqa designa um espaço singular. Em uma tradução do árabe, halqa significa “círculo” e faz referência a como as pessoas se reúnem em locais como a praça Jemaa el-Fna, em Marrakech, onde há séculos acontecem encontros de música, dança e contação de histórias, promovendo entretenimento e educação no espaço público. No contexto da Invocação #1, halqa dialoga também com a noção de um estuário, um ambiente vivo que abriga o laço comunitário, a arte, a educação e a cultura, que é encontro entre o rio e o mar, que acolhe e nutre diferentes formas de vida.

Esta publicação também se apresenta como halqa ou, para conversar com a tradição afro-brasileira, uma roda. Ali onde palavras, gestos e melodias circulam e podem ser escutados, aprendidos e reproduzidos como o refrão de um samba repetido e recriado, constantemente, em diferentes linguagens, tons e sotaques. São cantos e contos que invocam cores, cheiros, paisagens e memórias.

O texto de Fatima-Zahra Lakrissa conta como, na década de 1960, Farid Belkahia, Mohamed Melehi e Mohammed Chabâa, da Escola de Belas-Artes de Casablanca, lideraram a reforma do ensino artístico no período pós-independência de Marrocos. E, ao lado de teóricos como Toni Maraini e Bert Flint, desempenharam um papel central na criação da revista Maghreb Art (1965-1969), que estabeleceu princípios metodológicos e teóricos para o resgate das artes tradicionais e populares naquele país. Por meio dessas iniciativas, eles não apenas transformaram o currículo das artes, mas também expandiram sua atuação para além do plano estético, reafirmando a conexão com a sociedade.

Essa história tem ecos nas falas de Amina Agueznay. Ela é uma das artistas da 36ª Bienal e filha de Malika Agueznay, figura proeminente do movimento em torno da Escola de Belas-Artes de Casablanca, além de reconhecida como primeira mulher a desenvolver a pintura abstrata em seu país. Amina, que há décadas cria com artesãos em diversas partes do mundo, aborda a relação entre o trabalho manual e o ato de ouvir e contar histórias, assim como o valor da escuta, da troca de aprendizados e do legado de sua mãe e de outras figuras da Escola de Casablanca, como Farid Belkahia e Mohamed Melehi, de um ponto de vista afetivo.

É também do ponto de vista do afeto e do envolvimento em práticas coletivas que fala Alberto Pitta. O artista tem um apreço especial pela poética dos tecidos e sua carreira tem mais de quatro décadas. Autor de estamparias presentes em blocos afros e afoxés do Carnaval, como o Olodum, Filhos de Gandhy e seu próprio bloco, o Cortejo Afro.

36 e Bienal de São Paulo

Aqui, conhecemos a dimensão pública de seu trabalho, que escreve a história nos tecidos para os que não sabem ler, estabelecendo um “encontro de analfabetos”, nas palavras dele, no Carnaval de Salvador.

E por falar na relação entre arte e espaço público, a pesquisadora e educadora Mirella Maria apresenta um texto sobre a obra de Maria Auxiliadora da Silva. Traçando as relações entre as transmissões de saberes de Auxiliadora, que pertenceu a uma família de artistas, em que a escuta de tradições populares, experiências pessoais e um grande domínio técnico ajudam a contar a história das feiras de Embu das Artes e da Praça da República, em São Paulo, tanto como espaço de encontro quanto ponto político significativo de resistência.

Se o título da 36ª Bienal de São Paulo é em parte inspirado no poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, seria inevitável a presença da escrita poética nesta publicação. Neste volume, temos o texto de Kenza Sefrioui contando sobre a trajetória do movimento em torno da revista marroquina Sou es, que inspirou o título da Invocação em Marrakech. Fundada em 1966 por poetas como Abdellatif Laâbi, Mostafa Nissabouri, Mohammed Khaïr-Eddine, Sou es foi o reflexo dos turbulentos anos 1960. Lançada dez anos após a independência de Marrocos, o periódico acompanhou de perto os movimentos de descolonização que estavam em curso mundo afora.

Escritora, professora e ativista do movimento negro, Miriam Alves discute o poder da poesia em processos de emancipação, em diálogo com a revista Sou es. Ela falou sobre a poesia como uma ferramenta contra a desumanização das pessoas negras no Brasil e lembrou de sua relação com os Cadernos Negros, a antologia literária anual que, desde 1978, ininterruptamente, publica poemas e contos de pessoas escritoras afrodescendentes de todo o Brasil. Além dos versos evocados nas memórias de Miriam, temos os poemas de Omar Berrada, Leila Bencharnia e Maha Elmadi, que procuram alcançar os mundos submersos que somente o silêncio da poesia penetra. Mas como ouvir o silêncio? Ghassan El Hakim se ocupa dessa questão ao escrever cartas para o avô morto muito antes de seu nascimento, desafiando os silêncios que atravessam o tempo e se mantêm vivos geração após geração.

Este volume, assim como os outros três, também contém atividades práticas desenvolvidas pela Fundação Bienal de São Paulo direcionadas a profissionais de educação de diversos contextos, que buscam aproximar o universo da arte contemporânea da educação formal e não formal. O convite para que você entre neste livro-roda também vem de versos de Conceição Evaristo, em seu poema “A roda dos não ausentes”:2

Traço então a nossa roda gira-gira em que os de ontem, os de hoje, e os de amanhã se reconhecem nos pedaços uns dos outros. Inteiros.

1 Gnawa é um tradicional gênero de música predominante no Marrocos, mas com presença também na Argélia, Egito e Tunísia, que alia ritmos e cantos espirituais, geralmente relacionado a rituais de cura e de celebrações nomeadas de Lilas. Seus primeiros registros datam do século 16 e, atualmente, carrega influências de diferentes gêneros musicais, como o reggae, o blues, o hip-hop e o jazz, este também foi influenciado pelo estilo sonoro da música gnawa entre os anos de 1960 e 1970. Em 2019, gnawa foi reconhecida como patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco. Esse reconhecimento destaca a importância desse gênero musical como elemento essencial do patrimônio cultural marroquino.

2 Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p.12.

Como ventilar em um mundo hermeticamente fechado

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung

Reprodução da fala de abertura realizada no dia 14 de novembro de 2024.

Para esta primeira Invocação em Marrakech, intitulada Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa, para a 36ª edição da Bienal de São Paulo, que será realizada em São Paulo, de setembro de 2025 a janeiro de 2026, gostaria de convocar o espírito do lendário poeta indonésio Raden Mas Willibrordus Surendra Broto, também conhecido como Rendra.

Em 1960, Rendra escreveu um poema que pode ser lido como o hino dos séculos 20 e 21, que recebeu o título cativante “Sebuah Dunia Yang Marah” [Um mundo enraivecido].

Gostaria de ler em voz alta o poema, que foi um epítome do seu tempo e é também do nosso contemporâneo, enquanto ouvimos uma canção intitulada “You Ain’t Gonna Know Me (‘Cos You Think You Know Me)” [Você não vai me conhecer (porque você pensa que me conhece)], composta por outro artista lendário que gostaria de convocar para estar conosco nesta Invocação, Mongezi Feza, da The Brotherhood of Breath. Vamos ouvir uma interpretação do integrante da banda de Feza, Louis Moholo.1

Sebuah Dunia Yang Marah [Um mundo enraivecido]

Depois de duas guerras mundiais o ruído de armas e munições no ar, como o mundo se apresenta agora? Depois de tantos discursos e conferências, do estabelecimento de belas instituições apenas para discutir através de mil slogans e do apunhalar uns aos outros pelas costas, como o mundo respira agora?

Aqui, nesta parte da Terra há rostos feridos na noite escura do espírito. Não precisamos de um mapa para mostrar onde está nosso povo.

Este é um mundo enraivecido. Cheio de olhos brilhantes e perversos, rostos cruéis e sem esperança, e mãos trêmulas agarradas a uma vida vazia. Em que casas, homens e lixo são todos um só. Cheio de amargura impotente.

Guerras mundiais e rebelião não mudaram a nossa terra cansada Assassinato após assassinato ódio após ódio não deram origem a nada além de pecado, dúvida, e descrença.

Não deram origem a nada exceto ao sacrifício dos impotentes. Os rostos que se interrogam continuamente!

Levados para um mundo de confusão e mentiras estão sempre sozinhos.

Crescem do pecado. Dão à luz ao pecado.

Nosso mundo está sempre ferido. Os pobres caminham com a sua fome.

São como finas varas mortas.

Lamentam o seu nascimento mas se recusam a morrer.

São estéreis. Não produzem nada.

Agarram-se à terra –pois essa é a sua mãe.

Os outros são seus inimigos.

Em nosso mundo esfarrapado os pobres arrastam suas vidas sangrentas sofrendo o pecado inconscientemente. Involuntariamente.

Deus está no meio deles

Está ferido com eles.

E o mundo O rejeita.

Deus chora com eles.

Mas eles não O ouvem.

Deus está triste e sofre, fustigado por pés enraivecidos.

Fustigado pela amargura

E pelo medo incessante.

Pai!

Evitar a morte é o principal problema dessa gente e não o bem-estar ou o pecado.

Como é que eles podem entender a voz do céu se nunca ouviram a voz da vida?

Pai!

Enquanto o mundo só entende armas e engano

estenda as Tuas mãos amorosas

o Teu coração amoroso ferido.

As Tuas feridas! Pai, as Tuas feridas!

Só através das feridas

O mundo pode entender o amor.

Deus chora e compreende.

Deus chora e compreende continuamente.

Ele é sempre apunhalado. Sempre traído.

Raden Mas Willibrordus Surendra Broto; W.S. Rendra, 19602

Tomada 1

Pungente e profundo, o poema foi escrito há mais de 64 anos. Nele, Rendra lamenta, com total espanto, o estado inescrutável do mundo de hoje. O termo “hoje”, em sua relatividade e elasticidade infinita, é aquele dia, aquela semana, aquele mês, aquele momento em 1960 em que o poema foi escrito, e aquele ponto no tempo hoje, em que se nota que aquele hoje de 1960 poderia facilmente substituir o hoje de agora e vice-versa.

Nesse poema seminal, Rendra chama a atenção para a hipocrisia e a insensatez dos discursos, das conferências, das instituições que falam da boca para fora, enquanto o mundo se desmorona sob a ganância, a traição, a megalomania, a cleptocracia, a guerra, os terrorismos apoiados pelo Estado, os genocídios, as catástrofes ambientais e, de forma mais cruel, as violências da inatividade, da passividade e do barulho ensurdecedor dos silêncios e do silenciamento. Escreve sobre o desespero, a crueldade e as vidas vazias. De amarguras impotentes. Sobre a desolação na face da terra habitada pela desesperança, pelo ódio, pelo assassínio. De um mundo assombrado pela mentira, pela confusão e, à falta de melhor termo, pelo pecado. E, a certa altura, ele desmorona, desmonta e pergunta em um estado de desolação –“como o mundo respira agora?”.

O fato de essa pergunta nos forçar a lembrar de todos os milhares e milhões de seres humanos cuja respiração lhes foi roubada em Camarões, Congo, México, Palestina, Rohingya, Sudão, Síria, Iêmen, até mesmo nossos irmãos e irmãs daqui de Marrakech, cujos nomes não podemos pronunciar, e todos os cidadãos do mundo que podem ou não ter gritado “não consigo respirar” não é uma questão de casualidade, nem uma

nota de rodapé em uma narrativa. Em vez disso, o poema de Rendra ressoa conosco de forma tão consequente hoje porque espelha uma humanidade em um mundo que luta sob o peso do poder mal utilizado, da branquitude, do patriarcado, da misoginia, do racismo, da colonialidade e do teodespotismo. É um poema que ressoa o que o poeta haitiano Frankétienne chama de “Caofonias do mundo”. Um mundo despojado de sua humanidade. Um mundo no qual os animais passaram a ter mais decência e dignidade do que os humanos. Um mundo que, como James Baldwin disse certa vez: “é mantido unido pelo amor e pela paixão de muito poucas pessoas”. Como um mundo assim realmente respira?

Então, “como o mundo respira agora” quando, de acordo com visiono umanity.org,3 apenas nos primeiros quatro meses de 2024, 47 mil pessoas perderam a vida em conflitos em todo o mundo e, se isso continuasse no mesmo ritmo, 2024 seria o ano com o maior número de mortes em conflitos desde o genocídio em Ruanda, em 1994. “Como o mundo respira agora”, quando o impacto econômico global da violência em 2023 foi de 19,1 trilhões de dólares ou 2380 dólares por pessoa? “Como o mundo respira agora”, quando de acordo com o Índice Global de Paz há 56 conflitos em todo o mundo, o maior número desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com 92 países envolvidos em conflitos fora de suas próprias fronteiras, o que é o maior número desde a criação do GPI? “Como o mundo respira agora” em um mundo no qual, de acordo com dados recentes do ACNUR, 130,8 milhões de pessoas foram deslocadas à força e estão sem pátria?4

“Como o mundo respira agora” em uma época em que demagogos e protofascistas de todo o mundo vencem eleições democráticas pregando sermões sobre a construção de muros entre países, para manter afastados determinados grupos de pessoas que eles consideram estupradores ou indignos de serem suficientemente humanos? “Como o mundo respira agora” em uma época em que líderes despóticos e teocráticos travam guerras contra povos vizinhos em alguns dos cenários de guerra mais desumanos, nos quais as vidas de crianças, mulheres, jornalistas, médicos e trabalhadores humanitários valem quase nada? “Como o mundo respira agora” quando pessoas do mundo todo são perseguidas por sua orientação sexual, cor da pele, religião ou não fé? “Como o mundo respira agora” em uma época em que o sistema prisional é um modelo econômico, as crianças são iscas, os cidadãos são peões em jogos de xadrez geopolíticos e os seres humanos são apenas mercadorias em um estabelecimento econômico neoliberal?

Como o mundo respira agora?

Como o mundo poderia ao menos respirar se, em uma tentativa de satisfazer nossos desejos de riqueza, energia e conforto, destruímos suas veias e artérias; colhemos seus recursos; desumanizamos outros seres humanos e mercantilizamos tudo o que aparece em nosso caminho? Como poderia pensar em respirar se os mais fracos em suas fileiras mal conseguem se alimentar, mas nós podemos dar-nos ao luxo de votar em milionários que querem enviar pessoas à Lua para passar férias...

Como disse Gil Scott-Heron:

Um rato mordeu minha irmã Nell

Com o branco lá na lua

Seu rosto e braços começaram a inchar

E o branco está na lua

Não posso pagar os boletos médicos

Mas o branco está na lua

Daqui a dez anos, ainda estarei pagando

Enquanto o branco está na lua5

Que possamos, nesta Invocação sobre “escuta profunda e recepção ativa”, testemunhar, tornarmo-nos catalisadores e recipientes de sensibilidades, possibilidades, espíritos e conhecimentos de causas que tocam os nervos de nossos tempos. Que possamos aprender ou nos esforçarmos em direção a uma conjugação da humanidade, no reconhecimento de que não somos ilhas. Que nossa humanidade só é possível se reconhecermos e respeitarmos a humanidade dos outros, e que existimos porque os outros existem – tanto os vivos quanto os não vivos.

Tomada 2

Em 1964, um grupo de jovens sul-africanos – Louis Moholo, Chris McGregor, Dudu Pukwana, Mongezi Feza, Johnny Dyani, Nikele Moyake e Maxine McGregor – deixou a África do Sul via Moçambique para a França, em uma constelação conhecida como The Blue Notes, para o festival de jazz Juan-les-Pins. Alguns deles mal eram adultos (Johnny Dyani e Mongezi Feza tinham apenas dezoito anos!) e era o ano em que onze líderes do ANC, inclusive Mandela, foram condenados à prisão perpétua, de modo que a única chance que eles viam como possibilidade de continuar respirando era o exílio.

The Brotherhood of Breath nasceu do Blue Notes, que

foi o resultado de três grupos: O septeto de Chris McGregor; o Jazz Giants, com Dudu Pukwana e Nick Moyake; e o Jazz Ambassadors, com Louis Moholo. Sair da África do Sul era uma coisa, fazer sucesso na Europa era outra, mas graças a Dollar Brand, mais tarde conhecido como Abdullah Ibrahim, eles conseguiram encontrar uma saída inicial. Via Zurique, eles foram para Londres, ao Ronnie Scott’s Club e, mais tarde, para o Copenhagen Montmartre Club. Pode soar como uma hipérbole dizer que, com sua entrada na Europa em meados da década de 1960, eles impactaram radicalmente a música europeia em geral, e o que se poderia chamar de jazz, em particular.

Esse grupo de jovens, que teve de deixar seu país porque não conseguia respirar no espartilho apertado e racista ao extremo do Apartheid, encontrou um lar na música durante o exílio.

Mas o exílio é um poço sem fundo, uma casa sem alicerces, uma árvore sem raízes, um espaço no qual a pessoa perde a si mesma, sua identidade e, em algum momento, sua humanidade. Como respirar em um mundo que está exilado de si mesmo e em uma humanidade que não entende mais o que significa ser humano?

Como nos engajamos na rearticulação e na reconjugação da humanidade em oposição a uma noção violenta de humanidade imposta a nós? Parece-me que esse também pode ter sido o pensamento do jovem trompetista de jazz e flautista sul-africano Mongezi Feza, que morreu com apenas trinta anos, em 1975, quando estava compondo a incrível canção sobre incertezas “You Ain’t Gonna Know Me (‘Cos You Think You Know Me)”.

1 A música pode ser encontrada no YouTube em: www.youtube.com/ watch?v=CJlP7nX_qtY. Acesso em: 2024.

2 Traduzido a partir da versão em inglês de Harry Aveling; cortesia da Lontar Foundation.

3 Ver: www.visionofhumanity.org/highest-number-of-countriesengaged-in-conflict-since-world-war-ii. Acesso em: 2024.

4 Ver: reporting.unhcr.org. Acesso em: 2024.

5 “Whitey on the Moon” é um poema falado de Gil Scott-Heron, lançado em seu álbum de estreia Small Talk at 125th and Lenox, 1970.

A sacralidade de um momento

Alya Sebti

Écoute plus souvent

Les Choses que les Êtres

La Voix du Feu s’entend,

Entends la Voix de l’Eau.

Ecoute dans le Vent

Le Buisson en sanglots,

C’est le Sou e des Ancêtres.

[Escute com mais frequência

As Coisas do que os Seres

A Voz do Fogo se ouve,

Escute a Voz da Água.

Escute no Vento

O Arbusto em soluços,

É o Sopro dos Ancestrais.]

“Souffles”, de Birago Diop

Qual é a sensação quando todas as células do corpo ouvem profundamente?

O que acontece quando os corpos se lembram coletivamente; quando o ritmo, as respirações e os silêncios preenchem os interstícios das palavras esquecidas?

Essas foram algumas das perguntas que guiaram nosso encontro em Marrakech, no Marrocos, sob o título Sou es: Sobre escuta profunda e recepção ativa. Se a humanidade pode ser uma prática, um verbo, vamos nos lembrar da prática da escuta profunda, que tem suas raízes ancestrais em Marrakech: a cultura gnawa, a tradição da halqa1 na praça Jemaa el-Fna, os rituais sufis e sua poesia. Durante esses dias, nos encontramos imersos em um profundo processo de escuta no qual cada som, gesto e silêncio se tornaram um portador de significado e memória.

Que lembranças evocamos quando recebemos o ritmo do instrumento musical guembri; a presença do mestre gnawa Abdellah El Gourd e seus silêncios carregados; os tremores de Ghassan El Hakim – um curandeiro prestes a ser curado – lendo suas cartas para o avô que jamais conheceu; as frequências profundas da instalação sonora de Leila Bencharnia; os gritos dos poemas de Abdellatif Laâbi lidos por Kenza Sefrioui; ou os ritmos em loop das abelhas chamadas por Simnikiwe Buhlungu? Ouvir é lembrar.

Ao confrontarmos as mitologias de nossa infância e sua mistura de empolgação e medo, como reagimos à leitura performática de Laila Hida sobre a ficção e a representação das origens, acompanhada pela composição musical de Mourad Belouadi, ou à conversa imaginada por Fatima-Zahra Lakrissa?

O que acontece quando permitimos que nossos corpos sejam carregados pelo canto unificado de um ritual hadra sufi cantado por mães, uma cura por meio do transe que atravessa geografias?

Essas não são meras lembranças. São ecos que transcendem o tempo e o espaço, ressoando de maneiras que penetram com profundidade nas camadas de mapas ancestrais esquecidos. São momentos de escuta que nos conectam a histórias mais antigas do que nossa imaginação. Essas ressonâncias carregam o potencial de futuros que ainda estão por vir.

Em Dar Bellarj, durante a reunião final de nosso programa de dois dias, houve um momento em que a energia dessas Invocações se tornou palpável. O mesmo grupo que havia se reunido para as sessões de escuta, discussões, leituras de poemas, apresentações, refeições, lágrimas e risadas estava agora no pátio do Dar, sob uma lua cheia. O cheiro de oud enchia o ar. E os cânticos começaram.

Sob a liderança de Lalla Khala, mestre de canto que há anos vinha treinando as mães do Les Mamans Douées,2 os cantos rítmicos aumentaram de intensidade. Em determinado momento, uma das mulheres do coletivo se sentiu chamada a se levantar e começou a dançar. Lentamente no início, depois com confiança crescente, ela entrou em transe. À medida que os cânticos se intensificavam, a mulher se movia livremente, levada pelo ritmo e pelas vozes do grupo. Ela sabia que não estava sozinha. Sabia que podia confiar no coletivo e que a união deles tinha o poder de guiá-la em uma jornada de cura. Ela sabia que receberia apoio durante todo o processo. A energia mudou de forma repentina quando uma única voz se ergueu no meio do cântico. Outras vozes se juntaram e o coletivo encerrou o momento cantando uma música que transmitia alegria intensa e esperança. Essa foi a segunda vez que uma invocação desse tipo ocorreu durante nosso tempo juntos. A primeira vez havia sido na noite anterior, quando Maalem El Gourd nos abençoou com sua presença. Naquela noite, mal conseguia articular o significado do momento; eu estava muito sobrecarregada pela energia e pelas lágrimas que escorreram ao sentir o poder de um abraço coletivo. Na segunda noite, entretanto, consegui encontrar palavras para o que havia acontecido:

Isso é reconhecer a sacralidade de um momento e compartilhá-lo.

Porque havia confiança.

Porque havia esperança.

Porque havia alegria.

O que aconteceu naquele momento não foi apenas um ritual ou uma apresentação, mas o surgimento de um espaço de vulnerabilidade, comunhão, reconhecimento e generosidade. Aqui, o ritual hadra foi realizado por mães cujas vozes unidas teceram uma tapeçaria de confiança e energia capaz de manter e curar. O ato de entrar em transe – de se render ao ritmo, ao espírito e à energia coletiva – foi um ato de fé no coletivo, no poder compartilhado do grupo para curar, apoiar e carregar todos durante a jornada.

É isso que quero dizer com recepção ativa: deixar o corpo ouvir, deixá-lo cair sabendo que será carregado. É um ato profundo de entrega a algo maior do que o próprio ser. É o ato de confiança, amor e abertura, de tornar o corpo consciente e entrar em comunhão com o coletivo.

Ao refletir sobre essa experiência, me pego pensando em uma das figuras conceituais centrais da Bienal, o Fragmento II, no qual

Leo Asemota pergunta: “Quando você se olha no espelho, quem você vê?” Eu gostaria de modificar um pouco essa pergunta para: Quem você ouve? No Dar Bellarj, o canto invocou não apenas as vozes dos presentes, mas também os espíritos e ancestrais que vieram antes de nós e os que ainda estão por vir. Essa é a conexão vertical – o alinhamento com nossas genealogias e linhagens, uma rede de existência que se estende pelo tempo e pelo espaço. A conexão horizontal também presente é a sensação de ser um com o coletivo em um espaço comunitário de escuta e confiança. Nesse momento no Dar Bellarj, nossos corpos alinharam-se ritmicamente uns com os outros, conectados por uma energia comum.

Os cânticos eram um chamado aos espíritos – os que vieram antes de nós – e uma recepção aos que viriam depois. As mães estavam canalizando essas energias, oferecendo-nos uma maneira de nos sentirmos amparados e conectados através do tempo.

Naquele instante, lembrei-me das palavras do poeta René Depestre – outra figura do conceito da Bienal:

Ma joie est de savoir que tu es moi et que moi je suis fortement toi.

[Minha alegria é saber que você é eu e que eu sou fortemente você].3

Ao invocarmos e recebermos as energias da noite, fomos lembrados do poder de ouvir – não apenas com nossos ouvidos, mas também com nossos corpos. Fomos carregados e recebemos a energia necessária para continuar; recebemos a bênção de canalizar as vozes que nos acompanharam naquela noite. Vozes de antepassados, espíritos, mães e uns dos outros.

Que possamos carregar essas vozes ao embarcarmos em nossa jornada compartilhada rumo à Bienal de São Paulo e além. Que haja confiança, que haja esperança, que haja alegria.

1 Halqa: na intersecção entre contação de histórias e ágora.

2 O grupo surgiu em 2008, por iniciativa de Maha Elmadi, diretora da Fondation Dar Bellarj. A ideia do grupo surgiu para combater os preconceitos que reduzem as mulheres aos papéis de mães ou esposas. A iniciativa também se inspirou nas Caravanes Civiques, de Fatima Mernissi, uma rede de artistas, intelectuais e ativistas marroquinas que lutam pela educação das mulheres rurais do Marrocos. De acordo com o grupo de mulheres Mamans Douées, a “Mãe” é um ponto central na transmissão de valores. Como guardiã da memória coletiva, ela preenche a lacuna entre as gerações e une a família “social”. Nos últimos dez anos, suas ações se desenvolveram em Dar Bellarj, por meio de oficinas criativas, projetos de colaboração com artistas, canções sufis, teatro, poesia e artesanato.

3 René Depestre, En état de poésie (Petite sirène), Les éditeurs français réunis, Éd. numérique, 2012, p.28.

Apuleio Souffles, cinquenta anos depois…

Em março de 1966, surgia em Rabat a primeira edição de Sou es. Saudada como uma “dinamite”, a revista mudou as diretrizes do mundo literário, artístico e político do Marrocos e muito além dele. E continua a nos interpelar.

Um impulso brilhante. Essa é a imagem que se impõe quando se pensa na trajetória da revista Sou es. Em 1966, alguns poetas, principalmente francófonos, entre os quais Abdellatif Laâbi, Mostafa Nissabouri, Mohammed Khaïr-Eddine, lançaram uma revista trimestral para publicar seus trabalhos inovadores. Em janeiro de 1972, os principais representantes da revista foram presos, torturados, julgados em processos coletivos em 1973 e 1977, condenados a longas penas de prisão por atentado contra a segurança do Estado. Ao longo de sete anos, esse projeto inicialmente poético e artístico se desenvolveu e cumpriu seu potencial subversivo, politizando-se de modo mais aberto e se transformando em uma tribuna para o nascente movimento marxista-leninista marroquino. Mesmo com as evoluções entre os primeiros números e aqueles cujo tom era radicalmente de protesto, especialmente em sua versão árabe Anfas, e mesmo com a renovação da equipe durante a reviravolta de 1969, Sou es se manteve coerente e fiel a seus princípios. Ela sempre foi uma tribuna de oposição ao projeto levado a cabo pelo poder autoritário e tradicionalista da época e formulou seu contraprojeto progressista e modernista de um modo que propunha uma dinâmica de esperança. A esperança de mudar o homem, de mudar o mundo. Primeiro, infundindo valores modernos na sociedade por meio da arte e da cultura, a fim de reformá-la em profundidade; depois, pela Revolução com a qual os ativistas das organizações sonhavam, como o partido Ila al-Amam e o 23 Mars. Na leitura atual de Sou es, o que chama a atenção é a força com que os seus autores utilizaram a cultura como motor de questionamento e de desafio, interrogando os fundamentos da política e orientando-a para o humanismo e a modernidade.

Cultura, uma força motriz

Sou es é o espelho daqueles efervescentes anos 1960. Lançada dez anos após a independência do Marrocos, a publicação acompanhou de perto os movimentos de descolonização que ainda estavam em curso no mundo. A Palestina e o Vietnã são os emblemas da rejeição de qualquer forma de imperialismo, quer se trate do neocolonialismo ou do sionismo. Sou es sonhou com o que viu em Che Guevara, na Revolução Cultural Chinesa, e em Maio de 1968, e foi atravessada por esses ventos de liberdade e desejos de abertura. Ela ecoou a ira dessa juventude traumatizada tanto pela repressão no Marrocos de qualquer desejo de protesto (do

esmagamento das manifestações estudantis de março de 1965 ao assassinato de Mehdi Ben Barka) como pela derrota de junho de 1967, uma juventude radicalizada que rejeitava a cultura burguesa e enxergava uma saída no caminho revolucionário proposto pelo marxismo-leninismo. É certo que o tom dogmático que suas páginas assumiram nas últimas edições foi criticado, mas Sou es veiculou, em uma retórica de manifesto e em um tom quase messiânico, um discurso mobilizador que fez sonhar essa geração politizada e ávida por debate, e contribuiu muito para a sua politização. Foi nessa última fórmula que suas edições chegaram a cinco mil exemplares impressos em vez dos mil de antes, e muitos desses jovens militantes depois se tornaram a alma da sociedade civil, trabalhando no campo dos direitos humanos e da cultura. Com exceção dos erros de avaliação da situação política, suas análises ainda são relevantes hoje em dia: os autores perceberam claramente os vícios do subdesenvolvimento, no que diz respeito à miséria, ao analfabetismo, à dependência das potências estrangeiras e aos bloqueios da iniciativa econômica e política. Eles compreenderam a reinvenção das tradições para apoiar um poder autoritário, preocuparam-se com as desastrosas políticas de ensino e com a ausência de uma política cultural...

© Youssef Boumbarek/

Fundação Bienal de São Paulo

Descolonização e abertura

Sou es se propôs a concluir a independência do Marrocos por meio da descolonização de sua cultura. Após o trauma do domínio colonial, o objetivo era restaurar sua dignidade criativa. Em “Le gâchis” [O desperdício], artigo essencial publicado na edição especial dedicada às artes plásticas, (Sou es, n. 7-8), Abdellatif Laâbi faz uma análise notável da ciência colonial; ele recorda que essa massa documental, destinada a apoiar a empreitada da dominação, constituiu o inventário de um patrimônio ameaçado pelas profundas transformações da sociedade durante o século 20, mas que é necessário rever completamente as suas análises. No entanto, Sou es não idealizava o período pré-colonial: ela defendia a criatividade e se interessava pelo que era moderno. Disso resulta sua firme condenação de qualquer forma de folclorização da cultura, produzindo estereótipos prontos a serem consumidos pelos turistas. Escritores e artistas releram então a cultura popular e encontraram na vitalidade da tradição oral ou no poder abstrato das artes tradicionais elementos que ancoravam suas preocupações contemporâneas no patrimônio. Da mesma forma, a revista reabilitou Driss Chraïbi, desonrado desde o escândalo causado pela publicação de Le Passé simple, em 1954, em meio às lutas pela independência. A tradição deve, de fato, ser espanada dos seus arcaísmos – o que ia contra o projeto oficial, que na época se apoiava justamente na revalorização desses arcaísmos para retradicionalizar a sociedade. Sou es aspirava contribuir para a fundação de uma cultura popular moderna, dirigindo-se a um povo educado e consciente, gozando de plena cidadania. Um dos aspectos mais importantes do seu projeto foi o reconhecimento implícito da herança amazigh e judaica, então escondida da história oficial do Marrocos. Sou es insistia no aspecto plural da cultura marroquina e se recusava a permitir que ela fosse assimilada apenas ao arabismo e ao islamismo. Ela abriu caminho para importantes reivindicações da sociedade civil, que resultaram, muito mais tarde, na abertura do debate público e no reconhecimento dessas componentes pela Constituição de 2011. Da mesma forma, a revista teve uma abordagem aberta à identidade. Para essa equipe, revalorizar a cultura nacional não tem nada a ver com o culturalismo tacanho ou com um recuo identitário. Sou es sonha com uma cultura aberta, atenta aos outros e solidária. A riqueza das assinaturas vindas da Argélia, da Tunísia, de Moçambique, do Haiti, da Argentina etc., que ela atraiu para suas páginas, demonstra sua abertura ao mundo e a força das projeções que ela tem em relação às causas e aos valores que compartilha. Ao se impor como um importante centro cultural do Marrocos, também deixou claro o

equilíbrio de poder e o fato de que a cultura ocidental é muitas vezes considerada a universal.

Um polo radiante

Mas se Sou es continua sendo uma referência, é, sem dúvida, em primeiro lugar pela força do movimento cultural e intelectual que se cristalizou em torno dela. Ela era um verdadeiro laboratório de escrita, que ajudou a dar o devido valor ao poema em prosa e em verso livre do Marrocos e do Magrebe. Subjugados pelo poder poético de Aimé Césaire, Frantz Fanon e Kateb Yacine, esses escritores defenderam uma escrita que fosse uma experiência orgânica sísmica capaz de liberar uma autenticidade oprimida e recalcada, de romper com o lamento sábio ou com os cahiers de doléances [cadernos de reclamações] que enxergavam nas obras da geração anterior. Lemos sempre, com renovado prazer, os textos de Abdellatif Laâbi, Mostafa Nissabouri, Mohammed Khaïr-Eddine, Mohamed Loakira, Ahmed Bouanani, Tahar Ben Jelloun, Mohammed Berrada, Mohammed Zafzaf, Driss El Khouri, para citar apenas alguns... No plano literário, não houve a partir de então um momento coletivo de igual intensidade.

A força de Sou es vem também de sua experiência transdisciplinar, com sua abertura ao cinema, ao teatro, às artes plásticas, à dança etc., com a formidável cumplicidade de artistas de todas as disciplinas. Isso permitiu uma reflexão transversal sobre problemáticas comuns: o elitismo dos circuitos culturais (galerias de arte, cineclubes), a forma de alcançar diferentes públicos, o papel dos institutos culturais estrangeiros e os riscos de aculturação, a falta de visão de uma política cultural sustentável, a arte na rua etc. Suas propostas, em particular a exposição sobre a praça Jemaa el-Fna, em Marrakech, em 1969, ou a criação, na sequência da revista, das edições Atlantes, fi zeram história.

Como tribuna, Sou es se distinguiu por sua vivacidade, sua liberdade de tom e seu humor. Ela continua sendo um ideal de liberdade de expressão e, se já não existe uma revista cultural dessa magnitude hoje, constituiu um modelo para a jovem imprensa independente que existiu brevemente no Marrocos na virada do milênio, e cuja ausência é agora gritante. Finalmente, Sou es contribuiu amplamente para o estabelecimento de uma nova cultura de esquerda. A sociedade civil, cujos militantes são, em sua maioria, ex-alunos dessa aventura, continua ligada aos valores do progresso, da democracia, da liberdade, do respeito, do humanismo, dos direitos humanos, da justiça social... E fez isso com uma coragem admirável, uma vez que muitos dos seus autores,

Abraham Serfaty, Abdellatif Laâbi, Abdelhamid Amine, Jamal Bellakhdar e tantos jovens militantes, sofreram pesadas repressões (tortura, longos anos de prisão ou exílio) devido ao seu comprometimento. O que teríamos sido hoje se essa experiência não tivesse sido interrompida de forma abrupta? Interrompida, mas não partida...

Sobre Graphos e Ofó

Texto elaborado a partir de uma conversa entre a equipe da Fundação Bienal e a escritora em 19 de novembro de 2024.

Eu sempre falo que comecei a escrever quase como todas as crianças e adolescentes, sempre colocando no papel um poema, tendo um diário. Eu tinha uma coleção de caderninhos, entre meus quinze e vinte anos, qualquer felicidade, contrariedade, eu escrevia, inventava muito também.

Acho que são bases. Depois, a gente vai entendendo que isso é escrever, que isso é criação, que não necessariamente você precisa escrever de uma realidade visível, você pode imaginar e escrever, mas até eu chegar à maturidade desse pensamento, levou bastante tempo. Deixei de escrever prosa, lá com meus quinze anos, mais ou menos, por essa minha técnica de colocar no papel coisas que não aconteciam. E assim foi, caderninhos e mais caderninhos, madrugadas enchendo papel e tal. Então, chega um momento que você começa a escrever e quer mostrar para as pessoas. Nesse momento, eu já estava na faculdade de ciências sociais. Aí, eu mostrava, todo o mundo se reunia na sexta-feira para tocar violão, comer um lanche. Era nossa sexta-feira de ficar até tarde nos barzinhos perto da faculdade. E eu vivia lendo meus poemas, né?

“Minha carne queimou na panela e tal”, essas coisas assim.

“A minha alma penou no porão de algum navio, raspo com palha de alho o barro branco…” e por aí afora. Foi meio leve, essas coisas. Pueris.

Era tudo pueril demais.

O meu poema, segundo alguns, tinha muita pele. Então, não era poema, porque era muito pelancudo. Tinha pele.

Aí eu falei: “Tá legal”. As minhas amigas disseram assim: “Olha, esquece esse negócio de caderno, nós vamos levar você para o lançamento de um livro de poemas”. Ficava ali no centro da cidade, perto da Praça da República, em São Paulo.

Quando eu cheguei, estava lindo! Tinha mais de cem negros declamando poemas e tocando...

Tocavam atabaque, davam uma pausa, um entrava declamando e então voltava, bate o atabaque, outro voltava a declamar e eu nunca esqueço a música que tocava:

Nesta roda de poema, quero ver quem vai entrar. Roda poema, aêê. Roda poema. Nessa roda de poema quero ver quem vai entrar.1

[Miriam declama o poema]

Mesmo que voltem as costas

Às minhas palavras de fogo

Não pararei de gritar

Não pararei

Não pararei de gritar

Senhores

Eu fui enviado ao mundo

Para protestar

Mentiras ouropéis nada Nada me fará calar2

Esse poema tem quilômetros, tem duas páginas. É do Carlos Assumpção,3 que eu sempre cito. Chama “Protesto”. E é um poema muito declamado nas rodas negras desde 1954. Ele está vivo, o poeta ainda está vivo, viu?! E o poema foi publicado só na década de 1980. Os escritores negros são acompanhados por esse poema. Desde a Frente Negra,4 o Quilombhoje, 5 a época dos saraus, dos slams. E então eu falei: “É aqui que eu fico”. Aqui tem pele, é a minha. Essa é a minha pele. Fiquei e onde eles iam, eu ia. O Quilombhoje da época, que era Oswaldo de Camargo,6 Paulo Colina7 e Abelardo Rodrigues.8

No ano seguinte, lembra aquele livrinho que eu saía com ele e ninguém publicava? Eu juntei o meu 13º salário e fiz os Meus momentos de busca. Meu primeiro livro independente foi o primeiro de uma série de treze até agora. Eu estava fazendo as contas, eu tenho 42 anos de literatura, 44 participações em antologias nacionais e internacionais, incluindo Cadernos Negros, e treze livros individuais. Quarenta e dois mais treze dá 55 publicações. Quando fiz quarenta anos de literatura, foi um ano bem legal, porque participei de muitos eventos e viajei bastante e tal. E, para esses 42 anos de literatura, a editora

Fósforo me propôs e publicou Poemas reunidos. Esse livro tem mais de trezentos poemas que eu publiquei.

Setenta e dois anos, 42 anos de carreira, com 55 livros publicados, acho que eu não fiz mais nada na minha vida a não ser escrever, mas fiz outras coisas também.

Sempre me entendi como escritora, mas aquele desejo que você tem... E fica escondido quando alguém pergunta o que você quer ser quando crescer. Lá na minha época, a gente dizia professora. Se eu dissesse escritora, acho que todo o mundo gargalharia ao redor.

Porque a escrita literária, até hoje, é colocada num lugar inacessível, que só alguns têm a chave do segredo de escrever. As musas da literatura só escolhem alguns para que eles tenham essa chave. Essa é a ideia de um lugar impenetrável.

Olha, eu gosto muito de escrever, sabe? Porque, nesses 42 anos, eu descobri coisas importantíssimas na escrita. Se elas estavam meio dormindo em mim, elas foram se revelando a cada ano, a cada livro.

A cada livro, principalmente romance, que eu escrevo, sou outra pessoa. Eu fui lá tocar em lugares meus que talvez eu nunca tocaria se não escrevesse. E, assim, tocar em lugares do outro também.

O imaginário sobre a pessoa negra no Brasil

Quando você fala sobre a infância de uma pessoa negra, a pessoa já relaciona isso com a fome, e não que eu brinquei de roda, que eu brinquei no jardim, que eu balancei e andei de perna de pau, sabe? Não, vão logo fazer uma correlação com fome, e que eu sou uma sobrevivente de fenômenos sociais de uma sociedade mal dividida.

Veja bem, eu falei de mudar o imaginário, mas a literatura não vai fazer isso sozinha. O escritor não vai fazer isso sozinho, mas nós, escritores negros, estamos no coletivo forçando para que essas narrativas sejam mudadas. A forma que a academia, a universidade, vê nossos textos, com acadêmicos negros lá dentro, é outra. Já está tendo uma pequena reviravolta, não é grande coisa, porque eu quero muito. Mas, atualmente, não falo isso mais sozinha.

Principalmente a parte da história, a história do nascimento dessa nação. Na parte que me toca, eu lembro das gravuras do Debret e do Rugendas, um negro batendo no outro negro, ou um negro com uma canga no pescoço e sendo arrastado, e a legenda: “Os senhores de escravos castigavam os escravos fugidos e indóceis…”.

Nesse momento, as crianças negras na escola passam a sofrer bullying. [...] A escola ainda mostra assim, o negro apanhando, e os brancos eram os senhores e tinham o direito de fazer isso.

A literatura não faz tudo, mas já faz uma pequena parte [...]. Então, cada um com a sua arma, como eu digo. Para mim, a poesia e a escrita têm vários vieses. Como escritores negros, com diversidades, a gente pega um desses vieses, e é isso que fica bonito.

Cadernos Negros

Cadernos Negros teve a primeira publicação em 1978. Eu não estava em 1978. Todo o mundo pensa que eu inventei, não tenho nada a ver com isso, cheguei no quinto ano dos Cadernos Negros, e era um livro deste tamanhozinho [indica que era pequeno com as mãos] em papel jornal.

Os Cadernos Negros surgiram em 1978, com outros movimentos sociais que estavam fomentando no Brasil, exatamente no momento da abertura e o fim da ditadura civil-militar.

Nesse mesmo momento, estava acontecendo o Movimento Negro Unificado,9 e dentro desse

movimento surgiu [...] o Movimento de Literatura Negra Brasileira, que estava no mesmo lugar, na rua

Maria José [bairro do Bixiga, em São Paulo]. E havia vários intelectuais negros na época. Naquele espaço que começou com a intenção de teatro junto a Thereza Santos.10 Só que, com a entrada de outras pessoas, a coisa do teatro só foi um catalisador, começaram a se discutir outras coisas, o preconceito político etc.

A gente recebia do pessoal negro que tinha sido exilado, ou se autoexilado em Angola, e outros países, livros que estavam sendo feitos lá [fora]. Poemas da época da Negritude, todo esse movimento, e além do movimento dos Estados Unidos também. E isso nos influenciou. E nessas discussões [...] tinha vários poetas, vários escritores, eu me lembro que algumas pessoas decidiram: então vamos tirar uma coletânea e um livro com a gente! E o poema do Assumpção, que nunca tinha sido publicado, foi publicado. Segundo o Hugo,11 o nome Cadernos Negros foi baseado no exemplo da Carolina Maria de Jesus, que escrevia em cadernos. Ele se apropriou da prática de escrever em cadernos, por isso o título. A ideia era cadernos, onde você coloca suas ideias, os caderninhos da escola, lembra? A poesia que eu falei, o diarinho.

E aí chega nos Cadernos

Negros n. 5. Esse grupo que se reunia toda

sexta-feira lá no bar Mutamba e tal, houve um rompimento, porque já era um dos grupos mais antigos. Na feitura de caderno ainda era o Cuti. Lembra que eu falei que cheguei no “Roda Poema, aê”? Cheguei nesse momento de ruptura. Chegamos eu e Esmeralda,12 e a primeira coisa que nós fizemos foi dizer: “Ah, Cuti, você fazendo Cadernos Negros sozinho não vai dar certo, a gente quer fazer junto”. Então, a gente dividia as funções.

E então tinha o Quilombhoje antigo, o que estava chegando. Houve uma ruptura, porque quem estava chegando era a juventude da época, trinta, trinta e poucos, e de 35 e poucos era o Cuti também, os outros eram mais velhos, principalmente o Oswaldo, com todo o respeito. E tinha uma outra forma de encarar esse fazer, e esse fazer literário, esse fazer cadernos e coisas assim, tanto que eles fizeram a antologia Axé, eu entrei em Axé literatura negra brasileira. Cadernos Negros tinha também que ir para os bailes negros. A gente ia para os bailes negros, pegava o microfone e fazia poesia, vendia livros. E a coisa foi crescendo, foi crescendo de uma forma muito legal, porque todas as vezes que a gente ia aos bailes, organizava lista de nomes e endereços para fazer convite, convidar as pessoas no lançamento, para ser escritor, para encontros de escritores, onde a gente podia discutir nossa literatura.

Fora isso, o Quilombhoje se reunia todos os sábados, todos os domingos, para discutir poema, [...] e a gente não discutia simplesmente, a gente fazia texto. Quando eu paro para pensar, nós fizemos uma academia nossa, sabe? Nossa academia de letras pretas. E a intelectualidade acadêmica branca começou a chegar junto. Só que nós tínhamos nossos códigos, nossas regras. Cadernos Negros, só entra negro. Porque a gente não queria ser objeto de estudo. A gente era sujeito da nossa fala, da nossa escrita. E a coisa foi crescendo. Nesse sentido, nós quebramos alguns paradigmas:

Negro não lê. Negro não escreve. Negro não compra livro. Então eu concordo que negro não lê. Não lê nada que não lhe interesse! Muitos escritores de gaveta também acabaram entrando nos Cadernos Negros. Foi aumentando um espaço, tanto o espaço no livro como o espaço mental. A gente estava fazendo outra geografia. E fizemos outra geografia também no panorama da literatura branca brasileira. Porque você sabe quando é forçado a falar de alguém e não quer, mas se alguém está na sua porta berrando e gritando, você tem que falar dele, sabe?

A oralidade e a escrita

Não existe antagonismo entre a oralidade e a escrita, esse antagonismo foi criado. Por quê? Porque a nossa cultura é de matriz africana. Os muçulmanos, por exemplo, tinham as coisas escritas em bibliotecas e tal. Em África, a maioria das culturas eram orais. Quando a gente fala de cultura oral, as pessoas pensam em coisas de quem não tem cultura. A oralidade era e é a nossa cultura. Onde são transmitidas as coisas das nossas raízes, das nossas culturas?

Eu tenho um texto de quando Graphos abraçou Ofó. Graphos de grafia e Ofó do sopro da palavra, de Iansã. Quando Graphos abraçou Ofó

fizeram uma farra, e aí

saiu uma poesia escrita desse conjunto. Me sinto assim. Graphos abraçando Ofó, porque eu uso nos meus trabalhos muita coisa que eu ouço e que me contaram, da minha mãe, da minha avó, do terreiro. A oralidade era uma forma de você ficar informado, saber. A oralidade é sabedoria. Muitas coisas que são reproduzidas agora, até por escrito, vieram da oralidade que é sabedoria.

Sabe qual é a questão da arte? Da arte da oralidade, da pintura, da escultura de matrizes africanas? Porque [a arte africana] não tinha autor. Eu não assino embaixo. Isso aqui é do Francisco. Não, isso aqui é da comunidade X. Toda aquela sabedoria fez com que o artista

fizesse aquela máscara. Agora, a máscara é do povo que está no Louvre. Entendeu? Você já vai colocando as coisas em lugares onde

não estavam. O capitalismo deturpa, porque você tem que ser indivíduo. Você tem que ser um.

1 Música cantada na Roda de Poemas, autoria desconhecida.

2 Carlos Assumpção, “Protesto”, in Não pararei de gritar: poemas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

3 Professor, advogado, poeta e escritor, Carlos Assumpção nasceu na cidade de Tietê (SP) em 1927, residiu em Franca, onde graduou-se em letras e, posteriormente, em direito. Colaborou em diversas revistas e publicações de escritores negros, entre elas Cadernos Negros. Protesto, sua primeira publicação, foi lançada em 1982. Além de decano, é um dos poetas constantemente aclamados no meio da poesia brasileira.

4 A Frente Negra Brasileira (FNB) foi criada em outubro de 1931, na cidade de São Paulo. É uma das primeiras organizações no século 20 a exigir igualdade de direitos e participação dos negros na sociedade brasileira. Sob a liderança de Arlindo Veiga dos Santos, José Correia Leite e outros, a organização desenvolvia diversas atividades de caráter político, cultural e educacional para seus associados. Ver ipeafro.org.br/acervo-digital/ documentos/antecedentes-do-ten/frente-negra-brasileira. Acesso em: 2025.

5 Grupo criado em 1980 por Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros. As atividades variaram ao longo do tempo, porém em todas consistem o apoio e o incentivo na produção, divulgação e pesquisa da literatura e cultura negra. Desde sua criação, o grupo é responsável pela publicação dos Cadernos Negros.

6 Poeta, escritor, crítico e historiador da literatura brasileira, Oswaldo de Camargo nasceu em Bragança Paulista (SP), em 1936. Após formação humanista e erudita obtida em seminários no interior

paulista, mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar em alguns jornais, entre eles no O Estado de S. Paulo como revisor e no Jornal da Tarde como editor. Junto ao movimento negro, foi diretor de cultura da Associação Cultural do Negro e um dos principais colaboradores da imprensa negra.

7 Poeta, escritor, teatrólogo, tradutor, ativista político e cultural, Paulo Eduardo de Oliveira ou Paulo Colina (1950-1999) nasceu em Colina (SP) e foi um dos fundadores do Quilombhoje. A publicação de AXÉ: A=antologia contemporânea de poesia negra brasileira de 1982, venceu o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) na categoria Melhor Livro de Poesia, tornando-se assim uma das referências da literatura negra brasileira.

8 Escritor, poeta, um dos fundadores do Quilombhoje, Abelardo Rodrigues nasceu em Monte Azul Paulista (SP), em 1952; publicou textos em diversos volumes de Cadernos Negros.

9 O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em junho de 1978, é uma das primeiras organizações criadas para a defesa da população negra no Brasil. O marco foi a manifestação pública do grupo nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1987, em pleno regime militar.

10 Filósofa, atriz, teatróloga, carnavalesca, militou no Partido Comunista e na defesa dos povos africanos e afro-brasileiros. Nasceu no Rio de Janeiro em 1930, integrou o Teatro Experimental do Negro e ingressou no curso de Filosofia da Faculdade Nacional de Filosofia, quando também engajou-se na União Nacional dos Estudantes (UNE). Na década de 1960, exilou-se em Moçambique, Guiné-Bissau e Angola, trabalhou em projetos de educação e cultura; em Angola, criou a primeira escola de teatro. Mudou-se para São Paulo, após um período presa e perseguida na cidade do Rio de Janeiro, em 1969.

11 Hugo Ferreira, um dos fundadores do grupo ao lado de Cuti.

12 Esmeralda Ribeiro nasceu em São Paulo, em 1958, e segue à frente do Quilombhoje. Fez parte dos movimentos de combate ao racismo e colaborou na construção da literatura afro-brasileira. Errata: na versão impressa, seu nome saiu com a grafia incorreta. A Fundação Bienal pede desculpas pelo erro e fez a correção nesta versão digital.

Práticas educacionais

As práticas da publicação educativa da 36ª Bienal de São Paulo são conteúdos desenvolvidos com o objetivo de aproximar o universo da arte contemporânea de diferentes contextos pedagógicos. Elaboradas como roteiros para Laboratórios Criativos, são estruturadas em três encontros que podem ser adaptados e incorporados conforme as necessidades e possibilidades.

Em diálogo com docentes da rede pública de São Paulo 1 e com as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as práticas incentivam a construção de saberes integrados, expressão de ideias, sentimentos e reflexões sobre temas sociais e culturais. Inspiradas no conceito de escrevivência2 e combinadas com as metodologias do Museu da Pessoa, 3 as práticas têm o objetivo de promover uma educação que reconhece a subjetividade e a pluralidade de experiências, compreendendo as pessoas participantes como protagonistas nos processos.

Roda de poesia

A prática tem como proposta convidar as pessoas participantes a se relacionarem com conteúdos presentes na publicação educativa, especificamente os poemas e a conversa transcrita com a escritora Miriam Alves, além de um laboratório de criação de poemas com exercícios de leitura e experimentação com fanzines.4

OBJETIVOS:

→ Pesquisar os Cadernos Negros – Quilombhoje Literatura

→ Contar e escutar histórias

→ Criar poemas e/ou textos poéticos

→ Desenvolver processos de criação no modo individual, coletivo e colaborativo

RECURSOS NECESSÁRIOS:

→ Papel sulfite ou semelhante

→ Materiais para escrita (lápis grafite, canetas hidrográficas)

→ Tesouras e colas

→ Revistas e jornais para recorte

→ Computador, projetor multimídia e caixa de som

Os últimos versos do poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, dizem que “há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra”. De fato, com seus silêncios – e seus alvoroços – a poesia é capaz de se embrenhar na realidade humana, imaginando outras formas de viver e a criação de outros mundos para além deste em que vivemos. Com essa consciência, em 19 de novembro de 1978, foi lançado o primeiro volume da série Cadernos Negros. A partir de então, foram lançados mais de quarenta volumes, publicados anualmente, que se alternam entre poemas e contos de autores e autoras afrodescentes de todo o Brasil.

Desde a década de 1980, a publicação dos Cadernos Negros é feita pelo Quilombhoje Literatura, coletivo comprometido com a promoção da literatura negra e com a visibilidade de autorias afro-brasileiras. Além das publicações, o coletivo desenvolve cursos, seminários, debates sobre literatura, entre outras atividades. Aqui destacamos a roda de poesia, uma iniciativa que propõe um encontro entre pessoas escritoras e público, criando um espaço onde a palavra, declamada ou cantada, circula entre as pessoas que desejarem se expressar poeticamente. Inspirada nessa ação, esta prática propõe um laboratório de criação de poemas com exercícios de leitura e experimentação com fanzines.

ENCONTRO 1 – CADERNOS NEGROS –QUILOMBHOJE LITERATURA

O primeiro encontro do laboratório parte de uma discussão sobre a experiência da escritora Miriam Alves, umas das figuras proeminentes dos Cadernos Negros. Recomendamos organizar a turma em roda e fazer uma leitura coletiva do texto da conversa com a autora, presente nesta publicação. O conteúdo também está disponível no formato de áudio (acesso por QR Code). A pessoa mediadora pode incluir textos e vídeos de entrevistas de outros autores, com o intuito de fomentar uma conversa sobre a escrita poética.

Ao concluírem a leitura, realizem uma conversa sobre o material apreciado. Caso seja possível, anote as impressões obtidas. Seguem sugestões de perguntas para a realização da conversa: Como a experiência da escrita é contada nesses relatos? Como você vê a relação entre a escrita e a identidade?

Pesquise e selecione poemas para o próximo encontro e solicite que a turma o faça também.

ENCONTRO 2 – RODA DE POESIA

A segunda etapa do laboratório envolve a realização de uma roda de leituras e escutas de poemas de diferentes autorias. Ao iniciar o encontro, organize as obras poéticas pesquisadas previamente e componha uma coleção.

A roda de poesia pode ser realizada da seguinte forma:

→ Planeje a duração da roda de poesia, conforme a disponibilidade de tempo para a realização do encontro

→ Apresente a proposta da roda de poesia: leitura e escuta de poemas de diferentes autorias

→ Organize a turma em roda e disponha os poemas selecionados no meio da roda

→ Uma pessoa por vez escolhe aleatoriamente um poema e recita em voz alta para o grupo

→ As demais pessoas anotam palavras que lhes chamem a atenção

→ Um poema poderá ser lido mais de uma vez

Sugerimos que, ao fim da roda de poesia, as pessoas participantes conversem sobre a experiência. Organize a turma em pequenos grupos e incentive a criação de textos poéticos a partir das anotações. Reserve essas anotações para o próximo encontro.

ENCONTRO 3 – FANZINES DE POEMAS

O primeiro volume de Cadernos Negros foi uma publicação de pequeno formato, conhecida como edição de bolso. No terceiro encontro, sugerimos a criação de fanzines – publicações independentes, artesanais e de baixo custo.

Para o desenvolvimento do conteúdo dos fanzines, retome os grupos do encontro anterior e dê sequência à criação de textos poéticos a partir das anotações feitas durante a roda de poesia.

Para a confecção de fanzines, oriente a turma da seguinte forma:

→ Utilizem folhas de papel sulfite A4 e preparem o material conforme a ilustração

→ Escrevam os poemas criados no material preparado, utilizando canetas, lápis de cor ou outras ferramentas possíveis

→ Componham a produção textual poética com ilustrações/ desenhos, colagens a partir de imagens de revistas/

jornais ou com outras possibilidades gráficas

→ Se possível, leve fanzines para inspirar a criatividade da turma

Ao finalizarem a produção, estimule a troca de fanzines entre as pessoas participantes e uma conversa sobre o processo criativo.

SUGESTÕES DE DESDOBRAMENTOS:

Escaneie/fotocopie os fanzines produzidos, imprima uma quantidade de exemplares e distribua. É possível realizar uma roda de poesia com os fanzines criados e fomentar a prática de saraus a partir deles.

Roda de histórias

Esta prática tem como proposta convidar as pessoas participantes a criar, contar e escutar histórias inspiradas na obra da artista Maria Auxiliadora e em suas próprias vivências. 5

OBJETIVOS:

→ Pesquisar a obra da artista Maria Auxiliadora

→ Contar e escutar histórias

→ Descrever características dos lugares de vivência da artista

→ Desenvolver processos de criação nos modos individual, coletivo e colaborativo

RECURSOS NECESSÁRIOS:

→ Papel sulfite ou semelhante

→ Materiais para escrita (lápis grafite, canetas hidrográficas)

→ Computador, projetor multimídia e caixa de som

DESENVOLVIMENTO:

A proposta da 36ª Bienal de São Paulo parte da ideia de pensar a humanidade como verbo, uma prática viva, em um mundo que exige reimaginar as relações e ter a escuta como base da convivência. Desse modo, quando falamos de escuta, não nos referimos somente à audição, mas a uma atitude atenta e generosa em relação às pessoas e aos ambientes que nos cercam.

As obras de Maria Auxiliadora ilustram bem essa perspectiva por serem registros vibrantes das andanças da pintora. Nascida em uma família de artistas que vendiam seus trabalhos nas Feiras de Arte de Embu das Artes e da Praça da República, em São Paulo, Auxiliadora aprendeu a ler e escrever adulta, trabalhou como empregada doméstica, tornou-se uma pintora conhecida e faleceu aos 39 anos de idade. Nesta prática, as pessoas poderão imaginar, narrar e ouvir histórias inspiradas na obra da artista e em suas experiências pessoais.

ENCONTRO 1 – MARIA AUXILIADORA E SUAS ANDANÇAS

A primeira etapa desta prática é uma proposta de aproximação da vida e da obra de Maria Auxiliadora. Nascida em Campo Belo (MG), em 1935, Auxiliadora mudou-se para São Paulo com sua família ainda criança. Na capital, ela cresceu acompanhando os pais que vendiam pinturas e esculturas na Feira da Praça da República. Não demorou para que ela e os irmãos passassem a se interessar pela criação artística. Sem condições de viverem exclusivamente da arte, era comum que Auxiliadora e seus familiares tivessem outros empregos. Os diversos ambientes em que a artista circulou foram integrados a sua poética, revelando seu olhar perspicaz.

Para se aproximar da vida e da obra de Maria Auxiliadora, sugerimos organizar a turma em roda para escutar (ou ler) a colagem sonora que apresenta a artista Maria Auxiliadora a partir de diálogos (acesso por QR Code). Ainda em roda, recomendamos que inicie uma conversa sobre os elementos que aparecem no áudio (ou texto). Disponibilize espaço para que todas as pessoas participantes compartilhem suas impressões.

Seguem algumas sugestões de perguntas para a realização da conversa: Por quais lugares Maria Auxiliadora passou? Você conhece algum deles? Essa história se parece com a sua ou com a de alguém que você conhece? Como você imagina as pinturas realizadas por Maria Auxiliadora?

Ao final do encontro, apresente o retrato da Maria Auxiliadora (acesso por QR Code) e convide a turma a pesquisar mais sobre a artista. O texto de Mirella Maria sobre a artista, presente nesta publicação, pode servir para esse propósito.

Maria Auxiliadora, sem data

Foto: Emanuel von Lauenstein Massarani e

Patrick Goetelen

Cortesia: Pedro Ivo Silva e MASP

Leia o QR Code e acesse a colagem sonora e demais conteúdos da prática.

ENCONTRO 2 – ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE

Inicie esta etapa com uma roda de compartilhamento das possíveis pesquisas realizadas, pela turma, sobre Maria Auxiliadora. É importante colher as impressões e as descobertas das pessoas nesse momento. A seguir, apresente a pintura Parque de diversões, de 1973. Caso seja possível, projete a imagem da obra e leia para a turma a descrição da imagem (acesso por QR code).

Sugerimos que seja feita uma conversa sobre a obra a partir de perguntas como: Como é o ambiente retratado pela artista? Quais cenas acontecem na obra?

À medida que a palavra circula entre as pessoas do grupo, traga aspectos das pesquisas feitas anteriormente e pontue questões da vida e da obra de Maria Auxiliadora, por exemplo, o fato de que a artista pintou, além de parques de diversões, praças, praias e ruas cheias de vida. Por isso, Auxiliadora ficou conhecida como uma pintora que retrata a vida cotidiana de pessoas negras do campo e da cidade, com um olhar para o trabalho, mas, também, para as festas, Carnavais e divertimentos em geral.

Depois de uma análise do quadro, sugerimos um momento em que as pessoas do grupo observem sua própria realidade, suas memórias e seus desejos. Para isso, sugerimos perguntas como: Quais são os espaços de diversão em que você e as pessoas que você conhece frequentam? O que se costuma fazer nesses espaços? O que você mudaria ou o que não tem nesses espaços e gostaria que tivesse?

Proponha que a turma registre as respostas, em especial as possibilidades de ações nos territórios mencionados, e reserve-as para o próximo encontro.

ENCONTRO 3 – RODA DE HISTÓRIAS: EU E

A última etapa da prática é a roda de histórias. Esta ação será feita a partir da imagem da obra Parque de diversões, de Maria Auxiliadora, e dos registros do encontro anterior.

A roda de histórias é um convite às pessoas participantes para imaginar e compartilhar um encontro com Maria Auxiliadora em um cenário que pode ser tanto o parque de diversões do quadro da artista como os espaços de lazer mencionados no encontro anterior. Para isso, levando em conta o tempo disponível para a ação e a disposição das pessoas participantes, a pessoa responsável pela mediação da ação poderá fazer algumas escolhas:

Parque de diversões, 1973

Técnica mista, 140 × 140 cm

Coleção Museu do Sol, Penápolis, SP

Foto: Maurício Froldi

Cortesia: Pedro Ivo Silva e MASP

→ Realizar apenas uma rodada em que cada participante cria e partilha uma história com Maria Auxiliadora no Parque de diversões

→ Realizar apenas uma rodada em que cada participante cria e partilha uma história com Maria Auxiliadora nos espaços de lazer mencionados no encontro anterior

→ Ou realizar duas rodadas, uma em que cada participante cria e partilha uma história com Maria Auxiliadora nos espaços de lazer mencionados no encontro anterior e outra com uma história com Maria Auxiliadora no Parque de diversões

A roda de histórias pode ser realizada da seguinte forma:

→ Anuncie a proposta da roda de histórias e dê um tempo para que as pessoas criem suas histórias

→ Organize o grupo em um círculo

→ No caso de uma roda de histórias com a obra Parque de diversões, disponibilize uma reprodução ou projete a imagem do quadro para a turma

→ É de grande importância criar combinados de atenção para a roda de histórias. A escuta das histórias das pessoas, sem interrupções, é o que garante a roda

→ Use palavras ou frases para marcar o início e o término de cada história. Por exemplo: quando uma pessoa contar a sua história, deve dizer: “Eu e Maria Auxiliadora…”, e quando terminar, deve dizer: “Eu e Maria Auxiliadora…”

→ Caso seja possível, faça o registro em áudio da roda de história

Ao finalizarem a ação, inicie uma conversa sobre o que surgiu a partir da roda de histórias. A pessoa responsável pela mediação do encontro pode estimular algumas reflexões sobre a prática. Algumas perguntas podem ser úteis nesse processo: Como a artista e as pessoas do grupo são representadas nessas histórias? Que relações foram criadas entre elas? Como os ambientes conhecidos pelas pessoas do grupo surgem nas narrativas? Como esses ambientes se relacionam com a obra de Auxiliadora?

SUGESTÕES DE DESDOBRAMENTOS:

A partir das histórias criadas pela turma, elaborar roteiros para a produção de diversos conteúdos (videoclipe, documentário, animação etc.), apresentações teatrais, narrativas multimídia e transmídia, podcasts, playlists comentadas etc.

Esse procedimento também pode ser adaptado para propor um diálogo com os territórios, colaborando com a criação de cartografias afetivas dos locais em que são realizados.

1 A Fundação Bienal agradece a Bel Borges, Durval Mantovaninni, Gustavo Viana, Kaya Fernanda Vallim Braga Martins, Maria da Conceição Ferreira da Silva, Pamela Regina, Rodrigo Pignatari, pelas ricas trocas que aconteceram nos dias 26/10 e 9/11 de 2024.

2 O conceito de escrevivência, desenvolvido pela escritora e professora Conceição Evaristo, representa uma intersecção entre a narrativa ficcional e as vivências cotidianas, em especial de corpos e vozes historicamente silenciados, em uma perspectiva de resgate das narrativas esquecidas e de construção de novas identidades. Essa palavra é uma combinação de “escrever”, “viver” e “se ver”, refletindo uma abordagem que vai além da mera autobiografia, pois busca incorporar as experiências coletivas da população negra, transformando-as em literatura. Ver: Conceição Evaristo, Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017, p.200.

3 Desde 1992, o Museu da Pessoa dedica-se a desenvolver e disseminar as metodologias de registro, preservação e socialização de histórias de vida. Saiba mais sobre a instituição em: museudapessoa.org.

4 Esta prática foi elaborada em diálogo com habilidades da BNCC: Ensino Fundamental – Anos Iniciais: Arte: (EF15AR01); (EF15AR04); (EF15AR05); (EF15AR06); (EF15AR20); (EF15AR23); (EF15AR25). Língua Portuguesa: (EF15LP09); (EF15LP10); (EF15LP11); (EF15LP13); (EF02LP14); (EF02LP17).

5 Esta prática foi elaborada em diálogo com habilidades da BNCC: Ensino Fundamental – Anos Finais: Arte: (EF69AR01); (EF69AR04); (EF69AR06); (EF69AR07); (EF69AR30); (EF69AR31); (EF69AR33); (EF69AR34). Língua Portuguesa: (EF69LP14); (EF69LP21); (EF69LP52); (EF67LP23). Ensino Médio: Linguagens e suas tecnologias: (EM13LGG105); (EM13LGG301); (EM13LGG601); (EM13LGG602); (EM13LGG603); (EM13LGG604). Língua Portuguesa: (EM13LP17); (EM13LP30); (EM13LP47); (EM13LP53).

Da praça ao parque, do parque às memórias, das memórias aos caminhos coletivos e criativos de Maria Auxiliadora

Mirella Maria

Entre praças e resistências

A 36ª Bienal de São Paulo apresenta como tema Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, título que tem sua primeira parte extraída do poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo.1 Esse texto potente nos convida a refletir sobre a importância vital da pausa e da reflexão em um mundo que constantemente nos pressiona por movimento e produção incessante. Através dessa poesia, Evaristo nos apresenta uma espécie de manifesto artístico que defende um processo criativo respeitoso com o tempo necessário para a maturação das ideias. Com esse olhar podemos melhor compreender e apreciar o trabalho singular de Maria Auxiliadora da Silva,2 artista que criou seus próprios caminhos na história da arte brasileira.

O Brasil dos anos 1970, período em que Maria Auxiliadora desenvolveu sua obra, vivia sob a ditadura militar. O “milagre econômico”3 propagandeado pelo regime mascarava profundas desigualdades sociais, enquanto a crescente urbanização transformava rapidamente as paisagens das grandes cidades brasileiras. Nesse contexto de transformações sociais e urbanas, a Praça da República, em São Paulo, emergiu como território vital de resistência cultural, especialmente da população negra, que utilizava o espaço para expressão e venda de seus trabalhos.4 Foi nesse contexto que Auxiliadora, aos 35 anos, reuniu-se a outros criadores, incluindo os artistas de Embu das Artes5 como Solano Trindade, transformando a praça em um ponto de encontro artístico e político significativo.6 Esse período também marcou o surgimento de importantes movimentos negros organizados, como o Movimento Negro Unificado,7 que começavam a questionar abertamente uma suposta harmonia entre diferentes grupos raciais em virtude da miscigenação no país, conhecido como mito da democracia racial.8

No campo artístico, os anos 1970 foram marcados por intensos debates sobre a identidade da arte brasileira. Enquanto as instituições oficiais privilegiam determinadas formas de expressão, categorizações acadêmicas como “popular”, “naif” e “primitiva” eram frequentemente aplicadas a artistas como Maria Auxiliadora.9 Como destaca Renata Felinto em “A ideia de naif como estratégia decolonial”, essas classificações refletiam uma hierarquização problemática do sistema artístico, que tendia a marginalizar criadores sem formação acadêmica, especialmente aqueles de origem negra e periférica. Felinto propõe uma releitura política desses trabalhos como transmissores de saberes e tecnologias através de gerações, por vias não acadêmicas.

Essa transmissão de saberes se evidencia em sua trajetória biográfica. Maria Auxiliadora da Silva nasceu em 1935, em Campo Belo,

Minas Gerais, e foi criada em São Paulo desde a infância. Sua história familiar é profundamente entrelaçada com as artes em suas diversas manifestações, alimentada pelas memórias orais/visuais que circulavam em seu convívio familiar. Sua avó, Marcelina Carlota, era uma sambista e costureira que trouxe para o ambiente familiar a musicalidade e as técnicas do trabalho manual com tecidos. Seu avô, José de Almeida, trabalhava com madeiras em carroças, contribuindo com outro tipo de saber artesanal. Seus irmãos10 dedicavam-se à pintura, escultura e música, criando um ambiente de intensa produção artística. Sua mãe, Maria Trindade de Almeida Silva, foi uma referência fundamental em sua formação artística, especialmente no ensino das técnicas de bordado quando a artista tinha apenas nove anos de idade.

Por entre tempos e olhares: narrativas em camadas

O trabalho artístico de Maria Auxiliadora, nutrido por sua rica bagagem visual familiar, materializa-se de forma significativa em Parque de diversões (1973). A obra pode ser analisada em três planos distintos e complementares.

No primeiro plano, localizado no topo da tela, observamos o movimento dinâmico de uma cidade em plena atividade: um colorido de prédios com suas janelas e varandas com observadores do movimento externo da rua, carros trafegando pelas vias, pessoas transitando nas calçadas. Esse plano superior estabelece o cenário urbano e cria um contexto social importante, mostrando como a rotina da cidade se integra ao espaço de lazer presente nessa pintura.

No plano central, encontramos o coração pulsante da obra: o parque de diversões propriamente dito. A artista captura a energia desse espaço de lazer popular com uma roda-gigante imponente à direita, carrinhos bate-bate à esquerda e diversas outras atrações. O colorido dos brinquedos e as vestimentas enriquecem a interação do espaço e objetos de lazer com as pessoas que ali usufruem e dialogam entre si, produzindo um rico olhar de trocas e convivência.

No plano inferior da tela, Maria Auxiliadora continua com a descrição visual do parque de diversões, em que observamos mais brinquedos à esquerda da obra, um carrinho de pipoca à direita, e, entre esses dois cenários, cenas íntimas de pessoas reunidas em uma espécie de piquenique. A moldura da obra, por mais discreta que seja, nos ajuda a concentrar o olhar e atenção nos detalhes da pintura.

Materialidades e memórias

A singularidade técnica de Maria Auxiliadora, analisada por Lélia Frota Coelho,11 revela-se em sua inovadora combinação de materiais e procedimentos. Sobre uma base de tinta a óleo construída em sucessivas camadas, a  artista incorpora elementos tridimensionais em massa plástica (poliéster), criando relevos que projetam as figuras para fora da tela. Sua originalidade estende-se ao uso de materiais não convencionais –mechas de cabelo natural, tecidos e rendas – que dialogam diretamente com as memórias e narrativas exploradas em seu trabalho.

Como destaca Renata Felinto em “Maria Auxiliadora: o pisar sensível, existências do invisível e visualidades do indizível”,12 sua linguagem artística dialoga tanto com tradições populares quanto com técnicas sofisticadas de representação visual. Neste ponto, complemento que essa releitura política evidencia a produção de memórias afetivas da população, de maioria negra, nessa obra. É uma forma de a artista traduzir nas narrativas que ela tinha no seu ninho familiar, nas suas experiências pessoais e de outras pessoas como forma de perpetuação de uma visualidade da população negra em grau de dignidade e exaltação. Podemos assim nos deleitar e perpetuar as memórias do Parque de diversões de Maria Auxiliadora, seus brinquedos, os encontros e as vivências ali retratados e conjurar tal potência visual com nossas próprias memórias, nossos parques, nossos momentos de encontros e aprendizagens sobre esse poder do estar com o outro e fortalecer a si mesmo contra negações a um direito básico: o de se divertir, o de existir em tempo e espaço.

Do parque à sala de aula: caminhos educativos

A obra de Maria Auxiliadora oferece ricas possibilidades educativas que podem ser adaptadas para diversos contextos: salas de aula, visitas educativas em museus, oficinas em centros culturais ou workshops em instituições educacionais.13 A aproximação inicial com a obra pode se desenvolver por meio da observação detalhada e do diálogo aberto, onde educandos são convidados a compartilhar suas impressões e memórias evocadas pela imagem através de tópicos como o tempo de maturação e produção de um trabalho de arte, encontros, vivências e desdobramentos em espaços públicos, espaços coletivos de lazer/divertimento. Essa abordagem sensorial mostra-se especialmente potente em visitas educativas a museus, onde o contato direto com a obra amplia de forma significativa a experiência. A experimentação com materiais diversos constitui outro momento fundamental do trabalho educativo. Inspirados pela

técnica mista característica de Maria Auxiliadora, os educandos podem explorar diferentes possibilidades criativas, combinando pintura, colagem e materiais têxteis. Além disso, as próprias experiências plásticas que os educandos trazem em suas bagagens culturais podem ser parte dessa produção visual. Esse processo de experimentação prática pode se desdobrar em um projeto de documentação visual dos espaços de lazer contemporâneos, estabelecendo pontes entre a obra de Auxiliadora e a realidade atual.

A criação de narrativas visuais coletivas emerge como uma proposta na qual educadores e educandos podem desenvolver trabalhos que representam suas próprias experiências de lazer e convivência. As questões sociais presentes na obra podem ser exploradas com discussões sobre o direito ao lazer e a utilização dos espaços públicos, debates presentes tanto na ocupação de artistas como Maria Auxiliadora na Praça da República aos domingos, quanto por coletivos na contemporaneidade que fazem uso de espaços coletivos para usufruto do lazer, de convivência e escuta.

As possibilidades interdisciplinares ampliam-se quando conectamos a obra com diferentes áreas do conhecimento. O contexto histórico dos anos 1970 no Brasil, as transformações urbanas e a ocupação do espaço, as discussões sobre o direito ao lazer pela população negra e suas potentes manifestações culturais na cidade, bem como a produção de técnicas artísticas mistas, podem ser exploradas de forma integrada, enriquecendo a experiência educativa.

Maria Auxiliadora: viandante de seus próprios caminhos

Retomando o título da 36ª Bienal de São Paulo, Conceição Evaristo por meio de sua poesia e, de modo especial nos versos contidos em “Nem todo viandante anda estradas”, amplia nossa percepção em compreender como Maria Auxiliadora criou seu próprio caminho na arte brasileira. Com uma sólida base artística construída em comunhão com sua família, amigos de Embu das Artes e Praça da República, desenvolveu uma técnica única que demonstra como é possível inovar partindo de seus saberes artísticos. Seu trabalho continua a inspirar novas gerações de artistas a buscarem suas próprias formas de expressão, valorizando suas histórias e vivências.

Como destaca Renata Bittencourt no texto “Eu pinto crioulos”,14 Auxiliadora conseguiu concretizar visualmente a narrativa de uma mulher negra através de sua história, seus desejos e inserção no mundo. Essa perspectiva ajuda a compreender como sua obra permanece como um documento histórico e artístico que convida a refletir sobre

questões ainda presentes em nossa sociedade: o direito ao lazer, o acesso aos espaços públicos e a representação digna da população negra.

Ao contemplarmos Parque de diversões hoje, somos convidados a refletir não apenas sobre o Brasil dos anos 1970, a Praça da República e suas exposições e mercado de obras de artistas, mas também sobre nossa relação com nosso tempo e espaço no que diz respeito à presença de corpos diversos em momento de lazer, de ocupação de espaços públicos, na circulação urbana em conjunto. A obra nos desafia a pensar sobre quais espaços de alegria e convivência estamos construindo em nossas memórias, em nossas cidades, e como podemos torná-los acessíveis e acolhedores para e com todos. O legado de Maria Auxiliadora permanece vivo e necessário, lembrando-nos da importância de fazer pausas e nos lembrar de criar e manter lugares potentes onde a população negra seja, de fato, celebrada em sua existência.

1

Conceição Evaristo é uma das mais importantes escritoras brasileiras contemporâneas, nascida em Belo Horizonte, em 1946. Criadora do conceito de “escrevivência”, sua obra literária é marcada pela intersecção entre raça, classe e gênero, com destaque para a experiência da mulher negra na sociedade brasileira.

2 O nome completo da artista é Maria Auxiliadora da Silva, conhecida como Maria Auxiliadora, forma pela qual será apresentada ao longo do texto.

3 Ana Elisa Lara Paulino, “O impacto do ‘milagre econômico’ sobre a classe trabalhadora segundo a imprensa alternativa”, Revista Katálysis, v. 23, n. 3, 2020, pp.562-571.

4 Segundo Maria Cecília Felix Calaça, nos fins de semana, a Praça da República transformava-se em ponto de encontro, inicialmente aos sábados e, depois, passando para os domingos, quando acontecia o evento que ficou conhecido como Feira Hippie. Posteriormente, convencionou-se chamá-la de Feira de Arte e Artesanato.

5 Importante destacar a relação de Embu das Artes com lideranças políticas e artísticas que, entre diversas temáticas, discutiam a presença da população negra, tendo como referência pessoas como Claudionor Assis Dias e Francisco Solano Trindade. Ver Maria Cecília Félix Calaça, Movimento artístico e educacional de fundamento negro da Praça da República: São Paulo 1960-1980. Tese de Doutorado. Fortaleza: Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, 2013.

6 Nesse período, o trabalho de Maria Auxiliadora obtém mais repercussão também em razão do contato com o crítico de arte Mário Schenberg (1914-1990), que foi decisivo para sua primeira exposição solo na galeria na Mini Galeria USIS, em São Paulo, em 1970. Ver: Adriano Pedrosa e Fernando Oliva (orgs.), Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência. São Paulo: MASP, 2018.

7 Petrônio Domingues, “Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos”, Tempo, v. 12, n. 23, pp.100-122, 2007.

8 O mito da democracia racial é a narrativa que afirma a inexistência de racismo no Brasil, defendendo uma suposta harmonia entre diferentes grupos raciais em virtude da miscigenação. Florestan Fernandes, em A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca” (v. 2. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008), demonstra como essa ideologia mascara desigualdades estruturais e relações de poder, servindo para manter privilégios e dificultar o enfrentamento do racismo.

9 Os termos “popular”, “naif” e “primitivo” têm sido historicamente empregados de forma intercambiável para categorizar artistas à margem do sistema artístico hegemônico. Ludmila de Lima Brandão e Suzana

Cristina Souza Guimarães em “Desconstruindo o Naif: a pintura de

Alcides Pereira dos Santos” (Contrapontos, v. 12, n. 3, pp.308-316, 2012) identificam o termo naif como reprodução do discurso colonial, enquanto Lilia Moritz Schwarcz, em “A arte de despistar” (in Adriano Pedrosa e Fernando Oliva (orgs.), op. cit., pp.96-106) demonstra como essas classificações naturalizam hierarquias culturais. Renata Felinto, em “A ideia do naif como estratégia decolonial” (in Bienal de Naifs. São Paulo: Sesc, 2021), propõe uma releitura decolonial desses termos, fundamentada em Krenak e Danto, onde o naif emerge como força de resistência e expressão de cosmologias alternativas. 10 A família Silva era constituída por dezoito irmãos, muitos deles atuantes nas feiras populares de Embu das Artes e na Praça da República, em São Paulo. Entre os artistas da família, destacavam-se: Sebastião Candido (1929-2016) e João Cândido (1933) como desenhistas e pintores; Vicente Paulo (1930-1980), na escultura; Conceição Aparecida (1938) e Ilza Jacob (1946), na pintura; Efigênia Rosário (1937) como contadora de histórias; Natália Natalice (1948), na poesia; Georgina Penha (Gina) (1949), na pintura e criação de bonecos; e Benedito (1953-1998) como artesão e pintor.

11 Lélia Coelho Frota, Mitopoética de 9 artistas brasileiros: vida, verdade e obra. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.

12 Renata Felinto, “Maria Auxiliadora: o pisar sensível, existências do invisível e visualidades do indizível”, in Adriano Pedrosa e Fernando Oliva (orgs.), op. cit., pp.32-40.

13 O Brasil tem a lei federal 10.639, sancionada em 2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio do país. A legislação visa o reconhecimento e a valorização da contribuição da população negra na formação da sociedade brasileira. O trabalho de Maria Auxiliadora faz então parte fundamental para a ampliação das discussões sobre a produção visual da população negra no país.

14 Renata Bittencourt, “Eu pinto crioulos”, in Adriano Pedrosa e Fernando Oliva (orgs.), op. cit., pp.32-40.

Memória ativada pela experiência viva, minha infância, gestos e palavras

Essa palavra que, quando eu era criança, era falada baixo na rua e alto dentro dos quintais dos amigos.

Uma palavra que era sorriso entre a minha família e coisa estranha na escola, uma palavra que tem gosto, som e gente, cheiro e ritmo. E no meu caminho encontrei a macumba como encontro, potência, força, escola. E a vergonha que fui ensinada a ter perdeu a força. E com meus olhos eu escutei, com meus ouvidos eu escutei, com minhas mãos eu escutei, com minha memória eu escutei.

Encontrei algo que, mesmo que fosse novo, me traz a memória de toda uma relação com a palavra e com as dinâmicas que a percepção de macumba havia sido ensinada. Estava presente em algo que me conectou com tantas afinidades e tantas novidades. Novo e tão externo, forte e tão cotidiano.

Porque era tradição, êxtase, roda, tambores.

Mulheres com mãos que comandam o vento, olhares que perfuram o tempo, e o som – esse som que se derrama como reza, como maré que volta.

No Brasil, macumba é palavra com peso e história. Dizem-na com reverência, medo ou desdém, dependendo de quem fala e de onde vem.

No fundo, macumba é som, madeira e couro em vibração, nome que veio para cá no arrasto da dor do sequestro de nações, misturado aos idiomas das margens, dos que foram arrancados de casa e precisaram reconstruir mundos.

Macumba também é ritual, é força que chama os invisíveis, que não se opõe ao caos e o entrega ao sagrado. É dança, canto, cura, mas, acima de tudo, é resistência, uma celebração da espiritualidade, exuberância e abundância.

E ali, naquele chão marroquino, me vi diante de algo que parecia vir da mesma construção, a mesma língua.

Os sons e gestos me chamavam.

Seria algo novo que reconheci? Ou seria outra ancestralidade me tocando com tambores e cordas que carregam histórias semelhantes?

Um sopro. Uma palavra cheia de mar e deserto.

Gnawa é música, mas também é um povo. Povo que nasceu de movimentos forçados, das cicatrizes do tráfico humano, dos caminhos que a África traçou entre si.

Os gnawa, descendentes de escravizados do Saara, encontraram na música uma forma de lembrar e de continuar a viver.

A tradição gnawa é invocação, celebração e conexão.

O guembri, em suas cordas, pulsa, enquanto os krakebs, em seus pequenos círculos de metal, estalam como uma respiração firme e ritmada.

É música para o corpo, para o espírito, para fazer dançar e para fazer sentir.

E no som, há portais.

Os ritmos gnawa convidam o transe, abrindo espaço para que o mundo invisível se manifeste, e assim se manifestam conexões que transbordam em dinâmicas de saúde, temporalidades, bênçãos, coletividades. A perspectiva humana não está apartada da divina, se dissolve e se sustenta.

Termo de origem árabe que significa “presença”, o ritual cria um espaço seguro e sagrado onde as participantes possam experimentar uma conexão profunda com o divino. As palavras se repetem, sagradas, os movimentos se repetem, sacralizadores. E, com a música e os movimentos corporais, as mulheres vão entrando em um estado de concentração e entrega, como se toda a atenção e a energia do grupo convergissem para perceber a “presença” (hadra) de Deus ou do sagrado ali, naquele instante.

Ritual comunitário de cura, de busca pelo êxtase místico e de louvor a Deus, em que o corpo funciona como instrumento para vivenciar e compartilhar a dimensão sagrada da vida.

Uma vivência espiritual intensa mediada pela música, pelos cantos e pela dança.

Hadra e gnawa estão conectados: se relacionam com práticas místico-musicais no Marrocos, frequentemente vinculadas a confrarias sufis ou a expressões musicais que buscam estados de êxtase espiritual. Apesar de cada uma ter características próprias, existe um ponto em comum: o uso de cantos (zikr), ritmos e danças que, por repetição, levam os participantes a um estado de “presença” ou transe, aproximando-os de uma dimensão sagrada.

Eu vi mulheres tocando.

Com mãos ágeis e corpos tomados pela música, eram ritmo e melodia ao mesmo tempo.

Era impossível dizer onde terminavam as batidas e onde começava a dança.

E de lá, nas vozes, movimentos e cuidados, eu vi a macumba, a cambonagem, a circularidade, a alegria, o transe…

Vi pessoas cambonando, os mediadores entre os mundos. Elas traziam panos e olhares atentos, guiavam o corpo dos que caíam ao chão. E ali, naquele espaço que parecia um templo, mas também uma festa, santos baixavam. Ou seriam ancestrais?

Ou simplesmente, e transcendentalmente, uma cura.

Figuras antigas, de força absoluta, que entravam nos corpos e os transformavam.

Na roda, tudo parecia conectado, o presente e o passado.

Foram me chamar, eu estou aqui o quê que há.

Foram me chamar, eu estou aqui o quê que há.

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho, mas eu vim de lá pequenininho,

Alguém me avisou pra pisar nesse chão bem devagarinho.

Alguém me avisou pra pisar nesse chão bem devagarinho.

“Alguém me avisou”, Dona Ivone Lara, 1981

Trouxe Dona Ivone Lara aqui para me fazer companhia no pensamento. Pois sem macumba não tem samba, não tem o corpo comunitário em regime de saúde, suporte da comunidade, fio que une na voz e no movimento, ritmo que se faz reconhecer preto.

Qual a distância entre gnawa e macumba?

Talvez nenhuma.

Porque ambas conjugam múltiplas percepções nos ritmos, nos movimentos, no canto, no transe. Do sagrado que dança, da música que cura e que chama. São linguagens que vêm do caminho, do chão, do suor, da terra, do grito ancestral que nunca silencia.

No êxtase, não há distâncias. O som não se deixa conter, atravessa e voa. O guembri e o atabaque, parentes distantes que se reconhecem na vibração, um diálogo que atravessa continentes. O corpo que é gira, a gira que é corpo; é o mesmo que se entrega, ao santo, ao som, ao canto. Ao espírito, àquilo que não se vê, mas se sente. É o mesmo corpo que carrega a memória de quem foi arrancado, de quem atravessou oceanos e transformou dor, violência em música.

E saio carregando o som nos ossos, os passos na pele, e certezas de memórias.

O sagrado pode ter muitas línguas, faces e muitos nomes, e sua essência é múltipla, não parte de uma mesma semente, mas de múltiplas conexões. É resistência e transcendência. É movimento e nos aponta para onde ainda podemos ir.

Entre o guembri e o tambor, entre os santos que baixam e os ancestrais que visitam, a música segue.

Tudo é força que não se dobra, é ponte entre mundos. E ali, naquele som que ainda ecoa, entendi que a música é um pacto de vivência, de vida.

Que os ritmos falam por nós, mesmo quando palavras não fazem sentido. Que o corpo que se move, em transe, é território sagrado, onde o divino se manifesta em cada giro, em cada batida.

E se o guembri me chamou, se o som gnawa me puxou para o centro da roda,

É porque os tambores de cá e de lá sabem que somos parte da mesma força. Feita de música, de espiritualidade que não se explica, mas que nos guia e nos guarda.

E, assim, percebo que o tambor não carrega fronteiras, mas caminhos.

E que o transe, seja no Brasil ou no Marrocos, é um ato de lembrar e renascer; renovar e manter.

Afeto puro, algo que aprendi entre os meus. Agradeço.

Fatema U Trab / Fatima e o pó: Uma exploração musical da espiritualidade gnawa por meio do conhecimento matrilinear

Esta peça cria um espaço de escuta profunda, uma homenagem ao invisível e ao não dito. Ela mergulha no mundo espiritual da tradição gnawa, com raízes no sufismo e em outras espiritualidades africanas, onde a música e os rituais se tornam caminhos entre o terreno e o divino. Em seu cerne está um tributo ao papel silencioso, porém essencial, das mulheres – guardiãs da herança ancestral, mantenedoras de rituais e tecelãs dos fios invisíveis que sustentam suas comunidades.

Nas práticas gnawa, as cerimônias noturnas se desenvolvem em ciclos rítmicos, dissolvendo as fronteiras entre o tempo e o espírito. Embora os homens, em geral, liderem esses rituais, são as mulheres que preservam a linhagem mais profunda, incorporando sua compreensão em cada gesto e criação. O tear se torna uma metáfora poderosa para esse legado: os tapetes, meticulosamente trabalhados, transformam-se em mapas da vida, carregando histórias codificadas e verdades espirituais são transmitidas por gerações.

A paisagem sonora de Fátima e o pó baseia-se na essência improvisada do jazz espiritual, em que os polirritmos ecoam a intrincada interação dos fios de tecelagem. A percussão vibra com o pulso das mãos que moldam a argila ou esticam o tecido, enquanto os tons entrelaçam fragmentos de memória e ritual. O silêncio tece a composição, criando espaço para reflexão, amplificando o indizível e convidando as profundezas espirituais a emergir. Esse trabalho homenageia a força e a percepção não ditas das mulheres – suas mãos, sua presença e seu silêncio, por meio dos quais o conhecimento e a tradição perduram. É uma oferenda ao tear da existência, onde o som e o espírito, a memória e o ritmo estão entrelaçados em uma tapeçaria viva. Ouvir é entrar nessa trama sagrada, testemunhando o fluxo matrilinear da vida, a resiliência e a transformação.

Peça sonora

falam em linguagem de azeite e tapetes de ritmo salgado

tapetes são o lugar mais sincero para se ler uma história a direção para não se perder é a Meca e no décimo primeiro dia eu como sete tâmaras

jejuarei para aprender a sentir dor vou aprender os nomes das cidades que querem enganar o chão grunhe e as raízes sentem nada será como antes nada será cancelado

crianças no Iraque o cheiro das árvores libanesas o mar vermelho do Iêmen os ritmos de Kilombo O algodão tricotado de Burkina Faso as folhas da Amazônia

e a terra de Andena eles não sabem que a imortalidade está na décima primeira página do Alcorão e que você não pode lê-la em outro ramadã com za’atar entre os dedos, as lágrimas entre os diamantes, ilhas silenciadas e hijabs no ônibus das quatro horas

livre e a eterna canção de Cartum as mulheres do Atlas são livres

livre é a mulher que caminha todos os dias no Paquistão o sal que limpa os medos é livre

livres são os ancestrais que tornam a intenção eterna por meio de sons circulares livre é a poeira vermelha da Palestina

“Mais importante que a obra, a jornada”: Escuta e contação de histórias como processo

Amina Agueznay

Texto elaborado a partir de uma conversa entre a equipe da Fundação Bienal e a artista em 29 de novembro de 2024.

Presença

Falo com frequência sobre o intangível. Que cria o tangível. Sobre histórias tecidas que produzem as peças têxteis. Quando falo sobre tecido, obviamente, poderia ser qualquer coisa. Mas são histórias tecidas, peças tecidas. E, para mim, processo.

Então, quando falamos sobre o intangível, estamos falando sobre processo, ok? Que é mais importante que a obra final. Gosto de construir conexões entre projetos. O processo de pensamento continua entre um velho projeto e um novo. Eles estão constantemente sendo criados e progredindo. Então deixo a porta aberta para o projeto progredir.

E a questão é: quando um projeto, um trabalho, está pronto?

Ele está pronto em algum momento? Para mim, não. Eu o penduro e já vejo o próximo passo, o próximo fil conducteur. E isso, para mim, é o intangível.

Trabalhar com as mãos é um processo lento. O trabalho artesanal é um processo lento. E este mundo está se tornando cada vez mais rápido. Temos que entender o processo, perceber que o trabalho precisa de um longo tempo para ser produzido e instalado. E compreender o que é o artesanato. E o artesanato também é arte. Em geral falamos do artesanato como uma ponte. Mas o artesanato é arte.

Fim de papo. E tudo bem, estou tranquila em relação a isso.

É verdade. Quando é que uma peça artesanal se torna uma obra de arte? Seria no ateliê da artesã quando ela produz o trabalho? Ou na galeria, quando o trabalho está exposto para que o público o veja?

São perguntas que me faço. E para falar sobre o intangível e o processo, as oficinas são, para mim, em grande parte baseadas no processo.

E o processo tem que ser honesto, ter uma abordagem ética, um respeito mútuo com as pessoas com quem se trabalha, que envolve escutar uns aos outros. Pois quando você ouve, a magia acontece. Então, a energia que transparece é poderosa. A energia que irradia da obra.

Eu falo sobre presença. Não falo sobre uma peça ou um trabalho de arte como, “oh! É bonito”. Ele tem uma presença? Isso é realmente mais importante que todo o restante. Esse é para mim o intangível. E também é palpável, por todos os sentidos. Trata-se de ver, às vezes de ouvir, de tocar, de cheirar. E o que sei? Comer, não importa. Em algumas áreas remotas, os artesãos ainda mantêm o legado de suas avós, bisavós, aqueles tapetes e cobertas empilhados. É como um museu. As histórias estão lá. Então, eu fiz uma instalação com esses tecidos empilhados.

Você consegue ler imediatamente. Isso é o intangível se tornando

Tabadoul

Então, vou falar primeiro sobre os artesãos, as mãos dos artesãos. E, depois, vou contar uma história sobre as minhas mãos. Porque acho que isso é superimportante na forma como trabalho. Quando conduzo uma oficina com artesãos, e o resultado da oficina é uma instalação para uma mostra, ao observar as mulheres ou os homens dedicando-se ao seu tipo de habilidade artística, trabalhando, e ao ouvir suas histórias, isso me remete talvez ao processo de feitura de quilts [colchas de retalhos].

Quando você se senta em volta de uma mesa, vê todas essas pessoas trabalhando individualmente para uma obra comum, e contando histórias – e histórias incríveis, que nada têm a ver com o artesanato –, uma vez que a confiança se estabelece, é simplesmente incrível.

Todas as histórias são tecidas para compor uma única peça. Mas há muitas, muitas histórias, e elas são extraordinárias. As oficinas se baseam nessa troca mútua.

Dizemos tabadoul, em árabe. Quer dizer, eu aprendo com eles e eles aprendem comigo. Isso é muito importante no meu processo. Eu nunca me apresento como “eu sou a professora, estou te ensinando”. Não mesmo,

tangível. Como você reconhece a história imediatamente, você a lê.

isso seria um disparate. Não é realmente o que acontece. Ambos aprendemos. Eu aprendo todo o tempo com eles. Eu conto histórias. Os participantes contam histórias. E, então, eu os escuto.

Quando conto as minhas histórias, costumo mostrar uma apresentação com muitas imagens que são gatilhos para eles. E então, digamos, no dia seguinte, partimos para a prática. Estou me referindo principalmente às pessoas que se dedicam à tecelagem e aos trabalhos com couro. A contação das histórias acontece por meio de oficinas e depois as pessoas as traduzem com suas mãos.

Mas o interessante é que, uma vez contadas as histórias, dou às pessoas canetas com pontas de feltro. E, por exemplo, para os tapeceiros eu digo: “Por favor, me desenhe um tapete”. E eles falam: “Eu quero desenhar com a minha tecelagem e não com essas canetas”. É realmente incrível.

Mas o que significa ouvir? Há também silêncios durante essas oficinas. Mas você ainda ouve. O que você escuta? Ouve as mãos tecendo, pontuadas por histórias, claro, gestos sendo corrigidos, sentidos sendo acordados, materiais sendo tocados. E a ação de ouvir

Amina Agueznay, Skin [Pele], 2011. Instalação composta de rede de pesca reciclada, fios de viscose e náilon, fio de algodão, corda de sisal, arame de aço inoxidável, lantejoulas de plástico, contas de vidro e de plástico, papel, estrutura de aço inoxidável, crochê, tricô, tecelagem, macramê, tranças, fabricação de cordas e pompons, bordado, randa, aplicação de miçangas, costura. Museum Mohamed VI of Modern and Contemporary Art, Rabat. Cortesia: Cultures Interface. Foto: Khalil Nemmaoui, 2016

habilita a transmissão. Isso é realmente importante para la pérennité, para a continuidade, para que tudo, para que a vida, basicamente, continue.

Tenho os exemplos de duas obras. Uma se chama Skin [Pele] e a outra Noise [Ruído]. Elas são exemplos perfeitos para ilustrar o que acabei de dizer. Skin é, na verdade, a primeira obra que fiz com as artesãs. Eu estava apenas começando, estava me tornando uma artista, sabe? E um curador me perguntou se eu poderia trabalhar com essas artesãs em Buznica, que originalmente era uma vila de

pescadores. Há algumas mulheres lá que são tecelãs e fazem crochê.

E então usamos redes de pescadores. Havia esse velho pescador, Bejani, que descanse em paz, ele costumava recolher redes de pescadores usadas. Ele e sua esposa as lavavam, secavam e depois as traziam. Isso é processo, sei agora que estamos falando de processo. Porque o trabalho começa com o material. A história do próprio material. Você não vai simplesmente a uma loja e compra dez quilos de redes de pesca. Não. E, para mim, isso é realmente lindo.

E, com base nisso, fiz algo

como uma colcha gigantesca, basicamente. A peça foi chamada de Skin. Ao mesmo tempo, era como se eu fosse a regente de uma orquestra. Eu ficava observando, dirigindo, compondo. Mas não estava trabalhando com as minhas mãos.

E com Noise foi diferente. Noise é uma instalação feita com lã. Mohamed Benaissa1 me chamou e disse: “Quero que você conduza uma oficina com essas senhoras”. Elas fazem um pouco de macramê, um pouco de bordado. “Você pode fazer algo?”. Eu respondi: “Se eu fizer algo, tem que ser um trabalho que possa ser exposto. Não quero fazer apenas chapéus, bolsas e outras miudezas. Quero fazer uma obra”.

Então ele concordou. E o interessante nesse processo foi que essas senhoras, se você dá um pouco de lã a elas, o material é imediatamente associado a um suéter. Mesmo se essa lã for própria para tapeçaria. Elas ainda pensavam em agasalhos, chapéus, coisas funcionais. E eu dizia: “Não, não”.

Então eu disse a elas: “Vocês fazem a obra com esse material, mas não fazem um chapéu”. Por exemplo, no primeiro dia uma mulher chegou e disse: “Eu fiz essa bela galinha”. E eu: “Ok, agora você vai cortar a cabeça da galinha”. Como desconstruir essa galinha? Ela então fez três pompons. E eu falei: “Eu gosto dos pompons, mas não gosto da galinha”. Então, bem, vamos matar a galinha. E desconstruí a galinha. De repente, ela

tinha apenas esse pompom. Ela começou a produzir esse pompom e criar seu próprio material. Achei isso fabuloso. Assim, Noise foi uma cocriação.

Nessa instalação, você ouvia a voz das mulheres conversando. Pois todas tinham histórias para contar. Histórias inacreditáveis para contar enquanto criavam a obra. Essa experiência foi fascinante.

E há o meu caso. Eu também conto histórias com as minhas mãos. Já faz algum tempo que voltei a trabalhar com as mãos. Tornou-se importante para mim experimentar com a manualidade, explorar novos meios, novas técnicas. Isso se tornou uma prática regular.

De modo que fui para Madagascar em 2023. E descobri a ráfia. Comecei a trabalhar com a ráfia. Comecei com o bordado manual, e fiquei muito feliz, porque isso me fez alcançar um equilíbrio interno. Durante três semanas, eu era esse padrão repetitivo, esse gesto. Entrei num estado meditativo. Eu ficava hipnotizada, e adorava isso. Amava o ritmo, o gesto de bordar na ráfia, e o modo como esse ritmo do gesto regula seu próprio ritmo durante o dia. Eu trabalhava nove horas, e não sentia o tempo passar.

Assim, fui convidada a participar de uma residência para pesquisar a obra de Madame Zo, uma tecelã fabulosa que faleceu em consequência da Covid.2 Partindo da tecelagem tradicional, ela começou a

fazer experimentações. E passou a introduzir todo tipo de elementos em seus tecidos. Vídeo, filmes, tiras.

Tudo o que pudesse encontrar: plantas, ervas, tudo o que você puder pensar, ela incluía na trama. Lindo. Então fiz fotografias de detalhes dos tecidos.

E comecei a costurar as fotografias nos tecidos artesanais de ráfia que comprei no mercado local. Comecei a bordar esses detalhes. Eu tinha essa urgência. Mas, em paralelo a isso, trabalhei com as artesãs bordadeiras e as tecelãs. Foi uma experiência fabulosa.

O que era realmente extraordinário é que estávamos trabalhando naquele espaço e havia sempre uma borboleta que vinha e ficava sobre o tear, nos tecidos da Madame Zo.

Elos

Minha mãe3 estudou na Escola de Belas-Artes, em Casablanca, nos anos 1960.4 Ela me levava para lá de vez em quando, e eu costumava brincar com argila no departamento de cerâmica. Eu adorava fazer isso. Era uma criança hiperativa, então também corria no jardim. Eu sempre tinha um azulejo de cerâmica nas mãos, sempre. Foi um período divertido. Ainda tenho imagens desses momentos na escola cravadas na minha mente.

Lembro de Mohamed Melehi,5 adorava ele. Porque eu era pequena, mas ele prestava

Dizíamos: “Essa é Madame Zo. Seu espírito está aqui conosco”. Madame Zo foi uma revelação. E transmissão: o filho dela é tecelão. Ele faz um lindo trabalho e é uma linda pessoa. Então, há uma extensão dela nas mãos dele.

Ela era incrível. Costumava sair pelas ruas com seus tecidos e mostrá-los a qualquer pessoa que encontrasse. Que modo fantástico de tornar a arte acessível. Porque as pessoas se sentem intimidadas para entrar em uma galeria ou em um museu. Elas dizem: “Não, isso não é para mim”. Mas quando você leva a arte para as ruas, ela se torna disponível a todos. E as pessoas ficam completamente desinibidas. Adoro isso…

atenção em mim. Ele me levava para o ateliê de cerâmica e me deixava brincar com a argila, era muito atencioso.

Mas lembro também da minha mãe me levar ao ateliê de Farid Belkahia.6 Nessa época, minha mãe não tinha um ateliê próprio. E precisava de uma prensa. Farid possuía uma, e disse a ela: “Venha fazer suas impressões no meu ateliê”.

Bert Flint7 era professor na Escola de Belas-Artes. Que também descanse em paz. Lembro da casa dele, com aqueles maravilhosos gabinetes de vidro onde guardava

sua coleção de joias tribais, joias de prata. Talvez tenha sido ali que começou meu interesse pela joalheria. E a joalheria então me conectou com as instalações de arte e com os artesãos.

E a coisa mais bonita é que eu estava ministrando uma oficina, um grande programa em Essaouira, onde havia joalheiros, prateiros e marceneiros. Fui convidada a ministrar oficinas durante um ano com artesãos que criam joias. E encontrei Bert Flint ali, em um centro para artesãos, e olhei para ele, e nessa altura já era adulta, ele não era mais

jovem, e eu disse a ele: “Você é a razão pela qual estou aqui”. Olhamos um para o outro com muita emoção. E isso fez todo o sentido do mundo.

Você sabe, ligando os pontos, aquilo foi algo realmente poderoso. Então, essas são as pessoas das quais me lembro na Escola de Belas-Artes e que me causaram um grande impacto. Não era apenas pelo que elas faziam, mas seu universo era incrível para uma criança e uma adolescente. E todos eles eram grandes contadores de histórias.

Amina Agueznay, Noise [Ruído], 2018. Instalação composta de tecelagem,  trança, tricô, crochê, macramê, pompons, colagem; lã natural branca e tingida, pedras semipreciosas, papel, metal e MDF revestido com melamina. 170 kg de lã. 210 caixas de 50 × 50 × 25 cm cada. Museum of African Contemporary Art Al Maaden, Marrakech, 2019. © Saad Alami

Malika

Quando penso em minha mãe, em sua casa, ela está cheia de obras de arte. E, como eu disse, ela tinha um laboratório de fotografia no subsolo da casa. Depois, ela montou um ateliê, onde tinha a prensa. E ela é uma gravurista. Também é lá que ela pinta. E foi lá que estudei para o meu baccalauréat, 8 no ateliê dela. Você percebe o que quero dizer? Eles são todos humanos. Com suas qualidades, seus defeitos, e eles morrem. E a maioria deles já se foi. Assim, eu queria colaborar com a minha mãe, queria criar memórias dentro do ateliê dela. Seu ateliê é repleto de uma grande energia, onde tudo é possível. Onde a minha mãe não é mais minha mãe, mas, sim, uma parceira ajudando outra parceira. E isso é realmente muito interessante. Você a leva para fora do ateliê, ela se torna outra pessoa. E há esses territórios, esses mundos que são paralelos. Porque o ateliê é parte da casa em que ela mora. Então, eu queria continuar uma história. Ela ainda trabalha.

E quando você vê essa mulher frágil pegando o material para uma monotipia, preparando a cor e usando os rolos para aplicar a tinta nesse material que eu dei a ela, é muito comovente. Ela tem seu mundo próprio. Isso me remete ao mundo de Farid. Não do mesmo modo, mas também ao de Melehi, ou Bert Flint, ou quem quer que seja.

Eles têm um mundo que ainda é um mundo genuíno. E talvez seja por isso que eu continue a voltar para o campo o tempo todo. Pois até hoje estou tentando entender o motivo pelo qual mantenho esse tipo de interesse pelo artesanato, por que estou ainda colaborando com, ou tendo essa abordagem participativa do artesanato. Por que ainda estou fazendo isso? São as pessoas. É por causa das pessoas. Mais importante que a obra, a jornada. E para onde vou em seguida? O que vou fazer depois? Não sei…

1 Mohamed Benaissa (1937) é um político marroquino. Foi ministro das Relações Exteriores e da Cultura do Marrocos. Com o pintor Mohamed Melehi, em 1978, convidou artistas para pintarem murais nas paredes tradicionalmente brancas das construções da cidade de Asilah, com a crença de que a arte não deveria ficar restrita a galerias. O Moussem d’Asilah, nome oficial do Festival de Asilah, em Marrocos, acontece todos os anos e é considerado hoje um dos mais importantes do norte da África.

2 Zoarinivo Razakaratrimo, conhecida como Madame Zo (1956-2020), foi um ícone da cena artística de Madagascar. O trabalho da artista é identificável pela utilização de uma ampla gama de materiais naturais e artificiais em diálogo com os estilos de tecelagem lamba, tradicional dessa região. Suas obras têxteis têm formas e tamanhos incomuns, graças aos teares que ela construiu, e integram centenas de materiais, como papel de jornal, fitas magnéticas, componentes eletrônicos, cobre, ossos, plantas medicinais, espuma industrial, borracha, aparas de madeira ou alimentos perecíveis. Madame Zo faleceu em 2020 vítima de Covid, tendo seu trabalho consagrado mundialmente desde os anos 2000.

3 Por suas contribuições à arte moderna e à abstração na história da arte visual marroquina, Malika Agueznay (1934) se tornou internacionalmente conhecida como a primeira mulher artista modernista do Marrocos e integrante da experimental Escola de Belas-Artes de Casablanca. De 1966 a 1970, Agueznay foi a primeira mulher a estudar na Escola de Casablanca, como ficou conhecida. Em 1978, ela participou da primeira oficina de artistas conhecida como Moussem d’Asilah, o Festival de Asilah, trabalhando na técnica de gravura como a primeira mulher gravadora do Marrocos.

4 A Escola de Belas-Artes de Casablanca foi fundada em 1919, no Marrocos. A partir dos anos 1960, sob a direção dos artistas Farid Belkahia, Mohamed Melehi e Mohamed Chabâa, favoreceu abordagens experimentais e modernistas, ensinando arte abstrata caracterizada por formas, linhas, padrões geométricos e cores primárias típicas do modernismo. De 1964 a 1972, as práticas da Escola visavam promover a democratização do programa de estudos artísticos e dava destaque à utilização do artesanato tradicional marroquino, tanto em obras produzidas quanto em trabalhos com instrutores nos projetos.

5 Mohamed Melehi (1936-2020), nascido em Asilah, foi um artista modernista marroquino e figura central no movimento artístico centrado na Escola de Artes de Casablanca. Entre 1964 e 1969, Melehi foi professor de pintura, escultura e fotografia, na Escola de Casablanca. Na época, a Escola era dirigida por Farid Belkahia, com quem Melehi formaria o movimento da Escola de Casablanca. Em 1969, Melehi e seus colegas da Escola, incluindo Farid Belkahia, Mohamed Chabâa, entre outros, organizaram uma exposição-manifesto, intitulada Présence Plastique [Presença plástica]. Os artistas exibiram suas obras na Jemaa el-Fna, famoso mercado de rua localizado na medina de Marrakech, em oposição a um salão de “arte marroquina oficial” que acontecia ao mesmo tempo. Présence Plastique é considerada o momento fundador do modernismo no Marrocos.

6 Farid Belkahia (1934-2014) foi um reformador da educação e artista modernista marroquino. Ele atuou como diretor da Escola de Belas-Artes de Casablanca, de 1962 a 1974, durante o período do movimento modernista da Escola de Casablanca. Como artista, trabalhou principalmente com pintura, metalurgia e couro.

7 Nascido na Holanda, Bert Flint (1931) vive desde 1957 em Marrakech, onde tem pesquisado diferentes aspectos da cultura berbere e colecionado objetos e fragmentos a partir de então. De 1965 a 1968, foi professor de história da arte na Escola de Casablanca e participou do movimento modernista com os outros artistas mencionados neste texto.

8 Diploma nacional que certifica a conclusão do ensino secundário na França. É exigido para o ingresso no Ensino Superior, possibilitando tanto a continuidade dos estudos universitários quanto a formação profissional.

Artesãos de ruptura ou de renovação?

Fatima-Zahra Lakrissa

Todas as fotos:

© Youssef Boumbarek/ Fundação Bienal de São Paulo

O tradicional tapete Houdrane é decorado em um fundo de linhas horizontais e verticais que formam quadrados mais ou menos regulares. Na parte inferior e oposta do tapete, ou seja, no início da tecelagem dessa peça, o artista cometeu várias transgressões. Ele decidiu adaptar a grade tradicional à sua expressão pessoal. Por duas vezes, ele removeu uma linha horizontal e interrompeu uma das linhas verticais, criando assim espaços que lhe ofereceram as possibilidades expressivas de que ele precisava.

Bert Flint, “Légendes et commentaires Bert Flint”, Horizons maghrébins-Le droit à la mémoire, n. 22, 1994, p.44.

A arte popular é geralmente caracterizada como decorativa porque certos elementos que originalmente tinham um significado dinâmico, uma vez degradados e esvaziados de seu significado original, permaneceram, automaticamente, transformados e reutilizados em combinações ilimitadas. Em outros casos, foi a aparente simplicidade das formas que levou o espectador, incapaz de ler o conteúdo, a ver uma única dimensão aparentemente decorativa, quando na realidade havia uma série de valores expressos como contributos do fabricante e de seus clientes.

Toni Maraini, “Considérations générales sur l’art populaire au Maroc”, Maghreb Art, n. 2, 1966, pp.10-12.

A propaganda, que até agora tinha sido principalmente verbal, já produziu os resultados mais encorajadores [...]. Uma oficina particular em uma grande cidade do interior [...] construiu uma clientela que não lhe dá um momento de descanso. Os tapetes berberes de outra oficina no litoral apareceram com destaque em várias das lojas de departamento mais famosas de Paris. [...] Esse tipo de reconhecimento mostra que o público em geral está longe de ser indiferente aos esforços que começaram no Marrocos e, mais particularmente, no Departamento de Artes Indígenas.

Prosper Ricard, Corpus des tapis marocains, II, Tapis du Moyen-Atlas, 1926.

O protetorado francês, no início do século 20, levou inevitavelmente a um confronto que envolveu a arte tradicional e popular marroquinas e as disciplinas de antropologia e história da arte, que mais tarde se tornou objeto de exploração na Escola de Belas-Artes de Casablanca, na década de 1960. Da exploração dos dois confrontos disciplinares na Escola de Casablanca surgiu uma constelação distinta de personalidades e abordagens. A primeira – associada inteiramente à figura de Prosper Ricard – levantou questões sobre os principais problemas de proteção, priorização e musealização de produções artísticas que eram chamadas de artes indígenas ou artesanato. No segundo caso, um trio de artistas formado por Farid Belkahia, Mohamed Melehi e Mohammed Chabâa foi fundamental. Esse grupo, por si só, simboliza a reforma da educação artística que ocorreu após a independência do Marrocos e a transformação da arena artística, que abraçou cada vez mais a esfera social ao abordar seus problemas e questões. Após um longo período de ensino acadêmico e quase puramente técnico, a Escola de Belas-Artes de Casablanca se reorientou para um programa multidisciplinar graças a Farid Belkahia, seu diretor de 1962 a 1974. Belkahia implementou seu projeto de reforma reunindo uma equipe de professores composta pelos artistas Mohamed Melehi e Mohammed Chabâa. Juntos, eles introduziram métodos de ensino inovadores, com foco em experimentação na oficina, envolvendo pesquisa sobre caligrafia árabe e artes tradicionais e populares; mobilização para a integração da arte na arquitetura e no espaço público; e muitas outras posições artísticas e políticas destinadas a estruturar o campo artístico marroquino em diálogo com as redes artísticas pan-árabes e pan-africanas. Acompanhados pelos teóricos Toni Maraini e Bert Flint, esses artistas iniciaram a criação da revista Maghreb Art (1965-1969), que estabeleceu os princípios metodológicos e teóricos para a reabilitação das artes tradicionais e populares do Marrocos.

Encenações e narrativas

Como diretor do Service des Arts Indigènes (1920-1935) e, posteriormente, seu diretor honorário, Ricard foi o arquiteto por trás da política de patrimônio aplicada à produção artística local. Seu objetivo era a renovação, ressurreição e revitalização do artesanato marroquino, considerado ameaçado devido à presença do poder colonial e sua influência econômica e social na vida marroquina. Ricard assumiu o papel de salvador do artesanato do país, que ele procurou definir e recriar pelo prisma da autenticidade e da forma pura.1 A fabricação da autenticidade baseou-se em um diagnóstico etnográfico de interpretações seletivas do patrimônio e em métodos de inventário e categorização de práticas artísticas

tradicionais. O desenho técnico desempenhou um papel importante, conforme evidenciado por suas anotações e inúmeros cadernos de esboços relacionados à sua pesquisa sobre várias formas artísticas do norte da África.2

Imediatamente após sua criação, o Service des Arts Indigènes empreendeu amplas campanhas para coletar obras tradicionais, ou pelo menos aquelas rotuladas como tal, para serem exibidas nos recém-criados museus de arte indígena, que abrigavam as primeiras coleções etnográficas.3 Uma primeira distinção foi feita entre artesanato e artes de acordo com sua função; uma segunda distinção foi feita entre as artes descritas como “rurais” ou “berberes” e as “artes urbanas”. As primeiras, ligadas a uma estrutura de produção familiar e caracterizadas por formas geométricas; as segundas, estruturadas em torno de corpos profissionais e apresentando motivos florais.4 Essa distinção serviu de argumento para Ricard afirmar que a administração colonial havia descoberto e atribuído um patrimônio e um valor de mercado a essas produções artísticas, principalmente os tapetes rurais. Seus estudos gráficos e estilísticos dos tapetes marroquinos culminaram em várias publicações, sendo a mais conhecida o Corpus des tapis marocains (1923-1934),5 com quatro volumes.

No processo de proteção e modernização da produção de tapetes, a inovação técnica era o argumento essencial. Ela estava ligada à ideia de progresso e à evolução adequada das formas, dando ao assunto uma nova centralidade na visão imaginária da mudança que eles queriam forjar. O objetivo de Ricard era revelar o “padrão inicial” comum aos tapetes, agrupados em categorias de acordo com as regiões onde a pesquisa de campo foi realizada. O selo do Estado, estabelecido pela administração do protetorado, era a marca oficial de autenticidade, cujos critérios foram definidos no corpus. Ele deveria preservar a imagem e o prestígio da indústria marroquina e protegê-la de possíveis desvios estéticos e estilísticos. Esses processos de patrimonialização facilitaram o surgimento de uma visão essencialista das artes tradicionais marroquinas, cujo valor estético, aos olhos das autoridades coloniais, baseava-se no caráter a-histórico de uma gramática ornamental puramente formal e até mesmo mecânica.

Maghreb Art: um modelo contrapatrimonial?

Após a independência do Marrocos em 1956, considerações estéticas e morais entraram na avaliação das produções artísticas locais. Seu surgimento na Escola de Belas-Artes de Casablanca, em meados da década de 1960, desempenhou um papel fundamental no nascimento da abstração, enraizada na tradição artística secular. A revista Maghreb Art acompanhou os experimentos plásticos realizados pelo trio Farid Belkahia, Mohamed Melehi e Mohammed Chabâa com pesquisas teóricas destinadas a renovar o discurso e a literatura sobre os artesãos. Sob a direção editorial de Belkahia e com a participação de Bert Flint, Toni Maraini e Melehi, que era também diretor de design gráfico, a Maghreb Art testemunha as primeiras tentativas de estruturar um novo campo de conhecimento entre a experimentação artística e etnográfica, a cultura material e a história da arte.

A primeira edição foi encomendada pelo Centre Marocain pour la Recherche Esthétique et Philosophique, fundado em Marrakech, em 1963, por Bert Flint. As edições dois e três foram publicadas pela Escola de Belas-Artes de Casablanca. As duas primeiras edições (outono de 1965 e outono de 1966) incluíam textos de Flint e Maraini. A terceira edição (primavera de 1969) não continha texto; além de notas sobre os estúdios de Melehi e Chabâa, apresentava um arquivo fotográfico inédito das chamadas “produções pictóricas decorativas” descobertas por Flint nos tetos das zaouias da região de Souss e fotografadas por Melehi. O estudo de um corpus dos chamados objetos de arte tradicionais e populares delineou os contornos de um novo imaginário de mudança,

permitindo que a criatividade popular recebesse maior atenção e eficácia simbólica nesse esforço para reabilitar as artes no Marrocos.

A defesa das fontes artísticas locais foi apoiada pela pesquisa de Flint em antropologia visual. Seu conhecimento, pacientemente adquirido por meio de trabalho de campo, foi formalizado pelo estudo de artesanato e técnicas e pesquisa socioetnográfica. Seus estudos se concentraram principalmente nos tapetes da região de Haouz, nas joias (principalmente do vale de Drâa), nas mesquitas do vale de Nfis com suas colunas gravadas e nos tetos pintados da mesquita do vilarejo de Aït Ouajaj (Imdentaguen, Alto Atlas).6 Eles lançam uma nova luz sobre a relação entre o rural e o urbano e seus respectivos vínculos com a vida social e artística no Marrocos, conforme revelado por Flint, para demonstrar a ascendência da arte rural, advinda das tradições magrebinas e amazigh.7

A pesquisa realizada por Flint, que viveu no Marrocos desde 1957, cruza-se com as preocupações teóricas de Toni Maraini, que chegou ao país em 1962 com o desejo de prosseguir com seus estudos sobre artes populares no contexto marroquino e afro-mediterrâneo. Sua pesquisa sobre arte popular contribuiu para o desenvolvimento de um discurso sobre o patrimônio que se baseava na lógica da mistura de diferentes culturas, consolidada por teses de transferências culturais trans-mediterrâneas na esfera da arqueologia e da pré-História,8 que embasaram seu pensamento, bem como o curso de história da arte que ministrou na escola de 1965 a 1969.9 Durante esses anos, o ensino de Maraini foi enriquecido pelo estudo dedicado de Flint sobre as artes tradicionais e populares. Flint e Maraini compartilhavam o desejo de ampliar os horizontes para além da esfera europeia e de restaurar uma história da arte anteriormente negligenciada e aberta à expressão artística. Flint baseou suas análises de objetos em um modelo linguístico – o da gramática de formas e símbolos – enquanto Maraini buscou construir um campo de conhecimento em torno dos objetos da cultura material no entrecruzamento entre arte e antropologia.

Na encruzilhada das disciplinas

Entre Flint e Maraini, a questão não era apenas de substância, mas também de método. Isso levou Maraini a condenar o modelo de duas partes de Flint, “forma e símbolo”, em seu artigo “Forme et symbole du bijou marocain. Un problème de parahistoire” [Forma e símbolos nas joias marroquinas: um problema para-histórico].10 Sua oposição baseava-se em diferenças metodológicas e disciplinares na aplicação de ferramentas antropológicas a objetos de arte tradicionais e populares. Enquanto Flint buscava isolar, ou seja, ampliar o simbolismo

específico de uma forma, Maraini condicionava constantemente a história das formas a dados políticos, religiosos, sociais e, acima de tudo, históricos. A crítica de Maraini vai além do caso de Flint. Ela se aplica a uma parte considerável do pensamento ocidental, que, na época, era dominado pelo modelo linguístico que defendia a autonomia e a supremacia do significante.11 Prioritariamente, para Maraini, tratava-se de uma questão de defender os fundamentos de uma prática então emergente no Marrocos –uma história da arte pós-etnológica que ela visava inscrever simultaneamente em um processo de reflexão crítica e vínculo com a antropologia. Para Flint, as formas desempenham um papel essencial, pois são a única evidência da cultura quando faltam documentos escritos e, consequentemente, elementos cronológicos. Diante dessa ausência, Maraini reconhece a contribuição da antropologia, que fornece à história da arte uma de suas principais ferramentas conceituais, o “método comparativo”, consistindo em reconstruir um objeto perdido com base em observações cruzadas de seus rastros em objetos existentes. O discurso de Flint sobre objetos, com suas reivindicações de universalidade, seu fascínio pelos princípios internos da evolução da forma e suas interpretações subjetivas, parecia mais próximo de uma etnologia do século 19 do que da modernidade crítica que Maraini desejava introduzir no campo da arte. Sua abordagem crítica, dotada de uma cautela conceitual e da

rejeição do reducionismo e do essencialismo, parece estar alinhada à modernidade crítica da primeira metade do século 20, da qual obteve sua inspiração.12

O debate sobre as artes populares e tradicionais reflete a complexidade de uma situação histórica, cujas questões não se limitam à década de 1960, mas ressoam por todo o destino cultural do Marrocos pós-independência até os dias de hoje. Duas forças estão entrelaçadas: de um lado, a derrocada dos valores ocidentais; de outro, o desenvolvimento de um processo de reflexão crítica, expresso nos campos da literatura, história, poesia e sociologia, com contribuições fundamentais de outras revistas culturais de língua francesa, como Sou es (1966-1972), Intégral (1971-1977) e Lamalif (1966-1988).

1 Os arquivos pessoais de Prosper Ricard se encontram na biblioteca Oudayas, em Rabat. Sobre as atividades de Ricard e a organização do Service des Arts Indigènes, ver Muriel Girard, “Invention de la tradition et authenticité sous le Protectorat au Maroc: L’action du Service des Arts indigènes et de son directeur Prosper Ricard”, Socio-anthropologie, v. 9, n. 19, 2006.

2 Prosper Ricard destacou a contribuição das obras de Jules Bourgoin, arquiteto francês e teórico do ornamento. Ver: Jules Bourgoin, Les Éléments de l’art arabe: le trait des entrelacs. Paris, Firmin-Didot, 1879; e Jules Bourgoin, Études architectoniques et graphiques: mathématiques,

arts d’industrie, architecture, arts d’ornement, beaux-arts. 2 v. Paris: C. Schmid, 1899-1901; e Habiba Aoudia, Les “Feuillets d’art” de Prosper Ricard. Inventaire et analyse du fonds Prosper Ricard du musée du quai Branly-Jacques Chirac, 2014.

3 Sobre as missões do Musée Colonial e seu papel na política cultural colonial, ver Habiba Aoudia, “La fabrique du musée d’art marocain: l’œuvre de Prosper Ricard”, L’Année du Maghreb, v. 19, pp.37-53, 2018.

4 Jean Baldoui, “Quelques étapes de l’artisanat marocain”, Bulletin de l’Association Populaire des Amis des Musées (A.P.A.M.), jul. 1941. Fonds Prosper Ricard, lote 738, na coleção Prosper Ricard (parte do Service des Beaux-Arts, des Antiquités et des Monuments Historiques, transferido para os Archives du Maroc, Rabat). Ver também: Muriel Girard, 2006, op. cit.

5 Prosper Ricard, Corpus des tapis marocains. Paris: Paul Geuthner, 1923-1934. 4 v.

6 Bert Flint, La Culture afro-berbère de tradition néolithique saharienne en Afrique du nord et dans les pays du Sahel. Marrakech: Editions Jardin Majorelle, 2018, pp.330-331.

7 Idem, “Culture populaire, culture d’élite”, in Bert Flint, Forme et symbole dans les arts du Maroc. v. 2: Tapis, Tissages. Tânger: E.M.I., 1974.

8 Uma revisão da arqueologia marroquina de 1961 a 1964 apresenta os resultados de estudos e descobertas feitos nos períodos pré e proto-histórico, romano e pré-islâmico, mostrando a história do Mediterrâneo pelo prisma de uma mescla cultural muito distante. Ver o Bulletin d’archéologie marocaine, v. 5, Tânger: Musées et Antiquités du Maroc, 1964; ver também Germaine Tillion, Le Harem et les cousins. Paris: Editions du Seuil, 1966, p.87, apud Toni Maraini, “Mémoires métissées. Le paradigme antique”, Insaniyat, n. 32-33, pp.25-38, 2006.

9 Toni Maraini, “Réflexions autour d’un cours d’histoire de l’art” [1990], in Toni Maraini, Écrits sur l’Art. Casablanca: Le Fennec, 2014, pp.259-284.

10 Id., “Forme et symbole du bijou marocain. Un problème de parahistoire”, Intégral, n. 7, jan. 1974, pp.22-25. O ano de 1974 também foi marcado pela publicação de Tapis et tissages, de Bert Flint, que se seguiu a Bijoux, amulettes, dedicado ao tema “Forme et symbole dans les arts du Maroc”, introduzido em 1967, com a exposição de mesmo título realizada na galeria La Coupole da Escola de Belas-Artes, no Parc de la Ligue Arabe.

11 Ibid., p.23.

12 Essa abordagem é corroborada por antropólogos contemporâneos, como o britânico Edmund R. Leach, em seu Critique of Anthropology. Paris : Presses Universitaires de France, 1968, uma antologia de escritos publicados entre 1943 e 1959, cuja dimensão autocrítica a tornou atraente. Ibid., p.25.

Escrevo nos panos para os que não sabem ler

Texto elaborado a partir de uma conversa entre a equipe da Fundação Bienal e o artista em 14 de novembro de 2024.

Beto

Eu fui uma criança que deu muito trabalho. Sempre fui muito curioso. Minha infância foi no período da ditadura. Então, sou dos anos 1960, nasci em 1961. Você vive e respira, de alguma forma, mesmo sendo criança, um pouco do que está acontecendo. Até pelas notícias que chegavam em nossa casa. Era um período que você percebia que era muito diferente e tudo muito controlado. Todo o mundo sabia de tudo, até dos seus passos. Então, posso medir aquele momento pela forma como fui criado e ficava sem entender, por que, quando chegava em casa, meus pais já sabiam se eu tinha aprontado na rua, por onde passei, o que fiz, se comi na casa de alguém, se briguei.

Era aquela máxima do ditado africano: uma criança é criada por um bairro inteiro.1 E isso passou a ter sentido para mim porque fui lembrando, de fato, que antigamente, nos bairros populares, você era criado não só por sua família, mas pelo padeiro, o açougueiro, o dono da oficina, a moça do armarinho, o cara da venda, todo o mundo sabia de quem eram os filhos. Então, passava, “olha ali, o filho de seu Eduardo, que tem a oficina em tal lugar”. Ou seja, havia, de alguma forma, um cuidado com os filhos do outro.

Na minha adolescência, queria mesmo era ser jogador de futebol, sempre falo isso.

Achava que era possível. E até era mesmo. Eu era goleiro de futebol, treinava nos times aqui em Salvador, e particularmente muito apaixonado pelo Esporte Clube Ypiranga, porque eu tinha um primo que era juiz de futebol e torcedor do Ypiranga. Ele era de Cachoeira, minha família por parte de mãe vem de lá. O meu avô era professor nessa cidade que fica no Recôncavo baiano. Aí, depois, fui percebendo, conhecendo, sabendo, que o Ypiranga foi um time de 1916, fundado aqui em Salvador para que pretos pudessem jogar bola. Eu treinava nesse time de futebol. Dizem que eu pegava bem.

Acho que o Carnaval foi mais forte para mim. Então, eu fui me interessando pelos blocos e cinema. Ou seja, eu gostava de tudo que, de fato, a gente podia ter acesso. Primeiro, com meus irmãos mais velhos. E, depois, por minha iniciativa, sempre querendo estar nos lugares que eu ouvia falar. Cresci ouvindo Dorival Caymmi. Na segunda metade dos anos 1960, tinha uma irmã que tocava acordeon. Ela ia com as amigas para casa à noite e ficava fazendo música. Essas coisas que a gente teve o privilégio de ter acesso. Ao lado disso, entendendo as mudanças dos generais. Enfim, percebendo como o Brasil funcionava como sistema político, sistema de governo.

Eu estava interessado nessas

coisas todas, mas muito na questão estética do Carnaval. E aí, em 1974, surgiu o Ilê Aiyê. Um dos meus irmãos, o Alísio Pitta, era amigo dos caras da Liberdade.2 Então, trazia as notícias de 1973, 1974, 1975 para dentro de casa sobre esses movimentos. E a coisa da música também, porque toda casa que se prezava tinha uma garagem com

som, ou a sala era maior do que os outros cômodos, porque a sala era para dança. Então, tudo isso, os movimentos culturais afro da década de 1970, e que a gente estava inserido ali, nesse interesse político. Eu venho desse lugar.

Eu sou um homem que presta atenção a tudo. Por exemplo, aqui no ateliê tem uma plaquinha em que

Estampa criada por Alberto Pitta a partir de desenho de Mãe Santinha, ialorixá e mãe do artista, bordadeira e costureira reconhecida por seus bordados e richelieus . A arte original foi adaptada para ser aplicada em serigrafia.

está escrito Faculdade da Atenção. É onde fui formado, prestando atenção, como cientista social das esquinas. Tudo me interessa. Tudo eu aprendo. Essa é a minha formação e a do meu trabalho.

São essas coisas da imaginação, que são muito melhores do que qualquer outra coisa. Melhor do que o próprio sonho. Então, eu imagino o tempo inteiro. Eu vou fazer um carro alegórico, por exemplo, eu não faço um traço. Eu providencio tudo e monto. Então, quem está trabalhando comigo tem que sentir isso. Às vezes eu penso uma peça na diagonal, o cara pega e bota na horizontal. Fica melhor do que a que eu pensei. Então, vamos a partir daqui. Porque tem que ser tudo construção. Claro que você projeta, marca, mas quando vai fazendo, é aí que vai surgindo. A alma do negócio é isso, a

1981

Eu, na verdade, aprendi o silkscreen primeiro, nem falava “serigrafia”. Logo de cara, já gostei da mágica de imprimir, e eu não sabia como era feito tudo aquilo. Foi o primeiro acesso de verdade. E comecei a trabalhar com um cara chamado José Ribamar, ele fazia os escudos dos uniformes das escolas em Salvador. Ele viajava para o interior da Bahia, ou até de Sergipe, e pegava aquelas escolas de padres, e chegava em Salvador:

alma do trabalho e da arte está justamente aí. É quando o outro vem e coloca uma coisa sobre aquela coisa gigante que você fez. Quando ele coloca aquilo, ele está naquilo. E muita gente também vai estar naquilo.

A minha arte é justamente assim. Eu não tenho o menor problema com alguém vir e falar por que você não faz isso, isso e isso. É como você chegar, olhar uma obra de arte e dizer que não entendeu. Quando você diz que não entendeu, esse é o melhor resultado, porque você pensou sobre. Não é só você chegar e fazer a leitura de uma obra que já não é mais do artista. Ele botou lá, não é mais dele, já foi. Agora é de quem vai ver. E quem vê é que vai fazer a leitura daquilo, vai fazer a sua leitura.

“Vamos fazer isso, três mil escudos para uma escola”. Pense, três mil escudos, cada um com cinco cores. Meu Deus, eram 15 mil impressões. Então, fui aprendendo, porque ele imprimia muito rápido.

E, aí, fui aprendendo a imprimir, porque fazia a camisa, você comprava o escudo na escola e costurava na camisa, virava o bolso. Então, você fazia cinco mil escudos pequenos. Você tinha que cortar, tinha que marcar e cortar, em um

tecido tipo um tergal, enfim. E era um trabalho terrível. Mas, ali, fui aprendendo justamente a fazer, porque ali era a técnica da serigrafia. E, com isso, surgindo blocos afro e afoxés, e embocando esse movimento em Salvador, as pessoas começavam a me chamar para fazer as fantasias. Primeiro, para fazer o que já tinham em mente, porque, como eu dominava a técnica do silkscreen, eu podia fazer as matrizes e imprimir. Depois, eu disse, não, agora eu vou fazer.

Aí, começaram a me entregar o tema e a responsabilidade de criar a estampa para o bloco. Então, era tudo muito localizado. Você pegava um bloco de índio, 3 e era uma máscara, barra da calça, do colete, do blusão. Então, era a impressão localizada, não era estamparia corrida. Comecei a criar para vários grupos e nem me dava conta, achava que era um grupo de cinquenta, de cem. Eu chegava lá e tinha mil pessoas. Eu digo, uau, e eu que fiz. Era uma época em que a gente não guardava as coisas.

Encontro de experiências

Tenho o tecido como a minha plataforma de discussão. Não é nem discurso, é discussão mesmo. Vejo no pano justamente essa metáfora de possibilidades, de estar falando sobre várias questões ali. Por outro lado, o pano significa roupa. O pano era o que minha mãe saía para comprar na Baixa dos Sapateiros4 e trazia para casa e cortava a nossa roupa. A gente não tinha roupa pronta. Ela mesma fazia calças e camisas. Tirava as medidas e fazia tudo para todo o mundo. Mas eram sempre cores frias, digamos assim. Era azul-marinho, cáqui, marrom e cinza. Essas eram as cores que a gente usava na época. E eu particularmente não gostava, mas tinha que usar. Era o que tínhamos. Mas ela procurava

fazer o melhor com essas cores. Tanto que hoje trabalho muito com tons terrosos e sempre me lembro dessas cores. Porque eram cores que você aparecia o mínimo possível. Eram cores que não chamavam a atenção. Meus pais relacionavam isso justamente ao período de ditadura. Época em que preto não usava verde, vermelho, amarelo e estampados. Nem pensar nessas cores. Então, quando você usava esses tons, o marrom, o cáqui, o azul-marinho, era uma forma de lhe camuflar, de lhe proteger.

E a gente foi entendendo aos poucos isso. Mas, aí, depois que, com os blocos, suas cores, a ousadia que a gente via nas pessoas, com o surgimento do Ilê Aiyê, e esse discurso através dos panos, da

estética, fui me envolvendo. E o fato de perceber que muita gente que sai nesses grupos não sabe ler, não teve oportunidade de ir para a escola, comecei a escrever nos panos, sempre colocando algumas coisas para provocar. Para provocar os que não sabem ler. Porque imagine alguém que veste uma fantasia do Ilê Aiyê, do Muzenza, do Cortejo Afro, do Olodum5, e não sabe ler? É uma fantasia cheia de histórias contadas, mas ele não sabe ler. E ele observa que todo o mundo está lendo no pano dele, o que está escrito literalmente, menos ele. Claro que a gente não tem como mensurar isso, mas, de alguma forma, esse sujeito vai começar a querer aprender a ler por conta disso, porque ele foi provocado o tempo inteiro no Carnaval. Então, ele vai sair do Carnaval com uma falta, que é justamente essa, desses interesses pelo que está escrito na fantasia dele. Foi observando isso que comecei a contar a história nos panos dos blocos. Então sempre tem que ter coisas escritas, sempre, o que for.

Para além dos símbolos, dos signos, enfim, da semiótica, você escreve. E aquela coisa que falo sempre do encontro de analfabetos, porque também os que vêm de outro lugar, que vêm da academia, têm a oportunidade de ir para a escola, vão chegar em um bloco afro e não vão conseguir entender o carro alegórico, não vão conseguir entender a

indumentária do rei e da rainha, não vão entender o pano, não vão conseguir ler nos símbolos que os atraíram. E eles vão perguntar ao cara ao lado, que não sabe ler, e que vai contar toda uma história para eles. E aí, automaticamente, as pessoas se identificam. As pessoas que saem nos blocos afro saem em busca de uma identificação, elas têm uma motivação para saírem nesses blocos.

São essas histórias que a gente vai acumulando e, de alguma forma, depositando nos panos, escrevendo, contando, cortando, costurando, pensando no outro; que tem que gostar da roupa, tem que gostar do detalhe, tem que entender que houve um cuidado ali, porque a bainha está bem-feita e tudo, o tecido está bem estampado, chegou lindo, colorido, e as pessoas vão ficar bonitas, porque as pessoas querem, no final da história, recuperar, através das técnicas, a sua energia. Não adianta tratar a pobreza com a pobreza. Não adianta. Você tem que fazer o melhor para a gente do povo. Então, essa é a lógica.

As pessoas levam para casa e aquilo vira uma almofada, vira uma toalha, vira um caminho de mesa, vai para a moldura, vai para a parede, vira uma cortina. Isso é identificação com pano. Então, é um outro tipo de compromisso. Eu sei desse outro compromisso.

Carnavais

Junto ao bloco há todo um movimento para além do Carnaval. Tem a música, por exemplo, e a responsabilidade em traduzir em desfile o pensamento da entidade. Ou seja, isso é uma escola que você aprende o tempo inteiro com os acontecimentos, com as adversidades, com as divergências dentro de uma entidade, o que é normal hoje e que acontecia muito lá atrás. Não tinha muitas informações para ninguém. Então, era uma África baiana livre e soberana bordada nas pranchetas do imaginário. A gente imaginava uma África livre e soberana.

Na época, já existia também o Malê de Balê.6 E a gente ficou curioso e vem a história dos malês. Da Revolta dos Malês, de 25 de janeiro de 1835. Tudo era imaginário. Tudo a gente imaginava. Ou seja, era uma grande tela da imaginação e a gente vendo os filmes. Os filmes eram a Revolta dos Búzios, a Revolta dos Malês, libertação de países africanos, cores, signos, símbolos, estética, lutas. Esse filme passava na cabeça de todo o mundo nessa cidade. E, sobretudo, de quem era fazedor de arte dos blocos.

Fazer um Carnaval com o tema muçulmanos, nesse sentido, foi interessante. É uma questão estética também dos muçulmanos, dos tuaregues, por exemplo, que têm aquele tipo de turbante que passa, que enrola…

Porque aquilo ali é para uma proteção contra o calor. Tanto pano no deserto é justamente para proteger do calor. Se você não tiver nada no deserto, você vai morrer frito. O tecido protege.

Voltando à história do Malê de Balê, um ano eles colocaram um tanque de guerra na rua e desceram a praça Castro Alves. O caminhão era um tanque. E a banda inteira do Malê de Balê estava vestida de guerrilheiros. A cidade ficou assim, todo o mundo parado, olhando. E o bloco desceu, exaltando os malês, a Revolta dos Malês, 1835, hiperempoderados, as indumentárias nas cores pan-africanistas. Os caras chegaram junto, uma coisa colorida, linda, africana. São coisas que vão marcando.

O Carnaval do Olodum de 1990, cujo tema foi “Do deserto do Saara ao Nordeste brasileiro”, botei todo o mundo de preto. E todo o mundo ficou olhando e imaginando tudo em preto e branco, num Carnaval extremamente colorido. Claro que a imprensa jogou duro, os foliões queriam me bater dentro do bloco, olhavam para mim: “Que fantasia é essa?”. Mas era o governo José Sarney, um período de inflação terrível, de falta de dinheiro.

Aí, no dia seguinte, a imprensa disse: “Não, é porque o Olodum está protestando justamente contra a inflação”. A imprensa abraçou, todo o mundo abraçou, mas quase

Estampa para o bloco Malê de Balê (2019) Cortesia do artista

eu apanho na sexta-feira.7 A Gal Costa inclusive gravou no disco Plural (1990) a música “Revolta Olodum”. “Ô Curisco, Maria Bonita

mandou-lhe chamar.” São essas provocações que o bloco afro nos forma.

Mãe Santinha e Instituto Oyá

Minha mãe sempre trabalhou na área da educação, além de tocar piano e falar francês. Desde cedo, ensinava seus irmãos mais velhos.

Um deles, o dr. Carmelito da Rocha Pitta, que faleceu há alguns anos, tornou-se médico e diretor de hospitais em São Paulo. Foi ela quem o ensinou a ler e escrever, antes que ele deixasse a Bahia para morar em São Paulo e formar sua família. Isso é importante

porque vem da infância, do fato de minha mãe ter essa preocupação com as crianças.

Aqueles que ninguém quer, aqueles que ninguém assume. Aí, eu falo como estado e município, sobretudo. E com essa tradição de receber sempre lá em casa as crianças, terminou-se por fundar o Instituto Oyá.

Então, nós entendemos que tinha que dar continuidade àquele

Instituto Oyá Cortesia do artista

esforço dela. E o Instituto está aqui, no bairro de Pirajá, que é um bairro importante, que conta também um pouco sobre a Independência da Bahia, o 2 de julho. Tem um panteão, uma igreja, o general Labatut sepultado ali, toda uma história aqui no bairro, fora a grande Bacia do Cobre, que é o nosso visual de todo dia.

E, um pouco mais adiante, as cachoeiras do Parque São Bartolomeu, um lugar que tem um um resto de Mata Atlântica. É lindo, esse lugar. É nele que moram essas crianças que todos os dias estão no Instituto e são recebidas pelos educadores nas margens dessas áreas, e atuam junto, ensinando e aprendendo, porque com criança você ensina e aprende ao mesmo tempo.

São crianças de dez a

catorze anos. Todo dia recebo um grupo para desenvolver esses trabalhos. É engraçado que, um dia desses, resolvi trabalhar a estética de Rubem Valentim. Coloquei na televisão sua produção e eles ficaram olhando e disseram que era isso que iam fazer, e começaram a desenvolver todo um trabalho. Eu observava e eles falavam sobre o que estavam entendendo daquilo enquanto desenhavam. Eu disse que não queria que desenhassem, queria que pensassem e cortassem as formas para a gente trabalhar. Aí, teve um que falou assim: “Mas eu preciso desenhar, eu preciso mostrar o meu desenho para depois…”. E começou a me dar aula. Eu pensei: “Eu tô ferrado”. Ou seja, não precisa falar muito, basta botar o material bom e deixar a criança, que ela vai ter um resultado. Então, aquele

resultado pode ser um disparador. Esse lugar de educação é isso. E é um terreiro de candomblé, onde a gente não mistura. Mas já falaram em Oxóssi, falaram em Xangô, falaram não sei o quê. Porque é um espaço que por si só traduz, e, aí, eles vêm chegando, você descobre que a avó tem um terreiro, que a outra avó frequenta não sei o quê, que a mãe vai em tal lugar, que ele gosta de tal orixá, vários entram aqui falando. E a gente não incentiva nada, só ouve, entende e cuida. O importante é cuidar, é dar atenção. As crianças só precisam disso para crescer. É você trabalhar ali com a linguagem. Isso que você fez está muito miúdo, faça maior. Isso que você fez, cresça. Quando vai ver, ele

já faz. Ou seja, não é o desenho em si, o crescer, quando ele corta maior, ele se empodera também. Ele entende que ele pode ser maior. Então são metáforas, são formas que você tem de educação.

Mas a gente tem que ser o melhor. Então tem que ser o melhor para a gente do povo. E é isso que a gente pensa aqui. O mesmo material que eu trabalho é o mesmo material que eu disponibilizo para eles. Não tem nada diferente. O mesmo, com tudo. Tudo que eu uso eu boto para eles. E eles vão olhando e começam a perguntar, perguntar, deixa perguntar, vai perguntando, você vai respondendo. E isso forma. Quando sai daqui, você não tem como mensurar, eu sempre falo isso, mas alguma coisa vai acontecer.

1 Provérbio africano de origem ashanti, grupo étnico mais conhecido entre os povos Akan de Gana, localizado na região ocidental do continente africano, que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”.

2 Localizado em Salvador (BA), esse território ostenta o título de bairro mais negro fora do continente africano, e tem o bloco afro Ilê Ayê como maior referencial de educação e cultura negra local.

3 Para saber mais sobre o termo, indicamos o texto De índio a negro, de Antônio Jorge Victor dos Santos Godi. Disponível em: periodicos.ufba.br/ index.php/crh/article/view/18843/12213 . Acesso em: 2024.

4 Tradicional centro de comércio popular em Salvador, Bahia.

5 Conheça um pouco mais da história dos blocos afros citados com esta série de vídeos: Afros e Afoxés: A revolução do tambor. Disponível em: www.youtube.com/@salvadorcapitalafro9726/featured. Acesso em: 2025.

6 Bloco afro fundado em 1979 por moradores do bairro de Itapuã, Salvador.

7 A sexta-feira de Carnaval é o primeiro dia de desfile do bloco afro Olodum.

Hadra... Hida... Hal

Maha Elmadi

Lalla Khala, Khalla...

Ponto de beleza.... O esplendor da alma... do espírito

Aquele grão de beleza que nos torna humanos em nossa imperfeição. l’Khalla, Minha tia “materna”... essa alma gêmea da mãe.

Há um provérbio marroquino que diz

Quando seu pai morre, você ainda tem o coração de sua mãe para confortar sua alma,

Mas se sua mãe desaparecer, você terá apenas a porta de entrada como travesseiro.

Mas se você tiver uma tia, nunca será um órfão.

Khalla, l’khala, o coração e a tia, esse é o vínculo que nos mantém unidos e me inspira. Lalla Khala que dá sem herança.

As mães ao seu redor, em transe, sem amarras, livres, levadas pelo ritmo e pela voz, viajando pelo tempo, pelos tempos que virão.

Hadra quebra o silêncio. Meu silêncio e o silêncio das mulheres escondidas no tempo, à margem. Hoje é a voz que abre o caminho para o amanhã.

Laila, a noite, a magia, o romance, a luz do silêncio, esse caminho da vizinhança, um infinito vai e vem entre hoje e amanhã, arte, a imagem, a foto, a voz, o olhar, LE 18... espaço, Dar Bellarj,... o começo…

Hadra... Hida... Hal... Transe. Seguindo em frente.

Foto: © Youssef Boumbarek/ Fundação Bienal de São Paulo

Como a pulsação

Todos, em todos os lugares e o tempo todo, respiram.

Assim como o batimento cardíaco, a respiração conecta todas as criaturas vivas.

Ela situa todos nós em um momento no tempo, em simultaneidade.

Assim como o batimento cardíaco, a respiração define o ritmo de uma vida, sua linha de base. Ela registra a passagem do tempo como um relógio. Uma respiração segue a outra.

Assim como o batimento cardíaco, a respiração é uma repetição contínua de inspirações e expirações: inspirar e expirar, repetidas vezes; às vezes mais rápido, às vezes mais lento, mais curto ou mais longo.

São, em média, 23 mil respirações por dia, 8,4 milhões de respirações por ano e, multiplicado por um número x de anos, uma vida inteira.

Na Invocação #1 – Sou es: Sobre escuta profunda e recepção ativa, a artista Simnikiwe Buhlungu falou sobre a diferença entre looping e síntese. Com base na premissa de que, no looping, o mesmo fragmento é repetido, e que a síntese pode, portanto, ser pensada como um looping cronológico. Ela se questionou se uma voz (mesmo que otimizada, uma oitava abaixo ou equipada com um filtro passa-altas) de um momento histórico ainda seria considerada a mesma voz quando ouvida em um encontro futuro.

A respiração se baseia nessa repetição contínua, em um looping cronológico. Entretanto. cada inspiração e expiração combinadas estão entrelaçadas a um momento no tempo e a suas circunstâncias, sendo moldadas por nosso estado físico, mental e emocional. Não existe, portanto, uma respiração igual à outra.

A respiração nos situa em um momento no tempo e, simultaneamente, cada respiração se baseia na que a precedeu e estabelece o terreno para aquela que se segue.

Ao respirar, inspirando e expirando, repetidamente, estabelecemos uma conexão entre momentos no tempo, e uma conexão consigo e com os outros, em simultaneidade.

Há apenas uma primeira e uma última respiração.

Quando um bebê nasce e é trazido ao mundo, seu primeiro choro marca sua primeira respiração, o que faz com que os pulmões se expandam e o sistema circulatório se adapte à vida neste mundo. E a última respiração, por sua vez, marca o lento desligamento do maquinário orgânico que nos mantém vivos – a consciência se esvai e chega ao fim.

Em sua nota de boas-vindas para a Invocação em Marrakech, minha querida colega Alya Sebti adaptou a pergunta de Leo

Asemota “ao olhar para o espelho, quem você vê?” para “ao olhar

para o espelho, o que você ouve?”. Desse modo, ela indicou uma conexão horizontal e vertical no tempo e no espaço, que é estabelecida no ato de respirar – correspirar por assim dizer – e nos conecta com todos os outros que estão respirando paralelamente, bem como com aqueles que estavam antes de nós e com aqueles que ainda virão a respirar. Não importa quem, quando e onde se esteja – todos nós respiramos. E, no ato de respirar, teoricamente somos todos iguais. Portanto, ao respirar em união e simultaneidade silenciosas, afirmamos essa igualdade, de forma consciente ou não.

Em Marrakech, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung invocou o espírito do poeta Rendra que, em seu poema seminal “Sebuah Dunia Yang Marah” [Um mundo enraivecido] (1960), repetiu a pergunta “Como o mundo respira agora?” várias vezes para lamentar:

com total espanto, o estado inescrutável do mundo de hoje. O termo “hoje”, em sua relatividade e elasticidade infinita, é aquele dia, aquela semana, aquele mês, aquele momento em 1960 em que o poema foi escrito, e aquele ponto no tempo hoje, em que se nota que aquele hoje de 1960 poderia facilmente substituir o hoje de agora e vice-versa.1

Como é possível que esses momentos de imensa violência cometidos por pessoas contra outras pessoas sejam possíveis e continuem a se repetir? Como as pessoas contidas nesses momentos ainda conseguem respirar? Talvez essa respiração seja uma expressão da crença na humanidade, de que algo pode e vai mudar? Será que ela reflete a crença naqueles que ainda estão por vir e que farão algo diferente para que esses momentos de respiração duradoura não se repitam?

Seja como for, concentrar-se na inspiração e na expiração conscientes pode ser a única maneira de respirar durante esses momentos, sem perder a cabeça.

Ao contrário do batimento cardíaco, a respiração pode ser orientada de forma ativa.

Embora respiremos inconscientemente na maior parte do tempo, ao controlar e regular cada inspiração e cada expiração, temos o poder de mudar a maneira como nos sentimos no momento e com o momento. Portanto, nossa respiração não é apenas moldada por nosso estado físico, mental e emocional, mas também é capaz de influenciá-lo. Por meio da respiração consciente, podemos afetar nosso corpo tanto de forma física quanto psicológica, ou seja, acalmar a frequência cardíaca, diminuir a pressão arterial, fazer com que a dor seja sentida de uma maneira diferente ou reduzir o nível de estresse emocional ao lidar com a ansiedade.

A respiração consciente depende de uma escuta profunda da própria respiração – como prometia o título da Invocação, em Marrakech. Nas práticas tradicionais budistas ou hindus, como meditação e ioga, a respiração consciente é utilizada para reunir o foco mental no corpo e em seu movimento, a fim de alcançar um estado mental diferente, presente no momento, por completo. Também em encontros sufis, como os hadras, que tivemos a sorte de vivenciar em Marrakech como parte do primeiro capítulo da 36ª Bienal de São Paulo, realizados por Les Mamans Douées, um grupo de mulheres da vizinhança de Dar Bellarj. Esse grupo foi formado em 2008, após a morte de Susanne Biedermann, fundadora e mãe espiritual do Dar Bellarj, por iniciativa de Maha Elmadi, sua diretora, para combater os preconceitos que reduzem as mulheres aos papéis de mãe ou esposa. O grupo se transformou em um sistema de apoio para as pessoas envolvidas, no qual elas praticam rituais sufis ou se reúnem para workshops, peças de teatro ou sessões de artesanato.

No pátio central do Dar Bellarj, as mulheres cantaram coletivamente e de forma “ostinada” versos poéticos religiosos enquanto se inclinavam em sincronia para a frente enquanto expiravam, e se endireitaram novamente quando inspiravam. O movimento, com o canto e a respiração, formava um ritmo hipnotizante para todos os presentes. Esse ritual durou cerca de duas horas, com vários momentos em que a tensão ficou muito alta, tanto para as mulheres participantes quanto para o público – todos os presentes apoiaram os cantos das mulheres batendo palmas e/ou cantando durante a maior parte do tempo. Testemunhar esse ritual, ouvir uns aos outros, respirar e se movimentar juntos, em presença coletiva, física e emocional, foi uma experiência única e um lembrete impactante de como estamos todos interconectados no tempo e no espaço. Nada existe fora. Respirar é ser e fazer parte disso.

1 Ver “Como ventilar em um mundo hermeticamente fechado”, de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, nesta publicação.

Uma prática de errância

Omar Berrada

Para e com

Christian Nyampeta

como viver como juntar desatados caminhar juntos pelos campos & formas de saber

nós consertamos nós emprestamos o ouvido à terra e damos abrigo de outro modo

uma resolução assombrosa para minar a modernidade desarticula a teimosa repetição do terceiro-ser dissona fora de todo conceito escrever de outro modo o sistema jamais vai definir um fragmento

vamos estudar o silêncio da utopia a corrosiva ironia do realismo o julgamento implacável da ruína o sistema dos nossos nervos vamos nos agarrar à semente

um banco de dados digital da expressão africana kampala & Kigali maseru & mechelen dessedimenta os grandes lagos vê (v)nosso arquivo titubear a solidariedade é pré-simbólica

até suas mãos seus gestos eram fascinantes até o repouso resseca como resultado de um punho direito em riste recebido nos públicos interiores da arte monastérios

idiorritmia

toda liberação invariável

todo um locus de brincar as implicações da sincronicidade os prazeres da paz

o cabelo dela tocou a grama ritmos são invisíveis

uma tarde tranquila um jardim cercado o fio a pedrinha a pedrinha o fio a ausência de dedos adultos ordem   sacrifício   distração imposição controversa o deserto se tornou um estado interior

que som precedeu meu nome nos sedimentos coloniais do capital e se a conversão for um folclore

tecnologia é previsão memória é interlúdio como surgiu a canção – kwibuka –como surgiram as deformidades digitais da canção – o apagar tangível –como iremos honrar as vítimas seus ritmos monumentais de repouso quando uma nova língua escreve vida nova no pós-vida das nações

vivemos para nos arrepender ninguém foi nutrido pelo ritmo dessa cruz a ocupação é dada numa confluência de águas

considere o prestígio e a presença dos retratos um largo chapéu com penas qual era o nome do congolês enviado a receber um casaco de veludo uma faixa de ouro um navio cruzava a ordem presente dos ocasionalmente traduzidos especulativos enfeites de prata

reconsidere toda a genealogia do pensamento a censura do músculo insurgência filosofar é traduzir – akan –

uma língua das línguas colocando a lógica à prova da reciprocidade ingênua uma estranha forma de totalidade humanismo genocida

o que é ouvido e o que é dançado uma compreensão diferente do som o vai e vem o zum do sentido o como do ouvido o primário do órgão uma música de imagens

a indisciplina passa pelos duros solilóquios do pensar uma prática de errância no encontro de si

rené descartes   zera yacob des      ditos elos moldam uma gramática da perda catalogada

a filosofia alcançou um limite no scriptorium

ouça e presuma habite e recuse um convite para formar uma composição

uma forma-de-lei que colonizou o mundo uma qualidade do humano nas mãos do ocidente uma prática de olhar além um poder ser outra coisa além de um mero instrumento

minha crítica à razão sonâmbula foi uma declaração

não uma difamação pode me chamar de mitólogo dou sentido

aos prefi xos

se posso usar outra pessoa eu posso evitar a violência?

poucos são os livres para cuidar do coração para perguntar sobre as árvores para viver com o futuro

na ausência de um exterior

plantamos sensibilidades interiores

Uma versão anterior desses poemas foi publicada em: Christian Nyampeta, Togetherward. Archive Books, 2022.

Os poemas emprestam e recompõem a linguagem de um conjunto de textos reunidos por Christian Nyampeta em um repositório de materiais de referência para projetos em andamento. Os seguintes são de particular interesse: Bourahima Ouattara, “Fragmented Africa”, tradução de Christian Nyampeta, 2018; “Public Interior”, Christian Nyampeta em conversa com Maaike Lauwaert, 2015; Armand Gauz, “The Dreams of Kong by Binger”, tradução de Christian Nyampeta, 2018; Souleymane Bachir Diagne, “Thinking from Language to Language”, tradução de Christian Nyampeta, 2018; Tina M. Campt, Listening to Images. Duke University Press, 2017; Séverine Kodjo-Grandvaux, “Mirror Effects: Thinking Africa, Thinking the World”, tradução de Christian Nyampeta, 2018; Denise Ferreira da Silva, “Togetherward”, 2017; Maniragaba Balibutsa, “Les perspectives de la pensée philosophique Bantu-rwandaise après Alexis Kagame”, tradução de Christian Nyampeta 2019; Rose-Marie Mukarutabana, conversa com Isaïe Nzeyimana, in A Communion of Spirits: Conversations in Arts and Philosophy, filmado por Christian Nyampeta, 2018; Christian Nyampeta, “‘In the Black Color of the Night’: Theology and Philosophy in Exile”, 2019.

O poder do transe

Taoufiq Izeddiou

Para mim, um espaço de transe é, antes de tudo, um espaço de liberdade. Ele está no aqui e agora, renovado de um momento para o outro, de um Lila1 para o outro. Isso significa que a pessoa que entra no espaço de transe aceita ser levada por essa cosmogonia, como o gnawa, o hmacha ou o aissawa, por exemplo. Também vejo o transe como um espaço terapêutico, porque essa experiência depende da pessoa, do que ela carrega em seu coração, de sua carga energética e do que está acontecendo em seu ambiente social, em sua vida, e de como seu corpo e sua alma ressoam com tudo o que está acontecendo no mundo.

O espaço criado no transe é, portanto, de inspiração e criatividade. É também um espaço de liberdade, pois não há protocolo para entrar em transe. É a combinação de nossos passos, nossos corpos, nossas idades, nossas feridas, nossas perguntas e as voltas e reviravoltas da vida que nos permitimos dar. Sempre digo que quando a mente está relaxada, o corpo está relaxado. É por isso que acho que as danças executadas por mulheres são mais expressivas, mais livres e mais espetaculares, porque a maioria das mulheres, dada a sociedade em que vivemos, carrega muitas coisas pesadas e muitas coisas não ditas. Muitas vezes, elas não têm muito espaço para se expressar, para desabafar, para “colocar tudo para fora”. Eu sempre digo que, enquanto no Ocidente você vai a um psiquiatra, aqui no Marrocos passamos uma noite em transe.

Voltamos a nós mesmos e somos atendidos pela sociedade. Quando digo que é a sociedade que cuida de nós, não quero dizer de forma alguma que chamamos os bombeiros ou a ambulância quando alguém cai. O que quero dizer é que somos nós, como sociedade, que inventamos a nós mesmos, depois de dançar até a exaustão.

Essa questão da exaustão é fundamental. Como se esgota um sistema e como se passa de um corpo político para um corpo poético? Um corpo político que, a princípio, está repleto de tensão, é guiado por suas conquistas. Um corpo cansado que perde sua força dá lugar à poesia. Acho que há uma verdade fundamental no momento do cansaço. Nessa transição do corpo político para o corpo poético, surgem muitas coisas bonitas.

Fundamental para acessar essa transição é a questão da repetição. Como um movimento, o mesmo movimento, ou um salto ou um gesto repetido, se alimenta do tempo e do espaço? Como não podemos relaxar para que ele também se torne outro, mesmo que ainda estejamos no mesmo movimento? Como esse movimento evolui e, portanto, como nosso corpo, em seu cansaço, consegue produzir dança, gesto, energia e movimento? É nesse exato momento que não devemos relaxar nem nos esgotar. Porque é no exato momento em que ficamos

cansados que tudo começa. Um artista que assume essa força, essa raiva e essa energia de transe é um artista que pode comunicar essa transição, porque seu movimento não é em vão. Ele é cheio de emoções, energia e o intangível. Esse é o poder da dança. Temos que cavar nos buracos escuros de nosso ser em busca das coisas que não ousamos enfrentar. Devemos ir até lá em busca da fonte de inspiração e perseverança, em busca de continuidade e criatividade.

O transe da Lila gnawa é caracterizado por sete cores. Cada uma dessas sete cores ilustra uma parte de nossa personalidade. O amarelo, por exemplo, expressa o lado feminino, o verde expressa nossa espiritualidade e o azul expressa os espíritos acima de nossas cabeças, o mar e o céu. Estou muito interessado no vermelho porque, na cultura gnawa, o vermelho é associado ao som. Em todo o mundo, estamos com o som. Tanto com o som quanto com o amor, e esse encontro dos dois é muito importante. É por isso que uso muito o vermelho e o preto em minha dramaturgia, para falar sobre a questão do desconhecido, o mistério que a cor preta carrega e seu encontro com o poder do som.

Encontramos o transe em todo o mundo: há o vodu no Haiti, o zar no Egito, os dervixes rodopiantes na Turquia, o butô no Japão ou até mesmo a música techno. Todas essas fontes refletem-se em meu trabalho.

Mas é da tradição de transe gnawa ou hmadja que eu nutro a forma que é questionada nessa apresentação. Usei o transe como fonte de pedagogia e aprendizado para o dançarino contemporâneo, que se baseia em passos, ritmos, liberdade de expressão, a questão da resistência e o que o guembri é capaz de desbloquear. O som desse instrumento ancestral não é trivial. Composto de madeira de caju e intestinos de cabra virados do avesso para formar o contrabaixo, ele toca algo visceral. E quando você toca, o som vai direto para o coração, para as profundezas da alma. Ele vai além e se liberta do território do cérebro para assumir o controle do corpo e do coração, e é isso que faz com que muitas coisas evoluam no gnawa. E esse é o poder do transe, como um espaço para evoluirmos como seres humanos.

1 Lila é uma cerimônia musical de cura realizada por músicos gnawa que geralmente começa ao pôr do sol e se estende até o nascer do sol. Vem da palavra árabe lila, que significa a noite.

Can You Feel It

Conversa com Simnikiwe Buhlungu e Thiago de Paula Souza

Thiago de Paula Souza: O som sempre foi um elemento importante em sua prática artística. Quando a convidamos a participar da primeira Invocação, você mencionou que se interessava pela tradição gnawa. O que estava pesquisando exatamente?

Simnikiwe Buhlungu: Eu conhecia a gnawa mais como ouvinte da sua música do que como pesquisadora de uma história em particular. Eu ainda não tinha mergulhado nas profundezas que acessei posteriormente. Acho que é importante incluir e dar espaço à prática de ouvir música, evitando tratá-la como uma entrada imediata na “pesquisa”.

TdPS: Concordo. Mas não se pode negar que ouvir pode ser a porta de entrada para um assunto de pesquisa maior. Às vezes, pode funcionar como um meio usado para que se comece a pensar e estudar contextos diferentes. Estou curioso para entender se a escuta aparece como uma ferramenta artística para você e, em caso afirmativo, como isso se dá.

SB: Vou começar com uma historinha. Quando penso em escuta, penso numa ação importante de ser realizada quando você era criança, ou seja, você tinha que escutar as pessoas. E havia uma importância nesse ato, nesse verbo. E a escuta como exemplo, ou seja, ouvir algo que uma pessoa mais velha tem a dizer, ouvir um provérbio, ouvir a entonação com que algo é dito é realmente importante e serve como uma espécie de chave transgeracional. Portanto, de certo modo, escutar não era opcional. Era mais algo como “você precisa prestar atenção, você precisa escutar de verdade”. E você sabia que, mesmo se houvesse momentos em que quisesse se rebelar ou lutar contra isso, uma recompensa era concedida após essa disciplina ou esse tipo de atenção sustentada ou de relação prolongada com esse ato. Quero dizer, quando se é criança, você quer fazer um milhão de coisas, não é? Mas, quando uma pessoa mais velha fala com você, acho que isso se torna algo muito formativo sobre como você entende essa coisa, em vários contextos e culturas. E é claro que tem aquelas frases do tipo: “Ah, você não estava ouvindo” ou “Você não escutou”, ou ainda “Por que você não estava prestando atenção?”. E isso pode ser punitivo, mas entendo o ato de escutar como algo bastante crucial, por que diz algo, não é verdade? Portanto, ao pegar essa ideia ou essa relação com a escuta como uma prática dentro da minha prática, mas também como uma pesquisa elementar e artística, para mim torna-se algo além de apenas ouvir por diversão, pois alguma coisa se revela quando essa relação é sustentada. E essa

coisa revelada não necessariamente precisa ser uma resposta, podem ser mais perguntas. Então, por exemplo, você me perguntou qual era a minha relação com gnawa, e respondi que só a conhecia como uma música que ouvia, não que eu tivesse me aprofundado na história, sabe. Mas acho que vir para Marrakech como um exemplo de ouvir além e sustentar essa relação de escuta da música gnawa nesse contexto, e ouvir o que todos estavam compartilhando, foi aí que se revelou, tipo, “Ah, então é sobre isso, na verdade”. É isso que essa história está contando. É disso que fala esse contexto. Então, acho que, para mim, para ilustrar, ouvir como uma forma de construir uma pesquisa também está relacionado àquela coisa prolongada de ficar com o verbo, sabe? Sentar-se ao lado do verbo, não apenas realizá-lo. E também ficar com o fato de que, talvez, demore muito tempo para você entender o que está ouvindo. Também gosto de pensar na escuta em termos de síntese, como sinais eletrônicos; o fato de que, ao ouvir uma música, você pensa nela como uma canção, mas, na verdade, está ouvindo matemática, física.

TdPS: Estamos ouvindo vibrações e ondas senoidais. É isso que você ouve. Então como sustentar isso para conseguir entender o que o som está dizendo depois?

SB: Acho que o que também ajudou a expandir meu processo artístico de pesquisa foi ficar com esses momentos e me perguntar: “Certo, o que está realmente acontecendo aqui?”, em vez de só pensar “Ah, é uma música de acid house dos anos 1980”. Realmente é, mas você também está ouvindo física.

TdPS: Sua apresentação começou de um modo bastante nuançado: você propôs essa espécie de entrelaçamento entre síntese, entonação, repetição ou espiral, escuta e recepção ativa. Parece que esses cinco elementos fazem parte do mesmo mundo, mas cada um tem seu papel específico.

SB: Eu estava falando com alguém sobre essa história outro dia, que uma pessoa me disse há muitos anos, em Londres, que cresceu em uma instalação de múltiplos canais, e eu fiquei: “O que isso quer dizer?”. E ela disse que cresceu em uma casa onde o rádio ficava ligado em um cômodo, a televisão em outro, em um quarto tinha alguém gritando, no outro havia o som do fogão ou da cozinha, e tinha ainda a máquina de lavar roupa. Então, ao ouvir algo específico, sempre tinha alguma outra coisa acontecendo, seja a seu lado, seja lá fora ou no cômodo vizinho. Agora, se

você estiver em uma caverna ouvindo apenas a si mesmo e os ecos da sua própria voz, então é diferente. Esse tipo de coisa me faz lembrar da pluralidade e da polifonia na escuta, e que não se trata de um evento singular e isolado acontecendo. Ao pensar em uma pessoa mais velha contando uma história, por exemplo, tem o som de um carro ao fundo, o som de alguém chamando, o som de uma interrupção, uma pausa, o som de esquecer onde estava na narrativa e ter que pensar “onde eu parei mesmo?”, o som de um celular tocando. Esses elementos sonoros são realmente importantes porque não conseguimos… Não acho que faça sentido pensar na escuta como uma prática isolada. É preciso negociar, entre a coisa que você está escutando e aquele equilíbrio de tudo que precisamos ouvir.

TdPS: Durante sua apresentação, você nos convidou a ouvir atentamente a música “Can You Feel It”, de Larry Heard/Mr. Fingers. Você poderia nos contar um pouco mais sobre sua conexão com essa música? Se entendi corretamente, você sente uma ressonância especial com ela?

SB: Você pode não acreditar, mas conheço essa música de um videogame. Contextualizando: o ano é 2005 e um novo jogo de videogame foi lançado para o PlayStation 2, chamado Grand Theft Auto: San Andreas. Nesse jogo, você pode dirigir os carros, que têm várias estações de rádio diferentes. A história se passa em algum lugar fictício dos Estados Unidos. Uma das estações tocava apenas house music, e “Can You Feel It” era repetida várias vezes, e tinha algo nessa linha de baixo, nessa espécie de grave vibrante, mas muito contínuo. Mas, ao ficar mais velha, quando mergulhei mesmo nisso, quis saber qual era a verdadeira história por trás daquela clássica música de house. Então você começa a aprender sobre a house music de Detroit, mas tem também a de Chicago, e então você encontra mais coisa. É assim que a gente aprende sobre uma música como “Can You Feel It” e o contexto de onde ela veio. A música pode nos ensinar sobre um momento, como um contexto, mesmo se não estivermos diretamente conectados a ele.

TdPS: Certo. Então uma música que você ouviu pela primeira vez na infância se tornou a chave para que entendesse um contexto distante não apenas geograficamente, mas socialmente também?

SB: Exatamente. Entendi que essa canção não era só a música de fundo de um videogame que eu jogava aos dez anos; na verdade, era a trilha sonora de um contexto sociopolítico específico da década de 1980, antes mesmo de eu nascer. Essa compreensão me fez mergulhar mais profundamente no que estava acontecendo naquele período. Então, “Can You Feel It” não é só uma música maravilhosa para a pista de dança. As pessoas a tocavam como uma forma de segurança, resistência, protesto e alívio. Assim, a partir disso, passei a estudar sobre Mr. Fingers/Larry Heard. Quem eram essas pessoas? Como faziam house music naquela época, usando um instrumento para iniciantes, basicamente? Talvez uma pessoa tivesse um sintetizador, e todo o mundo ia à casa dela fazer sua música. Portanto, de novo, não se trata apenas da música em si, mas do contexto no qual ela opera e como isso se revela aos poucos.

TdPS: E quando foi que você, como adulta, percebeu que havia outro uso possível para essa faixa?

SB: Comecei entrando no mundo dos sintetizadores, não como uma perita, mas como pessoa genuinamente fascinada pelo uso da eletricidade para fazer tantas coisas interessantes na produção cultural negra. Depois, descobri que a linha de baixo da música foi feita por um sintetizador que eu mesma tenho, o Juno-6. É um sintetizador da Roland, uma empresa japonesa. No que diz respeito à música, ela é de Chicago, Estados Unidos, e chegou até mim, na África do Sul. Certo, então uma música estadunidense da década de 1980 chegou até mim na África do Sul, em 2005, e foi produzida com um sintetizador japonês também dos anos 1980. Temos uma espécie de movimentação geográfica acontecendo aqui por causa da música e dessa linha de baixo, que é mesmo inesquecível. Também pode ser considerada um tipo de música que se abre. É como uma escola dominical. É um programa educacional em forma de música.

TdPS: Você fala com frequência das pessoas mais velhas, e algo que se destacou na sua apresentação foi quando você falou sobre a espiral transgeracional. Gostaria de entender o que você entende por espiral. Sei que, do seu ponto de vista, não é só uma repetição, mas como você a definiria, não apenas nos termos do som ou da música, mas também de forma mais ampla?

SB: Não a considero apenas repetição, porque acho que repetição implica algo que pareça muito linear, e rígido, e quadrado, como se fosse só mais do mesmo. Gostaria de pensar a repetição, ou a espiral,

mais como uma sequência de Fibonacci, com termos que se repetem, mas não são exatamente os mesmos, entende?

TdPS: Sim, é o que se costuma chamar de construção repetitiva, semelhante aos fractais.

SB: Então, para mim, a espiral é mesmo a extensão de algo. A espiral é uma biblioteca. Também não é aquela ideia de um círculo perfeito, mas algo que, a cada revolução, a cada virada, recolhe e deixa alguma coisa, depois pega algo diferente, como um moinho, entende? Pegando a sujeira e jogando água, esse tipo de coleta, mas há um acúmulo de conhecimento ou de algo a cada revolução. E também há a perda de certas coisas ao longo do tempo. As coisas não são exatamente as mesmas. Então, também há espaço para o desvio aí dentro.

TdPS: Sim. E mesmo com todas essas rotações, tem algo que sempre permanece.

SB: Gosto de pensar na espiral como uma biblioteca com certa capacidade de desvio, mas também com a habilidade de guardar, entende? A capacidade de armazenar. Dessa forma, mesmo desviando, ainda é uma metodologia de conhecimento bastante confiável.

TdPS: Quando estávamos em Marrakech, conhecemos Maalem Abdellah El Gourd e descobrimos que ele se apresentou com Randy Watson, que se mudou para Marrocos, onde passou vários anos da sua vida pesquisando a música do continente africano.

SB: Foi nesse período que ele gravou “Blue Moses”, não foi?

TdPS: Isso, e profundamente inspirado pelo gnawa. Eu estava pensando que parece que ele, em certo sentido, estava tentando reestabelecer a espiral, quando considero sua noção sobre ela, sua concepção de espiral transgeracional. Você acha que seu encontro com “Can You Feel It” representa uma espécie de espiral transgeracional? De certa forma, você está reestabelecendo ou até remendando uma conexão perdida. Nesse sentido, a música pode funcionar como um elemento reparatório, mas não precisa ser a música, necessariamente. Qualquer prática artística pode funcionar como um recurso para recuperar algo ou estabelecer uma nova espiral.

SB: Acho que pelo compartilhamento em Marrakech, sim, mas não apenas por eu ter ficado com esse som por muitos anos. Não acho que fui capaz de articular o que eu estava fazendo, qual era o fascínio por aquela música. Quero dizer, ainda mais porque nunca a ouvi em uma pista de dança, nunca a dancei. Eu ouvi essa música nos alto-falantes da TV, nos fones de ouvido, no laptop e talvez em uma caixa Bluetooth. Então a transmissão também faz parte de como sua facilitação, de como… Mas, ainda assim, fica uma lacuna, estou esperando, ou talvez eu esteja curiosa para saber quando esse encontro vai acontecer, quando eu realmente vou ouvir essa música em uma pista de dança.

E talvez isso também seja uma espécie de remendo metafórico dessa espiral, que seria ouvi-la em seu contexto pretendido. Isso também é bastante empolgante, porque é óbvio que é possível entrar em contato com a música e sua história por vários pontos diferentes, mas também tem algo muito especial em ouvi-la naquele tipo de lugar no qual ela se encontra historicamente. E, para mim também, que estou lidando com essa música há vinte anos, mas consigo me imaginar com ela por mais vinte e, quem sabe, nesses próximos anos eu não a ouça em uma pista de dança, ou pelo meu telefone de novo, né?

TdPS: Talvez você já tenha ouvido um sample da música em uma balada e nem percebeu.

SB: É, tem também a sutileza do sampling, que também é uma extensão da espiral, mas um pedaço dela. Quero dizer, o sampling 1 é literalmente DNA, como se fosse o que acontece com o DNA, certo? Tem algo de biológico nessa capacidade do corpo se integrar a outra coisa, silenciosa e sorrateiramente, por qualquer motivo que seja, ou talvez até escandalosa e abertamente. Samplear também é um assunto bastante interessante no que diz respeito a ser uma negociação contínua entre quem foi sampleado, o que foi sampleado, como foi sampleado, quais leis estavam tentando contornar com o sampling.

TdPS: Como esses três elementos – sampling, síntese e espiral – se combinam? Como podem funcionar como uma passagem, permitindo que o som transcenda a outro campo? É basicamente isso que você deseja fazer, não é? Você nunca abandona o mundo sônico, mas usa esses elementos para viajar, para levar o som a um contexto mais amplo, expandindo seu alcance para além de sua forma original.

SB: Gosto de pensar no sampling sempre como uma ferramenta da minha prática, mesmo com coisas que não são som, como amostragens materiais. Mas talvez, e isso pode soar também meio clichê, talvez para escapar da captura, para continuar. E tem também o sampling como um jeito de integrar outros contextos e histórias em tudo isso. Eu meio que vejo os três trabalhando juntos como uma forma de estruturar o modo pelo qual uma história é contada, ou estruturar um modo pelo qual o conhecimento é disseminado, usando-os deliberadamente como ferramentas fora do mundo sônico. Acho que essa também é uma das belezas do som como espaço, em termos de linguagem. E talvez ele seja mais fácil de acessar como artista visual, porque não sou musicista. Então, acho que também tenho o privilégio e a liberdade de começar a pensar sobre essas metodologias diferentes para além de ferramentas de produção musical, pois realmente as considero em um contexto completamente diferente que, no estágio subsequente, nos permite chegar ao nível ocular.

1 Em português, o termo sampling é usado para se referir à técnica de cortar um trecho de uma música para remixá-lo ou integrá-lo a uma nova faixa. Porém, a palavra também pode ser traduzida como “amostragem”, referindo-se ao processo de coletar uma amostra para análise ou estudo, por exemplo. Por isso, a relação com a biologia e o DNA feita pela entrevistada. [N.T]

Silêncio Ghassan El Hakim

Já tentou pegar o silêncio, colocá-lo em uma garrafa e fechá-la? O silêncio permanecerá sozinho dentro dela ou se misturará com outra substância? Talvez seja por isso que, quando você coloca o ouvido perto da garrafa, é possível ouvir o som do mar: não seria a mistura do silêncio com a substância dentro dela?

Quando estamos perto de um lugar cheio de pessoas, com barulho e burburinho, podemos abrir a garrafa e jogar o silêncio nelas?

Ou, quando um amigo nosso fica reclamando e fazendo as mesmas perguntas, podemos presentear a pessoa com uma garrafa de silêncio?

Desde a infância, procuro meu avô paterno... Do lado da minha mãe, tudo é claro, roteirizado, registrado: temos até a árvore genealógica que remonta ao Profeta! Do lado do meu pai, tudo é preto, escuro, ambíguo; nada é dito, nada é roteirizado. Na família do meu pai, minhas perguntas sempre tiveram respostas silenciosas: de onde era meu avô? Silêncio... Ele realmente andou de Tata até Fes? Silêncio... Disseram-me que ele morreu quando saía da mesquita! Silêncio...

E qual é o nome de sua família, sua tribo, sua origem resumida? Silêncio ou uma narrativa fabricada: prefiro o silêncio a essa história fabricada. Esse silêncio criou um vácuo em minha mente, que eu poderia preencher com qualquer coisa ou deixar em branco. A

propósito, eu mesmo me tornei uma pessoa silenciosa. Às vezes, tenho respostas para as perguntas que me fazem, mas fico calado, como se o silêncio absoluto que tive de suportar durante toda a minha infância e adolescência ainda reinasse lá em cima. Depois, fui estudar em Paris e esqueci todas essas histórias. Voltei ao Marrocos e decidi me estabelecer em Casablanca.

Certa noite, liguei para o meu pai para saber como ele estava e, no final de nossa conversa, não sei por quê, perguntei a ele: “Quantos anos você tinha quando o seu pai morreu?”. Ele respondeu: “Treze.” –Perguntei: “E ele?” – “Oitenta e seis!” “Oitenta e seis! Quer dizer que você nasceu quando ele tinha setenta e três anos!”. Espere, espere, se meus cálculos estiverem certos, meu pai nasceu em 1955. Se eu subtrair 73, ou seja, a idade do meu avô quando meu pai nasceu, obtenho a data de nascimento do meu avô: 1955 menos 73 é igual a 1882! Silêncio de minha parte, dessa vez. Um silêncio gelado que me pegou de surpresa, depois se espalhou como um ataque de pânico: meu braço começou a formigar, minha boca ficou seca, senti palpitações no coração, tudo isso rolava pela minha barriga como uma bola: eu não conseguia mais controlar aquele silêncio, que me assustava, e depois se transformou em um azul profundo, como uma lágrima reprimida por cem anos, desde aquele século 19. Então, comecei a ouvir

vozes, gritos, cavalos galopando, vi caïds perseguindo rouguis, rebeldes, e cortando as cabeças, cujos cabelos estavam presos em uma trança em formato de chifre. Pude ver o século 19 passar diante de mim e imaginava aquele outro Marrocos, aquele outro tempo, aquele outro modo de vida, aquele outro modo de respirar, de comer, de se sentar, de andar, de considerar o mundo... Até mesmo a palavra “outro” é um profundo silêncio na história do Marrocos moderno!

Eu me vi preso entre dois silêncios: o silêncio da minha família e o silêncio profundo do meu país. Então, decidi caminhar, como diz meu amigo Mbarek: quando você caminha, você pensa com os pés! Eu queria percorrer a distância que meu avô havia percorrido cem anos antes. Queria percorrer os oitocentos quilômetros de Fes a Tata! Comecei no Alto Atlas, entre Demnate e Ouarzazate, uma caminhada de cem quilômetros que levou seis dias. Depois, voltei para Casablanca, com o silêncio de uma montanha, mas, em meio a esse silêncio, parecia ouvir o nome do vilarejo do meu avô: Adis, que significa “barriga” no idioma tamazight. Quando voltei, liguei para o meu pai para lhe dar a boa notícia: “Descobri o nome da aldeia de seu pai”. “Quem lhe disse?” “Não foi você? Não me sussurrou isso antes de eu começar minha jornada?”

“Não, eu não sei o nome.”

Liguei para minha mãe, e

ela me deu a mesma resposta. Liguei para minha prima Fatiha, que mora na França e me ajuda na busca dessa origem perdida, e ela me deu a mesma resposta: não conhecia esse nome! Em seguida, liguei para todos os membros da família do meu pai que eu conhecia, e até mesmo para os que eu não conhecia, e todos me disseram que não sabiam nada sobre ele!

Fiquei obcecado pelo silêncio do meu falecido avô e do meu pai. Eu não podia mais suportar isso, então, decidi derrubar o muro de silêncio do meu pai com uma provocação; liguei para ele uma noite e disse: “Sabe, seu pai morreu sem deixar um nome de família para você, nem mesmo registrou seu nascimento no cartório, nem lhe deixou uma história para contar aos seus filhos, algum tipo de lenda pessoal! Além disso, sua mãe, minha avó, que Deus abençoe a alma dela, sabe quantos anos ela tinha quando você nasceu? Ela tinha vinte anos, e seu pai, setenta e três. Ele era cinquenta e três anos mais velho do que ela, e isso não significa nada para você? Você não entende isso como um sinal? Você não acha que ela foi dada a ele como um presente? E o nome dela é Hania, que significa ‘a mansa’, e o nome da irmã dela, Fadila, significa ‘a virtuosa’, o nome do irmão dela, Mbarek, significa ‘o abençoado’, e o nome do pai deles, Tayeb, significa ‘o bom’. Todos esses nomes são de pessoas escravizadas, companheiro!”.

Um silêncio duplo: o meu e o do meu pai! Depois disso, parei de falar com ele sobre tudo isso. E o nascimento de minha filha Mina me ajudou a fazer isso. E me juntei ao silêncio do meu pai, ou da minha mãe, ou de ambos... Um silêncio familiar, um silêncio herdado! Um silêncio que deixamos como legado para nossos filhos!

Quatro anos depois, eu estava em Amsterdã, onde conheci um grupo de teatro chamado Female Economy, que me proporcionou participar de uma residência teatral em Tânger, que girava em torno de um conceito de adoção. E, além de tudo isso, a diretora, uma senhora, tão louca quanto

Todas as fotos: © Youssef Boumbarek/ Fundação Bienal de São Paulo

um chapeleiro, chamada Adelheid Roosen, escolheu para mim, como local para minha adoção, a casa de gnawa em Tânger, que é a música mais discreta, secreta e misteriosa de todos os tempos. E com quem mais, senão com o mestre gnawa Abdellah El Gourd, o mestre mais calmo e silencioso, o Buda do gnawa no Marrocos? No primeiro dia de adoção, não conversamos, no dia seguinte, trocamos algumas palavras e, no terceiro dia, comecei a entender: entendi que o silêncio do Maalam não era um mero silêncio. Seu silêncio é preenchido com palavras, música, gestos, mensagens, subversão, coisas não contadas, e eu disse a mim mesmo que talvez os

silêncios do meu avô, do meu pai e do Maalam fossem uma espécie de muqawama, uma espécie de protesto, de insubordinação, de insurreição, uma espécie de resistência contra o que chamo de amnésia voluntária.

O autor agradece a Jean Albert Margaine pela tradução do francês para o inglês.

O nome da minha mãe é Rajae, que significa “esperança” em árabe, e ela realmente dá esperança a todos que a encontram! Minha mãe vem de uma grande família real que fugiu do massacre da dinastia Abbassi, em Bagdá, há séculos, e deixou tudo para trás, exceto a esperança. Foi minha mãe quem primeiro me falou sobre você. Na verdade, vocês nunca se encontraram, mas ela o conhece por meio do meu pai. Ao contrário dele, ela mencionou sua existência e despertou em mim uma esperança profunda, uma busca que eu precisava realizar: a de encontrá-lo. Minha mãe é muito diferente dos outros membros de sua família, e eu nasci graças a essa diferença. Eles sempre negaram a ela o direito de se casar com meu pai, mas ela perseverou e seguiu o próprio coração. Somos assim em nossa família: nunca desistimos. Meu pai, seu filho, não é como ela: desiste facilmente, nunca segue suas ideias até o fim, nunca segue seu próprio coração. Mas eu sou como ela. Se um dia você vier nos visitar, ficará feliz por conhecê-la. Ela não vive mais com meu pai, pois a história de amor deles não terminou bem. Começou em Amsterdã, no Vondelpark..., mas ela ainda valoriza a linda história que tiveram. Ela não guarda ressentimentos. Meu pai passou por momentos difíceis depois que você foi embora, e somente minha mãe conseguiu lidar com a frustração de ser rejeitada e com a situação difícil que se instalou em casa. Às vezes, digo a mim mesmo que, se você não tivesse ido embora, meus pais nunca teriam se conhecido, então acho que sua partida foi algo bom, pois permitiu que eu existisse. Minha mãe me disse que o senhor era um homem piedoso, amante de Deus, que rezava muito. Infelizmente, não somos nada assim na minha família: minha mãe me ensinou a amar, não a rezar. Minha mãe é muito sensível, tanto que desmaia quando ouve qualquer música. Acho que percebi isso quando morava sozinho com ela em Asilah, no norte do Marrocos, ainda criança. Estávamos na sala de estar de nossa casinha com poço quando, de repente, ela começou a dançar e a girar, balançando a cabeça, com os cabelos cobrindo os olhos, por causa de uma música que vinha de fora e chegava até a sala. Minha tia tinha vindo nos visitar. Olhamos pela janela para ver quais músicos faziam minha mãe se mexer daquela maneira, e minha tia sussurrou em meu ouvido: “São músicos gnawa”. Ela então fechou a janela, como se quisesse impedir que a música assombrosa entrasse e chegasse aos ouvidos de minha mãe. Naquele exato momento, ouvi um grito e, quando me virei, minha mãe havia desmaiado! Você conhece o gnawa, vovô? Você também cai quando os ouve?

Eu te amo, vovô, embora nunca tenha te conhecido.

Quem é Ahmed Ben Draoui?

No Marrocos pós-colonial da década de 1960, à medida que o país se recuperava de sua luta pela independência, uma nova identidade nacional árabe-muçulmana emergiu como o padrão unificador em torno do qual se esperava que todos os setores da sociedade se unissem. Os grupos culturais dominantes anteriores à colonização, agora reduzidos a minorias, foram obrigados a assimilarem-se a esse novo modelo, influenciados tanto pela promessa do Pan-arabismo como pelo fascínio do Ocidente moderno. Nesse percurso, os destinos de muitos jovens e de famílias se chocaram com mudanças profundas. Deixaram as suas terras ancestrais para procurar oportunidades nos centros urbanos, virando as costas para tradições seculares, agora consideradas arcaicas e primitivas pela nova cultura dominante. Ao longo de três gerações, acumularam-se camadas de histórias não contadas, traumas, assimilações culturais e de classe, sonhos desfeitos, desejos reprimidos, lutas pela emancipação, anseios de regresso, rupturas e mal-entendidos, dando origem a identidades complexas e fragmentadas. Essas identidades, tal como memórias fraturadas, regressam em vislumbres fugazes para assombrar cada personagem na narrativa que se desenrola.

O texto a seguir revela três fotografias de épocas diferentes. Deve ser lido como quem observa uma imagem, de modo que – como qualquer imagem – representa apenas a parte visível da história. O que se desenrola nos silêncios é precisamente o espaço entre a realidade e a imaginação, onde é forjada a história.

O texto foi lido na Invocação por Laila Hida, acompanhada pelo músico multi-instrumentista Mourad Belouadi com a sua máquina eletroacústica e guembri.

Todas as fotos:

© Youssef Boumbarek/

Fundação Bienal de São Paulo

Ato I

Exílio

Ahmed Ben Draoui nasceu em 1915, no Oásis de Figuigue, a metros apenas da fronteira argelina.

Em sua vila, o nome Draoui [preto] era raro. Nenhuma outra família o portava, talvez o seu pai, El Mekki Draoui, tivesse vindo de outro lugar, ou talvez o nome se vinculasse à cor de sua pele.

Ahmed morreu, sua história não foi contada.

Em 1960, Abdelaziz, um dos filhos de Ahmed, com apenas dezesseis anos, partiu do oásis para Casablanca. Como tantos de sua geração, foi em busca de seus sonhos na cidade.

Mas a independência veio com suas próprias fraturas: a família se desfez sob o peso das desavenças, disputas por herança, jardins abandonados, o Ksour esvaziado.

O exílio arrastou as crianças para longe. Figuigue, como muitos lugares, viveu um êxodo nesses anos pós-independência.

Casablanca, 1965

Abdelaziz perambula pelo centro de Casablanca, lá está também Abdellatif, seu primo, seu amigo. Compartilharam o espaço da faculdade de direito desde que chegaram à cidade.

Tomam café na La Chope, seu lugar habitual em Prince Moulay Abdellah. Mais tarde, juntam-se a Mustapha e L’Houssin. Conversam sobre protestos, sobre manifestações estudantis, a mudança parece estar próxima.

Mas ao cair da noite, Mustapha os convida para casa.

Sua mãe, a m’qadma [sacerdotisa], está preparando a Lila –uma noite de transe.

Cura para Lalla Rkia, assombrada desde que o marido partiu para a França.

Amontoados em um táxi, o caos de Casablanca interfere e confunde-lhes o pensamento. Carrières Centrales lhes dá as boas-vindas –Um espaço lotado da classe trabalhadora

A casa da família de Mustapha, benefício do trabalho ferroviário de seu pai.

O frio de fevereiro os força a se abrigar. A Lila se inicia.

Os Koyo tocam Wlad Bambra. Os meninos se acomodam diante do Maalem [mestre] e seus músicos.

A casa de Lalla Mina reverbera com o mundo espiritual.

Será uma longa noite.

Dança. Transe. Transe. Dança. Pedaços de criação revelam-se até o amanhecer.

Sla’a’nbi

Wlad Bambara

Nuqcha

Ada Bouhala

Mimouna

Al Musawiyin

Al’homer

Esh-shorfa

Ulad El ghaba

Lalla Aicha

L-Yalat

Suor.

Lágrimas. Exaustão.

O corpo cede.

Os espíritos estão satisfeitos.

O guembri desacelera, os qraqeb se silenciam. Abdelaziz está no chão, seu primeiro transe.

O dia nasce.

Os convidados se remexem como acordando de um sonho. Cumbucas de Hssoua – sopa de cevada – os revive.

Um mês depois, eclode uma revolta estudantil, violentamente esmagada.

Abdelaziz deixa a faculdade para se casar. Uma nova vida começa com Khadija, sua prima. Mas o idealismo morre.

Ele vive uma vida tranquila, estável. No entanto, nas sombras, ele retorna às Lilas.

O transe se torna seu refúgio, uma escapatória da alienação, dos sonhos soterrados, da dor sobre a qual ele não pode falar.

Ato II

A fotografia

Numa fotografia em preto e branco de 1920, cinco músicos negros estão em fila, vestidos com túnicas brancas, cintos pretos apertados, adornados com conchas de búzios –moeda do passado, símbolo de riqueza e comércio.

O homem no meio segura um tambor Ganga, pele de cabra esticada, pintada com padrões, linhas geométricas e pontos. (Nganga – significa curandeiro em terras bantu).

Ao lado dele, quatro outros seguram Qraqeb –castanholas de metal, precisas e rítmicas.

No canto superior direito, a foto diz: Casablanca – Les Guinaguas [músicos indígenas], um selo de cinco cêntimos, um carimbo dos correios impresso. O pano de fundo? Falso. As figuras? Irreais. Parecem uma pintura, congeladas no tempo.

Um acadêmico americano traça uma linha –câmaras coloniais capturando, categorizando, criando mitos de gnawa, artistas de rua tornando-se identidades.

Aqui, a lacuna alarga-se: rituais secretos, guardados para poucos, e ritmos públicos, empurrados para a categoria de “world music”.

Olhem com mais atenção para esta fotografia. Poderia ter sido feita hoje, quase sem alterações.

A representação fi xada, enquanto todo o resto se move, muda, evolui.

Durante décadas, acadêmicos pesquisaram os gnawa, procurando um significado, deparando-se com o desconhecido.

O mundo gnawa consome aqueles que o indagam, levando-os a confrontarem-se com os seus próprios Mlouks [espíritos].

A fotografia tenta reter o visível, apagar o silêncio, fi xar o fugaz. Mas distorce, aprisiona, repetindo a violência da dominação.

Transe –

Transe quebra a moldura. Transe liberta os gnawa da fotografia.

Ato III

L’Ghoul [O Ogro]

Meu nome é Walid, neto de Ahmed Ben Draoui. Esta é uma memória de minha infância, emaranhada a uma memória de minha mãe.

Em sua história, minha mãe caminha por um beco escuro no oásis de Figuigue, no leste do Marrocos, com seu irmão mais novo, Slimane – meu tio. Era a década de 1960.

Enquanto se dirigiam a Jnane Zitoun, o jardim da família, viraram uma esquina nas ruelas estreitas de Ksar Znaga. E ali, congelaram.

Cara a cara com um gigante. Um gigante e seu camelo.

O homem, de altura inacreditável, disse em árabe – uma língua estrangeira para eles –“Heidou men triq” – saiam do caminho.

Aterrorizados, eles correram para casa, seus pequenos corpos trêmulos, tremendo enquanto contavam à mãe que tinham visto um Djinn. Uma figura imponente, impossivelmente alta, com um camelo, falando em uma língua estranha.

Um homem de Figuigue não poderia ser tão alto. E não havia camelos em Figuigue.

O que eles não sabiam na época era que seu mundo, o Ksour fortificado cercado por jardins, não era tão isolado assim.

Para além do vasto palmeiral, havia famílias árabes nômades, pastores e comerciantes de camelos, perambulando.

Figuigue, um enclave amazigh, manteve-se autossuficiente por tanto tempo, que seu povo raramente imaginava a vida além de seu oásis.

Os estranhos não eram apenas desconhecidos – eles carregavam um senso de mistério, como se pertencessem a um reino diferente por completo.

Minha mãe e Slimane continuaram contando essa história enquanto crescíamos, como um aviso, ensinando-nos sobre os espíritos, as forças invisíveis que caminham ao nosso lado.

Avançando para o final dos anos 1980, para Hay Chmaou, um bairro da classe trabalhadora em Salé. Eu jogava futebol na rua com meus primos, do lado de fora da casa dos meus avós.

E, à distância, nós o vimos.

Um homem alto, negro, caminhando em nossa direção, lentamente, a passos largos, tocando o Ganga.

À medida que se aproximava, ele ficava mais e mais alto.

Ele usava um adereço de veludo preto na cabeça, com um pompom que balançava conforme ele se movia. Pequenas conchas brancas de cauri brilhavam contra o tecido escuro.

A batida do tambor reverberava pelo chão, vibrando sob nossos pés. Aterrorizados, corremos.

Direto para casa, gritando para minha avó –“L’Ghoul! L’Ghoul!” [O Ogro]

Ela sorriu, acalmando-nos em tamazight, uma língua que eu não entendia.

Ela nos disse que esse homem era um Gnawi, um curandeiro errante, um portador do Baraka [boa sorte].

Esse Gnawi batia com frequência na porta de meus avós, pedindo esmolas e espalhando bênçãos.

Desde o dia em que meu pai entrou em transe, minha avó sempre deixava pronta uma refeição quente, para os peregrinos, músicos curandeiros, e para aqueles que carregavam o Baraka.

Sobre os autores

Alberto Pitta trabalha com estamparia têxtil e serigrafia, além de pintura e escultura. Foi o autor de estamparias presentes em blocos afro de Carnaval como o Olodum, Filhos de Gandhy e o Cortejo Afro, fundado por ele. Suas obras apresentam signos, formas e traçados que evocam elementos tradicionais africanos e afro-diaspóricos, em especial os oriundos da mitologia iorubá.

Alya Sebti é curadora e diretora da ifa-Galerie (Institut für Auslandsbeziehungen), em Berlim, onde criou a plataforma de pesquisa e exposições Untie to Tie – On Colonial Legacies in Contemporary Societies. Foi cocuradora da Manifesta em Marselha (2020), curadora convidada da Biennale de Dakar (2018), e diretora artística da Marrakech Biennale (2014). Ela tem orientado pesquisas curatoriais com programas de mentoria na residência artística ZK/U (Berlim) e no MACAAL (Marrakech).

Amina Agueznay é uma artista multidisciplinar que combina elementos de estrutura, meios tradicionais reinterpretados e participação coletiva em obras que variam em escala. Suas obras de instalação monumentais são frequentemente baseadas em projetos colaborativos, em um diálogo contínuo com artesãos. Combinando estrutura arquitetônica e

arqueológica com o trabalho manual, suas obras evocam a transmissão.

Anna Roberta Goetz é curadora e escritora. Trabalhou no Marta Herford Museum e no MMK Museum für Moderne Kunst Frankfurt. Foi curadora assistente e gerente de projeto do Pavilhão da Alemanha na 55ª La Biennale di Venezia (2013). Organizou exposições individuais e coletivas de destaque em diversos países, além de ter lecionado em várias academias de arte internacionais, como a Zurich University of the Arts e a Städelschule (Frankfurt). Entre suas publicações estão Rodney McMillian: The Land: Not Without a Politic, organizado com Kathleen Rahn (2024) e Cinthia Marcelle – By Means of Doubt, organizado com Isabella Rjeille (2023).

Bonaventure Soh Bejeng

Ndikung é curador, autor e biotecnologista, atualmente atuando como diretor e curador geral do Haus der Kulturen der Welt (HKW) em Berlim. É o fundador e ex-diretor artístico do SAVVY Contemporary (Berlim), além de diretor artístico do sonsbeek20→24 (Arnhem). É professor e chefe do corpo docente no programa de mestrado em estratégias espaciais na weißensee academy of art berlin. Suas obras publicadas incluem, entre outras, The Delusions of Care (2021), An

Ongoing-O coming Tale: Ruminations on Art, Culture, Politics and Us/Others (2022) e Pidginization as Curatorial Method (2023).

Fatima-Zahra Lakrissa é curadora independente e pesquisadora, interessada na história da arte moderna europeia e na construção do modernismo marroquino. Sua pesquisa foca a sociologia e a história da vanguarda artística no Marrocos nas décadas de 1960 e 1970.

Ghassan El Hakim é ator, diretor e programador cultural. Formou-se no Institut supérieur d’Art dramatique et d’Animation culturelle (Isadac) em Rabat (2007) e realizou um estágio no Conservatoire National Supérieur d’Art Dramatique (Paris). Premiado no Yallah Film Festival (2011), destacou-se como ator e criador. Em 2015, tornou-se programador do centro cultural l’uZine, e atualmente dirige e ensina na escola de arte La Parallèle, ambos em Casablanca.

Kenza Sefrioui é jornalista cultural, crítica literária e editora. É responsável pela seção de literatura do jornal Hebdomadaire. Sua tese de doutorado em literatura comparada na Université ParisSorbonne, Sou es (1966-1973), espoirs de révolution culturelle au Maroc (2013), analisa a revista Sou es (1966-1973).

Keyna Eleison é curadora, pesquisadora e educadora em arte e cultura. Coordenou todos os equipamentos públicos da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e lecionou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde também foi coordenadora de ensino. Foi curadora da 10ª Bienal Internacional de Siart (2018), em Cochabamba, e da 1ª Bienal das Amazônias (2023), diretora artística do MAM Rio (2020-2023) e diretora de pesquisa e conteúdo da Bienal das Amazônias.

Laila Hida é artista. Fundou o LE 18 em 2013. Seu trabalho utiliza espaços e narrativas privados para explorar o lugar do indivíduo dentro de uma sociedade em transformação. Investiga projeções e fricções do desejo, imaginários e fantasias em contextos locais e ocidentais por meio de curadoria, publicações, instalações e projetos fotográficos.

Leila Bencharnia é artista sonora, intérprete acústica e musicista. Seu trabalho sonoro é composto de materiais analógicos incluindo fitas cassete, vinil e sintetizadores.

Maha Elmadi é diretora da Fondation Dar Bellarj, em Marrakech, desde 2007. É idealizadora do grupo e conceito Mamans douées. Criou ainda o festival Achoura.

Mirella Maria é bacharel e licenciada em artes visuais pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Mestra em artes visuais e arte educação pela mesma instituição. Criadora do projeto artístico Quilombo Mulheres Negras, com seminários, exposições e vivências artísticas produzidas por mulheres negras. Trabalha com fotografia, colagens e arte têxtil, trazendo ressignificações simbólicas no campo da plasticidade, da memória e existência.

Miriam Alves é escritora, assistente social e professora. Fez sua estreia literária em 1982 na antologia Axé: antologia contemporânea de poesia negra brasileira e no número 5 dos Cadernos Negros, publicação organizada pelo histórico coletivo Quilombhoje. Publicou dois livros de poesia: Momentos de busca (1983) e Estrelas no dedo (1985). É também autora dos romances Bará na trilha do vento (2015) e Mareia (2019), das coletâneas de contos Mulher mat(r) iz (2011) e Juntar pedaços (2021), além do ensaio “BrasilAfro autorrevelado” (2010). Com Arnaldo Xavier e Cuti, escreveu o texto dramático Terramara (1988).

Simnikiwe Buhlungu é artista. Interessada na produção de conhecimento – como é produzido, por quem e como é disseminado –, Buhlungu investiga fenômenos socio-históricos e cotidianos, explorando essas

questões e suas inúmeras respostas possíveis por meio de metodologias baseadas em pesquisa. A partir disso, ela traça pontos de reconhecimento que situam diferentes camadas de consciência como ecologias reverberantes.

Omar Berrada é escritor e curador. Seu trabalho concentra-se na política de tradução e na transmissão intergeracional. É autor da coleção de poesia Clonal Hum e atualmente estuda a dinâmica racial no Norte da África.

Taoufiq Izeddiou é coreógrafo. Estudou arquitetura antes de se dedicar à dança. Fundou a Companhia Anania, a primeira companhia de dança contemporânea no Marrocos, assim como o festival On Marche. Entre suas criações está Botero en Orient (2019).

Thiago de Paula Souza é curador e educador. Foi cocurador do 38ª Panorama da Arte Brasileira no MAM São Paulo (2024), da mostra Some May Work as Symbols: Art Made in Brazil, 1950s-70s, no Raven Row (Londres), do Nomadic Program da Vleeshal Center for Contemporary Art (Middelburg) entre 2022 e 2023, da While We Are Embattled, no Para Site (Hong Kong) e da Atos de revolta, no MAM Rio (2022). Entre 2020 e 2021, fez parte da equipe curatorial da 3ª edição do Frestas – Trienal de Artes (São Paulo). Foi consultor

curatorial para a 58ª Carnegie International (2021-2022). Entre 2018 e 2019, curou a primeira exposição individual de Tony Cokes no BAK (Utrecht). Fez parte da equipe curatorial da 10ª Berlin Biennale (2018). Atualmente integra o Comitê Artístico da NESR Art Foundation, em Angola, e é doutorando no programa de artes da HDK Valand –University of Gothenburg.

Fundação

Fundador

Francisco Matarazzo Sobrinho · 1898 –1977 – presidente perpétuo

Conselho de administração

Eduardo Saron – presidente

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires – vice-presidente

Membros vitalícios

Adolpho Leirner

Beno Suchodolski

Carlos Francisco Bandeira Lins

Cesar Giobbi

Elizabeth Machado

Jens Olesen

Julio Landmann

Marcos Arbaitman

Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa

Pedro Aranha Corrêa do Lago

Pedro Paulo de Sena Madureira

Roberto Muylaert

Rubens José Mattos Cunha Lima

Membros

Adrienne Senna Jobim

Alberto Emmanuel Whitaker

Alfredo Egydio Setubal

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires

Angelo Andrea Matarazzo

Beatriz Yunes Guarita

Camila Appel

Carlos Alberto Frederico

Carlos Augusto Calil

Carlos Jereissati

Célia Kochen Parnes

Claudio Thomaz Lobo Sonder

Daniela Montingelli Villela

Eduardo Saron

Fábio Magalhães

Felippe Crescenti

Flavia Buarque de Almeida

Flávia Cipovicci Berenguer

Flavia Regina de Souza Oliveira

Flávio Moura

Francisco Alambert

Heitor Martins

Isay Weinfeld

Jeane Mike Tsutsui

Joaquim de Arruda Falcão Neto

José Olympio da Veiga Pereira

Kelly de Amorim

Ligia Fonseca Ferreira

Lucio Gomes Machado

Luis Terepins

Luiz Galina

Maguy Etlin – licenciada

Manoela Queiroz Bacelar

Marcelo Mattos Araujo

Mariana Teixeira de Carvalho

Miguel Setas

Miguel Wady Chaia

Neide Helena de Moraes

Nina da Hora

Octavio de Barros

Rodrigo Bresser Pereira

Rosiane Pecora

Sérgio Spinelli Silva Jr.

Susana Leirner Steinbruch

Tito Enrique da Silva Neto

Victor Pardini

Conselho fiscal

Edna Sousa de Holanda

Flávio Moura

Octavio Manoel Rodrigues de Barros

Conselho consultivo internacional

Maguy Etlin – presidente

Frances Reynolds – vice-presidente

Andrea de Botton Dreesmann, Quinten Dreesmann

Barbara Sobel

Caterina Stewart

Catherine Petitgas

Flávia Abubakir, Frank Abubakir

Laurie Ziegler

Mélanie Berghmans

Miwa Taguchi-Sugiyama

Pamela J. Joyner

Paula Macedo Weiss, Daniel Weiss

Sandra Hegedüs

Vanessa Tubino

Diretoria

Andrea Pinheiro – presidente

Maguy Etlin – primeira vice-presidente

Luiz Lara – segundo vice-presidente

Ana Paula Martinez

Francisco Pinheiro Guimarães

Maria Rita Drummond

Ricardo Diniz

Roberto Otero

Solange Sobral

Superintendências

Antonio Thomaz Lessa Garcia

Junior – superintendente executivo

Felipe Isola – superintendente de projetos

Joaquim Millan – superintendente de projetos

Caroline Carrion – superintendente de comunicação

Irina Cypel – superintendente de relações institucionais e parcerias

Superintendência executiva

Beatriz Reiter Santos

Marcella Batista

Superintendência de projetos

Produção

Dorinha Santos – coordenadora de produção

Ariel Rosa Grininger

Bernard Lemos Tjabbes

Camila Cadette Ferreira

Camilla Ayla

Carolina da Costa Angelo

Nuno Holanda Sá do Espírito Santo

Tatiana Oliveira de Farias

Ziza Rovigatti

Superintendência de comunicação

Rafael Falasco – coordenador

editorial

Adriano Campos – designer

Eduardo Lirani – produtor gráfico

Fernando Pereira – assessor de imprensa

Francisco Belle Bresolin – projetos digitais e documentação

Julia Bolliger Murari – redes sociais

Luciana Araujo Marques – editora

Marina Fonseca – redes sociais

Nina Nunes – designer

Victória Pracedino – jovem aprendiz

Superintendência de relações institucionais e parcerias

André Massena

Je erson Faria

Laura Caldas

Luciana Raele

Raquel Silva

Victória Bayma

Viviane Teixeira

Educação

Simone Lopes de Lira – gerente

Danilo Pera – coordenador

André Leitão

Bruna de Jesus Silva

Gabri Gregorio

Giovanna Endrigo

Julia Iwanaga

Renato Lopes

Tailicie Nascimento

Vinicius Massimino

Lincon Amaral – jovem aprendiz

Arquivo Bienal

Leno Veras – gerente

Antonio Paulo Carretta –coordenador

Marcele Souto Yakabi –coordenadora

Ana Helena Grizotto Custódio

Anna Beatriz Corrêa Bortoletto

Daniel Malva Ribeiro

Gislene Sales

Gustavo Paes

Kleber Costa Timoteo

Raquel Coelho Moliterno

Thais Ferreira Dias

Alex Reimann – estagiário

Deisy Yumi – estagiária

Eloisa Elena – estagiária

Fabio Silva – estagiário

Juliana Knobel – estagiária

Maíra Alves – estagiária

Ricardo Menezes – estagiário

Walter Rocha – estagiário

Administrativo-financeiro

Finanças

Amarildo Firmino Gomes – gerente

Edson Pereira de Carvalho –coordenador

Fábio Kato

Silvia Andrade Simões Branco

Gestão de materiais e patrimônio

Valdomiro Rodrigues da Silva Neto –gerente

Larissa Di Ciero Ferradas –coordenadora

Angélica de Oliveira Divino

Daniel Pereira

Isabela Cardoso

Sergio Faria Lima

Victor Senciel

Vinícius Robson da Silva Araújo

Wagner Pereira de Andrade

Lucas Galhardo – jovem aprendiz

Planejamento e operações

Rone Amabile

Vera Lucia Kogan

Recursos humanos

Andréa Moreira – coordenadora de recursos humanos

Higor Tocchio – coordenador de departamento pessoal

Matheus Andrade Sartori

Patricia Fernandes

Tecnologia da informação

Ricardo Bellucci

Jhones Alves do Nascimento

Júlio Coelho

Matheus Lourenço

36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas –Da humanidade como prática

Equipe conceitual

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung –curador geral

Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza –cocuradores

Keyna Eleison – cocuradora at large

Henriette Gallus – consultora de comunicação e estratégia

André Pitol, Leonardo Matsuhei –assistência de curadoria

Arquitetura e expografia

Gisele de Paula, Tiago Guimarães –arquitetura

Alexandra Souza, Santiago Rid –assistência de arquitetura

Agence Clémence Farrell – consultoria inicial de arquitetura

Identidade visual

Studio Yukiko

Assessoria de imprensa

Index – assessoria de imprensa nacional

Sam Talbot – assessoria de imprensa internacional

Conteúdo audiovisual e registro

fotográfico

Bruno Fernandes

Duma Hub de Inovação Criativa e

Produção Artística

João Gabriel Hidalgo

Design

Aninha de Carvalho Price –assistência de design

Tamara Lichtenstein –assistência de design

Editorial

Cristina Fino – coordenação

editorial das publicações educativas #3 / #4

Deborah Moreira – assistência

editorial

Website

Fluxo

Invocações

Marrakech – 14-15 nov 2024

LE 18 – coorganização

Laila Hida – diretoria do espaço parceiro

Youssef Sebti – produção local

Zora El Hajji – assessoria de imprensa local

Mahacine Mokdad, Sofian Amly, Hamza Morchid, Youssef Boumbarek – conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Embaixada do Brasil em Rabat / Instituto Guimarães Rosa –

Ministério das Relações

Exteriores – apoio local

Guadalupe – 5-7 dez 2024

Lafabri’K – coorganização

Marie-Laure Poitout – presidência do espaço parceiro

Léna Blou – diretoria do espaço parceiro

Hellen Rugard – produção local

Annik Benjamin – tradução simultânea

Cédric Marcellin, Philippe Hurgon –conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Institut Français; Embaixada do Brasil em Paris / Instituto

Guimarães Rosa – Ministério das

Relações Exteriores – apoio local

Zanzibar – 11-13 fev 2025

Bernard Ntahondi – coorganização

Dhow Countries Music Academy (DCMA) – instituição parceira

Halda Alkanaan – diretoria da instituição parceira

Thureiya Saleh – produção local

Raymond Peter, Alex Marcel – engenharia de som

William Chazega Nkobi, Habibu

Ramadhani Diliwa – tradução simultânea

Aden Rajab Said, Ally Nassor, Arafat Khamis Moh’d, Caroline-Jamie

Dandu, Gulaam Abdullah, Venance

Leonard, Waleed Khamis

Mohammed – conteúdo audiovisual e registro fotográfico

YAS, Fondation H, Embaixada do Brasil em Dar es Salaam / Instituto

Guimarães Rosa –

Ministério das Relações

Exteriores – apoio local

Tóquio – 12-14 abr 2025

Andrew Maerkle, Kanako

Sugiyama – coorganização

The 5th Floor; Sogetsu Kaikan; The University of Tokyo (com ACUT) –espaços

Jordan A. Y. Smith – assessoria do programa de poesia

Tomoya Iwata – produção local

Yoshiko Kurata – assessoria de imprensa local

Wataru Shoji – engenharia de som

Art Translators Collective –tradução simultânea

Kenji Agata, Naoki Takehisa, Sora Shirai, Takuma Osugi, Yoshikatsu

Hirayama – conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Embaixada do Brasil em Tóquio / Instituto Guimarães Rosa –Ministério das Relações Exteriores; Art Center, The University of Tokyo (ACUT) – apoio local

Publicação educativa #1

Organizado por

Equipe conceitual e Fundação

Bienal de São Paulo

Publicado por

Fundação Bienal de São Paulo e Center for Art, Research and Alliances (CARA) em português e em inglês

Projeto gráfico

Studio Yukiko

Coordenação editorial, diagramação e produção gráfica

Fundação Bienal de São Paulo

Assistência de edição

Deborah Moreira

Preparação e revisão

Bruno Rodrigues, Guilherme Ziggy, Richard Sanches, Sandra Brazil

Tradução

Andréia Manfrin, Cristina Fino, Jéssica Alonso, Mariana Nacif Mendes, Philip Somervell, Sergio Maciel

Famílias tipográficas

Arizona e Camera Plain por Dinamo

Impressão Ipsis

ISBN 978-85-85298-89-0

© Copyright da publicação:

Fundação Bienal de São Paulo. Todos os direitos reservados.

As imagens e os textos reproduzidos nesta publicação foram cedidos por artistas, fotógrafos, escritores ou representantes legais e são protegidos por leis e contratos de direitos autorais. Todo e qualquer uso é proibido e condicionado à expressa autorização da Fundação Bienal de São Paulo, dos artistas e dos fotógrafos. Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos das obras reproduzidas. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas.

Este livro foi publicado em português e em inglês em junho de 2025, como parte do projeto da 36ª Bienal de São Paulo.

Distribuição gratuita.

Fundação Bienal de São Paulo

Pavilhão Ciccillo Matarazzo –Parque Ibirapuera

Av. Pedro Álvares Cabral – Moema 04094-050 / São Paulo – SP bienal.org.br

Center for Art, Research and Alliances (CARA) 225 West 13th Street, Nova York, NY 10011 cara-nyc.org

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa: publicação educativa: vol. 1 / organização Fundação Bienal de São Paulo; curadoria Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. -- São Paulo: Bienal de São Paulo, 2025.

ISBN 978-85-85298-89-0

1. Arte - São Paulo (Estado) – Exposições

2. Bienal de São Paulo (SP)

3. Cultura

4. Educação

5. Mediação

I. Fundação Bienal de São Paulo.

II. Ndikung, Bonaventure Soh Bejeng.

25-273124

Índices para catálogo sistemático:

1. Bienais de arte : São Paulo: Cidade 709.8161

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

CDD-709.8161

Anotações

PARCERIA ESTRATÉGICA

PATROCÍNIO MASTER

PATROCÍNIO

TRANSPORTADORA OFICIAL

AGÊNCIA OFICIAL APOIO

APOIO INTERNACIONAL

APOIO INSTITUCIONAL REALIZAÇÃO

PARCERIA CULTURAL
APOIO LOCAL
PARCERIA LOCAL

Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

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