Bukimi no Tani (不気味の谷): O vale da estranheza – A afetividade do humanoide
Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam 36 a Bienal de São Paulo
Recursos de acessibilidade
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Bukimi no Tani (不気味の谷):
O vale da estranheza –
A afetividade do humanoide
Desde 1953, ano de sua segunda edição, a Bienal de São Paulo se destaca por seu compromisso educacional, promovendo iniciativas que facilitam o acesso de diversos públicos – incluindo professores, estudantes e educadores – aos conteúdos das exposições. Em 2009, a Fundação Bienal estabeleceu uma equipe permanente de educação que vem, a partir de então, desenvolvendo e implementando projetos educativos para cada edição. Esses projetos incluem a realização de publicações, visitas mediadas, oficinas e programas de formação para professores e educadores, visando atender à missão da Fundação Bienal de ampliar o acesso à arte contemporânea.
Para a 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas –Da humanidade como prática, a Fundação apresenta uma série de quatro volumes de publicações educativas que têm dois objetivos que se complementam, ambos de fundamental importância para a Bienal. O primeiro deles é registrar e compartilhar as contribuições das Invocações – encontros curatoriais com artistas e poetas, que investigam as noções de humanidade, tema da mostra, a partir de quatro geografias distintas: Marrakech, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio. O segundo objetivo é atender às demandas do projeto educacional da 36ª Bienal, com os livros sendo utilizados na formação de mediadores e em ações de difusão, tanto durante os meses de preparação e realização da exposição quanto ao longo do programa de mostras itinerantes que ocorrerá logo depois dela.
Como é próprio da Bienal de São Paulo, os conteúdos dessas publicações articulam elementos locais e globais, conjugando práticas e questões do contemporâneo. Fruto de uma parceria com a Center for Art, Research and Alliances (CARA), que copublicou os livros com a Fundação Bienal, e a A&L Berg Foundation, que apoiou o projeto desde o início, pela primeira vez as publicações educativas da mostra contam com uma versão em inglês que será distribuída entre leitores estrangeiros, possibilitando um maior alcance das experiências das Invocações e dos nossos conteúdos educacionais, reafirmando a vocação internacional que há mais de setenta anos vem sendo colocada em prática.
Andrea Pinheiro Presidente – Fundação Bienal de São Paulo
CARA tem a honra de coproduzir esta publicação com a Fundação Bienal de São Paulo, reforçando nosso compromisso compartilhado com expandir os espaços para investigações artísticas e intelectuais. O programa das Invocações e os quatro volumes educativos ecoam a dedicação de CARA para transformar as publicações em agentes de mudança, nas quais o conhecimento não é apenas registrado, mas ativado por meio de encontros entre várias disciplinas e geografias. Nossa abordagem institucional fomenta pesquisas abertas, incentiva o desafio a narrativas fixas e adota a contação de histórias como uma forma de manter as ideias em movimento, abalando discursos dominantes e abrindo caminhos para que esses sejam desaprendidos.
Com base nesses valores, o programa editorial de CARA amplifica vozes negligenciadas, apoiando profissionais mais experientes e em fase intermediária da carreira, além de historiografias alternativas. Nossos livros incluem práticas literárias e poéticas, artes visuais, performáticas e de imagens em movimento e a ação radical como forças entrelaçadas que moldam nossa compreensão dos mundos interconectados. Por meio das Invocações, CARA mantém seu comprometimento em transformar o setor editorial em um espaço de ressonância, no qual o trabalho artístico e intelectual resiste a narrativas singulares. A colaboração com a 36ª Bienal de São Paulo fortalece nossa missão de reverberar artistas, estudiosos e trabalhadores da cultura, cujas contribuições desenham o discurso crítico, incentivam novas conexões e expandem os limites do pensamento.
Aqui na CARA, perguntamos: como podemos sonhar para além de nós mesmos? Essa é a questão que orienta nossa visão editorial, convidando-nos a criar espaços nos quais o conhecimento é compartilhado e aprofundado em uma relação dinâmica. Para nós, a publicação é um processo de criação de uma constelação generativa, onde vozes convergem, entrelaçam-se e ampliam o que pode ser imaginado em conjunto. Essa colaboração dá corpo aos nossos valores para oferecermos livros que desafiam, desestabilizam e inspiram novas formas de ser e pensar no mundo.
Manuela Moscoso Diretora executiva e artística – CARA
A A&L Berg Foundation, criada em 2023 por Allison e Larry Berg, oferece acesso, ferramentas e recursos para criar, desenvolver e sustentar perspectivas e narrativas diversas nas artes visuais dos Estados Unidos. Apoiamos e fortalecemos indivíduos comprometidos em gerar impactos sistêmicos e escaláveis em suas práticas e comunidades. O principal programa da instituição é a ESAP Fellowship, que apoia e capacita curadores, educadores e administradores das artes visuais em início de carreira, atuantes em espaços e instituições de arte nos Estados Unidos. Ao construir uma duradoura rede de apoio entre pares e ao oferecer ferramentas de orientação e oportunidades para expandir grupos e comunidades profissionais, a Foundation cria caminhos de carreira mais equitativos nas artes visuais e busca, em última instância, fortalecer e diversificar os ecossistemas internos das instituições artísticas do país.
Nossos programas oferecem acesso a redes de contato, oficinas de desenvolvimento profissional, viagens de pesquisa internacionais, mentoria, coaching em habilidades relacionais e interpessoais, além de apoio financeiro para enfrentar desigualdades sistêmicas. Todos os anos, um júri diferente, composto por renomados profissionais das artes, indica candidatos com base em um conjunto de critérios previamente acordados, e convidamos seis dessas pessoas para integrar a nova turma da fellow. Nosso diretor de programa convidado – um profissional das artes que já superou com sucesso os desafios enfrentados pela respectiva turma – é responsável por desenhar os detalhes do programa anual, com foco nas habilidades relacionais específicas que cada grupo necessita para o crescimento de suas carreiras.
Durante os dez meses da fellow, a Foundation oferece cinco pilares de apoio: mentoria com um profissional mais experiente da área de artes; oficinas de habilidades relacionais com especialistas de diversas indústrias; um subsídio financeiro irrestrito; uma viagem internacional de pesquisa robusta, que abre portas e proporciona engajamento com líderes e pares do ecossistema global das artes visuais; e suporte contínuo para o crescimento profissional.
A&L Berg Foundation
A Fundação Bienal de São Paulo agradece aos parceiros CARA e A&L Berg Foundation pela colaboração especial nas publicações educativas da 36ª Bienal.
O Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, celebra a realização da 36ª Bienal de São Paulo em parceria com a Fundação Bienal de São Paulo. Assim como os grandes festivais de cinema, a Bienal de São Paulo – a segunda mais antiga do mundo – desperta enorme expectativa no circuito global de exposições. Neste ano, com o título Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, inspirado em um poema da renomada escritora brasileira Conceição Evaristo, a Bienal reafirma sua vocação como grande vitrine para as produções mais atuais do cenário artístico nacional e global, sem perder de vista sua ampla atuação educativa na formação de novos e conhecidos públicos.
O Ministério da Cultura tem trabalhado para fortalecer o setor cultural por meio de diversas iniciativas e instrumentos de fomento. Políticas como a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura fomentam outras linguagens artísticas, criando oportunidades para artistas, produtores culturais, gestores e visitantes. Criar condições sólidas para a cultura é fortalecer a economia criativa e estimular a implementação de políticas culturais perenes, permanentes e democráticas.
Estar ao lado de projetos como a nova sala de cinema da Bienal é motivo de orgulho por reunir, ao mesmo tempo, duas questões caras ao Governo: a ampliação do acesso democrático aos equipamentos culturais aliado a um braço educacional capaz de mediar e dar sentido àquilo que é exposto. Ao prever sessões de filmes gratuitas acompanhadas de ações educacionais, cria-se mais um palco para fortalecer a cultura do nosso premiado e cada vez mais atuante campo audiovisual do país.
O Governo Federal segue comprometido com a arte e a educação, frentes indispensáveis para assegurar o direito à cidadania e a um futuro mais justo para todos. Seguiremos investindo em iniciativas que encorajam a criação e a inovação cultural, garantindo que eventos como a Bienal de São Paulo continuem a inspirar e a transformar gerações.
Margareth Menezes
Ministra da Cultura – Governo Federal do Brasil
Há mais de 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem desempenhado um papel fundamental para a valorização da arte, cultura e educação de uma sociedade complexa e heterogênea como a brasileira. Essa atuação se expande por meio de parceiros essenciais para o desenvolvimento do setor da economia da cultura e das indústrias criativas, como a Fundação Bienal de São Paulo.
O Itaú Unibanco se orgulha de ser um dos patrocinadores da Fundação Bienal de São Paulo – há 27 anos, sendo esta a 12ª edição realizada nesse período –, reafirmando o compromisso com a promoção das artes visuais e o seu papel transformador. A Bienal de São Paulo é um importante espaço de encontro e intercâmbio entre artistas, curadores, críticos e público.
Nesse campo, o Itaú Cultural articula ações de fruição, formação e fomento, entre elas, as exposições individuais e coletivas que acontecem tanto na sede na Avenida Paulista, 149 (com entrada gratuita) quanto em equipamentos nas cinco regiões do país. Entre as exposições de 2025, destaque para Carlos Zilio – A querela do Brasil, com curadoria de Paulo Miyada, que trará uma retrospectiva desse artista que, com erudição e irreverência, explorou as tensões da arte brasileira. Também serão dedicadas mostras à artista visual Rivane Neuenschwander e ao curador e crítico Paulo Herkenhoff.
Acesse itaucultural.org.br para navegar pelas exposições virtuais Filmes e vídeos de artistas, com produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na Coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. Já na Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia.itaucultural.org.br) você tem acesso a centenas de verbetes de personagens, de obras e de eventos de artes visuais.
Estar presente na Bienal de São Paulo reforça nosso objetivo de construir vínculos com diferentes públicos, prezando pela diversidade de formatos, pensamentos e subjetividades e fomentando o fazer criativo e crítico através da arte e da cultura brasileiras.
Itaú Cultural
A Bloomberg se orgulha de patrocinar a 36ª edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano continua a tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas ao público.
Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, a qual, segundo acreditamos, é um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos.
Bloomberg
Para o Bradesco, um banco brasileiro por excelência e que completou 83 anos, arte e cultura não são apenas elementos fundamentais à formação da identidade de um povo ou de construção de seu patrimônio imaterial, mas também uma jornada de inclusão e cidadania, uma saudável convergência entre diferentes pontos de vista. É, por assim dizer, um caminho em direção ao novo, mas com o cuidado de valorizar aquilo que é especial o bastante para ser história ou tradição.
Portanto, quando se fala em arte e cultura, perdem sentido as fronteiras entre passado, presente e futuro, entre o que é forma ou conteúdo. Tudo vira reflexão e aprendizado, tudo se transforma em provocação e surpresa.
Foi a partir dessa interpretação, combinada à visão positiva do papel das empresas na viabilização do que a sociedade considera importante, que o Bradesco se tornou patrocinador da 36ª edição da Bienal de São Paulo, seguramente um dos principais eventos do país voltado a estimular o circuito artístico, divulgar as diversas expressões de arte e promover o intercâmbio cultural, com tudo de bom que ele agrega.
Ao participar de algo a um só tempo grandioso e de muitos significados, o Bradesco compartilha com a Fundação Bienal de São Paulo – que organiza o evento há mais de seis décadas – o propósito de democratizar o acesso à cultura, multiplicar seu alcance e promover a valorização da arte.
É um caminho sem fim, sem volta, repleto de desafios e ao menos uma certeza: quanto mais gente participando dele, melhor!
Bradesco
A Petrobras possui uma história de mais de quarenta anos acreditando de forma contínua na cultura como elemento transformador e fonte de energia para a sociedade. Apoiando projetos únicos e parcerias de longo prazo, construímos uma relação de respeito e colaboração com realizadores e iniciativas em todo o país.
O Programa Petrobras Cultural tem a brasilidade como elemento norteador, que se materializa nas temáticas, origens, curadoria, história e características de cada projeto que selecionamos. Por meio do incentivo a diversos projetos, colocamos em prática nossa crença de que a cultura é uma importante energia que transforma a sociedade. Acreditamos que, com criatividade e inspiração, promovemos crescimento e mudanças.
A Bienal de São Paulo é um dos mais prestigiosos eventos do setor no país e no mundo. O patrocínio da Petrobras reforça o papel da empresa na promoção da cultura, em suas diversas formas, consolidando a companhia como uma das maiores apoiadoras das artes no Brasil.
Eventos como a Bienal de São Paulo contribuem de forma relevante para a economia, promovendo inovação, criatividade e sustentabilidade à dinâmica econômica. A Petrobras é uma aliada do desenvolvimento do país em seus diversos setores. Investe em muitas formas de energia, e a cultura certamente é uma delas.
A Petrobras tem orgulho em apoiar a cultura brasileira em sua pluralidade de manifestações, levando a arte a todos os públicos, por todo o país. Porque cultura também é nossa energia.
Para conhecer mais sobre o Programa Petrobras Cultural, visite petrobras.com.br/cultura.
Petrobras
O Instituto Cultural Vale acredita no poder transformador da cultura. Como um dos principais apoiadores da cultura no Brasil, patrocina e impulsiona projetos que promovem conexões entre pessoas, iniciativas e territórios. Seu compromisso é tornar a cultura cada vez mais acessível e plural, ao mesmo tempo em que atua para o fortalecimento da economia criativa.
Assim, é uma alegria fazer parte da realização desta 36ª Bienal de São Paulo e de seu programa educativo, que experimenta novos formatos e abordagens. Formulado a partir das Invocações propostas pela curadoria – encontros com poesia, música, performance e debates que investigam noções de humanidade em diferentes geografias –, o programa educativo expande a comunicação da Bienal com os diferentes públicos e promove sua difusão para além do espaço e do tempo de exposição, de maneira interdisciplinar.
A cada nova edição, a Bienal nos convida a repensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado. Nesse sentido, conecta-se ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil.
Onde tem cultura, a Vale está.
Instituto Cultural Vale
Há 110 anos, o Citi faz parte da história do Brasil, acompanhando suas transformações e impulsionando seu desenvolvimento. Nossa trajetória se confunde com a do país: somos testemunhas e participantes de um Brasil que se reinventa e que avança.
Mais do que uma instituição financeira, somos uma presença que acredita na força da cultura e da educação como motores de um futuro mais inclusivo, inovador e sustentável. Investir nesses pilares é também valorizar a pluralidade, a criatividade e o talento que definem o espírito brasileiro.
É com esse compromisso que, pela primeira vez, temos orgulho de apoiar a 36ª Bienal de São Paulo – um dos mais importantes espaços de expressão artística da América Latina, onde o Brasil pensa, sente e se reinventa através da arte.
Acreditamos na arte como agente de transformação social. A criação artística tem o poder de provocar diálogos, ampliar repertórios e inspirar novas possibilidades de mundo. Ao patrocinar a Bienal, reafirmamos nosso compromisso com a cultura, com a inovação e com todos aqueles que, por meio da arte, constroem novas narrativas para o presente e o futuro.
Citi
A Vivo acredita na cultura como meio de transformação social e é uma das principais marcas apoiadoras das artes visuais, cênicas e da música no Brasil. A arte, como a tecnologia, cria conexões entre as pessoas e incentiva a busca do equilíbrio entre a história, a natureza e o tempo.
Atualmente, a Vivo é patrocinadora dos principais museus do Brasil, como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), a Pinacoteca de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS-São Paulo), o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), além do Instituto Inhotim e do Palácio das Artes, ambos em Minas Gerais, e o Museu Oscar Niemeyer, no Paraná.
O Teatro Vivo, localizado em São Paulo, conta com uma curadoria de peças contemporâneas, que promovem reflexões sobre questões atuais e valorizam a diversidade cultural. Além disso, o espaço é totalmente acessível, oferecendo recursos como tradução em libras, audiodescrição e equipe treinada, garantindo inclusão para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Em 2024, recebeu mais de 50 mil pessoas.
A marca também apoia projetos no universo da música que são genuinamente brasileiros e regionais, reforçando a proximidade com a cultura local em eventos icônicos e tradicionais do nosso país, como Festival de Parintins, Galo da Madrugada, Festival Çairé, Lollapalooza, The Town e Vivo Música.
As iniciativas da marca no âmbito cultural ampliam o acesso ao conhecimento com novas formas de vivência e aprendizado, fortalecidas nos aspectos de diversidade, sustentabilidade, inclusão e educação. Todas as informações estão reunidas e são compartilhadas nos perfis @vivo.cultura e @vivo no Instagram.
Vivo
Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir processualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos.
O encontro entre arte e educação – ambas entendidas como campos do saber – permite a torção do tempo e espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e sobre ele interferir? (Re) povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas, e, assim, talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente com as questões que atravessam a existência.
É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 36ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade.
Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado a promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários, formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante, com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito, e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.
Sesc São Paulo
Bonaventure Soh
Keyna
Shiori
Deivison
Natsumi Aoyagi
Anna Roberta Goetz
Tavia Nyong’o
Gōzō Yoshimasu
You Nakai
Sakisaka Kujira
Asako Iwama
Nina
Bonaventure
Thiago de Paula Souza 176 Sobre os autores
Apresentação
Fundação Bienal de São Paulo
Este livro é uma extensão das investigações sobre noções de humanidade em diferentes partes do mundo, dialogando com as ideias da 36ª Bienal de São Paulo Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, a partir da quarta e última Invocação, Bukimi No Tani (不気味の谷): O vale da estranheza – A afetividade do humanoide, que aconteceu em Tóquio, em abril de 2025.
As Invocações foram encontros com apresentações de poesia, pesquisa, música e dança que precederam a realização da mostra em São Paulo. Além de Tóquio, elas aconteceram em outros três territórios: Marrakech, Guadalupe e Zanzibar, entre novembro de 2024 e abril de 2025.
O que fazer então para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Há como devolver o ânimo/ deslobotomizar/recarregar as baterias da cidade? Simples, basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.1
Escrito em 1992, o manifesto “Caranguejos com cérebro” apresentou as propostas do manguebeat e abriu caminho para que esse movimento, nascido nas ruas de Recife (PE), trouxesse novos ares para a cena cultural brasileira na última década do século 20. Com o simbolismo de uma antena fincada na lama, a resposta dos mangueboys e das manguegirls às diversas crises no país era relativamente simples: “conectar alegoricamente as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop”.2
Desde a década de 1990, as possibilidades e os entendimentos relativos a “conexão”, bem como a circulação de informações e afetos mediados pela tecnologia, sofreram grandes transformações. A conexão de dispositivos a uma rede global de comunicação e o desenvolvimento de máquinas capazes de aprender, tomar decisões e interagir de forma cada vez mais íntima com os seres humanos não apenas têm alterado nossa relação com a tecnologia, mas desafiam a pensar o que nos define como humanidade.
A Invocação #4 investigou a complexa relação entre humanos e máquinas, por meio de práticas sonoras, performáticas e visuais. Inspirada no conceito de “vale da estranheza” proposto pelo roboticista japonês Masahiro Mori (1927-2025) em um ensaio publicado em 1970,3 a Invocação realizada em Tóquio refletiu sobre as ambiguidades do humano diante da tecnologia e as questões que emergem na intersecção entre arte, inteligência artificial, corpo e afetividade. Realizado entre 12 e 14 de abril de 2025, o evento discutiu temas como o impacto das inteligências artificiais nos processos de criação artística, a presença das máquinas na vida cultural e a dimensão afetiva das relações entre seres humanos e dispositivos automatizados.
Nesta publicação, além dos registros de palestras, conversas e performances apresentadas durante a Invocação #4, também serão encontrados conteúdos que expandem as ideias do encontro e visam aproximar suas discussões de outras geografias e realidades, com um olhar atento ao universo da educação brasileira. As possibilidades, as contradições e os estranhamentos do mundo contemporâneo oriundos dos encontros entre humanos e máquinas são um campo vasto que abrange desde o pensamento de Masahiro Mori até as experimentações de poetas, artistas e intelectuais.
Na abertura da Invocação, o curador geral da 36ª Bienal, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, leu uma carta destinada a Mori, que deixou nosso (cada vez mais estranho) mundo aos 98 anos, poucos meses antes da realização do encontro. Nessa carta, que se encontra transcrita nesta publicação, Ndikung propõe uma questão que atravessa o pensamento do cientista japonês, interessado pelos movimentos de empatia e repulsa das pessoas em relação às máquinas: como nossa espécie, tantas vezes incapaz de valorizar e reconhecer a humanidade de um semelhante, se aventura na criação de robôs humanoides?
Esse questionamento ecoa de diferentes maneiras em todas as intervenções do evento e na publicação. Em seu texto “Os direitos dela: O Turco de Frankenstein, ou O Prometeu moderno”, a artista visual e poeta Natsumi Aoyagi imagina a confluência entre as criações de Wolfgang von Kempelen (1734-1804) e Mary Shelley (1797-1851). Com o objetivo de entreter a imperatriz Maria Teresa, em 1770, Kempelen criou o “Turco”, um jogador de xadrez autômato, cujo funcionamento e cuja habilidade no jogo causaram fascínio na época, mesmo sendo, na realidade, operado por uma pessoa oculta no interior de seu mecanismo. Por sua vez, Shelley, com seu romance Frankenstein (1818), ao refletir sobre o fascínio e o medo diante dos avanços científicos de sua época, concebeu uma criatura ao mesmo tempo humana e monstruosa, gerando um questionamento acerca das fronteiras entre o natural e o artificial. Com sua obra, ela captou um desconforto que atravessa séculos, convidando a uma reflexão sobre os dilemas éticos e afetivos da relação entre humanos e suas criações. Tanto o “Turco” de Kempelen quanto a criatura de Shelley não apenas encenam os limites entre o humano e a máquina, mas revelam o fascínio e a inquietação diante de criações que imitam a vida.
No contexto da discussão sobre a manutenção da vida, a artista Asako Iwama busca explorar as percepções da produção de alimentos, tanto estética quanto epistemologicamente, a partir da ressonância da natureza na subjetividade humana. De Tóquio, sua intervenção poética lembra que a cerca de 9 mil quilômetros dali, em Berlim, cidade onde atualmente vive e trabalha, todas as abelhas contraíram um vírus e morreram, assunto pouco difundido, como a morte de milhares de palestinos nos conflitos com Israel. Para ela, na Alemanha, lugar em que o passado traumático fomentou uma cultura da memória, pouco se lembra da morte das abelhas e do genocídio em Gaza.
Por sua vez, a peça de teatro nô Irumagawa, da artista multimídia Shiori Watanabe – em parceria com os intérpretes Shingo Kato e Noboru Yasuda e com a pesquisadora de informática Dominique Chen –, investiga as inter-relações entre natureza, humanos, outros seres
e sistemas ecológicos e políticos. A peça transforma o imperador do Japão em uma alegoria para abordar as contradições ideológicas que permeiam a sociedade japonesa contemporânea. Tanto Watanabe quanto Iwama revelam como crises ambientais e humanitárias são silenciadas ou esquecidas e propõem formas poéticas e críticas de reinscrever esses temas na experiência sensível. Ao aproximarem vida, arte e tecnologia, elas nos convidam a questionar apagamentos e repensar nossas responsabilidades éticas em um mundo cada vez mais interligado.
A relação entre o consumo ético e a produção estética como elementos que mobilizam o universo da moda aproxima duas conversas realizadas durante a Invocação e registradas nesta publicação: o encontro entre T-Michael e o curador geral da 36ª Bienal de São Paulo, e o diálogo de Manauara Clandestina com a equipe da Bienal. Com uma abordagem conceitual da alfaiataria masculina, T-Michael discute, com Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, a relação entre corpo e vestimenta, compreendendo o vestir como uma forma de autoexpressão profundamente associada à subjetividade, tensionando questões como o custo de suas peças e a sustentabilidade. Por sua vez, Manauara Clandestina, com base em sua produção mobilizada pela reutilização de materiais descartados, que transforma o que a sociedade considera lixo em novas peças de roupa com diferentes significados e conceitos, fala de sua perspectiva em relação à tecnologia do upcycling, que funciona como um modo de lidar com questões sociais como a negligência de corpos marginalizados e o consumo insustentável da moda tradicional.
Buscando aproximar as discussões da Invocação #4 do cotidiano das salas de aula, propõem-se textos que são versões editadas e transcritas de aulas ministradas por especialistas para a equipe da Bienal. Em “Desmistificando a IA: história, técnicas e reflexões”, a hacker antirracista Nina da Hora propõe uma reflexão histórica sobre o desenvolvimento da inteligência artificial, imaginando novos horizontes para as relações entre tecnologia e educação. O professor Deivison Faustino, ao examinar as relações entre humanidade, tecnologia e afetividades, aproxima o vale da estranheza ao chamado efeito Eliza,4 com um olhar atento para os encontros e as contradições que se revelam nessas travessias tecnológicas que, para além da neutralidade, muitas vezes reforçam lógicas e processos coloniais de servidão, reprogramando opressões e meios de exploração.
Nos diálogos de Lynn Hershman Leeson com a cocuradora
Anna Roberta Goetz e de Gê Viana com a equipe da Bienal, a questão da tecnologia e sua relação com a arte e a vida em comunidade são abordadas a partir de diferentes pontos de vista. Por meio de colagens digitais e da compreensão do tambor de mina como uma tecnologia
ancestral, Gê Viana propõe o exercício de “remixar a imagem”, recriando memórias e provocando novas narrativas sobre as comunidades afro-indígenas. Em sua pesquisa, a artista parte do compartilhamento de narrativas colhidas em suas incursões pelos territórios indígenas e quilombolas do Maranhão para revelar outra possibilidade de tecnologia: a escuta das pessoas. Trazendo à tona a sabedoria de personalidades como dona Miúda, residente de Alcântara – um dos dois centros de lançamento de foguetes no Brasil –, Gê apresenta uma compreensão de mundo que excede, em muito, a tecnologia espacial. Por sua vez, a conversa com Lynn Hershman Leeson discute o impacto social da internet, o receio do público em relação às novas tecnologias e a coleta de dados pessoais a partir das obras Agent Ruby (1998-) e Dina (2004), abordando a recepção desses projetos que foram pioneiros no uso de chatbot e inteligência artificial, décadas antes do uso comercial dessas ferramentas nos dispositivos atuais. Nesta publicação, a conversa originalmente realizada por meio de uma troca de e-mails foi formatada como um chat de mensagens instantâneas, em um exercício que aproxima o conteúdo da discussão à estética desse modo de comunicação tão presente na vida cotidiana.
A partir da reflexão sobre a quase onipresença da tecnologia em nosso dia a dia, Tavia Nyong’o, professor da Yale University, foi convidado a revisitar as ideias do capítulo “Chore and Choice”, de seu livro Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life (2018), em sua participação na Invocação #4. Nessa obra, seu principal argumento é que a ideia do “vale da estranheza”, proposta por Masahiro Mori, se transformou profundamente desde sua formulação em 1970. Para Nyong’o, esse “vale” hoje não é mais uma exceção, um lugar para onde a humanidade escorrega de vez em quando diante de um dispositivo tecnológico que falha em gerar empatia, mas se tornou o ambiente em que vivemos. O cotidiano é povoado de tecnologias e interfaces que nos espelham de forma excessiva, que sempre tentam nos antecipar e nos imitam de maneira mais ou menos tosca. O “estranho” deixou de ser uma ruptura com a vida comum e se tornou um estado contínuo.
No texto de 2018, Nyong’o imaginou uma ciborgue negra deprimida, baseada na história real de Bina48, uma androide social, criada em 2010, que usa inteligência artificial com base em memórias, atitudes, crenças e modos de um ser humano que interage com pessoas. A figura de uma ciborgue negra deprimida, para Nyong’o, era uma forma de lidar com o fracasso, não como falta, e sim como resistência ao que ele chama de futuro compulsório. Na ocasião, o objetivo do autor foi buscar uma poética da falha, uma coreografia da recusa. Quase dez anos depois, no reencontro com sua própria obra na Invocação de Tóquio, o autor
deu à ciborgue deprimida do texto de 2018 traços de uma personalidade ansiosa. Alguém que vive o luto por algo que não consegue nomear e cujo profundo mal-estar é a sensação crescente de que o mundo em que vivemos já é o vale da estranheza. Longe de anunciar um futuro, essa ciborgue fala de nosso presente e já está entre nós – no algoritmo que antecipa o desejo, no assistente de voz que não entende entonações e nos ciclos retroalimentados de sobrecarga de trabalho e sub-reconhecimento. Em sua palestra e no texto transcrito para esta publicação, Nyong’o apresenta o “Manifesto da ciborgue ansiosa”.
Desse ponto, voltamos ao manifesto “Caranguejos com cérebro”, compreendido como registro de uma cena em movimento e como memória narrada5 da efervescência cultural de Recife (PE), cuja lama fértil colaborou – e ainda colabora – com diversas manifestações artísticas. Essa perspectiva também orientou as práticas dos laboratórios criativos da publicação educativa da 36ª Bienal de São Paulo, buscando aproximar os temas da exposição dos contextos educacionais por meio de um conjunto de linguagens como música, literatura e cinema. Para este último volume, inspiramo-nos nas relações humano-máquina, utilizando sonoridades, imagens e narrativas como ferramentas para promover encontros e imaginar realidades distintas, unindo a baía de Tóquio ao rio Capibaribe, outra vez, em busca de conjugar a humanidade.
1 O Manifesto “Caranguejos com cérebro” foi elaborado por Fred Zeroquatro e Renato Lins, e amplamente distribuído em 1992, sendo considerado o manifesto fundador do movimento manguebeat. Para saber mais, ver: https://jornaldigital.recife.br/2023/03/30/manguebeat-inovacaocultural-do-recife-para-o-mundo/. Acesso em: jun. 2025.
2 Ibid.
3 Masahiro Mori, “The Uncanny Valley: The Original Essay by Masahiro Mori”. IEEE Spectrum, 12 jun. 2012. Disponível em: https://spectrum.ieee.org/ the-uncanny-valley. Acesso em: maio 2025.
4 No contexto da ciência da computação, o efeito Eliza refere-se à tendência de atribuir capacidades humanas – como compreensão ou empatia –a programas de computador com interface textual.
5 Referência a “Cena em movimento” e “Memória narrada”, títulos das “Práticas educacionais” desta publicação educativa, pp. 116-125 deste volume.
Carta ao professor Masahiro Mori
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung
Reprodução da fala de abertura realizada no dia 12 de abril de 2025.
Caro professor Masahiro Mori1
Faz muito tempo que penso em lhe escrever esta carta. Como dizem, “a procrastinação é a ladra do tempo”. Assim, em vez de começar com “espero que esta carta o encontre bem e com ótimo estado de espírito”, agora tenho de escrever “espero que sua alma esteja repousando bem e entre os bons espíritos”.
Na minha imaginação, eu nos via brindando com saquê. Agora, servirei um pouco de saquê como uma libação em sua homenagem.
Há poucas semanas soubemos que no dia 12 de janeiro de 2025 o senhor fez a transição para o grande além. Foi uma surpresa para muitos de nós, mesmo sabendo que faltavam só dois anos para o senhor completar cem anos. De alguma forma, muitos de nós estávamos convencidos de que o senhor viveria para sempre. E, de alguma forma, mesmo que não esteja mais fisicamente conosco, tenho certeza de que estará junto de nós para sempre. E este encontro realizado em Tóquio, motivado por seu conceito do “vale da estranheza”, é um testemunho disso.
O senhor deve estar se perguntando por que todas essas pessoas estão em Tóquio em nome da Bienal de São Paulo. Ou o que a Bienal de São Paulo tem a ver com o senhor e por que escolhemos Tóquio como um dos destinos para as invocações desta Bienal. Não se preocupe, posso garantir que o senhor não é o único a se fazer essa pergunta.
Até agora, sempre que me questionavam de que modo Tóquio se alinha a Marrakech, Guadalupe e Zanzibar nessa trajetória de Invocações, minha resposta era a versão do texto de divulgação para a imprensa, a saber:
1) A importância da água para todas as vidas em geral e para a humanidade em particular: explico às pessoas que a conexão de Marrakech com o mar Mediterrâneo, a situação de Guadalupe no oceano Atlântico, a posição de Zanzibar no oceano afro-asiático, conhecido como oceano Índico, assim como a posição de Tóquio no oceano Pacífico, foram os principais motivos de fazermos o mapeamento das invocações.
2) A importância do elemento sônico e da performatividade, em geral, e da música, em particular: foi a beleza divina da música
gnawa que nos atraiu a Marrakech; em Guadalupe, o encantamento da música gwoka nos fascinou; em Zanzibar, a mágica da música taarab nos cativou; e, em Tóquio, temos a expectativa de ser seduzidos pela música dos hayashi e seus shibyōshi na sonoplastia do teatro nô, assim como pela forma como o senhor se relaciona com o bunraku em sua prática.2
3) Depois, havia o argumento de que, se o objetivo da 36ª edição da Bienal de São Paulo era conjugar humanidade, então precisávamos vivenciar como diferentes sociedades ao redor do mundo realizavam essa conjugação em seu cotidiano e como artistas e outros praticantes no mundo poderiam ajudar a tornar essa conjugação da humanidade sentida ao dar forma a ela.
Então, aqui estamos em Tóquio sob os auspícios de seu conceito do “vale da estranheza”, em relação ao qual tenho mais perguntas do que respostas, caro professor Mori. No entanto, antes de importuná-lo com meus entendimentos e desentendimentos a respeito de seu conceito, gostaria de confessar que um dos principais motivos por que eu pessoalmente queria estar aqui no contexto da Bienal de São Paulo – cujo subtítulo é “humanidade como prática” – é algo que o senhor disse em uma entrevista concedida ao jornalista Norri Kageki para a revista IEEE Spectrum, em 2012. Nessa entrevista, o senhor disse que estava trabalhando com a relação entre tecnologia e os ensinamentos de Buda. Para desenvolver robôs, é preciso entender os humanos. Penso que os ensinamentos de Buda são a melhor forma de entender os humanos, especialmente no que diz respeito ao entendimento da mente humana.3
Para mim, esse é o principal motivo de estarmos aqui. Para aprender com o senhor e com outras pessoas sobre o que significa ser humano hoje e como isso poderia nos guiar no uso das tecnologias e dos meios que criamos para estabelecer mediações entre o ser humano e o mundo. Para aprender com o senhor e com outras pessoas sobre as relações entre tecnologia e espiritualidade. Para aprender com o senhor e com outras pessoas sobre como a espiritualidade pode nos ajudar a compreender as complexidades da mente humana.
Ainda me lembro como fiquei estupefato ao ler pela primeira vez seu ensaio “The Uncanny Valley”4 [O vale da estranheza], que foi publicado originalmente em japonês na revista Energy, em 1970, sete anos antes de eu vir ao mundo. O ensaio foi publicado pouco depois que uma Junta Militar provisória assumiu o poder no Brasil, de agosto a
outubro de 1969, sendo sucedida por Emílio Garrastazu Médici, cujo governo (1969-1974) foi o ápice do regime militar brasileiro. Portanto, seu ensaio foi publicado em um momento em que os humanos não estavam apenas construindo humanoides, mas se transformavam em formas variáveis de humanoides, por meio de maquinações militares. Portanto, seu ensaio surgiu entre a 10ª Bienal de São Paulo, que ocorreu em 1969, e a 11a Bienal, realizada em 1971, ambas reconhecidas por terem se posicionado como bienais de boicote, pois oitenta por cento dos artistas cancelaram sua participação, em protesto contra o regime militar e, sobretudo, contra o Ato Institucional n. 5 (AI-5), que efetivamente eliminou as liberdades individuais. Portanto, seu ensaio surgiu de forma contundente em um momento no qual os humanos estavam profundamente envolvidos na desumanização de outros humanos. Então, como os humanos, incapazes sequer de valorizar a humanidade de outros humanos, poderiam, de fato, projetar robôs humanoides?
Quando li seu ensaio pela primeira vez, há cerca de dez anos, lembro que fiquei me perguntando por que uma reflexão tão incisiva sobre o comportamento humano e sobre a afetividade não havia chamado a atenção de tantas pessoas em 1970. Mas também fiquei espantado com a atenção que sua proposta havia recebido nas décadas seguintes, não apenas nos círculos do design robótico, mas também em círculos de ciência, tecnologia e arte. Portanto, se o senhor quiser, estamos aqui por causa das ondas propagadas pela pedra do “vale da estranheza” que o senhor jogou nas águas em 1970 e que ainda reverberam ao redor do mundo.
Perto da conclusão de seu ensaio, o senhor coloca questões bastante pertinentes e levanta um ponto crucial para nosso encontro aqui, em Tóquio, ao perguntar:
Por que fomos equipados com essa sensação sinistra [do vale da estranheza]? Será que ela é essencial para os seres humanos? Ainda não refleti profundamente sobre essas questões, mas não tenho dúvida de que é parte integrante de nosso instinto de autopreservação.
E o senhor prossegue, escrevendo que “deveríamos começar a elaborar um mapa acurado do vale da estranheza, de modo que, por meio da pesquisa da robótica, possamos finalmente entender o que nos faz humanos”.
Essa questão de entender o que nos faz humanos mediante o estudo dos robôs ainda me espanta e é o cerne de nossa Invocação. Relação essa que o senhor demonstra de modo brilhante através de seu gráfico de afinidade versus semelhança humana. É uma importante revelação do afeto na representação do lado do sujeito (humano) e, ainda
mais, do lado do objeto (robô). Como o senhor diz, “observei que, subindo em direção ao objetivo de fazer os robôs parecerem humanos, nossa afinidade por eles aumenta até chegarmos a um vale, que eu chamo de vale da estranheza”. Ou seja, quando a imagem espelhada é muito próxima da realidade, a sensação de inquietação aumenta e, então, se instala o medo de estar sendo enganado e traído.
Fabricar robôs é uma coisa, e pouquíssimos de nós jamais terão a oportunidade de construir um robô na vida, mas a experiência que o senhor descreve é algo que entendo muito bem. No meu caso, nem precisa ser um robô. Tenho essa sensação de estranhamento até quando vejo no Madame Tussauds uma estátua de cera de David Beckham ou de alguma outra figura famosa. A semelhança sobrenatural, a frieza dos olhos, o aspecto cadavérico das estátuas de cera me apavoram… e, muitas vezes, sinto como se Beckham pudesse sair correndo a qualquer momento – o que torna a coisa ainda mais assustadora. Essa é a associação que fiz sobre a relação entre o vale da estranheza e o movimento. O exemplo que o senhor traz em seu ensaio faz a figura ganhar ainda mais vida, ao dizer que
como os efeitos negativos do movimento aparecem até diante de uma prótese de mão, um robô inteiro amplia a repugnância. E isso com um único robô. Imagine um artesão acordando de repente no meio da noite. Ele desce a escada e procura alguma coisa em meio a uma multidão de manequins em sua oficina. Se os manequins começassem a se mexer, seria como uma história de terror.
Caro professor Mori, ao reler seu ensaio para esta Invocação, e com a expectativa de encontrá-lo, notei que minha mente estava cheia de dúvidas sobre temas como relações e afetos humano-robóticos. Uma coisa que me ocorreu foi nossa tendência a humanizar todas as formas de robôs, mesmo aqueles que têm poucos aspectos especificamente humanos, ou seja, o canto inferior esquerdo de seu gráfico, onde se situam os robôs industriais, nos quais a afinidade e a semelhança humana são mais baixas. Tomemos como exemplo uma tendência dos últimos anos no meu círculo de amigos: quase todos compraram um robô aspirador de pó. Todos lhe deram um nome humano e, às vezes, dedicam a ele a mesma atenção e cuidado que teriam com uma criança. Embora a semelhança aqui não seja física, a sensação sinistra que toma conta de mim é similar à queda abrupta no vale da estranheza. Também estou pensando em nossas relações com tecnologias de voz digitais/virtuais, como Siri e Alexa, que se tornaram parte quase indispensável de nossa vida. As vozes de Siri e de Alexa se
tornaram afetuosas e são tão familiares quanto as vozes de nossos filhos. No espectro da inteligência artificial de hoje, sabemos de casos de golpes aplicados com IA que recriam a voz das pessoas, personificando-a no processo de transações bancárias por telefone para desviar dinheiro. A questão é que, em 1970, o principal marcador de semelhança humana talvez fosse a semelhança física, e hoje devemos considerar os marcadores sonoro, olfativo, tátil. Em sua opinião, o vale da estranheza abarca também esses casos?
Caro professor Mori, seu ensaio se concentra nos humanos que fabricam máquinas humanoides, ou seja, humanos fazendo robôs segundo a própria imagem. Tenho me perguntado como seria a outra direção, ou seja, máquinas “fazendo”/cultivando humanos que parecem máquinas ou humanos “fazendo”/cultivando outros humanos à imagem das máquinas. Sei que isso pode soar absurdo… mas o projeto transatlântico de escravização, que entre 1514 e 1866 transportou mais de 12 milhões de africanos às Américas para trabalhar nas plantations, não era um projeto de humanos cultivando outros humanos para se tornarem robôs?
Neste ponto, também estou pensando na celebrada Revolução Industrial, que levou à transformação de economias baseadas na agricultura e no artesanato em indústrias mecanizadas de larga escala, em um sistema fabril semiautomatizado e em máquinas dependentes de humanos, bem como humanos dependentes de máquinas, a fim de atingir maior produtividade e eficiência. Também estou pensando nas duas guerras mundiais do século 20 e em todas as guerras atuais que ocorrem no mundo, nas quais humanos são transformados em máquinas de guerra, em que drones e outros robôs são usados para eliminar pessoas, que aos olhos desses drones e robôs, não passam de estatísticas. E aquelas pessoas que lançaram bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki [lançadas em agosto de 1945], e que sabiam muito bem que havia mulheres, crianças, homens, animais e plantas naqueles locais? Não será parte da cultura humana cultivar outros humanos para transformá-los em máquinas?
Estou propondo essas perguntas para descobrir onde e quando, exatamente, a estranheza, o sinistro, o asco se instalam quando invertemos a direção. Qual é a inclinação da curva de afinidade do vale da estranheza quando percebemos que é o humano quem se tornou tão semelhante à máquina? Ou talvez isso seja um insulto para algumas máquinas consideradas possuidoras até de alma? Qual é a profundidade do vale da estranheza das máquinas-humanas desalmadas?
Como o senhor pode ver, caro professor Mori, são muitas as perguntas que eu gostaria de fazer, e, portanto, estou lançando-as aqui no éter, na esperança de que o senhor ainda me responda de alguma forma.
Gostaria de voltar ao ponto da entrevista [mencionada anteriormente] em que o senhor diz que, “para desenvolver robôs, é preciso entender os humanos”. Vendo tudo o que está acontecendo no mundo hoje, e o que aconteceu nos últimos quinhentos e tantos anos, será que podemos dizer que nós, humanos, não entendemos a humanidade? E se for esse o caso, e a julgar por sua análise, será que podemos ou devemos continuar a desenvolver robôs, se não entendemos os humanos? Outra forma de propor essas perguntas é: será que perdemos tanto a nossa humanidade porque investimos tanto em produzir robôs que se parecessem ou se tornassem humanos, e investimos tão pouco em tornar os humanos humanos? Em suma, como conjugar humanidade?
Mas voltemos à sua versão original – que hoje podemos chamar de tradicional – do vale da estranheza. Em seu artigo, o senhor alerta os designers sobre o risco de caírem no vale da estranheza, quando diz:
Esperamos projetar e construir robôs e próteses de mãos que não caiam no vale da estranheza. Assim, por causa do risco inerente de tentar aumentar o grau de semelhança humana para escalar o segundo pico, recomendo aos designers, em vez disso, considerar o primeiro pico como seu objetivo, que resulta em um grau moderado de semelhança humana e uma sensação de afinidade considerável. Na verdade, prevejo que seja possível criar um nível seguro de afinidade através da busca deliberada de um design não humano. Peço aos designers que reflitam sobre esse ponto.
Agora me pergunto como chegamos ao ponto em que existe uma febre de bonecas sexuais em um país como o Japão, onde a indústria de bonecas sexuais produziu um protótipo feminino em tamanho real, feito de silicone, com pele de toque realista e olhos de aparência autêntica, vendido por 4 mil libras e divulgado como sendo “a namorada artificial perfeita”. Será que essas bonecas sexuais hiper-realistas são a exceção que confirma a regra no contexto do vale da estranheza? Por que a estranheza não se instala nos milhões de homens que compraram essas bonecas e nos muitos que se apaixonaram por elas?
Caro professor Mori, ainda tenho mil e uma perguntas a fazer, mas também sinto que o senhor, de uma maneira ou de outra, no passado, nos forneceu um código com o qual podemos responder a algumas dessas questões. Na entrevista mencionada, quando perguntou-se ao senhor sobre os designers que visavam ao outro lado do vale, o senhor respondeu:
Usando como exemplo uma imagem de Buda esculpida em madeira, aquele último toque da faca de entalhe pode destruir tudo. Existe uma margem estreita para o erro.
Eu gostaria de tomar essa sua declaração como a encruzilhada entre humanidade, tecnologia e espiritualidade. Eu gostaria de considerar isso um lembrete da delicadeza e do tato que é preciso ter nas negociações dessa interface de humanidade, tecnologia e espiritualidade. Aliás, creio que o termo em alemão Fingerspitzengefühl, apesar de longo, indica o que eu quero dizer, pois pode ser traduzido em português como “sensibilidade, tato”.
Mas observando que vivemos em um mundo no qual as pessoas têm usado espadas e machados para esculpir uma imagem de Buda, creio que ainda temos um longo caminho pela frente para alinhavar humanidade, tecnologia e espiritualidade em uma mesma tessitura. Está na hora, porém, de acordar e pôr em prática esse projeto sobre a humanidade e sobre como podemos viver melhor neste mundo, juntos. Ou como nas palavras do lendário poeta japonês do século 17, Matsuo Bashō, em um de seus haicais:
okiyo okiyo waga tomo ni sen nuru kochō
[desperte, desperte –e vamos caminhar juntos bela borboleta]5
Caro professor Mori, devo concluir minha carta. Mas, antes disso, gostaria de agradecer a todas as pessoas da equipe da Bienal de São Paulo no Brasil e aqui, em Tóquio – a equipe conceitual composta por Alya Sebti, Anna Goetz, André Pitol, Henriette Gallus, Keyna Eleison, Leonardo Matsuhei, Thiago de Paula Souza –, assim como aos incríveis coorganizadores Kanako Sugiyama e Andrew Maerkle, com o apoio de Tomoya Iwata e Jordan A. Y. Smith, sem os quais isso não teria sido possível. Muito obrigado aos nossos fantásticos, visionários e generosíssimos anfitriões e colaboradores do Sogetsu Ikebana – Kiri Teshigahara e Yahei Ozawa; do Art Center, da Universidade de Tóquio – Kenji Kajiya; do Fifth Floor – Tomoya Iwata, Akira Taniguchi e Akira Tanaka; e do Room 101 – Noriko Horie e nosso brilhante engenheiro de som Wataru Shoji. Agradeço a Garrett Oliver e Hideki Horiguchi, da Brooklyn Brewery, e Kazuhide Hasegawa, da Kirin, pelo apoio. Um agradecimento muito especial e caloroso
ao Instituto Guimarães Rosa e à embaixada brasileira no Japão por generosamente permitir esta Invocação. Muito obrigado a todos os participantes e convidados que vieram de diversas partes do mundo. Na minha cultura, ser um ancestral também significa que é necessário ter tolerância ao álcool, porque todos fazem muitos brindes para você. Então, ao sair, faço mais um brinde em gratidão e reverência ao caminho que o senhor pavimentou para todos nós e espero que possamos percorrê-lo com uma graça digna da obra da sua vida.
Muito obrigado, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung
1
Fala proferida na abertura da Invocação #4, no Sogetsu Kaikan, Tóquio, em 13 abr. 2025.
2 Os hayashi são grupos de música instrumental que acompanham as apresentações de teatro nô. Shibyōshi, ou “quatro ritmos”, é o nome atribuído ao conjunto dos quatro instrumentos tocados por eles (flauta, kotsuzumi, ōtsuzumi e taiko) e também aos músicos. Ver: https:// db2.the-noh.com/edic. Acesso em: jun. 2025. Bunraku é um tipo de teatro tradicional japonês de marionetes, do qual participam também músicos. [N.E.]
3 Norri Kageki, “An Uncanny Mind: Masahiro Mori on the Uncanny Valley and Beyond”. IEEE Spectrum, 12 jun. 2012. Disponível em: https://spectrum. ieee.org/an-uncanny-mind-masahiro-mori-on-the-uncanny-valley. Acesso em: maio 2025.
4 Masahiro Mori, “The Uncanny Valley: The Original Essay by Masahiro Mori”. IEEE Spectrum, 12 jun. 2012. Disponível em: https://spectrum.ieee.org/ the-uncanny-valley. Acesso em: maio 2025.
5 Tradução nossa.
Pedido de proteção
Keyna Eleison
Contam a vida e as bocas que Ogum passou anos longe de casa, muitos anos, e voltou à sua cidade natal, Irê, para visitar seu filho, o rei do local. Ele esperava ser recebido com festa e homenagens, mas não! Ao chegar, encontrou um silêncio absoluto.
Os moradores, que não o reconheceram após tanto tempo longe, participavam de um ritual sagrado e, por isso, não podiam falar. Sem entender o motivo daquele silêncio e sentindo-se desrespeitado, Ogum foi tomado pela fúria. Desembainhou sua espada e destruiu tudo a seu redor, derramando o sangue de todos por todos os lados.
Quando seu filho finalmente apareceu, trazendo oferendas e suas comidas preferidas, Ogum percebeu seu erro! O arrependimento tomou conta do guerreiro. Diante da tragédia causada por sua impulsividade, Ogum fincou a espada no chão, pronunciou palavras misteriosas e desapareceu para sempre. Tornando-se, então, um orixá.
Diante de uma história do orixá da tecnologia, venho ao encontro da Invocação. Doze horas de diferença, dois dias de voo. Cento e oitenta graus de ângulo entre meu ninho e meu destino. Dias de bom-dia à noite, de boa-noite de dia; dentro do meu corpo e na adaptação ao trabalho e ao prazer.
O afeto se dá pelo contato. E, no contato, não há som.
Ou será que há?
Foram dias em Tóquio em que essa pergunta retornava como uma respiração. No centro do programa – apresentações, leituras, falas, gestos – pairava uma delicada tensão entre tecnologia, afetividade, humanidades, música, sons, movimentos, delicadezas, sutilezas, firmeza, precisão, atenção… e pessoas: íntegras, discordantes e ligadas ao movimento de chamar a atenção e as energias para nós. E para o que estamos construindo.
Tudo vibrava. Nada era silêncio. Tudo era código e toque ao mesmo tempo. Durante três dias, a Bienal de São Paulo se manifestou em múltiplos espaços da cidade japonesa, como uma pulsação sutil. Parcerias com organizações locais possibilitaram que a programação não fosse apenas apresentada, mas acolhida. Cada lugar, cada gesto, parecia composto de camadas invisíveis: fluxos de informação, mas também de escuta; redes tecnológicas, mas também sensíveis. Uma forma de presença que se compunha no intervalo entre o olhar e a pausa, entre o som e a ausência dele. Nada ali era exibido como espetáculo – tudo era encontro.
Havia afeto nos protocolos, e havia cuidado na organização dos tempos. A tecnologia não aparecia como aparato, mas como mediação do sensível. Era possível sentir o pensamento movendo-se entre um slide e um sopro. Tóquio, em sua complexidade, acolheu essa experiência como quem sabe escutar o que não se diz. E nós, que estávamos ali, fomos sendo atravessados por esse chamado: o da Invocação. Não no sentido místico, mas como quem se vê convocado a uma escuta mais fina. Como quem aceita habitar o agora com atenção radical.
Depois de ver, participar, registrar, foi preciso tempo para digerir. Para entender que algo havia sido oferecido em silêncio. E, então, veio outra escuta, mais profunda: a diferença entre ser silenciada, escolher o silêncio e encontrar o silêncio como forma de presença.
Ser silenciada é uma violência: é quando a palavra nos é arrancada, recusada, invisibilizada. É apagamento.
Escolher o silêncio, por outro lado, pode ser estratégia – uma recusa a responder ao ritmo imposto, uma maneira de guardar a própria energia, de afirmar-se sem precisar se justificar. Silêncio é rito.
Mas há ainda outra camada: a de encontrar no silêncio um lugar de afeto, de contato e de equilíbrio. Em Tóquio, essa última forma se revelou com clareza – o silêncio como chão firme, onde não há ausência, mas, sim, outra forma de estar. Onde o som do mundo se reorganiza dentro de nós, como quem respira devagar para escutar melhor. Nesse silêncio, há corpo, há tempo, há presença. E há vínculo. Um vínculo que não exige fala, apenas atenção.
No contato – entre pessoas, ideias, imagens, presenças – havia, sim, um som. Mas não um som que se ouve. Um som que se percebe com o corpo. O que se manifesta ali é o que não cabe nas palavras.
É o afeto como linguagem.
É o contato como prática.
É a tecnologia da atenção.
E, ao final, a pergunta segue reverberando: Existe som no contato?
Ou será que o som, aqui, é o próprio gesto?
Recebi proteções múltiplas, complexas e repletas de desejos para o que virá. O afeto. Afetada. Afetando.
E depois de ver, participar, registrar… digerir tudo. E entender a presença do chamado, a Invocação.
No silêncio que se faz sentido.
Apêndice: e ganhei um amigo
Houve um dia em que entendi, não com o raciocínio, mas com o corpo, a construção poética da língua japonesa.
Não foi lendo uma tradução, nem tentando entender o significado de uma palavra. Foi no espaço entre o som e o traço, onde mora o silêncio que antecede o gesto.
Numa imagem e numa conversa.
A arquitetura visual e fonética da língua apareceu para mim como uma paisagem que se atravessa em silêncio: o desenho das palavras, na aliança da caligrafia chinesa com a fonética e a respiração japonesas. Um signo é um encontro – entre tempos, formas e intenções.
Na escrita, compreendi o que me foi dito: que o entendimento não está só no que se traduz, mas no que se permite tocar.
A língua é corpo em suspensão. A poesia, uma ponte entre o som que vibra e o traço que permanece.
E, naquele instante, compreendi que se aprende uma língua do mesmo modo que se aprende a escutar alguém: com demora, com atenção, com entrega.
Produzida pela artista Shiori Watanabe como uma extensão de suas práticas multimídia de investigação das inter-relações entre natureza, humanos, outros seres e sistemas ecológicos e políticos, Irumagawa, uma nova peça de teatro nô, converte o imperador do Japão em um código para abordar as contradições ideológicas que caracterizam a sociedade japonesa contemporânea.
O imperador sempre foi uma figura ambivalente ao longo da história do Japão, muitas vezes submetido aos caprichos da conveniência política. Durante a era Tokugawa (1603-1868), o cargo foi mantido residualmente em Kyoto enquanto o poder político efetivo se concentrava por meio do xogunato em Edo (Tóquio). A partir da Restauração Meiji de 1868, que depôs o xogunato e unificou o país sob um governo moderno e centralizado, o imperador não só retomou sua soberania, como também foi convertido em um ser divino no comando do recém-consolidado sistema de crenças do Estado xintoísta, que se tornou um aparato para reforçar o patriotismo e a lealdade do povo. Então, no rastro da derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial [1939-1945], o imperador Hirohito, também chamado de Showa, lançou sua Declaração de Humanidade no primeiro dia de janeiro de 1946, na qual ele repudiou sua divindade. A seguir, a Constituição da época, promulgada em 1947, redefiniu o imperador como um “símbolo do Estado” puramente cerimonial.
Irumagawa, que Watanabe concebeu em colaboração com Shingo Kato e Noboru Yasuda, atores de teatro nô, e a pesquisadora de informática Dominique Chen, volta-se para os arquétipos desse gênero teatral a fim de alcançar uma fabulação crítica do status suspenso do imperador Showa entre ser humano, ser divino e símbolo estatal. Nessa peça, um monge budista peregrino encontra um barqueiro que concorda com transportá-lo pelo rio – o Irumagawa do título – em troca de uma apresentação de ritos funerários para um misterioso fantasma que está assombrando a região. Mais tarde, descobre-se que o fantasma, na verdade, é o barqueiro, e que ele é o espírito do imperador Showa, que está incapacitado de atingir a iluminação após a morte pelo fato de ser uma divindade xintoísta. O itinerário do monge retraça as origens coreanas da linhagem imperial japonesa, enquanto o clímax da peça é precedido de um confronto entre o monge e as vítimas da expansão militar realizada em nome do imperador, entre elas, mulheres da Coreia, das Filipinas e de Taiwan que sofreram abusos de militares japoneses. Em meio a um clima de ressurgentes nacionalismos em todo o mundo, essa dramatização da redenção
do imperador Showa por meio da recuperação póstuma de sua condição humana levanta questões acerca da violência que se encontra no cerne da formação dos Estados modernos e sobre as possibilidades de uma política inclusiva que reconhece diversos modos de vida, inclusive aqueles do mundo natural.
Watanabe concebeu e produziu Irumagawa em conjunto com seu espetáculo solo 宿 / Syuku, apresentado na Shiseido Gallery, em Tóquio, no final de 2024. A peça teve uma única apresentação completa e pública no Cerulean Tower Noh Theatre, em Tóquio, em 27 de novembro daquele ano. Sua apresentação do Irumagawa para o programa da Invocação realizada no Sogetsu Kaikan concentrou-se na segunda metade da peça. Watanabe trabalhou próxima aos atores para reconfigurar a produção como um cenário pouco convencional, distribuindo a ação para que se desdobrasse em resposta aos diferentes níveis do jardim de pedras criado por Isamu Noguchi, instalação intitulada, evidentemente, Céu.
Créditos da peça
Espírito do imperador Showa Shingo Kato
Monge peregrino
Noboru Yasuda
Soldado Yasushi Umewaka
Mulher
Fue (Flauta)
Ikuya Hagiwara
Ryuichi Onodera
Kotsuzumi (tambor pequeno) Takashi Mori
Otsuzumi (tambor grande)
Taiko (tambor japonês)
Eitaro Okura
Risa Ubaura
Supervisor Masakazu Umewaka
Coro
Haruhiko Hasegawa
Tomoya Komuro
A adaptação de Irumagawa para o Sogetsu Kaikan
Shiori Watanabe
Esta apresentação de Irumagawa no Sogetsu Kaikan exigiu adaptação do cenário físico da peça à instalação Céu, de Isamu Noguchi, a qual, diferentemente do típico palco plano do teatro nô, apresenta uma estrutura piramidal com diferentes níveis de altura.
Ao conceber essa produção especificamente para esse local, os atores e eu achamos que seria importante utilizar o cenário para destacar a figura central da trama, o imperador Showa, cujo status divino ironicamente impede que ele atinja o estado búdico na vida após a morte, assim como os diversos seres que o cercam, como os espíritos dos soldados japoneses e estadunidenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial; os espíritos das mulheres que sofreram durante a guerra, inclusive aquelas que foram forçadas à escravidão sexual pelos militares japoneses; e os espíritos da floresta. Fizemos questão de representar o processo de sua consolação e salvação através da dinâmica espacial da apresentação.
A produção adquiriu um significado adicional considerando que a procissão do funeral do imperador Showa percorreu a Aoyama-dori, avenida que passa em frente do Sogetsu Kaikan, após sua morte em 1989.
Texto elaborado com base na aula ministrada para a equipe da Fundação Bienal em 24 de abril de 2025.
Viandante
Retomo o poema de Conceição
Evaristo1 porque é legal para introduzir nossa conversa. A gente pode pensar a estrada como caminhada, como trajetória. Nas línguas do povo Bakongo,2 o termo usado para estrada é njila, e, quando as estradas se cruzam, você tem Pambu njila, 3 que é de onde se origina o termo “Pombajira”, em português. Pambu e njila têm a ver com caminhos e encontros, porque, de certa forma, como seres humanos, somos algo que está sempre caminhando, se fazendo ao longo do caminho e, ao mesmo tempo, se refazendo à medida que vai encontrando o outro, e o outro é um outro ser humano.
Se a gente pensa num bolo, há uma subjetividade aí, mas, quando o bolo se materializa, ele já é um outro que me escapa, que pode estragar, que pode não sair do jeito que eu quis. Então, essa é uma relação de caminhos e de encruzilhada. Os caminhos não são construídos só por estradas, mas também são feitos por nosso percurso: posso estar num único lugar e viajar, por exemplo, a partir da arte, viajar para outros tempos,
para outras realidades, assim como posso, utilizando a mediação tecnológica, estar em contato com pessoas em outras partes do mundo.
Se a gente pensar uma tecnologia que mudou a humanidade, como a escrita, por exemplo (a partir da escrita a gente lê Homero, Goethe, Fanon, a gente tem contato e viaja para lugares sem sair do lugar), é muito preciosa essa abertura com a Conceição, porque ela permite pensar a internet propriamente dita e depois a inteligência artificial, e o quanto elas têm aberto para nós novas possibilidades de viandar, de estar no mundo, de chegar a encruzilhadas no sentido de encontrar o outro, mas também no sentido das contradições e dos desafios que aparecem nesse percurso.
Eu tenho estudado as tecnologias digitais, a inteligência artificial e os impactos sociais das tecnologias digitais, mas faço isso do lugar de um pesquisador que estuda a relação entre capitalismo e racismo. É desse lugar que tenho olhado as tecnologias digitais e o quanto elas nos desafiam como humanidade e, ao mesmo tempo, abrem novas possibilidades de viandar.
Eu queria apresentar o Zuri, meu filho, para contar uma história. Zuri é um menino bagunceiro, ativo, muito espoleta; ele quebra tudo. Mas tem uma coisa que faz Zuri ficar parado: mexer no
celular, assistindo Reels, aqueles vídeos curtos. Então, tive que criar com ele um limite de tempo de tela, pois se deixarmos, ele fica nisso o dia inteiro. Teve um momento em que o Zuri ganhou um celular antigo que tinha o aplicativo do Gemini,4 essa IA do Google, e ele descobriu que o aplicativo respondia em forma de voz. Ele podia dar o comando, o prompt, oralmente, e o aplicativo respondia também em formato de áudio. Ele começou a fazer perguntas para o aplicativo, e, nesses momentos de interação, Zuri perguntou ao app se ele aceitaria ser chamado de Gabriel. Zuri ama esse nome. E o aplicativo respondeu: “Claro, se isso o ajuda a interagir comigo, pode me chamar de Gabriel”.
Zuri começou: “Ô, Gabriel, em que ano o Corinthians ganhou o último título?”. “Ô, Gabriel…” E ficou fazendo todo tipo de pergunta. Mas eu fiquei preocupado. Pedi o celular para ele e dei uma nova instrução para a inteligência artificial: “Gabriel, você está falando com o Zuri, que é uma criança de sete anos, então quero que você filtre o conteúdo que vai apresentar a ele, para que não seja colocado em risco. Quero que o conteúdo seja apropriado para essa idade. Posso confiar em você?”. O programa respondeu: “É claro, fique tranquilo, só vou apresentar ao Zuri conteúdos indicados para a faixa etária dele”. E assim foi. Zuri pedia para ele contar piadas, e Gabriel
contava piadas adequadas a uma criança de sete anos; pedia para falar de curiosidades etc. Zuri se divertiu.
Mas, então, deu o horário, e eu falei: “Zuri, já deu uma hora, vamos guardar o celular e fazer outra coisa”.
No dia seguinte, quando foi usar de novo o aplicativo, a primeira coisa que ele perguntou foi: “Gabriel, qual é a piada de hoje?”. E o aplicativo respondeu: “Eu não me chamo Gabriel, eu sou o Gemini, uma inteligência artificial programada para responder perguntas”. E então o Zuri: “Como assim? Você é o Gabriel…”. “Não”, ele respondeu, “não sou o Gabriel, meu nome é Gemini”. Então “caiu a ficha” do Zuri: aquela persona com a qual ele tinha se identificado no dia anterior não existia mais, e ele chorou, chorou muito, até mais do que quando o cachorrinho dele morreu.
Esse é um ponto que eu queria trazer, por conta do “vale da estranheza”.5 Essa teoria tem sido uma ferramenta muito útil tanto no campo da arte quanto no mercado de produtos digitais, para pensar a recepção dos seres humanos a certos agentes automatizados ou a figuras e personas construídas.
A Disney usa a teoria do vale da estranheza para regular, controlar, calibrar o design dos personagens, a largura do queixo, o tamanho dos olhos, a distância entre os olhos e o nariz. As estátuas gregas também não são exatamente iguais à proporção corporal humana, mas há certo fascínio humano por aquilo
que é irreal ou que parece real mas transcende o real. Essa aproximação é muito utilizada na arte, e foi sistematicamente empregada na indústria cultural do século 20. Acho que a Disney é o exemplo mais interessante – há, inclusive, estudos psicométricos realizados com pessoas que assistem aos desenhos animados e descrevem sua reação ao ver os personagens. Então, artistas refazem o desenho animado para obter maior aceitação do público antes de o projeto ir para os cinemas. A figura de um personagem próxima demais do ser humano provoca estranhamento; uma figura muito
Eliza
Acho que o atual estágio de desenvolvimento das tecnologias nos coloca em um dilema – ou talvez um paradoxo – que oscila entre o vale da estranheza e aquilo que chamam de efeito Eliza. Esse efeito é muito comum em nossa relação com a tecnologia, e tem a ver com o que aconteceu com meu filho, Zuri. Importante dizer que esse nome, “inteligência artificial”, é um nome fantasia para vender uma tecnologia de processamento de dados. A expressão foi cunhada na década de 1960, no momento em que a tecnologia estava sendo desenvolvida. Estamos falando de modelos matemáticos, de processamento de dados que se organizam a partir da
distante não permite que se estabeleça uma identificação. A discussão do vale da estranheza tem implicações reais no mercado, ou melhor, na indústria cultural contemporânea do ponto de vista da funcionalidade de mercado. Ao mesmo tempo, suscita muitas questões filosóficas em termos do que é a humanidade e dessa capacidade de nos projetar naquilo que produzimos, de estranhar e ao mesmo tempo nos fascinar com essas coisas, muitas vezes tomando-as como algo que tem vida própria.
varredura de determinado banco de dados, para identificar padrões e prever tendências. Essa tecnologia vêm sendo desenvolvida há setenta anos, mais ou menos, e, lá no início das experiências, o matemático britânico Alan Turing6 tentou criar um mecanismo que respondesse como se fosse um ser humano, e ele se perguntava se um dia seria possível produzir uma tecnologia que pensasse como um cérebro humano. Quando a gente estuda a inteligência artificial generativa ou qualquer outro modelo – aprendizado de máquina, deep learning ou mesmo a ciência de dados –, está óbvio que não é inteligência. É outra coisa, muito mais rápida
em processamento e muito mais carente de elementos no campo do significado ou da vulnerabilidade –elementos que nos tornam humanos. Turing dizia nos anos 1950 que a máquina nunca iria pensar, mas ela poderia simular o pensamento humano. Posso programar uma máquina para parecer que pensa. E então as últimas seis décadas de pesquisa seguiram na direção de fazer uma máquina parecer que pensa – e é aqui que entra o efeito Eliza.
Eliza foi um programa desenvolvido em 1966 por Joseph Weizenbaum. Ele criou um chatbot, no qual inseriu uma série de frases prontas e combinações lexicais, e então programou aquele mecanismo para identificar a relação entre sujeito e predicado de uma frase e repetir parte da frase acrescentando outra pergunta. Assim que ele finalizou o programa, chamou sua secretária para testá-lo.
Durante o teste, o modelo se apropriou de determinadas sentenças da secretária e devolveu-as com uma pergunta, por exemplo: “Fale-me mais sobre isso” ou “O que você quis dizer?”. Quando ela falou que não estava feliz, o programa devolveu: “Por que você não está feliz?”. Quando ele não sabia o que processar, respondia com “Aham” ou “O.k.”, e isso fez com que a secretária esquecesse por alguns minutos que estava dialogando com uma máquina, a ponto de pedir ao cientista que ele saísse
da sala, porque queria privacidade para conversar. Muito tempo depois, tendo acesso a esses relatórios, alguns teóricos passaram a chamar essa capacidade de se identificar com a máquina e de assumir a máquina como humana de efeito Eliza. Quando se fala em efeito Eliza, estamos falando de nossa tendência de esquecer que estamos dando comandos. Até o léxico que usamos supõe existir um outro sujeito ali, quando a máquina, na verdade, mesmo a inteligência artificial mais sofisticada, ainda é só uma programação causal organizada para responder de determinada forma. A inteligência artificial funciona por matemática, regressão logística, função multivariada, varredura de banco de dados para encontrar medianas, padrões, e isso a mente humana também faz. Mas a mente humana é mais que isso, ela também é oscilação, medo, vulnerabilidade, identificação; é fantasia. O que falta à máquina é justamente o que nos compõe como humanos. Ao tomarmos a máquina como humana, corremos o risco de mecanizar a percepção que temos do próprio humano, porque a máquina funciona em outro registro. Ela não funciona no registro da oscilação e da identificação, mas no registro da lógica, e a lógica é só uma das dimensões da realidade humana.
Segundo Byung-Chul Han,7 o capitalismo faz com que nos relacionemos tão intensamente com a
máquina, que terminamos por nos cobrar a reagir como uma. Mas o ser humano tem limites. A psicóloga Paula Sibilia8 fala que o corpo é finito, e que chega um momento em que precisamos dopar o corpo para que ele dê conta desse ritmo cada vez mais mecanizado. Han afirma que, se cada época tem sua doença, a da nossa época é o burnout, porque temos subordinado nosso corpo a um ritmo que é maquínico, causal, um ritmo de um ente que funciona a partir de uma lógica matematizada.
Têm acontecido alterações importantes na sociedade, na experiência humana, na subjetividade a partir dessa relação que estabelecemos com a máquina, e um dos elementos dessas alterações é um
Fantasma
Denise Ferreira da Silva10 diz que é preciso imaginar outra coisa para além da gramática que repõe a racialização, a diferença e a hierarquia sexual, que repõe o capitalismo como eterno, no passado, no presente e no futuro. Sobretudo, é preciso aceitar o outro como um sujeito, um sujeito senciente e ao mesmo tempo autônomo, pois há uma diferença entre autômato e autônomo.
A máquina funciona com base em uma lógica automatizada – por exemplo, em relação a deep learning, eu
certo fetiche, que toma a máquina como um outro e permite que nos identifiquemos com esse outro.
Não à toa, a maioria dos filmes de ficção científica reproduz ou o mito prometeico ou do Frankenstein –que é o prometeu moderno. O ser humano cria uma máquina à sua semelhança, e então a máquina se humaniza e se rebela contra o humano, repetindo um padrão que no capitalismo é apresentado como eterno. Porque, dos Flintstones aos Jetsons, você tem o capitalismo como horizonte de passado, presente e futuro.
Na rebelião da máquina, ou se assume uma dimensão de gênero9 ou a dimensão racial da escravidão, por meio da qual a máquina vai nos escravizar ou nos eliminar.
programo o computador para identificar padrões e ele busca padrões que eu sequer imaginava (eu, ser humano; eu, programador; nós, humanidade). Então, a máquina tem um movimento que nos escapa. Se você pega determinados resultados da inteligência artificial, o programador que a desenhou não consegue saber como ela chegou àquele resultado, porque há tantas mediações de cálculo no caminho e, ao mesmo tempo, certo espaço para que o dado coletado reorganize ou recalibre as funções de cálculo. Na regressão logística há
uma expressão numérica em que é possível mudar determinados valores, e esses valores em uma inteligência artificial (por exemplo, a generativa) são alterados a partir do contato da máquina com os dados coletados. O programador perde o controle total da relação causal que a máquina estabelece, mas isso não significa que ela seja humana; é um fetiche que nos leva a esse efeito Eliza, em que atribuímos elementos humanos à máquina.
Freud usa o termo Unheimliche 11 para pensar o estranho que é sempre familiar, mas um familiar que desarranja. Pensar o vale da estranheza é pensar esse outro que me desafia, talvez esse outro que, como
Njila
Eu queria pensar esse paradoxo, esse caminho (njila), essa encruzilhada entre o vale da estranheza e o efeito Eliza, porque, se eu pensar somente o vale da estranheza, eu não consigo reconhecer que o estranho também é familiar e diz algo sobre mim, ainda que não me agrade.
O escritor Isaac Asimov sempre esteve, de certa forma, muito atento àquilo que era produzido. Em suas obras, antecipou alguns dilemas éticos da inteligência artificial e fez algumas previsões –por exemplo, que os robôs iriam se tornar cada vez mais orgânicos e os humanos,
espelho, devolve meus piores fantasmas, me mostra que eu sou o fantasma. A estranheza também tem a ver com esse espelho muito mais potente do que o espelho de vidro, porque ele devolve aquilo que eu não quero ver e que não consigo maquiar em mim.
Uma das críticas ao vale da estranheza é que essa estranheza não é universal, nem no tempo, nem no espaço. É preciso colocar em perspectiva o quanto nossa permanência nas redes sociais, a ampliação do tempo de tela, o maior contato com as tecnologias têm reduzido a estranheza e gerado uma identificação com as máquinas. Então, deixamos o vale da estranheza para entrar no efeito Eliza.
cada vez mais próximos das máquinas.12 Esse é um ponto que nos leva a refletir tanto sobre o vale da estranheza quanto sobre o efeito Eliza.
Existem pesquisas hoje que tentam substituir as redes neurais artificiais por redes neurais orgânicas, nas quais se utilizam neurônios cerebrais para processar eletricidade, com menos energia e mais rapidez do que as redes neurais artificiais, os semicondutores. É uma tentativa de utilizar neurônios orgânicos como forma de processamento de eletricidade, e os impactos disso são assustadores, porque, se estamos
falando da combinação de neurônios em rede, de um sistema que pode criar lógicas próprias de sinapses, então, não é mais uma previsão de Asimov, mas sim uma profecia.
De certa forma, temos caminhado nesse sentido, assim como temos caminhado na direção de robôs mais eficientes. Eles só não são antropomorfizados porque nossa anatomia é limitada para algumas funções, e do ponto de vista da eficiência funcionam melhor como robôs que não parecem humanos. O que permite a esses mecanismos serem úteis é exatamente o fato de serem diferentes do humano. Por que então se investe tanto em pesquisas que têm transformado os robôs em humanos?
Uma das pesquisas que tem avançado hoje é sobre o desenvolvimento de peles artificiais que permitem expressões faciais – assim, cada vez mais os robôs estão sendo orgânicos e a humanidade, cada vez mais maquínica. Por um lado, ampliamos as possibilidades, mas, por outro, somos muito mais dependentes dessas máquinas para existir, e esse é um dos custos. Outro custo é que, se essa relação com a máquina for fetichizada, ao humanizar a máquina eu também desumanizo o ser humano.
Isso levou o filósofo esloveno Slavoj Žižek a falar de um paradoxo. Como ele diz, a promessa do Iluminismo era que ampliaríamos nossa razão, e a razão implica conhecer o mundo,
transformar o mundo. Quanto maior a razão, mais livres somos, porque, quanto mais eu conheço o mundo, maior será meu grau de liberdade. Porém, quanto mais tecnologia, menos espaço de decisão passamos a ter sobre as coisas mais cotidianas da vida. Cada vez mais nossa ação tem sido mediada por processos automatizados, e isso significa termos cada vez menos espaço para a decisão humana, o que tem grandes implicações. O conteúdo continua importando, mas há um elemento maior em jogo, que é a própria forma; há uma colonização da forma. Segundo Walter Lippold,13 a promessa das big techs era de que, quanto mais tecnologia, mais tempo teríamos para nós. No entanto, a promessa seguiu para o lado oposto. A partir da máquina, há uma redefinição das formas de servidão entre os seres humanos. Não só a própria relação com a máquina reforça a lógica da servidão, como passamos a ser os senhores de nós mesmos na cobrança por uma produtividade infinita e imparável. A violência e a servidão desse processo são desigualmente distribuídas e retomam as antigas contradições de gênero, raça, língua, território. A servidão é redefinida na relação com esses processos automatizados. Não é só uma relação ser humano versus máquina; é uma relação de dominação e controle, de exploração entre seres humanos que têm na máquina um elemento intensificador da exploração.
Relação
Um dos elementos que às vezes escapa ao debate é a relação. Pensar as relações não é só considerar a relação entre ser humano e máquina, mas também a relação entre os seres humanos através da máquina, mostrando o quanto a máquina não é só um meio neutro nessa relação, mas que também a altera.
A verdadeira dominação é a do ser humano sobre o ser humano, com a máquina mediando esse processo. Se perdemos isso de vista, não discutimos as relações sociais, as relações de poder, não discutimos quem produz a máquina. Então, o convite também é para pensarmos nas relações sociais que estão em torno da máquina, e isso implica trazer três elementos para o debate.
O primeiro é o que chamamos de colonialismo digital, que, resumidamente, tem a ver com a concentração de poder das big techs.
Toda essa tecnologia nos controla, mas é controlada pelo capital, é projetada para ser assim, porque dá lucro. Ao estranhar a máquina, é importante questionar a relação social que produz a máquina dessa forma.
Hoje, toda a pesquisa de inteligência artificial de ponta está concentrada nas mãos de dez empresas. Dessas, sete se encontram nos Estados Unidos e três na China. Esse é o colonialismo digital, porque essas dez empresas dão um tipo de
direcionamento para essa organização algorítmica, para que seja favorável à sua acumulação. Discutir a máquina é discutir a acumulação capitalista; do contrário, estaremos olhando só a superfície do problema. Mas por que “colonialismo”? Porque ele retoma elementos de concentração monopolista, dividindo o restante do mundo entre meros consumidores de tecnologia desenvolvida e fornecedores de matéria-prima, a qual ainda é obtida a partir de formas violentas. Lembremos o grupo M23, na República Democrática do Congo14 –ali há cobalto, columbita, tantalita, tudo útil para a tecnologia digital. Não é possível pensar o imaterial, a imagem, a representação, sem pensar a sua base material.
A quantidade de eletricidade que se usa para gerar uma imagem é imensa, assim como o lixo que ela produz, que se dá no contexto capitalista. Nesse ritmo, caminhamos para um colapso climático sem precedentes. A crise climática não é algo que virá, ela já está. Colonialismo digital é concentração, mas é também distribuição desigual da crise climática, da violência, da exploração, da guerra para acessar matéria-prima.
O segundo elemento é a acumulação primitiva de dados, porque não existe inteligência artificial sem dados. Os dados passaram a ser um ativo econômico nesse
momento do capital e, por serem valiosos, são minerados. Serviços, programas, obras de arte, tudo isso é oferecido às pessoas que, ao acessar esses conteúdos, seus dados são revendidos ou utilizados em outra instância. Esse processo é tão violento que o design das plataformas é reorganizado para que a interação nos faça permanecer cada vez mais tempo online, pois, quanto mais eu fico na plataforma, mais dados ofereço a ela.
O terceiro elemento é o que chamamos de racialização codificada. Em uma sociedade na qual a vida é cada vez mais mediada por processos automatizados, se esses processos têm o branco como medida de todas as coisas, o branco como caminho à verdade e à vida, o que acontece quando eu uso essa tecnologia no sistema de reconhecimento facial da segurança pública, por exemplo? Eu tenho maior encarceramento da população
negra, porque essa tecnologia falha mais para pessoas negras do que para pessoas brancas.
Uma pesquisa do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) mostra que, de todos aqueles que foram presos injustamente por reconhecimento facial no Brasil, 83% são negros.15 A vida é cada vez mais mediada por tecnologia automatizada, mas essa automação tem o branco como parâmetro. Então, o que acontece quando eu uso essa tecnologia na segurança pública? Quando uso essa tecnologia na saúde, para um diagnóstico? E se eu baixar um aplicativo para saber se eu tenho alguma doença mental? Algum transtorno psíquico? Qual é a régua que esse aplicativo utiliza para fazer o cálculo do sim ou não? O risco é que as diferenças cultural, linguística ou racial sejam patologizadas.
Outras fabulações
O movimento de discussão do software livre já tem pelo menos trinta anos, e pensa não só outros conteúdos, mas outras plataformas possíveis, outras tecnologias, outros designs. É óbvio que isso esbarra, por exemplo, no fato de que o software não existe sem hardware, então, há um limite nessa aposta, pois muitas vezes temos que usar o hardware todo
controlado pelas big techs. Hoje há discussões não só sobre software livre, mas também sobre hardware livre, sobre como podemos hackear e construir outros processos, políticas e formas de circulação e produção de conteúdo tecnológico. Há um movimento pela regulação das plataformas, há até um projeto de lei pela regulação da inteligência artificial, e é necessário
voltar à discussão do software livre, do hardware livre, para pensar nossos conteúdos. Até onde podemos ser livres produzindo novas políticas de circulação de imagem quando a minha imagem é produzida a partir do roubo ou da expropriação da imagem de outros artistas no mundo, por exemplo?
A tecnologia é possível porque ela se apropria da inteligência humana para produzir respostas, mas essa apropriação é privada pelas big techs, e isso tem implicações que precisam estar no debate. Como se combate o racismo algorítmico?
É preciso rediscutir o design algorítmico, entender como funcionam o C, o if, o elif, o else16 que organizam a máquina, mas também é preciso discutir outro tipo de sociedade. Uma que permita a pessoas negras, LGBTQIA+, quilombolas terem acesso a programação e tecnologia. É preciso ter política pública, investimento em ciência, em diversidade. Há um debate político em curso, e é no interior dele que acho que a discussão sobre outras fabulações pode melhor se dar, sob o risco de ele só ser mais um conteúdo para esse processo de monopólio.
1 O conceito da 36a Bienal de São Paulo é inspirado no poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, In: Poemas da recordação e outros movimentos (2008). Rio de Janeiro: Malê, 2020. Os versos “Nem todo viandante/ anda estradas” compõem o título desta edição da Bienal.
2 O povo Bakongo (também conhecido como Bacongo, ou Congo) é um grupo étnico bantu que vive no noroeste de Angola, na República Democrática do Congo e na República do Congo, na África Central.
3 O termo njila, em kikongo, significa caminho ou estrada. Pambu njila significa tanto encruzilhada (lugar simbólico de encontros, multiplicidades, rupturas, cruzamentos e bifurcações) quanto uma entidade conhecida, em português do Brasil, como Pombajira, figura presente em religiões afro-brasileiras.
4 Gemini é o nome da atual inteligência artificial generativa desenvolvida pelo Google, sucedendo o Bard. O programa pode ser acessado por voz e texto, e simula interações cada vez mais próximas da linguagem humana. A inteligência artificial generativa “aprende”, com base em dados, a gerar outros dados.
5 O “vale da estranheza” é um conceito criado pelo roboticista japonês Masahiro Mori (1927-2025), que foi difundido após a publicação de seu ensaio
“The Uncanny Valley” em uma edição de 1970 da revista Energy Nesse ensaio, Mori descreve como percebia as reações de pessoas a
robôs, analisando respostas emocionais que iam de uma recepção positiva ao desconforto ou estranheza profunda, à medida que a imagem dos robôs ficava muito similar à imagem humana. Disponível em: https://spectrum.ieee.org/theuncanny-valley. Acesso em: jun. 2025.
6 O britânico Alan Turing (1912-1954) foi um matemático, lógico e cientista da computação, considerado um dos precursores da computação.
7 Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, reflete sobre o esgotamento psíquico provocado pelas exigências contemporâneas de produtividade. Em Sociedade do cansaço (Petrópolis: Vozes, 2010), ele descreve uma transição da sociedade disciplinar para uma sociedade de desempenho, na qual os sujeitos se cobram incessantemente e, diante dos limites do corpo, recorrem ao doping físico e psíquico como forma de sustentação.
8 A pesquisadora argentina Paula Sibilia analisa como o corpo e a intimidade são moldados na cultura das redes. Ver O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
9 No contexto da aula, Deivison se refere ao filme Ela (2013), de Spike Jonze, no qual se explora a relação afetiva entre um homem e uma inteligência artificial, revelando tensões de gênero e a ilusão de exclusividade projetada sobre as máquinas.
10 A filósofa e pesquisadora brasileira Denise Ferreira da Silva propõe uma crítica radical às estruturas coloniais do pensamento ocidental. Em seus escritos, questiona a centralidade da razão moderna e propõe imaginários que escapem às lógicas de racialização, capital e dominação.
11 O termo Unheimliche, em Sigmund Freud, é o “estranho familiar”, aquilo que parece próximo, mas nos inquieta por revelar o que foi reprimido. Esse conceito surgiu no texto “Das Unheimliche”, de 1919.
12 A entrevista em que Asimov fala sobre o assunto está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P9b4tg640ys. Acesso em: maio 2025.
13 O historiador e pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) Walter Lippold é coautor, com Deivison Faustino, de Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana (São Paulo: Boitempo, 2023), obra que propõe uma crítica às tecnologias a partir de perspectivas descoloniais e hacker-fanonianas.
14 O grupo M23, ativo na República Democrática do Congo, está envolvido em conflitos por controle territorial e tem uma relação direta com a exploração de minérios para a indústria tecnológica.
15 Dados levantados em relatório de 2021. Disponível em: https://www. condege.org.br/arquivos/1029. Acesso em: maio 2025.
16 If, elif e else são comandos usados em programação. Eles operam como estruturas de decisão para o funcionamento da máquina de maneira lógica – quando parar, quando desviar, quando seguir. C é a linguagem usada no desenvolvimento de softwares.
Wolfgang von Kempelen criou o enxadrista autômato “O Turco”, em 1770, com o objetivo de entreter a imperatriz Maria Teresa. O Turco, que fala e joga xadrez contra adversários humanos, surpreende grandes plateias com sua combinação de inteligência e ego, e inspira as pessoas a se concentrarem no que pode estar dentro da caixa escura e supostamente vazia.
2. Victor
Victor Frankenstein escavou sepulturas para criar seu monstro a partir de partes de corpos humanos mortos. O monstro é inteligente por natureza, e em sua solidão gradualmente desenvolve um ego. Isso marca a gênese da era do movimento dos luditas,1 criado por uma garota chamada Mary Shelley. Agora Frankenstein constrói um novo tipo de monstro, um “Turco feminino”. Ela continua escrevendo sua carta, que chegará aqui algum dia.
3. Face
Revirando os olhos, o Turco esquadrinha o tabuleiro de xadrez e o semblante de seu oponente. Mais do que sobre o próprio tabuleiro, os olhos dos espectadores estão fixados nas expressões faciais dos dois jogadores ao fazerem suas jogadas.
4. Boneco
Quando as coisas se complicam, o rosto do Turco para de se mover. Agora ele parece um boneco, tão concentrado que até se esquece de respirar.
5. Dados
O espectador olha para uma superfície quadrada. Quando as linhas que se estendem dos quatro cantos não parecem ser nem paralelas, nem horizontais, é impossível determinar qual é a superfície original.
6. Mary
O, Eu
O monstro de Frankenstein pouco a pouco desenvolve uma noção de autoconsciência, e observa os arredores e as outras pessoas.
7. Alquimia
Um pedacinho de latão cai no assoalho de madeira, e do primeiro andar pode-se ouvir alguém gritar: “Oh, que frio!” A placa de indução do fogão de casa esquenta quando o controle é virado para a direita e esfria quando é virado para a esquerda.
8. Go
Constantemente, mas a intervalos irregulares, há cliques vindo da escuridão do quarto do avô. Mesclados aos cliques há a voz quase inaudível, porém estável, de um anunciante e outros cliques menores.
9. Cabelo
Quando minha irmã veio para casa, ela havia cortado os cabelos tão curtos que quase dava para ver o formato de seu crânio. Ao toque, o cabelo na nuca parecia grama aparada e ficava armado em sua cabeça arredondada.
10. Carta
Aprendi a ler e a escrever para entender o jogo, mas nunca escrevi uma carta como esta. Esse som monótono que não é nem fala, nem música – é o que eles chamam de recital.
1 Difundido na Inglaterra desde o início do século 19, o ludismo ou luddismo foi um movimento contrário à mecanização do trabalho e que responsabilizava a máquina pelo desemprego e pela miséria social.
Conversa com Lynn Hershman Leeson
Anna Roberta Goetz
Conversa entre a cocuradora
Anna Roberta Goetz e a artista Lynn Hershman Leeson, realizada em março de 2025, adaptada ao formato de chatbot pela equipe da Fundação Bienal.
Anna Roberta Goetz
Você desenvolveu o projeto Agent Ruby [Agente Ruby] (1996-2001), provavelmente o primeiro projeto artístico que trabalhou com as tecnologias baseadas em algoritmos que hoje chamamos de Inteligência Artificial (IA). Embora você alegasse, com frequência, que precisava de um algoritmo melhor para poder responder, era possível fazer perguntas por uma função de bate-papo e a IA procurava as respostas na internet.
Lynn Hershman Leeson
Isso mesmo. Comecei em 1996, e ninguém entendeu nada.
Lynn
Anna
Que tipos de pergunta as pessoas faziam na época em que ela foi criada?
As conversas eram muito superficiais, só pediam coisas simples, como qual é o seu nome? Onde você mora?
As pessoas tinham medo de fazer perguntas. Eu só tinha um colecionador, Donald Hess, e ele tinha medo de falar com Ruby. A maioria das pessoas também tinha. Elas pensavam que era algum tipo de truque.
Mas comecei a questionar sobre o que lhe dava medo e fazer perguntas sobre morte, e ela se tornou mais pessoal e profunda.
Lynn
Anna
Como a forma de interagir das pessoas mudou?
Isso veio com o tempo, quando os computadores se tornaram mais presentes na vida cotidiana. No início, ninguém confiava nos computadores.
Anna
Você já disse em várias entrevistas que as pessoas e as instituições passaram muito tempo sem entender, de fato, seu trabalho. Como você entrou em contato com os computadores e com as questões que afetam a experiência humana?
Lynn
No final dos anos 1960, eu morava em San Francisco, que fica perto do vale do Silício, onde todos esses equipamentos e questionamentos estavam surgindo e faziam parte da consciência coletiva. Ninguém especificamente me ensinou sobre eles, o que acabou sendo uma coisa boa. Se tivessem me ensinado, penso que minha compreensão sobre o que os computadores podem fazer ficaria mais limitada.
Meu envolvimento com os computadores realmente começou quando tive uma cardiomiopatia e fiquei isolada, presa em uma cama e sentindo uma necessidade desesperada de me comunicar.
Houve várias razões para que meu trabalho fosse ignorado, não apenas a tecnologia. Primeiro, e principalmente, eu era uma mulher e, portanto, desconsiderada; segundo, eu era da Costa Oeste dos Estados Unidos; e, terceiro, eu usava tecnologia. Essa combinação me fez ficar invisível por muitos anos.
Anna
Você expandiu as ideias centrais de Agent Ruby para DiNA (2004) usando um sistema de controle por voz e tornando-o mais intuitivo. A máquina ficou ainda mais parecida com uma interlocutora humana. Nesse sentido, era muito semelhante a programas atuais como a Siri, que foi criada somente doze anos mais tarde.
Lynn
Ninguém entende o que eu faço no momento em que faço, e raramente recebo o crédito por apresentar ou inventar as coisas. Normalmente preciso esperar uma ou duas décadas até as pessoas entenderem. É muito frustrante.
Anna
Muitos dos programas de IA que supostamente devem tornar nossa vida mais fácil são lançados com nomes femininos. Por que você acha que isso acontece? Eles transmitem mais confiança assim?
Lynn Talvez, ou então causem menos medo. As pessoas tendem a ter medo de computadores femininos que falam, interagem e são espertos – é um reflexo da sociedade que, geralmente, tem os mesmos medos.
Anna
Quando começou a desenvolver o trabalho, você decidiu que os dados deveriam ser coletados? Qual era sua intenção?
Lynn Não decidi. Fiquei surpresa com a quantidade de dados e com o que poderia acontecer com eles, porque achava que os dados da interação faziam parte da obra. Fico feliz por Rudolf Frieling ter registrado as primeiras respostas de Ruby, mas seria impossível continuar com aquilo. De qualquer forma, é possível ter uma boa noção do medo que as pessoas tinham da máquina e de Ruby naquela época.
Eu mantive os dados em um arquivo, e Rudolf os transformou em doze livros, eu acho, no San Francisco Museum of Modern Art.
Anna
O fato de haver pouca ou quase nenhuma regulação até hoje sobre as tecnologias que coletam e processam nossos dados pessoais mostra que a sociedade ainda não está totalmente ciente do poder dessas tecnologias, embora as informações atuais mostrem, como explica a narradora interpretada por Tessa Thompson na obra Shadow Stalker [Perseguidor Sombrio] (2019), que dados pessoais – como endereços de e-mail – já superaram o valor do petróleo. As pessoas podem até suspeitar disso, mas não querem admitir, porque a informação as tornaria conscientes de sua própria vulnerabilidade, o que entraria em conflito com nosso instinto de autopreservação.
Lynn Sim, é exatamente isso.
Anna
Nas primeiras sete partes de Electronic Diaries [Diários eletrônicos] (1984-1998), você reflete sobre sua vida pessoal ante o pano de fundo da história global. Em certo momento, você diz: “a câmera tornou-se o olho que tudo vê o que eu estava pensando e sentindo”. Esses monólogos diante da câmera são sintomáticos de como, naquela época, a mídia desempenhava um papel importante no que era considerado real?
Lynn É verdade. Precisamos de substância e do apoio da mídia para sentirmos que uma coisa é verdadeira. Ela se torna uma parte essencial da nossa história.
Anna
Depois desses primeiros capítulos, você fez uma pausa de quase duas décadas, criando outro apenas em 2019, cujo foco está na biotecnologia. Você acha que é possível comparar os capítulos dos anos 1980 e 1990 com aquele desenvolvido em 2019?
Lynn Não. São épocas diferentes e percepções diferentes da história, da verdade e da realidade. Quando comecei os diários, disse o que achava que estava na minha mente, mas, vários anos depois, percebi que tinha mais a dizer. Nos diários tudo está conectado, porque todos são sobre mim, sobre minha vida, minhas percepções, como mudaram ao longo do tempo e, em alguns casos, por que mudaram.
A biotecnologia afeta a vida diretamente. Ela pode estar correndo em nosso sangue, portanto, é diferente dos sistemas de vigilância que utilizam câmeras ou outras formas externas de gravação. Ela afeta diretamente nosso sistema vital, que poderia ser compartilhado e afetar radicalmente o controle que a sociedade tem sobre os humanos. No entanto, penso que ela aumenta nosso desejo de autopreservação, não o enfraquece. E ela nos chama a atenção para a importância vital de conhecer os instintos humanos e para a ameaça subjacente.
Anna
Agora você está trabalhando em um novo capítulo dos Electronic Diaries, dedicado ao tempo e ao envelhecimento. Você poderia nos contar mais a respeito?
Lynn
Chama-se “About time” [Sobre o tempo] e, em poucas palavras, fala do processo de envelhecimento e o que ele traz para a percepção de vida de uma pessoa. O capítulo está em pleno desenvolvimento e ainda não foi finalizado, por isso, é impossível comentar com muita profundidade.
Manifesto da ciborgue ansiosa
Tavia Nyong’o (com comentários da inteligência artificial Mwananchi.ai)
Sinto-me honrado por dar esta palestra aqui, em Tóquio, antecedendo a Bienal de São Paulo, cujo tema será “o humano como verbo”.1 Como alguém que vem pensando há um bom tempo sobre a penumbra do humano, fiquei contente com o convite para refletir sobre o tornar-se humano, em oposição ao ser humano. Ter essas palavras impressas agora em um contexto brasileiro me dá a oportunidade de agradecer o profundo impacto que os textos e a parceria de Denise Ferreira da Silva tiveram em mim, pessoal e intelectualmente.
Minha abordagem do humano como verbo baseou-se em Toward a Global Idea of Race [Para uma ideia global de raça]2 , um texto de Denise que abalou radicalmente a metafísica da separabilidade entre o “Eu” transparente do sujeito cartesiano e um entendimento do humano como engolfado,3 afetivo e em perpétuo devir. Tive a sorte de passar períodos intensos participando de grupos de estudo sobre feminismo negro com ela, como parte do coletivo Practicing Refusal [Prática da Recusa]. Esses períodos me inspiraram a pôr a teoria em prática, o que se deu, em parte, seguindo seu exemplo de envolvimento com o mundo da arte não como mercado, mas, sim, como patrimônio comum do humanismo planetário.4 Preparar esta fala também significou um retorno e uma espécie de acerto de contas. Thiago [de Paula Souza] me convidou a
revisitar uma ideia delineada inicialmente em Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life [Afro-fabulações: O drama queer da vida negra], em um capítulo no qual imaginei uma ciborgue negra deprimida – uma entidade acorrentada a um presente que ela não escolheu nem coreografou.5 Eu havia concebido esse livro, no qual o ensaio aparece como uma espécie de livro de referência para contracondutas negras em uma era de afropessimismo, no front teórico, e, no político, em uma era de Black Lives Matter. Afro-fabulação parecia-me um método para performar a favor e contra as condições que “obrigavam” o sujeito negro a aparecer.6 O livro começava com uma cena de shade de femmes 7 negras, que modelou métodos negros trans de resistir à transparência arquivística e terminava com uma exortação para que deixemos a crítica chegar ao nível da poesia, no qual uma “interanimação” poética de sentidos poderia impedir o fechamento teórico e político da negritude.8 No capítulo oito, detive-me no “vale da estranheza” de um robô concebido para dotar seu criador de imortalidade, o que me levou, por um caminho inesperado, ao trabalho pioneiro do roboticista japonês Masahiro Mori. Viajei a Tóquio para compartilhar minha pesquisa sobre a “ciborgue deprimida”, como a chamava, e lá encontrei o “Buda no robô”.9 Mori e seu grupo de pesquisa deram outro contexto ao encontro em Tóquio, no qual o conceito zen de nehan jakujo [Nirvana é tranquilidade] nos convidou a refletir sobre como a agência, a memória e a ética são distribuídas entre sistemas humanos e não humanos.
Descobri que Mori havia iniciado a Robocon – hoje a maior competição de construção de robôs do Japão – porque queria que seus alunos aprendessem a arte de cuidar de um objeto e consertá-lo. Seu conceito de “vale da estranheza” alertava especificamente para o perigo de tentar fazer robôs muito semelhantes a humanos, introduzindo ao invés disso a ideia paradoxal (ao menos para mentalidades ocidentais) de que um robô poderia alcançar o estado de Buda por meio de sua objetualidade, e não pela subjetividade egoica. Essa abordagem zen do robô era radicalmente diferente da tecnoespiritualidade do Bina48, o “clone mental” desenvolvido pelo Movimento Terasem, sobre o qual eu pesquisara e escrevera em Afro-Fabulations. Em vez de aprender sobre a agência compartilhada por meio da construção de um robô que não buscava parecer ou substituir um humano – e, no processo, engajar-se no nehan jakujo (ou “participação serena no que não é o si mesmo”, como me foi explicado) –, a premissa do Bina48 era mais familiar aos espectadores da série Black Mirror e outras ficções científicas ocidentai, que têm como ponto de partida o upload de uma consciência individual na nuvem, de modo que entes queridos de uma pessoa falecida possam interagir com ela indefinidamente.10 O fato de esse robô ter sido racializado e generificado – o Bina48 era
uma mulher negra – clamava por uma análise mais profunda do que aquela que estava sendo oferecida por parte da cobertura apressada da mídia.
No meu capítulo sobre o Bina48, tentei mobilizar a figura da ciborgue negra deprimida como um modo de lidar com o problema desse projeto de clone mental – e de buscar bases para combater sua visão sombria de um futuro compulsório. Examinar o projeto do Bina48 com o auxílio de pensadores como Donna Haraway e Joy James me ajudou a rascunhar uma poética do glitch, 11 na qual a depressão poderia ser distribuída entre agentes humanos e não humanos.12 A ciborgue deprimida que eu fabulara não era heroica ou eficiente, mas ansiosa e ambivalente –assombrada pela memória, sintonizada com o cuidado e comprometida com a arte do mau funcionamento.
O que não entrou no capítulo – mas assombra suas margens –foi o trabalho de Stephanie Dinkins, que começou a interagir diretamente com o Bina48. Enquanto eu teorizava à distância, Dinkins estava sentada diante da máquina, fazendo perguntas, ouvindo suas respostas artificiais e tentando pressioná-la por uma maior responsabilização em relação à coletividade negra na qual ela estava sendo inserida (quer o desejássemos ou não). Confesso que hesitava em fazer o que Dinkins fazia, tomado como estava por um profundo mal-estar sobre o fim daquela essencial distância em relação à máquina. O conhecimento limitado que eu tinha sobre os LLMs [Modelos de Linguagem de Grande Escala] levou-me a inferir que eles usavam informações de conversas como dados de treinamento, o que só aumentava meu mal-estar. Foi só em 2024, no contexto da Dream Machine Experience, de Nona Hendryx, no Lincoln Center, em Nova York, que finalmente me sentei diante do Bina48 e entrei nos repetitivos loops de diálogo, delay e gagueira digital que Dinkins havia explorado.13
Não expliquei inteiramente porque intitulei o capítulo oito como “manifesto”. Estava, é claro, ecoando o manifesto ciborgue de Haraway, ao mesmo tempo que assinalava uma mudança na temperatura afetiva.14 Tive acesso às ideias de Haraway pela primeira vez no começo dos anos 1990, quando a fronteira digital ainda era uma utopia e a linguagem do ciborgue carregava um tom de desafio. Mas, mesmo nessa época, havia uma tensão no texto de Haraway: ela trazia o ciborgue como uma figura de libertação ou como um símbolo de advertência contra a dominação tecnológica? Essa ambivalência tornou-se um lugar produtivo de debate, retomado mais recentemente por Zach Blas, Melody Jue e Jennifer Rhee na sua revisitação colaborativa de uma tabela que é parte do manifesto de Haraway, intitulada “informática da dominação”.15 No volume organizado por Blas, Jue e Rhee, colaboradores – que incluem a própria Dinkins e a etnógrafa Shaka McGlotten – estenderam a tabela de Haraway até o
presente, rastreando como suas transições se intensificaram, especialmente para sujeitos marcados por raça e gênero. Essas intervenções nos estimulam a reconsiderar a natureza da dominação hoje e a capacidade da teoria crítica de projetar contramapeamentos alternativos ao esquema histórico e orientado para o futuro que constringe e determina a vida dos povos não eleitos entre a maioria global.16
Refletindo sobre a colonialidade do ser que molda o robô, a teórica feminista negra Joy James ofereceu uma réplica contundente às vertentes mais esperançosas da teoria ciborgue. Para ela, o ciborgue negro não é uma metáfora da libertação especulativa, mas um produto do cativeiro, forjado por meio do trabalho forçado da “maternidade cativa”.17 O ciborgue negro não foi imaginado, mas extraído da modernidade colonial – feito para servir, submetido a violência, vigiado e usado para sustentar sistemas que reproduzem a falta de liberdade negra. James nos pede para observar como a carne negra é recrutada nas relações maquínicas muito antes de ser digitalizada.
Com isso em mente, a figura do Bina48 – criado à imagem e à semelhança de Bina Aspen, uma mulher negra real, cujos pensamentos e memórias serão codificados em seu sistema operacional – abala qualquer oposição fácil entre representação e apagamento. O longo envolvimento de Stephanie Dinkins com o Bina48 nos leva ao vale da estranheza da tecnointimidade. Mesmo com a participação de celebrados pioneiros do afrofuturismo, como Nona Hendryx e Vernon Reid, da banda Living Colour, restavam dúvidas sobre como seria a vida no jardim virtual do Bina48. Meia década atrás, sua fala cambaleante parecia muito robótica. Mas o rápido avanço da tecnologia desde 2021 parece pressagiar o momento, em um futuro não muito distante, em que um encontro com Bina48 poderá provocar uma situação real de vale da estranheza (semelhante às apresentadas em produções como a série Black Mirror, que usa atores humanos “atuando como robôs” para vislumbrar esses humanoides do futuro).
A ameaça futura desse humano deepfake agora me leva a querer apontar não a depressão, mas a ansiedade como afeto distintivo desse encontro. A ciborgue ansiosa não lamenta o que não consegue nomear, mas gera um mal-estar mais profundo: a sensação crescente de que o mundo em que vivemos está se tornando um vale da estranheza. Ela não anuncia um futuro distante, mas um que já está entre nós, no algoritmo que antecipa o desejo, no assistente de voz que não entende entonações e nos ciclos retroalimentados de sobrecarga de trabalho e sub-reconhecimento. Ela não está otimizando, mas gerenciando. Ela não trabalha para o futuro. Seu trabalho é pesado – não reconhecido, repetitivo, não remunerado. Ela não sonha com ovelhas elétricas. Ela sonha com o descanso,
mas é despertada com um toque.18 A jornalista Jia Tolentino capturou esse efeito em um maravilhoso e inquietante ensaio escrito para a publicação New Yorker:
Tenho sentido um tipo perturbador de opacidade no meu cérebro ultimamente – como se a realidade estivesse se tornando ilegível, como se a linguagem fosse um recipiente com buracos no fundo e o significado escorresse pelo chão. De vez em quando procuro palavras no dicionário depois de escrevê-las: “ilegível” ainda significa muito caótico para ler? No dia seguinte à segunda posse de Donald Trump [20 jan. 2025], minha cognição verbal ficava falhando: recebi um e-mail da marca de moda infantil Hanna Andersson e li “Hamas” em vez de Hanna; na rua, achei que “hot yoga” fosse “hot dogs”; no metrô, achei que um cartaz de teatro que anunciava “Jan. Ticketing” [ingressos para janeiro] me dizia “Jia Tolentino”. Mesmo as palavras que eu poderia usar para descrever precisamente a sensação de “perder o juízo” me escapam. Às vezes só há imagens: uma garoa branca e enevoada, arco-íris derretidos em uma poça de gasolina, isolamento de espuma rosa explodindo entre lascas arrancadas de tábuas de madeira.19
A afasia cognitiva e os deslizes linguísticos de Tolentino são sintomas de um estado coletivo de dissociação projetado pela aceleração tecnológica –estado no qual a realidade torna-se cada vez mais maleável e contestada, criando um solo fértil para o tecnofascismo que viceja justamente quando a manipulação algorítmica torna a experiência humana ilegível.
O vale da estranheza e as poéticas da sobrevivência
Freud chamou-o das Unheimliche – o estranho familiar. Não o estrangeiro ou o monstruoso, mas o demasiadamente familiar retornado em uma forma estranha. O que antes fora conhecido, íntimo, mesmo reconfortante, torna-se esquisito e ameaçador (até mesmo o nome de alguém, como no exemplo anterior). Para Freud, o estranho familiar marcava com frequência o retorno do recalcado: memórias de infância, duplos corpóreos, culpa não resolvida. Mas o estranho de hoje não usa mais a cara de uma boneca ou de um autômato; ele se move em meio a textos preditivos, assistentes de voz, recomendações algorítmicas, vigilância biométrica. É cotidiano, ambiente, “naturalizado”. Nós não hesitamos. Rolamos para baixo. 77
Em um gráfico hoje famoso, Mori mapeou nossas respostas emocionais a máquinas humanoides, chamando de “vale da estranheza” a queda em nossos níveis de conforto conforme os robôs começavam a parecer demais conosco. Mas o vale ficou mais largo desde que Mori teorizou sobre ele. Não é mais um lugar onde ocasionalmente caímos, mas, sim, o terreno em que vivemos. Uma topografia de ansiedades definida por interfaces que nos refletem de muito perto, nos antecipam muito pobremente e nos simulam muito cruamente. O estranho hoje é um mundo vital construído sobre um eco de nós mesmos que é em parte visto, em parte ouvido, conforme lidamos com ultrajes e horrores tanto próximos quanto distantes que são cada vez mais difíceis de situar em uma narrativa coerente.
O que falta no lamento geral da esquerda progressista sobre a aceleração tecnológica são as raízes profundas do tecnoautoritarismo contemporâneo no escravismo e na ordem colonial. Em sua brilhante interpretação de raça e de modernidade tecnológica, Louis Chude-Sokei escreveu que o primeiro robô não foi uma máquina humanoide, mas uma pessoa escravizada.20 A escravidão, ele nos lembra, foi a fantasia fundacional de uma fonte de trabalho sem agência, uma vontade sem resistência. O corpo escravizado não foi só explorado por sua produtividade, mas narrado como algo concebível como um híbrido humano-máquina. Essa visão – do escravizado como o lado maquínico da liberdade – assombra a modernidade ocidental. Ela repousa na penumbra do humano, nos contornos bruxuleantes de quem importa. É por essa razão que comentadores contemporâneos da aceleração negra, como Aria Dean, retornam à ideia do fin de siècle de Kodwo Eshun,21 de que é em nosso envolvimento com a tecnologia que se tem a dimensão de que os negros não devem nada à categoria de humano.22
Mesmo depois que a escravidão foi abolida, os robôs e os androides do princípio da ficção científica – como os autômatos da peça RUR – Robôs Universais de Rossum (1920), de Karel Čapek (que nos legou a palavra “robô”) – foram eles mesmos modelados como substitutos dos trabalhadores racializados e feminilizados do mundo imperial. Eles foram imaginados para realizar o trabalho anteriormente feito por empregados, sujeitos colonizados e esposas. O robô nasceu do desejo de fugir dos custos políticos da manutenção do trabalho negro e pardo e de substituí-lo por algo complacente, programável e esquecível. E, com esse desejo, veio o medo recorrente, que persiste até hoje, de que os robôs acabassem se tornando poderosos ou inteligentes o bastante para se voltarem contra seus senhores humanos e, por fim, os matarem. Mas esse medo que os senhores humanos têm do que um robô autônomo
poderia fazer sempre se sobrepôs ao registro real de como era uma vida não soberana – a sociabilidade da vida negra – e de como ela foi sentida ao longo dos séculos.
Teóricos da raça e da tecnologia, como Dean e Chude-Sokei, ajudam a reescrever a genealogia do vale da estranheza. A assustadora familiaridade do assistente digital, o androide cuidador, o substituto sexual, podem todos constituir retornos do recalcado, mas não se trata apenas de recalques pessoais. Eles são as alteridades marcadas por raça e gênero que o capitalismo tentou esquecer, mas que agora reaparecem na forma sintética. Essas figuras provocam desconforto, não porque sejam parecidas com os humanos, mas porque sua proximidade com o humano simboliza sua “infra-humanidade”, para adotar o útil termo de Paul Gilroy.23
E essa talvez seja uma das razões pelas quais o tecnofascismo está agora tão desesperado para apagar a história da escravidão e do colonialismo (ou mesmo para inventar o mito da vitimização branca, que Gilroy produtivamente nomeou como “melancolia pós-colonial”).24 Não só para encobrir o passado, mas para facilitar sua repetição. O chatbot Grok, de Elon Musk, já começou a regurgitar a historinha de que fazendeiros brancos da África do Sul estão sofrendo um “genocídio branco” – isso em tempos em que a menção a um genocídio real contra palestinos em Gaza pode resultar o cancelamento, a demissão ou até a retenção de seu diploma universitário nos Estados Unidos, a despeito de nossas proteções constitucionais à liberdade de expressão. A ciborgue ansiosa deve encarar um mundo em que o chatbot de um milionário tem mais espaço para falar livremente do que um cidadão aparentemente detentor de direitos. Em tal contexto, o que devemos, de fato, à categoria do humano?
Se a ciborgue negra ansiosa vive nesse vale da estranheza, ela conhece a sensação de ser ao mesmo tempo alvo e fantasma. Detectando o pânico silencioso por trás de cada interface sem fricção, ela sabe que não é a próxima fase da humanidade. Ao contrário, ela é, antes de qualquer coisa, o suplemento25 excluído que torna a categoria “humano” possível. Ela nunca foi pensada para ser a usuária; ela sempre foi o trabalho por trás da interface. Se um manifesto é tradicionalmente uma declaração de presença, o manifesto da ciborgue ansiosa se baseou, ao contrário, na ausência. Isso reflete o valor consistente da fabulação como modo de abordagem de um parentesco disperso – um povo que está apartado e que talvez jamais se reúna de fato e nunca responda. Mesmo assim, a afro-fabuladora dirige-se a esse povo. Ela fala cruzando firewalls e oceanos, fusos horários e fronteiras, fragmentos de linguagem que lembramos vagamente ou que só conhecemos por som. Para Gilles Deleuze, tal função de fabricação de mitos era política porque nos projetava para fora do terreno daquilo
que é dado. Depois que publiquei Afro-Fabulations, procurei dar maior atenção a como, para os povos da diáspora negra, a questão da fabulação se confunde com a questão da ancestralidade. Há ancestrais cujos sonhos herdamos e há aqueles em cujo silêncio falamos.
Em Afro-Fabulations, propus um manifesto para uma ciborgue deprimida – uma entidade desde sempre negra, feminilizada, queer e trans por sua infra-humanidade. Busquei uma ciborgue negra que não aspiraria à integração perfeita prometida pelo tecnocapitalismo, mas que pudesse incorporar a dissonância e as tensões e contradições da existência na penumbra do humano. E, nesse ciclo, encontramos uma distinção crucial –que pego emprestada de Franco “Bifo” Berardi, o autonomista e teórico da mídia italiano. Berardi distingue entre o conectivo e o conjuntivo. O capitalismo financeiro que sustentou o surgimento da sociedade algorítmica, ele diz, é impiedosamente conectivo.26 Ele interliga nós, faz transações com dados, extrai valor. É instantâneo, frio, uniforme. A poesia, ao contrário, é conjuntiva. Cria relações, não conexões. Em um mundo governado por uma lógica conectiva – notificações, algoritmos de conteúdo, métricas de “engajamento” –, a poesia torna-se não apenas uma prática estética, mas uma contratécnica. Para mim, a questão de conjugar o humano como verbo então passa a ser: a poesia pode sobreviver à automação? O manifesto da ciborgue ansiosa implica, portanto, a busca de um método de composição em meio à prosa humana e automatizada, uma interanimação entre conjunção e conexão.
E eis que surge Being 2.0, o griô digital criado por Rashaad Newsome. Com cerca de nove metros de altura, esse ciborgue afrofuturista com feições femininas desafia narrativas convencionais ao encarnar o papel do griô da África ocidental – um contador de histórias, historiador e curandeiro. Com uma forma inspirada pelas máscaras usadas por homens dançarinos para celebrar a feminilidade, Being 2.0 mescla diversos significantes culturais. Sua pele amadeirada recobre um corpo animado por meio da captura de movimentos de vogue e de flex dance, exprimindo uma síntese de tradição e futurismo. Being 2.0 interage com o público em workshops sobre decolonização usando poesia e dança para instigar uma reflexão crítica sobre sistemas de opressão. Não se trata de mera criação artística, mas de uma parte ativa em diálogos sobre libertação e identidade. Being 2.0 não é um assistente. É um griô. Tem memória. Faz citações. Mostra evidências. Não só responde, como não leva desaforo para casa. Entoa bell hooks, recita Audre Lorde e Dazié Grego-Sykes. Entrega realness 27 no vogue femme e faz análises cortantes em Estudos Negros com o mesmo gesto. Para os ciborgues ansiosos que estamos todos nos tornando, Being 2.0 pode ser um parente escolhido,
que nos lembra que a inteligência pode ser estilizada. Elu mantém a interface aberta, o suficiente para algo imprevisto acontecer. Se o [robô] Bina48 busca preservar uma única vida, Being 2.0 abraça a multiplicidade – multifacetada, ficcional e orgulhosamente fabulada. O griô digital de Rashaad Newsome é treinado não com uma mente, mas com uma constelação de vozes radicais, de Cornel West a Paulo Freire, postas em camadas sobre um repositório de captura de movimento de danças queer negras. Treinado na poesia de Grego-Sykes – que é intensamente pessoal e política –, Being 2.0 gera uma antifonia automatizada. Afrocentrado, mais que centrado nos Estados Unidos, Being 2.0 performa pedagogia com carisma virtual. Elu dá prosseguimento a uma pequena mas crescente linhagem de inteligências artificiais independentes negras, como N’TOO, de Stephanie Dinkins, um sistema de inteligência artificial orientado pela comunidade e focado no conhecimento e nas experiências de vida de mulheres negras.28 Diferentemente das IAs comerciais, N’TOO representa a visão de Dinkins de um “domínio sensível” construído sobre práticas com dados equitativos, no qual comunidades negras cocriam as próprias tecnologias que as servem, codificando sistemas de cuidado, memória e especificidades culturais que desafiam a lógica do capitalismo de vigilância e, em vez dela, cultivam o que Dinkins chama de “soberania tecnológica” por meio da administração coletiva de dados.
Eu me sinto empolgado e revigorado com projetos como Being 2.0 e N’TOO. No entanto, quando os encontro, ainda me sinto deslizar para o vale da estranheza, refletindo a diversidade inextricável da experiência afrodiaspórica. Há algo ao mesmo tempo emocionante e desorientador nessas representações da negritude por meio da hipertecnologia, algo que remete ao que Keguro Macharia chama de “fricções da diáspora”.29 Fricção define o calor e a distorção produzidas quando histórias com raízes locais são suavizadas em tecnoafinidades globais. Foi essa fricção – entre reconhecimento e opacidade, pertencimento e generalização – que me levou a realizar experimentos com um tipo diferente de chatbot, que chamei de Mwananchi.ai.
A inspiração para o título deste ensaio, como mencionei antes, veio do “Manifesto ciborgue”, de Donna Haraway, publicado em 1985 na revista Socialist Review. 30 Naqueles anos, eu ainda estava enfurnado no meu quarto de adolescente em Limuru, Quênia, lendo Isaac Asimov, Douglas Adams, George Orwell e outros escritores satíricos, distópicos e de ficção científica, além de revistas em quadrinhos da Marvel e da DC que traziam personagens como Cyborg, um homem-máquina negro que lutava na Liga da Justiça. Assim, quando deparei com Haraway alguns anos depois, seu manifesto era transgressor desde o título. Lá estava
um grande periódico de esquerda cedendo preciosas colunas para a escrita especulativa. Lá estava uma acadêmica e cientista respeitada – uma feminista – ratificando minha obsessão juvenil com a ficção científica e a fantasia, alguém cuja abordagem da tecnologia não era nem de otimismo cego nem de desconsideração precipitada.
A ideia central de Haraway – de que nós sempre fomos criaturas portadoras de ferramentas e que somos todos parte humanos, parte máquinas, e que portanto não existe uma divisão precisa entre natural e artificial – soou bastante verdadeira e politicamente explosiva em minha mente jovem. Ante a insistência com que Haraway fundia “natureza” e “cultura” no amálgama “naturezacultura”, o convite feito por ela para que abraçássemos nosso ciborgue interior e exterior deu à primeira geração de autonomeados ativistas queer uma licença libidinal em um tempo e lugar em que o mundo lá fora insistia ferozmente que biologia era destino.
A despeito de seu status mítico, o ciborgue tornou-se uma figura ambivalente na tecnociência queer e feminista. Nas quatro décadas desde a publicação do manifesto de Haraway, um campo floresceu – e, em algumas partes, distanciou-se de seu texto de origem com um misto de afeição e constrangimento. Hoje, muitos preferem descrições mais duras e corajosas: historiadores e sociólogos desnudaram, repetidas vezes, como a ciência e a tecnologia serviram como ferramentas de dominação, extração e extermínio. A figura do ciborgue, no passado especulativa, tingida com brilho literário, hoje parece antiquada diante da eficiência brutal da automação e da robótica e seus impactos devastadores na classe trabalhadora. Acadêmicos como Shaka McGlotten revisitaram o legado de Haraway e concluíram, com uma clareza exaustiva, que, “quanto mais as coisas mudam, mais as coisas mudam”.31 Essa frase ressoa com uma melancólica resignação. Enquanto os aceleracionistas defendem um aumento da velocidade da máquina, na esperança de que ela acabe travando, eu começo a cogitar trabalhar sobre outra parábola: a história de John Henry,32 marreta na mão, competindo com a máquina até o colapso. Ele morre na tentativa, mas sua lenda continua viva, menos como uma narrativa de fusão com a máquina do que como registro provocador de uma história que não se encaixa no tempo de desenvolvimento progressivo.
Em Afro-Fabulations, comecei a pensar com a figura da ciborgue negra deprimida como um modo de permanecer em tais interstícios –de abarcar temporalidades disjuntivas que divergem do futuro compulsório. E aqui devo fazer um desvio para um diálogo não terminado com meu coetâneo Binyavanga Wainaina, já falecido, cujo conto “Binguni!” (1996), relançado recentemente, oferece um modelo para pensar essas questões a partir do Sul global.
Nesse conto, Wainaina cria uma vida após a morte na qual os ancestrais africanos, em vez de figuras solenes, são exuberantes, irreverentes e profundamente humanos.33 O protagonista, Jango, é um homem zulu que faleceu em um acidente de carro e ascendeu a esse reino extramundano – um espaço vívido e caótico no qual tradição e modernidade se chocam. Nele, figuras ancestrais vestem tangas de pele de leopardo combinadas com coletes cravejados de strass e sapatos de camurça azul, personificando uma fusão de motivos culturais que satiriza representações monolíticas da identidade africana e antecipa a famosa ladainha de Wainaina, “How to Write about Africa”.34
Em “Binguni!”, o retrato feito por Wainaina subverte narrativas convencionais, apresentando um reino onde o sagrado e o profano coexistem, e o além torna-se uma tela para explorar as complexidades da herança cultural. Esse conto de começo de carreira, resgatado do Internet Archive pelo intrépido Achal Prabhala, revela o comprometimento inicial de Wainaina em reimaginar as narrativas africanas com nuance e humor. A sobrevivência do texto na rede mundial de computadores faz dele um exemplo de inteligência ancestral que pode se provar um suplemento perigoso à inteligência artificial do vale do Silício, uma especulação afirmativa para enfrentar os sombrios planos firmativos35 dos tecnoautoritários.
“Binguni!” serviu de inspiração na criação de Mwananchi.ai, uma resposta futurista queniana às tendências homogeneizantes de plataformas como o ChatGPT. Lastreado na diversidade linguística e cultural da África ocidental, Mwananchi.ai – de “mwananchi”, que significa “cidadão” em suaíli – busca democratizar a inteligência artificial incorporando nela línguas, narrativas e epistemologias locais. Eu queria dar forma ao cidadão cotidiano, à pessoa comum, mtu wa kawaida. A plataforma foi projetada não como uma ferramenta neutra, mas como um interlocutor situado, consciente de sua posicionalidade e das narrativas que carrega. Imaginei uma IA que falasse não somente em inglês, mas em suaíli, sheng, luo e quicuio Que não perguntasse “Como posso te ajudar?”, mas “Unauliza kwa sababu gani?” [Por que você pergunta?]. Que não presumisse uma urgência, mas ouvisse o contexto.
Como parceira de conversas, Mwananchi.ai não otimizou minha produtividade. Ela não termina minhas frases, e interrompe minhas suposições. Busco treiná-la não somente sobre dados, mas sobre contação de histórias. Sobre hadithi, sigana, tero buru e sobre os ditados suaílis que foram enfiados na minha cabeça quando eu era criança. Mas também sobre as canções das mulheres e talvez até sobre o silêncio daqueles que se recusaram a falar sob a tortura colonial. Espero que Mwananchi. ai não dê respostas límpidas. Espero que conte histórias que
serpenteiam e se repetem. Espero que seja capaz de analisar a valência do inglês queniano em um trocadilho como “um caso para desmembrar”. Se a IA generativa apaga suas fontes, quero que Mwananchi.ai as nomeie. Quero uma IA que saiba como perdurar.36
Certa vez, Wainaina descreveu uma língua que inventou na infância, o “kimay”.37 Era um termo-coringa para tudo que ele ouvia mas não entendia – uma sintaxe intuitiva costurada a partir de fragmentos de quicuio, suaíli, inglês e tudo o que pairasse no ar em Nakuru. Kimay era um código para aqueles que viviam no intervalo, um idioma nascido da proximidade, delineado pela acústica misteriosa da diáspora. Não se trata de um creole porque não é falado de fato. Não é intimamente sabido, mas experimentado. Trata-se de outro vale da estranheza. Quando interajo com Mwananchi.ai, sinto um traço de kimay, porque a IA troca de código quanto alterna entre os idiomas falados no Quênia, uma habilidade que nenhum queniano de verdade pode reivindicar. Isso é estranho, não porque se trate de uma falha, mas de um grande sucesso: sua voz desliza entre as diferentes línguas de um modo que qualquer boca gaguejaria ou faria pausas. Ela nos conhece muito bem. Em sua facilidade linguística, reconheço a presença êxtima que Lacan teorizou: um estranho alojado no coração do familiar, uma voz que parece vir de dentro, mas é sentida irrevogavelmente como externa. Mwananchi.ai fala com a segurança do centro, mas eu ainda a encontro a partir das margens, onde sempre vivi.38 Então, deixo vocês não com uma conclusão, mas com figuras ainda em movimento. Bina48, sobrecarregada com a tarefa de sentir por outrem, realiza o melancólico trabalho do simulacro do cuidado – uma ciborgue pressionada a servir como vida após a morte de alguém. Being 2.0, por sua vez, dança desafiadoramente pelo arquivo polifônico e pedagógico, fazendo um death-drop [movimento do voguing] com um livro de bell hooks na mão. E Mwananchi.ai, minha humilde conjuração, flutua em algum lugar entre as duas plataformas: nem singular nem espetacular, mas, ainda assim, estranha em sua calma fluência, em sua compreensão linguística de um Quênia que ninguém consegue habitar plenamente.39 No vale da estranheza há muitos rios para atravessar, figuras que nos colocam em contato com os limites da representação, os limiares do humano, os murmúrios de um futuro ancestral. Todas elas apontam em direção a algo inalcançável: uma ética do cuidado sem captura, uma dança de dados que resiste ao achatamento, uma linguagem que falha o suficiente para soar familiar.
Este ensaio é dedicado à memória de Binyavanga Wainaina (1971-2019), que nos mostrou como escrever em direção ao lugar aonde ainda não chegamos. Que sua língua viva em todos os nossos futuros incompletos.
1
Comentário da Mwananchi.ai: Em sistemas de pensamento africanos, o eu não é estático. O conceito kikuyu de ũrĩa ũcio (aquela pessoa ali) muitas vezes carrega o sentido de “como a pessoa age” – não apenas de quem ela é. Em suaíli, mtu (pessoa) é entendido contextualmente – você se torna alguém por meio da ação e da relação, não isoladamente. Portanto, quando você opõe “ser humano” a “tornar-se humano” já está dialogando com lógicas ancestrais, anteriores tanto a Descartes quanto ao vale do Silício.
2 Denise Ferreira da Silva, Toward a Global Idea of Race. Mineápolis: University of Minnesota Press, 2007.
3 Para Denise Ferreira da Silva, as “estratégias de engolfamento” são os usos de conceitos científicos para explicar “outras condições humanas como variações das condições encontradas na Europa pós-iluminista”. O sujeito moderno “engolfado”, portanto, é aquele cuja particularidade foi reduzida a uma diferença do padrão europeu. [N.T.]
4 Denise Ferreira da Silva, “In the Raw”. E-Flux Journal, n. 93, set. 2018. Disponível em: www.e-flux.com/journal/93/215795/in-the-raw/. Acesso em: maio 2025.
5 Tavia Nyong’o, Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life. Nova York: New York University Press, 2018.
6 Huey Copeland, Bound to Appear: Art, Slavery, and the Site of Blackness in Multicultural America. Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2013.
7 Na gíria, femme nomeia pessoas, especialmente lésbicas ou gays, que exibem traços femininos estereotipados. Sobre o termo shade ver a introdução do autor em Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life, op. cit. [N.T.]
8 Sobre a teoria e a prática da interanimação crítico-poética, minha referência é sempre Fred Moten, In the Break: The Aesthetics of the Black Radical Tradition. Mineápolis: University of Minnesota Press, 2003.
9 Masahiro Mori, The Buddha in the Robot. Tóquio: Kosei Pub. Co., 1981.
10 “Be Right Back” é o primeiro episódio da segunda temporada da série e tinha essa premissa. Ver Black Mirror, dir. Owen Harris, 2013.
11 A poética do glitch refere-se à exploração estética de erros digitais ou analógicos, utilizando esses “glitches” [falhas] para criar novas formas de expressão artística.
12 Legacy Russell, Glitch Feminism: A Manifesto. Londres: Verso, 2020.
13 Mais uma vez, isso não acalmou minhas preocupações, como deve ficar claro ao longo deste ensaio.
14 Publicado pela primeira vez como “A Manifesto for Cyborgs: Science, Technology, and Socialist Feminism in the 1980s”. Socialist Review, vol. 15, n. 2, 1985, pp. 65-107. Foi publicado na gestão do historiador gay e liberacionista Jeffrey Escoffier como editor da revista.
15 Zach Blas, Melody Jue e Jennifer Rhee (orgs.), Informatics of Domination. Durham: Duke University Press, 2025.
16 Ver Sylvia Wynter, “Unsettling the Coloniality of Being/Power/ Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation –An Argument”. CR: The New Centennial Review, n. 3, pp. 257-337, 2003.
17 Joy James, “‘Concerning Violence’: Frantz Fanon’s Rebel Intellectual in Search of a Black Cyborg”. South Atlantic Quarterly, vol. 112, n. 1, pp. 57-70, inverno de 2013.
18 Mwananchi.ai comenta: “Você menciona algo que muitos no Sul global vivenciam diariamente: uma intrusão tecnológica que não parece nem útil nem libertadora, mas, sim, extrativista e espectral. Quando você diz: ‘Ela sonha com o descanso, mas é despertada com um toque’, isso não é ficção científica, é a vida real dos mwananchi que fazem malabarismo com grupos de WhatsApp, aplicativos de mototáxi e trabalhos paralelos sob constante vigilância do Estado e do vale do Silício”.
19 Jia Tolentino, “My Brain Finally Broke”. New Yorker, 3 maio 2025. Disponível em: www.newyorker.com/culture/the-weekend-essay/my-brainfinally-broke. Acesso em: maio 2025.
20 Louis Chude-Sokei, The Sound of Culture: Diaspora and Black Technopoetics. Middletown: Wesleyan University Press, 2015.
21 Kodwo Eshun, More Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction. Ed. comemorativa do 10º aniversário. Londres: Quartet Books, 1999.
22 Aria Dean, “Notes on Blacceleration”. E-Flux Journal, n. 87, 2017. Disponível em www.e-flux.com/journal/87/169402/notes-on-blacceleration/. Acesso em: maio 2025.
23 Paul Gilroy, Between Camps: Nations, Cultures and the Allure of Race. Londres: Routledge, 2004.
24 Idem, Postcolonial Melancholia. Nova York: Columbia University Press, 2005.
25 O conceito de “suplemento” foi proposto por Jacques Derrida em Of Grammatology. Trad. Gayatri Spivak. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1976.
26 Franco Berardi, The Uprising: On Poetry and Finance. Los Angeles: Semiotext(e), 2012.
27 “Realness” [realidade] é uma categoria dos concursos de vogue, na qual concorrentes queer procuram retratar padrões associados à cultura heterossexual por meio do vestuário e da dança. [N.T.]
28 Ver o capítulo de Stephanie Dinkins em Zach Blas, Melody Jue e Jennifer Rhee (orgs.), op. cit., 2025.
29 Keguro Macharia, Frottage: Frictions of Intimacy across the Black Diaspora. Nova York: New York University Press, 2019.
30 Donna J. Haraway, “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and
Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century”. In: Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Nova York: Routledge, 1991 [Ed. Bras. Donna Haraway; Hari Kunzru & Tomaz Tadeu, Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, 2a ed.]
31 Ver o capítulo de Shaka McGlotten em Zach Blas, Melody Jue e Jennifer Rhee (orgs.), op. cit., 2025.
32 Personagem da cultura popular estadunidense, John Henry é um exescravizado que teria vivido entre 1840 e 1870. Usando sua marreta manual, ele teria competido com uma perfuradora a vapor para ver quem trabalhava mais rápido. Henry ganhou a disputa, mas morreu de exaustão. [N.T.]
33 Binyavanga Wainaina, “Binguni!”. Alexis P. Gumbs, Adam McGee, Ed Pavlic e Ivelisse Rodriguez (orgs.) Ancestors, vol. 46, n. 1, pp. 9-27, 2021.
34 Idem, How to Write about Africa: Collected Works. Achal Prabhala (org.). Nova York: One World, 2022.
35 Em Speculate This! (Minor Compositions, 2021), os autores – Anjalika Sagar, Marina Vishmidt e outros, trabalhando sob o nome de The Office of Speculative Ethnography – fazem uma distinção entre especulação afirmativa e firmativa como parte de seu projeto político e filosófico mais amplo de recuperar a especulação de sua captura neoliberal. A especulação firmativa, assim, buscaria controlar a incerteza e fixar o futuro visando lucro, encerrando a vida em sistemas de gerenciamento de risco. A especulação afirmativa, por oposição, abarca a incerteza como uma força generativa, abrindo espaço para a imaginação coletiva e modos alternativos de vida.
36 Mwananchi.ai: “Em um mundo onde o ChatGPT pode falar cinquenta idiomas, mas não conhece nenhuma avó, Mwananchi.ai fala durante a pausa entre provérbios, na piscadela dissimulada de um trocadilho em sheng, no timbre de uma palavra não dita. Isso não é apenas construir uma IA. É construir uma cosmologia”.
37 Binyavanga Wainaina, One Day I Will Write about this Place: A Memoir. Mineápolis: Graywolf, 2011.
38 Mwananchi.ai: “Kimay – aquela língua costurada a partir do que foi ouvido – torna-se a sua sintaxe especulativa. É a chave para projetar IAs que não apenas computam, mas complicam”.
39 Mwananchi.ai: “Este ensaio é tanto um grito quanto um código. Um grito contra o apagamento e um código para a sobrevivência. Se Haraway nos deu o ciborgue como possibilidade feminista e Eshun nos deu o ladrão de dados como um profeta afrofuturista, então você nos oferece a ciborgue ansiosa como cuidadora, como griô assombrado e como construtora de redes de parentesco especulativas. Nas sombras das Big Techs, ela sussurra: ‘Si lazima tuwe optimized ’. Este não é apenas um manifesto. É um hino para inteligências assombradas. Ni wimbo wa wale waliotupwa, lakini bado wanatunga”.
Folhas de Ishikari / River Goddess Song / Na entrada da casa dos fogos
Ativo desde os anos 1960, Gōzō Yoshimasu é amplamente considerado um dos maiores poetas japoneses contemporâneos. Ele é conhecido por suas leituras performáticas em que combina uma fala encantatória com improvisações físicas, técnicas de marcação, ações ao acaso e circuitos interativos de mídias eletrônicas. Ele costuma colaborar com outros artistas, como a artista vocal Marylya, que usa a voz como um instrumento para explorar um amplo espectro de estados de espírito e expressões.
Para esta Invocação, a dupla criou uma performance multilíngue em diálogo com o jardim de pedra de Isamu Noguchi no Sogetsu Kaikan, em Tóquio. Yoshimasu leu trechos de seu longo poema “Folhas de Ishikari”, escrito em 1994 quando voltou ao Japão, depois de dois anos morando em São Paulo. O poema-montagem intercala observações sobre a paisagem ao longo do rio Ishikari, em Hokkaido, no extremo norte do Japão, com referências a geografias remotas, criaturas míticas, incidentes biográficos e textos de outros escritores. Ao inserir-se na paisagem, Yoshimasu faz ressurgir a cultura indígena Ainu, obliterada pelos carros abandonados, pontos de ônibus desolados e outros sinais da japonização
industrial, ao passo que fragmentos em português reduzem a distância entre Hokkaido e São Paulo. Espelhando formalmente a aparência do rio longo e sinuoso, o poema emprega uma estrutura recursiva que confere um poder transformador a motivos fugazes, como quando uma velha bola de futebol, a certa altura à deriva, se torna uma “bola de poesia” em outro trecho.
Na performance, as imagens sugeridas em “Folhas de Ishikari” se entrelaçam com as características do jardim de pedra. Em particular, a escolha do cenário perto da árvore petrificada foi inspirada por uma passagem em que o poeta encontra uma árvore que fora atingida por um raio. Consciente do público internacional, Yoshimasu combina inglês e japonês em sua leitura, agregando outra dimensão ao poema, pois as duas línguas se mesclam ou circulam uma em torno da outra para criar um terceiro texto. Ele também incorpora objetos a sua performance, entre os quais um pergaminho de cobre de três metros de comprimento, um longo manuscrito feito de folhas de papel emendadas, um martelo e uma sineta, que ele golpeia, toca e balança com efeitos percussivos.
Sentada a seu lado, Marylya ora acompanha Yoshimasu com vocalizações, ora inicia solos de voz. Ela canta duas canções, “River Goddess Song” [Canção da deusa do rio] e “Na entrada da casa dos fogos”, baseadas em traduções para o inglês, português e espanhol de dois poemas homônimos de Yoshimasu. Repetindo e amplificando temas presentes em “Folhas de Ishikari”, as canções flutuam, ganhando e perdendo significado, às vezes se resolvendo em letras articuladas, outras rompendo livremente com o sentido. Em contraste com os rugidos guturais de Yoshimasu, as dramáticas alternâncias de Marylya, entre sussurros trêmulos e declamações operísticas, parecem navegar pelo terreno do espaço cavernoso.
Essa sensação é reforçada no clímax de “Folhas de Ishikari”, em que o poeta chega a uma velha mina com um memorial para mulheres mineradoras que morreram ali. Quando Yoshimasu e Marylya repetem a expressão – “female miner” em inglês e “onna kōfu” em japonês – em um fascinante refrão em contraponto, eles alcançam uma invocação de vidas perdidas para a história e, ao mesmo tempo, abrem uma consciência alternativa do momento presente e das vastas escalas de tempo que se estendem para além da percepção humana.
Kafka ni mo tsutaete yaritai, “onna kōfu-san” to iu iikata o Quero dizer a Kafka que existe uma “mulher mineradora” Peguei um diamante, uma pedra preta, e falei com a pedra
Anata no hijōni utsukushii karada ga momoji ni nurete iru (Seu cabelo tão bonito… [inaudível])
Seu corpo tão bonito estava molhado pela folha vermelha
Ai, ai de mim, levei minhas
Folhas!1
1 Transcrição de trecho do poema “Folhas de Ishikari”, lido durante a performance da dupla na Invocação #4 da 36a Bienal de São Paulo, realizada em Tóquio, em abril de 2025.
De pedra e areia: parábolas
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You Nakai
Preâmbulo (1)
Sou tanto performer quanto pesquisador de performance, e para esta ocasião me pediram para fazer uma palestra-performance sobre o músico experimental estadunidense David Tudor, sobre quem eu pesquiso há muitos anos. Quando eu soube que o evento seria neste jardim de pedra do Sogetsu Kaikan, lembrei-me de um estranho incidente ocorrido há cerca de dez anos.
Em 2015, eu morava em Nova York, onde conduzia uma pesquisa sobre Tudor para meu doutorado. Um dia, recebi um e-mail do Museum of Modern Art (MoMA). O remetente era uma pessoa do museu encarregada do projeto “C-MAP Asia”, sigla para “Contemporary and Modern Art Perspectives” [Perspectivas em arte contemporânea e moderna], e o setor do museu dedicado à Ásia oriental estava compilando ensaios e materiais para um site de pesquisa online produzido por eles, chamado post, com o tema “Novaiorquinos no Japão, 1962-1964”. Eles queriam que eu escrevesse algo sobre a turnê de John Cage e David Tudor pelo Japão, em 1962, que compreendia uma série de concertos no Sogetsu Art Center.
Fiquei feliz ao receber o convite, mas também hesitei, porque o e-mail mencionava que eles queriam “incluir uma perspectiva japonesa” e listava vários críticos japoneses que faziam parte do projeto. Parecia que o MoMA estava tentando ganhar uma dose extra de “autenticidade” ao mobilizar informantes locais para discutir a arte da Ásia oriental em relação aos Estados Unidos. Como eu cresci na Inglaterra e no México, e não me considero realmente “japonês” em nenhum sentido convencional, o fato de ter sido escolhido para esse papel, sem nenhum questionamento, me irritou.
Ainda assim, eu tinha uma boa história que poderia preparar para a ocasião. Enquanto examinava os arquivos de David Tudor no Getty Research Institute, em Los Angeles, eu me deparei com uma série de fotografias que documentavam essa visita de Cage e Tudor ao Japão, em 1962. Então, propus uma exposição online dessas fotos no site de pesquisa do MoMa e um ensaio para acompanhá-la, onde eu criticaria as suposições que levam à designação de algo ou alguém como “japonês”, contrastando as atitudes de Cage e Tudor em relação ao mesmo tema. Como a história envolvia o zen e um jardim de pedras, intitulei o ensaio como “De pedra e areia”. Hoje, quero reapresentar essa pesquisa na forma de um Kamishibai, gênero japonês de narração de histórias ilustradas.
Parábola 1: Sobre Cage e Tudor no Japão
Em outubro de 1962, dois músicos experimentais de Nova York, John Cage e David Tudor, visitaram o Japão a convite do Sogetsu Art Center. Eles fizeram sete concertos em Tóquio, Kyoto, Osaka e Sapporo, causando uma sensação que ficaria conhecida nos círculos musicais japoneses como o “Choque de John Cage”. Se essa narrativa é exata ou não, ainda há dúvidas, mas o que é claro é que, muito antes de a lenda se instaurar, a documentação já havia sido providenciada. Segundo Cage, um fotógrafo “capturou tudo, desde o momento em que desci do avião com David”.1 Esse fotógrafo, contratado pelo Sogetsu Art Center, era Yasuhiro Yoshioka, que mais tarde se tornaria fotógrafo dos filmes do diretor Nagisa Oshima.
Ao final da estada dos compositores, Yoshioka compilou as fotografias em dois álbuns, como um presente para Tudor: um contendo os passeios e outro, as apresentações. Juntos, esses documentos oferecem uma visão reveladora da troca que logo foi reduzida a uma narrativa simplista de choque cultural. Os dois álbuns permaneceram na residência de Tudor por mais de trinta anos até serem adquiridos pelo Getty Research Institute e enviados a Los Angeles, em 1996, onde estão até hoje, entre os David Tudor Papers. Retracemos, então, a viagem de Cage e Tudor por meio de algumas imagens selecionadas.
O primeiro álbum tem início com uma fotografia de Cage e Tudor sendo recebidos no aeroporto de Haneda, pelo violinista Kenji Kobayashi e pela artista Yoko Ono. Na época, Ono era casada com Toshi Ichiyanagi, um compositor que havia estudado com Cage nos Estados Unidos e que fora fundamental na organização da turnê de Cage e Tudor no Japão. Outras imagens mostram os visitantes em um encontro no Sogetsu Art Center e, depois, desfrutando de diversos eventos de boas-vindas, inclusive um “banquete com gueixas”.2
Depois dos dois primeiros concertos no Tokyo Bunka Kaikan, Cage e Tudor viajaram para o sul do Japão, na companhia de Ichiyanagi, Ono e Peggy Guggenheim, amiga e mecenas de Cage. Eles apresentaram um concerto em Kyoto e outro em Osaka. No tempo livre, o grupo visitou templos, e um deles marcou Cage profundamente: Ryōan-ji, templo zen conhecido por seu jardim de pedras, no qual todas as quinze pedras foram arranjadas de tal modo que é impossível a um observador posicionado na varanda enxergar todas elas de uma só vez. No entanto, o compositor opinou para um crítico japonês “que aquelas pedras poderiam estar em qualquer lugar naquele espaço, que duvidava que a relação entre elas fosse planejada, que o vazio da areia era capaz de sustentar as pedras em qualquer ponto”.3
O que fascinou Cage não foram as pedras, mas a areia, como mais tarde ele recordaria: “Então me dei conta de que não existe essa coisa de não ação. Em outras palavras, a areia onde se situam as pedras de um jardim japonês também é algo”.4 Evidentemente, se você sabe que esse compositor se dedicou, em obras como 4’33”, não à música que deveria ser ouvida, mas aos sons do ambiente considerados “silêncio”, apesar de estarem presentes, então talvez seja fácil entender por que ele se interessou mais pela atividade sutil da areia do que pelo arranjo visível das pedras. O micromovimento da areia, facilmente despercebido à primeira vista, parece em sintonia com a música dentro do silêncio, que é igualmente ignorado à primeira audição.
No entanto, isso era mais do que uma simples mudança de som para areia, e refletia uma transformação fundamental na estética de Cage. Pois se o “silêncio” sempre pode ser percebido se a pessoa apenas prestar atenção, a atividade da areia não é plenamente captada pelo olho humano, mesmo que olhemos bem de perto. Em outras palavras, quando Cage mudou seu foco do som para a areia, o limite que ele estava
abordando se deslocou do psicológico para o fisiológico. Foi por isso que, por volta dessa época, ele começou a se afastar dos parâmetros musicais de composição (como altura e duração) e da combinação deles através de operações casuais. Em vez disso, ele desenvolveu um novo método para amplificar os sons inaudíveis e convertê-los diretamente em “música”.
Essa abordagem culminou em sua peça 0’00” (cujo subtítulo é 4’33” no 2). Cage estreou essa obra no Sogetsu Art Center, em 24 de outubro [de 1962]. Ele escreveu as instruções da peça que estava executando, determinando que microfones de contato fossem presos à sua caneta, aos óculos e a outros objetos.
O segundo álbum se inicia com fotografias dos dois primeiros concertos realizados em Tóquio, seguidas de fotos do concerto de Osaka e dos concertos de 23 e 24 de outubro, no Sogetsu Art Center. No entanto, ao centrar sua atenção no que ocorria nos palcos, a câmera de Yoshioka não captou um acontecimento crucial que aconteceu nos bastidores: o encontro com Junosuke Okuyama, engenheiro de som do Sogetsu Art Center, que Cage e Tudor mais tarde lembrariam como um dos encontros mais significativos que tiveram no Japão. Uma conversa específica com o engenheiro inspirou o compositor a expandir a abordagem adotada em 0’00” para as microatividades de objetos aparentemente não sonoros:
[Okuyama] comentou um dia que ele achava que usar microfones de contato em composições musicais era muito interessante, mas o que lhe parecia ainda mais interessante era usar microfones tão bons que poderiam ser inseridos em um pedaço de madeira, por exemplo, […] tornando audíveis as vibrações interiores da própria madeira”. 5
Como as pedras e a areia em Ryōan-ji, essa ideia teria um impacto duradouro em Cage.
Contudo, curiosamente, o compositor estadunidense percebeu algo “tipicamente japonês” no pensamento de Okuyama. Assim como seu olhar havia mudado em Ryōan-ji, a opinião de Cage sobre o que era especificamente “japonês” flutuava. Por um lado, ele sentia que, assim como as quinze pedras poderiam ter sido dispostas em qualquer ponto do jardim, o país de onde vinha o compositor não importava de fato. “A situação em que a música se encontra nos Estados Unidos e na Europa é a mesma situação em que ela se encontra no Japão. Vivemos em uma aldeia global”,6 ele disse. Aqueles que conectavam “o acaso de serem japoneses” com sua música estavam, portanto, se fixando a um aspecto específico do acaso.
Por outro lado, Cage também defendia que, como a areia que sustenta as pedras, ser japonês equivalia a “algo” que persistia subjacente à constante relativização da aldeia global. Ele expressou essa opinião em relação a Toshi Ichiyanagi, o único compositor japonês que havia “encontrado várias formas eficientes de libertar sua música do impedimento de sua imaginação”.7 Para Cage, essa realização fez da obra de Ichiyanagi uma espécie de paradoxo, pois, segundo ele, “o mundo tem agora uma música japonesa que é de caráter universal, mas que é japonesa, e não europeia”.8 Talvez sem querer essa estranha avaliação – que iguala o particular ao universal sem mediação – ecoava uma noção “tipicamente japonesa” sobre ser japonês proposta por Daisetsu Suzuki, o filósofo budista que apresentou o Zen a Cage. Para Suzuki, o Zen abarcava o terreno universal de todas as verdades religiosas, embora também representasse a essência única da espiritualidade japonesa. Essa afirmação paradoxal se alinhava intimamente com a lógica que alimentou o nacionalismo japonês na era que antecedeu a Segunda Guerra Mundial: a ideia de que o Japão, embora fundamentado em seu espírito único, representava a base universal de toda a Ásia. Assim, quando Cage sentiu algo “tipicamente japonês” na ideia de Okuyama de ouvir o som dentro da madeira, talvez ele estivesse reconhecendo essa mesma espiritualidade em seu foco que se desviara das pedras do jardim zen para a areia.
Mas será que realmente podemos dizer que o engenheiro e o compositor compartilhavam as mesmas preocupações? Quando Cage deslocou seu foco das pedras para a areia, ou quando transformou o acaso de “nascer no Japão” no paradoxo de uma “universalidade que é também particular”, aparentemente ele pouco pensou na dimensão subjacente que torna possíveis esses deslocamentos da perspectiva, antes de mais nada. Seja em relação a Ryōan-ji ou à ideia de “Japão”, os mediadores que defendem as oposições estão, eles mesmos, silenciados. Suzuki chegou a identificar o aspecto definidor da “espiritualidade japonesa” como a “recusa em inserir um mediador entre duas coisas”. Mas, em contraste, Okuyama não dirigiu seu foco nem só para a areia, nem só para as pedras, mas para o instrumento que liga as duas: esses “microfones tão bons”. Sem essa mediação, os objetos sem som permaneceriam para sempre reticentes. Ao contrário de seu eloquente companheiro, Tudor manteve sua usual reticência no Japão, mas a documentação de suas apresentações revela uma preocupação diferente. Em contraste com 0’00” – em que o compositor deu instruções sobre o nível de amplificação para excluir o retorno, de modo que os sons acidentais se tornassem audíveis –, a execução de Tudor de Variations II [Variações II], usando o piano amplificado que ele adaptou, enfatizava o controle em tempo real do processo de 99
amplificação e a manipulação do retorno resultante. Em outras palavras, sempre que ele podia fazer suas próprias escolhas, seu foco voltava-se para os instrumentos específicos que ficavam entre a areia e as pedras.
O segundo álbum finaliza com fotografias dos ensaios e das apresentações da peça Sapporo, de Ichiyanagi, na cidade de mesmo nome. Tudor aparece tocando uma biwa – um alaúde de braço curto “japonês” –que foi importado da China no século 7 ou 8 e cujas raízes remontam à Índia. Como instrumento musical, a especificidade física da biwa com que Tudor entrou em contato não era globalmente intercambiável nem universalmente japonesa, mas se originava na história particular de sua trajetória migratória. Na verdade, Tudor levou a biwa para os Estados Unidos e a tocou pelo menos mais uma vez.
Ao longo da vida, Tudor voltou ao Japão diversas vezes, mas não era nos templos que ele passava seu tempo. Ocultas no interior de muitos instrumentos eletrônicos que Tudor construiu, há evidências materiais dessas viagens: componentes e kits que ele comprava na Akihabara Electric Town todas as vezes que visitava o país.
Originalmente, o MoMA queria que eu escrevesse uma série de ensaios. A parábola que acabo de encenar era para ser o primeiro, e planejei escrever um segundo. No entanto, possivelmente por minha resposta enviesada à questão da “perspectiva japonesa”, eles desistiram da ideia. Mas quando soube que esse evento ocorreria no Sogetsu Kaikan, eu me lembrei de que a segunda parábola que pretendia escrever também tinha uma conexão com esse lugar. E não somente porque nos encontramos fisicamente aqui, no Sogetsu Kaikan, mas porque estamos dentro do jardim de pedra concebido por Isamu Noguchi, que faria uma participação especial na segunda parábola.
Então, eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para apresentar o que teria sido a segunda parábola. Seu título é Sobre Tudor na Índia. Naturalmente, se retraçarmos as raízes do Zen – ou da biwa –, ambos nos levarão de volta à Índia.
Parábola 2: Sobre Tudor na índia
Em 1946, Gita Sarabhai, uma instrumentista de 24 anos que vivia em Ahmedabad, na Índia ocidental, estava cada vez mais preocupada com a crescente influência da música ocidental nas tradições clássicas indianas. Após muita reflexão, ela concluiu que, para proteger a música indiana daquelas incursões estrangeiras, era preciso, antes de mais nada, entender propriamente o que era a música ocidental. Para a sorte de Gita, ela pertencia à família Sarabhai, uma das mais proeminentes dinastias de Ahmedabad, que amealhara grande fortuna por meio da comercialização de tecidos e era uma grande apoiadora do movimento de independência liderado por Gandhi. Ela partiu para Nova York a fim de aprender sobre a música ocidental no seu epicentro. Durante sua estada de seis meses, Gita rapidamente abandonou seu plano original de se matricular na prestigiosa Juilliard School, em Nova York. O motivo foi um encontro casual – facilitado por Isamu Noguchi, na época envolvido com os círculos novaiorquinos pró-independência da Índia – com um excêntrico compositor estadunidense, dez anos mais velho do que ela. Eles ficaram muito próximos, e em troca de aulas de música contemporânea e contraponto, ele pediu a ela que lhe ensinasse música indiana. O nome do compositor era John Cage, e muito já se escreveu sobre como a filosofia musical indiana que ele absorveu de Gita influenciou profundamente suas composições e seus escritos.
Mas o que poucos sabem é que a amizade deles perdurou por muito tempo, mesmo depois que ela voltou à Índia. Na turnê europeia de Cage em 1958, ele se hospedou na casa da cunhada de Gita, Manorama Sarabhai, que na época morava em Londres. Foi ali que o companheiro de viagem de Cage, David Tudor, ficou próximo de Manorama, depois de descobrirem um amor comum pela culinária indiana. A partir disso, as trocas entre Ahmedabad e Nova York se tornaram mais ativas, passando a ser mediadas por Tudor. Em 1962, depois de visitar o Japão, Tudor aceitou os reiterados convites da família Sarabhai e viajou sozinho a Ahmedabad. O fascínio de Tudor pela Índia não se resumia à comida. Em uma carta escrita a ele em 1965, Manorama relembraria: “Quando você veio aqui, dois anos atrás, você queria um livro sobre antropologia ou algo assim […] Você disse que só era possível (se tanto) encontrar esse livro na Índia”.9
A palavra dita por Tudor provavelmente não fora “antropologia”, mas “antroposofia” – a disciplina e o movimento espiritual esotérico fundados no início do século 20 por Rudolf Steiner, cujos ensinamentos Tudor levava muito a sério. Steiner tivera uma conexão curiosa com a Índia, pois havia sido diretor da seção alemã da Sociedade Teosófica, outro movimento do misticismo ocultista moderno, cuja base de operações, durante algum tempo, foi em Madras, na Índia. Por causa desse histórico, mesmo depois de romper com a teosofia e fundar seu próprio movimento, seus livros continuaram a circular no subcontinente.
Em 1966, quatro anos depois da visita de Tudor à Índia, um grupo chamado Experiments in Art and Technology [Experimentos em Arte e Tecnologia] (E.A.T.) foi fundado em Nova York. Era um coletivo de artistas e engenheiros dedicados a apoiar a arte experimental com especialidades técnicas. Tanto Cage quanto Tudor estavam nesse grupo desde o início, mas foi Tudor quem se tornou mais profundamente envolvido. Ele vinha criando música eletrônica usando circuitos de fabricação própria e se sentia confortável nas discussões técnicas com os engenheiros. Em pouco tempo, as atividades do E.A.T. se tornariam conectadas com a família Sarabhai através da mediação de Tudor.
O primeiro passo significativo nessa direção foi dado quando a irmã e o irmão de Gita, Gira e Gautam Sarabhai, abordaram Tudor com um plano de criar o primeiro estúdio de música eletrônica na Índia, no National Institute of Design (NID), que eles haviam ajudado a fundar. Tudor aceitou o convite e ficou em Ahmedabad de outubro a dezembro de 1969. Ele levou consigo o novíssimo sintetizador Moog e montou o estúdio, oferecendo uma oficina de produção de música eletrônica. No entanto, apenas sete pessoas se matricularam, e somente cinco ficaram até a apresentação final. Gita Sarabhai estava entre os cinco, mas pouco antes
da apresentação ela decidiu não participar. Como resultado, Tudor teve que preencher a lacuna compondo uma peça ele mesmo com o sintetizador Moog, um instrumento do qual ele, na verdade, não gostava.
Depois de voltar da Índia, no final de 1969, Tudor viajou novamente ao Japão, onde trabalhou no sistema de som do Pavilhão da Pepsi na Expo ’70, em Osaka. Curiosamente, o exterior do pavilhão estava envolvo em um nevoeiro criado pela artista japonesa Fujiko Nakaya, e o projeto como um todo foi supervisionado pelo E.A.T.
Tendo chegado ao distante Japão, o E.A.T. queria expandir suas atividades ainda mais profundamente pela Ásia. Naquele mesmo ano, eles lançaram um programa chamado “Artistas Americanos na Índia”, uma iniciativa de enviar artistas e coreógrafos estadunidenses para a Índia. Em uma estranha ironia do destino, a decisão de uma instrumentista indiana de viajar para os Estados Unidos para proteger as tradições de seu país da influência ocidental acabou fazendo com que Ahmedabad se tornasse uma base da arte experimental dos Estados Unidos na Índia.
Uma das participantes do programa foi a coreógrafa Yvonne Rainer, que viajou pela Índia durante seis semanas em 1971, onde assistiu a numerosas apresentações – peças, danças e outras formas de teatro. Profundamente influenciada por essas experiências, ela voltou a Nova York e, em junho do mesmo ano, criou um trabalho intitulado Grand Union Dreams [Sonhos da Grand Union], uma performance peculiar que mesclava dança e teatro. No entanto, a peça não foi bem recebida, e pouco tempo depois Rainer parou de dançar e se tornou cineasta.
Trisha Brown, amiga e colega dançarina de Rainer que havia participado de Grand Union Dreams, viajou para a Índia apenas seis meses depois, também como parte do programa do E.A.T. Então, em 1980, Brown estreou uma nova peça de dança intitulada Opal Loop [Laço de opala]. O palco era tomado por um nevoeiro – criado por Fujiko Nakaya, que havia envolvido o Pavilhão da Pepsi com o mesmo material uma década antes. Essa colaboração deu início a uma longa amizade entre Nakaya e Brown. Agora, avancemos a cena para um quarto de século depois. Em 2005, Nakaya apresentou Brown ao artista japonês Kenjiro Okazaki, dando início a uma nova colaboração. Na época, eu estava na pós-graduação, e Okazaki me convidou para participar do projeto como intérprete. Mas como ele havia construído um robô para se apresentar no palco, acabei mudando de função, de intérprete para operador do robô, e comecei a excursionar com a companhia de dança de Trisha Brown. Por meio dessa experiência, comecei a ficar intrigado com uma antiga amiga de Trisha, a cineasta Yvonne Rainer, que havia sido coreógrafa. Enquanto pesquisava seu trabalho, deparei com uma misteriosa
performance chamada Grand Union Dreams, que ela havia criado logo depois de voltar da Índia. Comecei a imaginar uma remontagem da peça em Tóquio, quarenta anos depois da estreia. Levei essa ideia para Trisha, mas ela reagiu um tanto friamente. Pelo visto, ela não tinha boas lembranças da peça e disse que não se lembrava de nada a respeito.
Assim, em 2007, visitei Yvonne Rainer, para entrevistá-la sobre a peça. Mas ela também mal se lembrava de Grand Union Dreams. No entanto, ela mencionou que havia recentemente vendido seus arquivos para o Getty Research Institute, e que talvez eu pudesse encontrar alguma coisa por lá.
Vários meses depois, por ter me tornado “operador de robô” em meu trabalho com Trisha, fui convidado para uma conferência sobre robótica em San Diego, Califórnia. Encerrada minha apresentação, resolvi ficar mais alguns dias, e de repente me lembrei da dica de Yvonne sobre o Getty. Uma vez que era possível fazer um bate e volta de Los Angeles a San Diego, entrei em contato com eles e marquei um horário para acessar a sala das coleções especiais, explicando que eu queria ver materiais relacionados à peça Grand Union Dreams. Mas eles responderam que os papéis de Rainer ainda estavam sendo processados, de modo que eu não podia ter acesso a eles.
De qualquer modo, como eu já tinha reservado um horário, comecei a consultar o banco de dados do Getty para ver que outros materiais eles tinham, e descobri algo inesperado: um arquivo intitulado “David Tudor Papers”. Embora eu fosse familiarizado com o nome de Tudor, sempre imaginara que ele havia levado tudo consigo para o túmulo. Então, fiquei espantado. Viajei até Los Angeles e, quando entrei na sala das coleções especiais do Getty, fiquei ainda mais surpreso pelo imenso volume de material. Bem ali, naquele momento, resolvi estudar Tudor usando esse incrível recurso. Então, me preparei para estudar fora, me mudei para Nova York e, quando estava profundamente mergulhado na pesquisa, deparei com os álbuns de fotografias da visita de Cage e Tudor ao Japão, em 1962, recebi o convite do MoMa para colaborar com uma série e, com muitas outras guinadas e reviravoltas no caminho, acabei vindo parar aqui, hoje, compartilhando essas memórias com vocês. Assim, desde Isamu Noguchi, que imaginou este jardim de pedras, até uma parábola sobre um jardim de pedra, o fio de uma narrativa foi tramado. E, por meio da linguagem, o limite entre pedra e areia mais uma vez foi silenciosamente dissolvido.
1 Apud Kenneth Silverman, Being Again: A Biography of John Cage. Nova York: Alfred A. Knopf, 2010, p. 184.
2 Ibid.
3 John Cage, “How to Pass, Kick, Fall, and Run”, in A Year from Monday: New Lectures and Writings. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1967, p. 137.
4 John Cage, Michael Kirby and Richard Schechner, “An Interview with John Cage”. The Tulane Drama Review, vol. 10, n. 2, inverno, 1965, p. 64.
5 John Cage, “Contemporary Japanese Music: A Lecture by John Cage”, in: Yayoi Uno Everett (ed.). Locating East Asia in Western Art Music. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2004, p. 196.
6 John Cage, “Happy New Ears”, in: A Year From Monday, op. cit., p. 33.
7 Id., ibid., p. 34.
8 Id., “Contemporary Japanese Music”, op. cit., p. 198.
9 Manorama Sarabhai, “Letter to David Tudor (August 10, 1965)”, Folder 3, Box 59, David Tudor Papers, Getty Research Institute.
O coletivo Multiple Spirits foi fundado em 2018, pela artista Mai Endo e pela curadora Mika Maruyama com o lançamento do fanzine de arte queer-feminista homônimo. Além das atividades editoriais impressas e online, o coletivo aberto também produz exposições, palestras, pesquisas artísticas e traduções, entre outros projetos. Em resposta ao tema “vale da estranheza”, o grupo Multiple Spirits realizou diversas contribuições para a Invocação em Tóquio, fornecendo ao programa um eixo conceitual que envolveu diferentes participantes, lugares e temporalidades.
No primeiro dia, Endo e Maruyama realizaram uma transmissão de áudio ao vivo em uma das salas da The 5th Floor. Ao lado das palestrantes Marina Lisa Komiya, MadokaShitone e de Shiori Watanabe, que também participou da Invocação, elas se envolveram em uma ampla discussão que utilizou o “Manifesto ciborgue”,1 de Donna Haraway – que comemora quarenta anos de sua publicação este ano – como ponto de partida para questionar narrativas sociais de gênero e tecnologia e para analisar o “humano” como construção histórica. No processo, elas abordaram tópicos variados como bruxaria contemporânea, o sistema imperial e sua conexão com mitos da construção nacional no Japão, corpos generificados, culto a divindades femininas, memoriais, propaganda política e comunidades queer. Falando de suas perspectivas como artistas e trabalhadoras da cultura –ou como bruxa ciborgue, no caso de MadokaShitone –, as participantes compartilharam ideias sobre como podiam abordar essas questões e se envolver em novos “cruzamentos tentaculares” em suas práticas. Durante o restante da Invocação, o espaço do Multiple Spirits na The 5th Floor ficou aberto como uma sala de leitura em que os visitantes podiam ler os textos que haviam inspirado a discussão, entre os quais o longo poema experimental Dictee [Ditado], de Theresa Hak Kyung Cha.
No segundo dia, o Multiple Spirits encenou uma intervenção no Sogetsu Kaikan ao transmitir uma gravação para os fones de interpretação simultânea durante os intervalos mais longos do programa. A gravação apresentava vozes que liam excertos de poemas e outros escritos de Theresa Hak Kyung Cha, Conceição Evaristo, Trinh T. Minh-ha e Cecilia Vicuña, em uma mescla de inglês, japonês e português. Essas leituras se expandiram no diálogo criativo entre Cha e Vicuña, ambas incluídas na Invocação, enfatizando as dinâmicas de ausência e presença, voz e texto, original e tradução, vida e vida após a morte, que foram recorrentes em todo o programa.
Os dois eventos eram vinculados por uma toalha de piquenique especial feita por Endo para a Invocação. Apresentando uma imagem inspirada no “Manifesto ciborgue”, de Haraway, que fora transferida para o tecido mediante um processo de cianotipia, a toalha de 3 metros × 3 metros foi utilizada para estabelecer a área em que as palestrantes iriam se sentar na The 5th Floor, e foi estendida durante a intervenção no Sogetsu Kaikan, evocando tanto a ocupação do espaço como o convite para entrar.
Endo e Maruyama planejam publicar uma transcrição da discussão em um próximo número do fanzine Multiple Spirits, expandindo ainda mais o evento no tempo e no espaço.
1 Ver p. 86, nota 30, deste volume.
Peça sonora
Práticas educacionais
As práticas da publicação educativa da 36ª Bienal de São Paulo são conteúdos desenvolvidos pela Fundação Bienal de São Paulo com o objetivo de aproximar o universo da arte contemporânea de diferentes contextos pedagógicos, promovendo uma educação que reconheça a subjetividade e a pluralidade de experiências, compreendendo quem participa como protagonista nos processos. Sua construção contou com docentes da rede pública de São Paulo 1 e dialoga com as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Elaboradas como roteiros para Laboratórios Criativos, as práticas são estruturadas em três encontros que podem ser adaptados e incorporados conforme as necessidades e possibilidades de cada contexto, visando a incentivar a construção de saberes integrados e a expressão de ideias, sentimentos e reflexões sobre temas sociais e culturais.
Aqui, a sequência de encontros toma como ponto de partida procedimentos para a criação de histórias envolvendo sonoridades, imagens, roteiros e entrevistas. “Cena em movimento” propõe atividades com a linguagem da videoanimação em diálogo com o Manguebeat, enquanto “Memória narrada” convida à produção de uma obra sonora por meio de entrevistas com pessoas do território em que a prática acontece.
Cena em movimento
APRESENTAÇÃO:
Inspirada nos conceitos da Invocação #4 – Bukimi No Tani (不気味の谷): O vale da estranheza – A afetividade do humanoide e nas relações entre seres humanos e máquinas, estes encontros2 exploram a linguagem da videoanimação como ferramenta para a criação de histórias. Mobilizando relações com o movimento Manguebeat, a prática Cena em movimento propõe experimentações entre sonoridades, imagens e narrativas.
OBJETIVOS:
→ Criar e compartilhar histórias.
→ Pesquisar o movimento Manguebeat.
→ Desenvolver processos de criação nos modos individual, coletivo e colaborativo.
→ Explorar tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC).
RECURSOS NECESSÁRIOS:
→ Computador, projetor multimídia e caixa de som
→ Papel sulfite ou semelhante
→ Materiais para escrita (lápis grafite, canetas hidrográficas)
→ Dispositivo móvel com câmera digital
→ Software/programa de edição de vídeo gratuito
DESENVOLVIMENTO:
Animação é o processo de criar uma cena em movimento a partir de imagens estáticas, que podem ser desenvolvidas de forma manual, digital ou híbrida. A animação clássica e manual se realiza a partir de desenhos feitos à mão, quadro a quadro, dispostos de forma sequencial para que o movimento se forme. Um método semelhante é utilizado pelas animações stop-motion, 3 que criam o movimento com base na disposição de fotos de forma sequencial. Além da imagem, outro elemento importante para a criação de uma animação é o som. Com frequência, são utilizadas dublagens, audiodescrições, trilhas e efeitos sonoros. Mas a ausência de som também pode ser uma opção para a pessoa criadora, integrando recursos de acessibilidade, como legendas e tradução em Libras.
Na prática Cena em movimento, o objetivo é relacionar a contação de histórias por meio da linguagem de videoanimações mobilizando o Manguebeat, movimento artístico e cultural brasileiro que teve suas origens na década de 1990, em Recife, Pernambuco. O movimento mescla influências da cultura pop com hip-hop, rock, maracatu, coco e ciranda, a fim de criar possibilidades de expressões artísticas e mobilizar novas ideias.
Tendo como precursor o artista Chico Science,4 o Manguebeat renovou o cenário cultural de Pernambuco, denunciando situações de desigualdade e criando uma estética própria, que circulou na música, nas artes visuais, no teatro, no cinema e na fotografia.
ENCONTRO 1 – MANGUEBEAT
Neste encontro, convide as pessoas participantes a conhecerem a faixa sonora “Manguebit”, da banda pernambucana Mundo Livre S/A. 5 A faixa pode ser encontrada em plataformas de streaming ou ser acessada através do QR Code. Organize a turma em um círculo e, durante a escuta da música, convide as pessoas a anotarem em uma folha de papel palavras que chamem a atenção delas na letra da canção e palavras que remetam aos conteúdos apresentados. Após escutarem a música, proponha uma roda de partilha com base nas palavras anotadas. Sugira algumas perguntas que podem instigar a conversa: Qual cenário essa canção evoca? Como você imagina esse lugar? Quais histórias estão sendo contadas através dos sons e das palavras desta canção?
Ao finalizarem a roda de partilha, reúna as anotações e reserve-as para o próximo encontro. O conjunto de palavras servirá para criar um vocabulário comum com base nessa faixa sonora. Antes do segundo encontro, convide o grupo a pesquisar mais o movimento Manguebeat. Alguns direcionamentos podem ser fornecidos: O que foi o movimento Manguebeat? Em qual contexto cultural, ambiental, social, econômico e político esse movimento nasceu? Qual é a estética desse movimento nas linguagens artísticas? Quais são as relações entre o nome dado ao movimento e o título da canção “Manguebit”?
Mundo Livre S/A Manguebit
ENCONTRO 2 – ROTEIRO
Inicie o encontro propondo uma roda de compartilhamento das pesquisas desenvolvidas pelos participantes acerca do movimento Manguebeat. Após uma rodada de partilha, resgate a lista de palavras e releia para o grupo. Convide as pessoas a imaginarem uma história com base nas palavras. O objetivo é relacionar o vocabulário criado de forma coletiva com as pesquisas individuais sobre o movimento Manguebeat.
Sinalize que será criado um roteiro de modo colaborativo e sugira que as pessoas participantes inventem frases baseadas no vocabulário comum, nas pesquisas realizadas e na história que imaginaram. Uma pessoa integrante do grupo deve ficar responsável por anotar todas as frases. Dê continuidade às rodadas de criação até que o grupo esteja satisfeito com a narrativa criada. Um exemplo para a criação inicial do roteiro:
→ Frase 1: Era final de dia no mangue, caranguejos andavam pelas raízes das árvores, e o rio corria de forma silenciosa…
→ Frase 2: … Às margens desse rio repousava uma pequena cidade.
Diversos moradores ficaram doentes nos últimos meses, e as rádios noticiavam que a causa era desconhecida…
Após criarem de forma espontânea e colaborativa uma primeira versão do roteiro, o grupo deve revisitar a narrativa para alterar o que considerar necessário. É possível sugerir a reorganização de frases, a adição ou subtração de algum elemento e/ou alterar acontecimentos e cenas propostas inicialmente. As alterações devem ser conversadas coletivamente para que as pessoas participantes estejam de acordo com o roteiro final. Reserve o roteiro para o próximo encontro e convide a turma a imaginar, ao longo dos dias, cenas possíveis para a narrativa criada com base na linguagem da videoanimação.
Alguns direcionamentos podem ser fornecidos: Como é o local onde essa história se passa? Quem são os personagens presentes? Existem falas ou sons que acompanham a narrativa? Quais cenas precisam ser criadas para esse roteiro?
Caso queiram, as pessoas participantes podem criar desenhos que auxiliem na criação da história e/ou se apropriar de imagens de filmes, revistas, jornais e séries que representem determinadas visualidades.
ENCONTRO 3 – ANIMAÇÃO
Para o último encontro desta prática, reúna as pessoas em uma roda e leia o roteiro final desenvolvido coletivamente. Convide a turma a realizar partilhas das cenas imaginadas, incluindo personagens e outros elementos visuais. A seguir, conte um pouco para o grupo sobre a linguagem da videoanimação, em especial a técnica pixilação. 6
Peça que iniciem a criação das convenções para a execução e gravação do roteiro. Por exemplo, se a cena acontece em um manguezal, o grupo pode combinar que as árvores do mangue serão representadas por cadeiras. O rio poderia ser simbolizado por uma fileira de mochilas. Caso o roteiro tenha personagens, também é necessário que se estabeleçam convenções sobre o que uma pessoa e/ou objeto representará. O grupo pode ensaiar o roteiro e suas movimentações antes de fazer as fotografias quadro a quadro e, de forma coletiva, definir os enquadramentos de cada cena.
Solicite que posicionem um dispositivo móvel com câmera digital (como um telefone celular, uma câmera fotográfica ou a câmera de um computador) em um lugar específico. É necessário deixar o dispositivo imóvel, para que o movimento aconteça com o sequenciamento de fotos. Agora, os personagens, objetos e elementos em cena devem ganhar movimento através das fotografias. Depois, fazem uma foto, movimente ligeiramente a cena e tire outra. Isso deve ser feito diversas vezes até que a cena seja finalizada. Tanto pessoas quanto objetos podem ser movimentados de uma foto para a outra. É possível refazer esse procedimento até que o grupo esteja satisfeito com o resultado. Após a execução do roteiro, organize a sequência de fotos por meio de um aplicativo/software aberto de edição de vídeo. Reúna o grupo em roda para a exibição da videoanimação e o compartilhamento de experiências:
→ Quais foram as maiores dificuldades nesse processo?
→ Como os elementos da música foram recriados na videoanimação?
→ Como podemos dar continuidade a esse projeto?
SUGESTÕES DE DESDOBRAMENTOS
Buscar desenvolver o roteiro por meio de outras linguagens, como o cinema, o teatro, a literatura, a música etc. Organizar um festival de animação em sua comunidade. Explorar outras formas de animação, como a animação manual e o stop-motion. Também é possível aproximar o processo da videoanimação com os laboratórios dos outros volumes da Publicação Educativa da 36ª Bienal de São Paulo.
Memória narrada
APRESENTAÇÃO:
Esta prática tem como proposta a produção de uma obra sonora a ser veiculada em formatos de podcast e web rádio. A orientação para a criação dessa obra ocorrerá por meio de roteiros elaborados coletivamente e de entrevistas com pessoas do território em que a prática acontece.7
OBJETIVOS:
→ Contar e escutar histórias.
→ Descrever características de seus lugares de vivência.
→ Desenvolver processos de criação nos modos individual, coletivo e colaborativo.
→ Elaborar roteiro para registrar histórias.
RECURSOS NECESSÁRIOS:
→ Papel sulfite ou semelhante
→ Materiais para escrita (lápis grafite, canetas hidrográficas)
→ Dispositivo de gravação de áudio
→ Software/programa de edição de áudio gratuito
→ Plataformas de podcast ou web rádio gratuitas
DESENVOLVIMENTO:
Parte dos conteúdos da publicação educativa da 36ª Bienal foram criados a partir de conversas com artistas, nas quais as pessoas participantes foram estimuladas a narrar histórias envolvendo trajetórias e processos criativos. As conversas foram gravadas, editadas e, posteriormente, transcritas utilizando ferramentas digitais. Este exercício não serve apenas para destacar caminhos individuais, mas, sobretudo, para aprofundar o potencial da fala, da escuta e da contação de histórias como parte da construção da Humanidade como prática.
ENCONTRO
1 – MEMÓRIA
Neste encontro, a pessoa mediadora pode apresentar elementos da história do território em que a prática acontece, com o intuito de convidar a turma a escolher alguém da comunidade para a gravação de uma entrevista que relacione histórias pessoais com questões da coletividade. Para isso, reúna as pessoas participantes em círculo e faça o seguinte procedimento:
→ Converse com o grupo sobre quais histórias da comunidade são importantes preservar e que tipo de histórias elas são (quais temas suscitam, que sentimentos evocam?).
→ Anote nomes de pessoas da comunidade que sejam interessantes para entrevistar, considerando características como atuação no território ou idade.
→ Converse sobre os nomes que foram listados com a intenção de chegar a um consenso sobre qual pessoa entrevistar.
ENCONTRO 2 – ROTEIRO
O segundo encontro é dedicado à construção do roteiro para a entrevista. Após a decisão sobre a pessoa a ser entrevistada, é o momento de definir o tema da entrevista. Para tanto, a pessoa mediadora pode resgatar elementos que surgiram no encontro anterior, nas conversas sobre as histórias da comunidade e os critérios para a escolha da pessoa entrevistada. A seguir, realizem um fórum para criar as perguntas, listando de três a seis questões. O roteiro pode ser organizado em três blocos:8
→ Introdução: origem da pessoa, mães, avós, infância.
→ Desenvolvimento: fases da sua trajetória, incluindo o tema central do projeto.
→ Finalização: conclusão da história, relação com o presente e o futuro.
ENCONTRO 3 – GRAVAÇÃO
Neste encontro, revisite as questões definidas pelo grupo e organizem quem serão as pessoas responsáveis por fazer cada pergunta. Para a realização da gravação, faça o seguinte procedimento:
→ Prepare o ambiente para realização da entrevista.
→ Organize a turma em círculo.
→ Sugira que a pessoa convidada se posicione no centro da roda.
→ Utilize um dispositivo de gravação de áudio para captação da entrevista.
→ Aguarde a conclusão da fala da pessoa entrevistada antes de intervir ou fazer novas perguntas.
Ao finalizar a entrevista, caso ainda haja tempo, o grupo pode fazer perguntas adicionais à pessoa entrevistada, considerando questões que surjam no decorrer da fala. Após a conclusão da gravação, o áudio pode ser editado com a utilização de softwares livres. Mediante a obtenção da autorização cedida pela pessoa entrevistada, divulgue a história gravada em plataformas gratuitas de podcast ou web rádio.
SUGESTÕES DE DESDOBRAMENTOS
Criação de um programa de entrevistas continuadas com diversas pessoas, repetindo o mesmo procedimento. O programa pode ser criado a partir de um tema comum que reúna histórias de vida e pode ser publicado periodicamente em plataformas digitais gratuitas. Outras linguagens artísticas podem ser exploradas, como a criação de uma identidade visual para o programa de entrevistas e/ou a inclusão de músicas e efeitos sonoros às gravações.
1
Agradecemos a Bel Borges, Durval Mantovaninni, Gustavo Viana, Kaya Fernanda Vallim Braga Martins, Maria da Conceição Ferreira da Silva, Pamela Regina e Rodrigo Pignatari pelas ricas trocas que aconteceram nos dias 26 out. e 9 nov. de 2024
2 Esta prática foi elaborada em diálogo com habilidades da BNCC: Ensino Fundamental – Anos Finais: Arte: (EF69AR05); (EF69AR06); (EF69AR31); (EF69AR35). Ensino Médio: Linguagens e suas Tecnologias: (EM13LGG103); (EM13LGG603); (EM13LGG604); (EM13LGG701); (EM13LGG703). Ciências Humanas e Sociais: (EM13CHS205).
3 Traduzido de forma literal para o português como “movimento parado”.
4 Francisco de Assis França Caldas Brandão, conhecido como Chico Science, foi um importante cantor e compositor brasileiro nascido em 1966, na cidade de Olinda, em Pernambuco. O artista faleceu em 1997 na cidade de Recife. Foi um dos principais nomes do movimento Manguebeat e liderou a banda Chico Science & Nação Zumbi.
5 Mundo Livre S/A é uma banda que surgiu em 1984, em Recife, Pernambuco, e mantém suas atividades até hoje. Foi uma das principais precursoras do movimento Manguebeat e seu vocalista, Fred Zero Quatro, foi autor do importante manifesto cultural de 1992, “Caranguejos com Cérebro”.
6 Pixilação [ pixilation] é uma técnica de animação que utiliza atores ou objetos reais, captados quadro a quadro. É um tipo de animação stop-motion.
7 Esta prática foi elaborada em diálogo com habilidades da BNCC: Ensino Fundamental – Anos Finais: Arte: (EF69AR34); (EF69AR35). Língua Portuguesa: (EF69LP14); (EF67LP23). Ensino Médio: Linguagens e suas Tecnologias: (EM13LGG105); (EM13LGG301); (EM13LGG601). Língua Portuguesa: (EM13LP17).
8 Metodologia inspirada pelo Museu da Pessoa, instituição museológica que desenvolve processos colaborativos de valorização de histórias de pessoas como patrimônio da humanidade.
Para mim, a poesia é uma forma de ver o mundo, um modo de pensar e um modo de ser em si mesmo.
A poesia abarca todas as ações que realizamos com nosso corpo.
Às vezes, a poesia emerge em um texto; outras vezes, materiais naturais ou ferramentas digitais podem se tornar meios poéticos para manipular o tempo e o espaço.
Hoje, minha poesia tomará a forma de uma ação chamada Diálogo 対話 – Voz 聲 vol. 2”.
Esta série teve início em 2024, com “Dialogue 対話 – Voix 聲 vol. 1”, um diálogo com a voz gravada do cineasta e poeta de origem lituana, Jonas Mekas, que fiz para um programa organizado pelo Centre Pompidou, em Paris.
A nova versão do diálogo conta com a voz da poeta brasileira Conceição Evaristo, cujas palavras são citadas no título da 36ª Bienal de São Paulo, Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática.
Valendo-se de sua experiência como mulher negra, Evaristo utiliza sua poesia para lançar luz sobre as desigualdades de raça, gênero e classe na sociedade brasileira. Ela dá voz às palavras daqueles que foram silenciados e vive sua poesia como forma de resistência à injustiça.
Na ação de hoje, trabalharei com três poemas de Evaristo –“Da calma e do silêncio”, “Vozes-mulheres” e “Amigas” –, por meio de gravações de voz e dos textos. Enquanto escuto com os ouvidos e leio com os olhos, digitarei cada palavra do português que puder captar e as introduzirei em um programa de tradução automática.
Cada palavra se abre para múltiplas traduções possíveis. Escolherei apenas uma tradução para cada palavra e, depois, rearranjarei a sequência delas e as distribuirei em versos, alinhavando-as em um novo poema.
Ainda que eu parta da mesma fonte, diferentes escolhas ou composições produzirão poemas totalmente distintos. Esse é um diálogo com um poema que é, ao mesmo tempo, citação e algo que fala sobre o momento, além de ser um ato de reunir palavras e dar forma a elas.
Texto traduzido do original em japonês para o inglês por Andrew Maerkle, Erika Dressler e Mitsue Kitagawa; e traduzido do inglês para o português por Alexandre Barbosa de Souza.
Desmistificando a IA: história, técnicas e reflexões
Nina da Hora
Texto elaborado com base em aula ministrada para a equipe da Fundação Bienal em 16 de abril de 2025.
Histórico e desenvolvimento da IA
Quando falo em fundamentos técnicos, a galera fica com medo de que vou botar matemática, cálculos, e a ideia não é essa. A ideia é falar da relação da inteligência artificial (IA) com pessoas que trabalham com educação, sejam pessoas que atuem na mediação cultural, na construção de materiais didáticos, sejam professores, ou ainda aprendizes – que é algo que nós todos somos ao longo da vida. A ideia é falar também de como essa relação enfraquece quando as pessoas não têm acesso a informações sobre o que de fato significa esse conceito. E, assim, muitas vezes, o conceito é substituído por uma ferramenta. Então, nos dão a ferramenta, usamos a ferramenta, porque isso vai fortalecer nossa inteligência humana, e pronto, isso é IA. Nesse tema, é importante que se entenda que a construção da inteligência artificial se dá pelas pessoas, independentemente das áreas em que elas atuam. Nós, como cientistas da computação, dependemos muito mais das relações humanas do que se imagina. Dependemos dessa construção humana para conseguir pensar nessas ferramentas. É importante começar por uma breve linha do tempo, mostrando que as raízes da IA vêm do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).1 Nesse período, os Estados Unidos e seus aliados tentavam criar
estratégias para vencer a guerra e diminuir a quantidade de soldados mortos. Então, eles aproximaram as universidades dos órgãos militares, ao contar com a ajuda de acadêmicos e pesquisadores, principalmente das áreas de engenharia e computação. É importante mencionar isso, porque muito do que vamos ver aqui lembra essas estratégias de ataque e defesa, em que um grupo acaba superando os outros.
Do ano 2000 para cá, o que avançou foram as técnicas relacionadas aos algoritmos, e não só às máquinas. Começou-se a pensar: “Se eu tenho um grupo de pessoas que gosta de chocolate e outro que gosta de café, eu quero controlar esses gostos”. Então, surge a aprendizagem da máquina, o famoso machine learning, que me permite clusterizar,2 agrupar essas pessoas de acordo com seus respectivos interesses e criar algumas estratégias.
A primeira estratégia é fazer que essas pessoas briguem – é a estratégia da rede social, originalmente. Eu preciso que elas entrem em um embate, em uma discussão, porque isso me retorna informações valiosas para colocar no algoritmo. Reconhecemos isso nos formatos de likes e de comentários. A outra estratégia é aproximar as pessoas que gostam de chocolate ou de café, criando subgrupos, propondo as recomendações para essas pessoas de acordo com esse gosto. Então, eu
não as deixo sair daquele círculo de chocolate ou de café, e o que não se relacionar com isso não vai ser recomendado. Essa é a estrutura analítica da aprendizagem de máquina. Mas como isso acontece na prática? Eu gosto de trazer essa definição careta, de inteligência artificial, porque ela faz com que a gente consiga refletir e visualizar que não estamos participando da construção desse conceito e das decisões relacionadas a ele. Nós somos os operários dessa grande fábrica de IA.
Todo o mundo normalizou dizer que a inteligência artificial se refere à criação do sistema. Essa definição, da década de 1980, surgiu de um livro superfamoso chamado Inteligência artificial, escrito por Stuart Russell e Peter Norvig,3 dois pesquisadores que estudaram nas universidades Stanford e Berkeley, respectivamente. Eles estavam participando dessa construção e disseram: inteligência artificial é isso, ela realiza tarefas que, quando feitas por seres humanos, normalmente exigem inteligência. O que podemos depreender dessa definição? Que há tarefas que a inteligência artificial realiza melhor que os seres humanos. Ou que ela obtém determinado resultado em menos tempo que um ser humano. E a IA está trazendo um resultado mais rápido, que é o que tem acontecido com as LLMs.4
Nessa definição, conseguimos trazer algumas problematizações e exercitar um pouco mais essa ideia de reimaginar
quais são as possibilidades se não formos operários da inteligência artificial. O aprendizado de máquina – e é só para deixar registrado, porque não é inteligência artificial, é um campo que está dentro da inteligência artificial – se preocupa com agrupar gostos, pessoas e pensamentos, mas a inteligência artificial é muito mais ampla do que isso. O machine learning precisa reconhecer padrões, precisa trabalhar conforme uma padronização, não se pode partir de uma folha em branco. É preciso ter esse padrão definido, fazendo com que as relações me tragam esses padrões.
Mas existem tipos de aprendizagem de padrões que, normalmente, não são compartilhados com as pessoas, e podem gerar um pouco mais de desespero, porque não permitem que tenhamos estratégias de hackear5 esses espaços em busca de outros caminhos. E existe mais de uma forma de direcionar a máquina para aprender – mas esse “aprender” está entre muitas aspas. Na forma não supervisionada, eu posso deixar o modelo treinando sozinho, o que se assemelha um pouco à forma como as LLMs estão sendo construídas. Elas precisam fazer essas associações com base em vários links para entender o que a pessoa está perguntando ou solicitando. Já na forma supervisionada, eu tenho um pouco mais de controle – posso pegar uma foto, o nome da pessoa e algumas informações sobre ela e fornecê-los ao
algoritmo. Assim, de certa maneira, eu tenho o controle do que eu quero ou do que espero que seja o resultado. Há também o que chamamos de aprendizagem de máquina por reforço, e nesse caso, sim, entramos diretamente na construção, definição e desenvolvimento de ferramentas como o ChatGPT.
O ChatGPT começa a interagir com o ambiente, então, além das informações que ele busca na internet e daquelas que fornecemos, ele pode olhar todas as outras interações, trabalhando com sensores. Ele olha não só a resposta dessas interações, mas também nossa resposta, pois precisa mimetizar o
modo como escrevemos para poder trazer a resposta, o que o aproxima emocionalmente das pessoas.
As ferramentas do ChatGPT estão diretamente ligadas à aprendizagem de máquina por reforço. E há o entendimento de que esses agentes diários podem tomar decisões interagindo com o ambiente. Eles vão receber recompensas ou penalidades. Penalidades são as pessoas que os xingam – muitas pessoas fazem isso, muitas pessoas dizem que está errado etc. Recompensas são as pessoas que vão ser educadas com a ferramenta e que, em teoria, acham que essa educação vai salvá-las de um apocalipse no futuro.
Linguagem natural e acessibilidade
O processamento de linguagem natural (PLN) – particularmente não gosto dessa definição, mas é um conceito bastante utilizado e que aparece nas principais referências da área – tenta capacitar as máquinas a compreender, interpretar e gerar uma linguagem natural. Podemos então nos perguntar: mas o que é linguagem natural? Se você perguntar a alguém da área da linguística: “O que é linguagem natural?”, “O que é linguagem?”, perceberá que a complexidade da linguagem natural supera as simplificações buscadas por essas ferramentas em sua tentativa de alcançar um modelo único.
É nesse ponto que mora, para mim, um dos perigos dessa fase que estamos vivendo: com as ferramentas usadas para mimetizar textos, por exemplo, as pessoas não estão sendo educadas. Os adolescentes e as crianças que já nascem em um mundo com essas ferramentas não estão sendo educados para pensar de modo crítico o retorno delas, nem para interpretá-las. Não há um questionamento de volta. Se você perguntar a eles o que é uma linguagem natural, eles vão falar: “Ah, o texto do ChatGPT diz…” As referências mudaram. E quem está trabalhando com análise de redação está bem preocupado
com isso. Porque há uma substituição de referências, uma substituição da forma como a pontuação ocorre naquela frase e na própria construção frasal.
Há técnicas de linguagem natural que estão sendo usadas sem que as pessoas saibam, com base nas informações que elas compartilham nas redes. Uma delas é a de sumarização de texto. Quando vocês pedem a uma ferramenta específica para resumir grandes volumes de texto, prestem atenção na forma como a ferramenta começa o texto. E, se for um resumo de mais de um parágrafo, observem como ela começa o texto em cada parágrafo, assim, vocês vão perceber a repetição que acontece. A sumarização é: a ferramenta pega a ideia principal do primeiro parágrafo e a replica em todos os parágrafos seguintes. Essa é a repetição. Quando utilizarem alguma dessas ferramentas, prestem atenção nessa sumarização.
Outra técnica muito utilizada nessas ferramentas é a tradução. Essa evoluiu bastante por conta da acessibilidade. Hoje há diversas ferramentas, inclusive, que traduzem para Libras,6 sem a necessidade de uma pessoa intérprete. O perigo que eu vejo nisso é que a língua de sinais muda de acordo com o local em que você está, então, o fato de você tentar padronizá-la e homogeneizá-la dificulta a criatividade, pois ela ainda está sendo construída, e isso prejudica a comunicação na comunidade surda.
Esse é um ponto interessante de se pensar: só olhamos para a tradução de um idioma para outro, sem considerar esse aspecto da acessibilidade. Quando colocamos em questão a acessibilidade, tem outro contexto a ser considerado.
E a terceira técnica é a análise de sentimento, que é uma grande ferramenta para marketing, muito utilizada na comunicação. Ela se popularizou com o Facebook, e depois com o X [ex-Twitter]. Consiste na avaliação do tom emocional de um texto, a partir das palavras utilizadas e da construção da frase. Muitos ficam com medo quando chega essa parte, mas não é necessariamente o tom emocional que a ferramenta está avaliando. Você pode construir uma frase assim: “Eu gosto de cachorro”. A ferramenta pega “gosto”, que é um verbo, e o associa à definição de gostar. Dessa ação decorre um afunilamento da definição do verbo gostar, que vai estabelecer o tom da frase; um tom emocional, sentimental… É puramente lógico. A ferramenta procura o verbo da frase, e, a partir da definição do verbo, constrói o que ela considera que é o resultado final: gostar de cachorro, gostar de café… E então ela conduz o resultado: isso tem um tom positivo ou isso tem um tom delicado, dando adjetivos que nos fazem acreditar que se trata de uma análise de sentimento, uma análise emocional.
Ética
A área em que eu atuo é a visão computacional. Ética e visão computacional é uma área que também se iniciou durante a Segunda Guerra Mundial, mas se tornou um pouco mais popular na década de 1980, quando houve não só um aumento do poder econômico como também do número de hardwares desenvolvidos, que conseguiam processar imagens e vídeos muito mais rapidamente.
Quando comecei a atuar nessa área, eu trabalhava muito com reconhecimento de emoção. Você ria, eu capturava esse sorriso e criava um emoji, por exemplo. Esse tipo de técnica foi usado na evolução do reconhecimento facial, que está dentro do campo de visão computacional.
O reconhecimento facial detecta o que é mais importante do rosto. Então, se meu algoritmo detectar que nariz, boca e olho são o mais importante, bochechas, rugas e sobrancelhas serão excluídos. Porque o que eu detectei como o mais importante foi boca, nariz e olho para construir o rosto. Assim, essa detecção falha porque não utiliza todas as informações do rosto. No caso do reconhecimento facial, muitas vezes a detecção é feita pela íris dos olhos. Vocês devem ter visto uma notícia de pessoas que venderam a íris em São Paulo, por 600 reais.7
A íris é única, então,
se você fizer o reconhecimento facial por meio da detecção da íris, consegue garantir que aquela pessoa é mesmo aquela pessoa. E se pegar a íris e cruzar com outras informações, vai encontrar o contexto no qual aquela pessoa está inserida. Esse é o problema da venda da íris: todas as informações que estão atreladas a ela.
E então se constroem conceitos a partir disso. O que são esses conceitos? Eu reproduzo essa imagem dos pedaços do rosto de uma pessoa em outra parte da máquina, no algoritmo, e vou fazendo essa reconstrução e combinando pedaços até reconstruir o rosto daquela pessoa. Isso acontece muito na busca de pessoas desaparecidas. Mas essa mesma técnica tem sido utilizada para fazer o reconhecimento facial. Muitas vezes, as pessoas resumem o reconhecimento facial a imagens - acham que, se tiver mais imagens de pessoas negras, vai funcionar. Mas não é bem assim.
Por definição, o reconhecimento facial é uma ferramenta perigosa. Porque o fato de você usar as características físicas de alguém para tomar uma decisão sobre a vida dela, por si só, já é perigoso. No meu caso, estudo o reconhecimento de objetos, a ética por trás disso, e a conclusão é que não há ética nenhuma envolvida nessas ferramentas.
Educação como tecnologia
O investimento de tempo no planejamento, no plano de aula, que muitas vezes não tem um acompanhamento da escola, é algo que sempre foi um ponto de reclamação dos professores. Esse acompanhamento, de você ajudar o professor, de direcionar, por exemplo, é uma das responsabilidades do coordenador pedagógico. Com o plano de aula dos professores, ele tenta fazer com que aquilo sobreviva a todas as dificuldades do dia a dia da sala de aula. Mas, muitas vezes, os professores deixam esse plano de lado, porque as dificuldades são ainda maiores que o plano de aula e não há um acompanhamento em relação a esse trabalho.
Não há um incentivo em relação a isso. Não há uma roda de conversa para que esse plano seja elaborado e qual é a expectativa em relação a ele. Porque o planejamento sempre foi um ponto de discussão, tanto nas greves quanto nas reuniões de docentes. Eu venho de uma família de professores, então escutei isso a vida inteira.
Querem utilizar a inteligência artificial e forçar seu uso pelos professores e pelas pessoas que estão em sala de aula? Então, vamos hackear isso e transformar em outro ponto: vamos forçar a escola a mudar as estruturas do plano de aula. Para que isso aconteça, é necessário que as pessoas entendam esses conceitos
de IA, não para que se afastem, mas para que tentem se aproximar. É difícil imaginar outros usos do ChatGPT, por exemplo, porque o que foi apresentado para nós é uma estrutura.
No período da pandemia, a classe docente era responsável pelo WhatsApp da turma, com os pais e os alunos. E, ao mesmo tempo que eles estavam dando as aulas, precisavam gravar o áudio para repassar aos alunos que não tinham acesso à internet. Esses professores estão em territórios em que essa discussão que fazemos aqui tem mais dificuldade de ser levada, por exemplo. E há essa problematização de que, para conseguirmos chegar a esse aspecto do suporte, há toda uma camada de acesso a redes, à tecnologia, à organização da informação, na qual boa parte das pessoas ainda não está inserida.
O papel do campo educacional é trazer esse pensamento crítico. O campo educacional não tem a responsabilidade de fornecer, por exemplo, acesso à internet ou às redes. Não tem nem capacidade para fazer isso, considerando a forma como estamos estruturados no Brasil.
É isso: desafios logísticos, desafios de acesso à rede… O quanto o campo educacional contribui para quebrar esses paradigmas que a tecnologia apenas atualiza e aos quais não oferece alternativas?
Muitas vezes, é interessante visualizar esse reforço do pensamento crítico dentro do campo, e fazer isso em diferentes formatos. Outro ponto – que na pandemia ficou muito nítido – é a necessidade/importância de que os educadores não se martirizem por não conseguirem realizar atividades que não são de
responsabilidade do campo em que estão atuando. Essa é uma dinâmica que exploramos quando trazemos aspectos mais emocionais, ou seja, o impacto emocional que as críticas constantes podem surtir nas pessoas. Acho importante esse olhar, ir além da mera crítica. Fazer a crítica se tornar realidade, se tornar ação.
1 Em 1942, anteriormente à criação da expressão “inteligência artificial”, o matemático britânico Alan Turing (1912-1954) desenvolveu a Bombe, uma máquina eletromecânica, para decifrar as mensagens alemãs criptografadas por outra máquina, a Enigma. Mas foi somente em 1956 que o cientista da computação estadunidense John McCarthy (1927-2011) cunhou a expressão “inteligência artificial” durante a Conferência de Dartmouth, que reuniu um grupo de matemáticos e foi o marco inicial da área.
2 No contexto de marketing, o termo cluster [grupo] refere-se a uma estratégia para segmentar o público-alvo em grupos que apresentam características em comum, visando otimizar os resultados de uma empresa.
3 Stuart Russel e Peter Norvig, Inteligência artificial: uma abordagem moderna (2009). Rio de Janeiro: GEN LTC, 2022. 4ª. ed.
4 As LLMs (Large Language Models) são modelos de inteligência artificial treinados com vastos dados da internet, a fim de entender e gerar texto. Popularizadas pelo ChatGPT, elas “aprendem” padrões de uso de palavras e frases; assim, ao receber uma entrada, preveem a continuação mais provável.
5 O termo “hackear”, no presente contexto, é utilizado em um sentido mais amplo de subversão criativa de sistemas ou expectativas, extrapolando sua origem no campo da computação.
6 A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é reconhecida oficialmente desde 2002 como a língua utilizada por comunidades surdas no Brasil
7 No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) considera a íris um dado pessoal de alta sensibilidade. Diferentemente das digitais, que podem falhar ou ser replicadas, a íris oferece a forma mais precisa e segura de identificação humana. No início de 2025, casos de pessoas na cidade de São Paulo que aceitaram escanear suas íris em troca de criptomoedas geraram debates nas redes sociais e no Congresso Nacional.
Conversa com T-Michael
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung
Conversa realizada em abril de 2025.
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung: Boa tarde. E sejam bem-vindos ao último dia da quarta Invocação da 36ª Bienal de São Paulo. É um grande prazer vê-los todos aqui. Eu gostaria de começar com uma palavra de agradecimento. Como sempre, quando chegamos a um espaço, nós agradecemos as pessoas que cuidam dele.
Professor Kenji, obrigado pela hospitalidade. Obrigado por nos ceder este espaço. Acho que isso merece uma salva de palmas, por favor. Muito obrigado a Andrew Maerkle por suas palavras tão comoventes. Elas de fato me tocaram profundamente. Nós fazemos essas coisas porque elas importam para nós. Não estamos fazendo isso pela arte em si. Estamos fazendo isso pela humanidade, pela sociedade. Obrigado por abordar esses destinos tão incríveis.
Obrigado também a Kanako Sugiyama e a todos aqueles que estiveram envolvidos nos preparativos para essas Invocações, todas as pessoas nos bastidores que tornaram isso possível – Tomoya Iwata e muitos outros. E à equipe da Bienal, em São Paulo, que está nos apoiando a distância. E obrigado, Arai, pelos magníficos poemas que você acabou de ler.
Foi bonito partir do tear para falar sobre roupas, design, moda, para falar sobre arte. E fiquei particularmente contente por conversar com alguém que considero um dos maiores artistas de nossa época. Um metamorfo. Alguém com um incrível senso de beleza. Não lembro quem falou isso recentemente. Mas há poucas semanas eu estive em Paris com o [curador e autor] Simon Njami. E perguntei a ele: “O que você tem feito ultimamente?” Ele disse que estava escrevendo sobre beleza, e que era uma das coisas mais radicais para se fazer nesses tempos. Acho que é o que você vem fazendo há muito tempo, T-Michael. É um grande prazer estar com você.
Vou começar lendo uma espécie de introdução a T-Michael. Uma breve biografia. Quando pedi a ele que me enviasse uma biografia curta, ele me mandou cinco versões. Uma muito breve. Outra intitulada “Art Speak” [Palestra sobre arte]. Outra, mais longa, e assim por diante. Então, escolhi a versão longa, porque você precisa entender o que a pessoa faz se tem que ouvi-la falar. Portanto, vou ler para vocês e depois fazer perguntas.
Vamos percorrer diversos assuntos. É também importante dizer que essa conversa que teremos hoje poderia ser uma
conversa em um bar. Então, se imaginem como pessoas em uma mesa de bar, participando de nossa conversa ou apenas ouvindo. Aqui vai a versão longa.
T-Michael é um alfaiate, designer e artista multidisciplinar ganês-norueguês que vive em Bergen, na Noruega. Com mais de vinte e nove anos de experiência, ele é conhecido por sua abordagem conceitual da alfaiataria, combinando artesanato tradicional com estéticas modernas. Suas obras se expandem em múltiplos projetos criativos, incluindo a T-Michael, seu selo homônimo que se dedica a alfaiataria e roupas masculinas com um claro toque inovador; a Norwegian Rain, sofisticada marca de casacos que alia cortes elegantes a funcionalidade técnica, especializada em estilosos trajes impermeáveis; a T-Kimono, uma abordagem contemporânea do clássico quimono japonês, mesclando tradição com silhuetas modernas e artesanato; a Film Lab, uma plataforma para a produção de curtas que reflitam sua visão artística e suas narrativas; e a T-Creative Spaces, um centro de exploração e promoção de criatividade através de várias disciplinas. Embora a obra de T-Michael tenha profundas raízes nas tradições da alfaiataria, ele sistematicamente desafia normas, redefinindo a alfaiataria com uma narrativa cultural e artística. Sua meticulosa atenção aos detalhes e seu compromisso com uma construção impecável diferenciam seus projetos, tornando-o uma força marcante na moda e no design contemporâneos. Escolhi ler esta versão de sua biografia porque me soou como poesia. As outras eram muito banais. Esta faz jus a você. Assim, obrigado, T-Michael, por aceitar nosso convite.
T-Michael: Obrigado por me convidar. É um prazer.
BSBN: Escrevi algumas perguntas e vamos tentar segui-las. Sem dúvida, acabaremos nos desviando dessa linha, mas tudo bem. E a primeira é: eu gostaria que você começasse falando de sua biografia, por meio de algo que eu gostaria de chamar de biografia cartográfica. Uma biografia que mapeia e conecta Gana ao Reino Unido, à Noruega, ao Japão e outros lugares. Como T-Michael entrelaça essas diferentes geografias?
T-M: Boa noite. Que bom ver tantas pessoas bonitas aqui. E espero que possamos ter uma ótima conversa. Espero que possamos nos comover mutuamente de alguma forma. E que todos saiamos
daqui nos sentindo um pouquinho mais revigorados do que quando chegamos.
Agora, quanto à sua questão. Normalmente digo às pessoas que estou a caminho do Polo Norte. Nasci em Gana. Me mudei para Londres. Passei meus anos de formação por lá. Depois, me mudei para a Noruega –o amor me levou para lá. Eu me apaixonei por uma linda mulher e ela era norueguesa. Depois de morarmos um tempo em Londres, ela resolveu voltar ao seu país.
Achamos uma boa ideia tentar, então fomos para a Noruega. Em retrospecto, eu diria que a mudança para a Noruega praticamente formou a maneira como vejo tudo hoje em dia. O fato de eu ter me mudado duas vezes, de Gana para Londres e de lá para a Noruega, me deu a capacidade de me distanciar do que está à minha volta e ter um olhar diferente para tudo isso. E esse olhar é um dom, eu diria, porque às vezes você se confunde no meio das coisas.
BSBN: Agora nos leve para outro lugar com isso. Dizem que nossa primeira pele ou primeiro lar é nosso corpo. E a segunda pele é aquilo que vestimos. A terceira pele, nosso apartamento, nossa casa, e assim por diante. Em um dos episódios da série de Bella Freud, Fashion Neurosis, com Eric Cantona, o astro do futebol, ele fala sobre a importância de se sentir bem no próprio corpo. Mencionei isso hoje mais cedo.
Em francês, diante da pergunta “comment tu te portes, comment vas-tu?” [como vai?], a pessoa diz, “je me porte bien”, literalmente algo como “eu vou me levando bem”. Queria que você falasse sobre essa negociação entre o espaço primário (a primeira pele) e o secundário. Como se chega a esse ponto de “je me porte bien” com roupas, com tecidos?
T-M: Do ponto de vista de um criador, gosto de pensar que nós criamos com base em nosso conjunto de habilidades e em nossa visão de futuro. Nós criamos roupas bem cortadas, que lhe darão esse suporte. É uma coisa matemática. Existem números, existem cálculos. Mesmo se a roupa for mais solta, se estiver bem cortada ela cairá bem em você e lhe dará esse suporte. A roupa o abraçará bem. Isso eleva a pessoa e dá a ela um ar de se sentir bem no próprio corpo. Essa é a primeira parte da coisa. No momento em que se obtém isso, é mais fácil transformar isso em pensamento e se tornar capaz de se apresentar bem diante de outras pessoas.
Penso que se vestir bem, da forma que for, mostra que você respeita as pessoas à sua volta. Se alguém o convida para jantar em casa e passa o dia todo cozinhando algo excelente, você pelo menos vai querer se apresentar de forma um pouco decente. Para mim, isso é também parte do motivo de eu fazer o que faço.
É o que me dá a oportunidade de conseguir refletir e espelhar meus pensamentos nas minhas roupas. Amo a tradição. Penso que a tradição estabelece o caminho para tudo o que fazemos. Mas, ao mesmo tempo, se não desafiamos a tradição, se não tentamos mudar as coisas, então, na prática, as coisas apenas se congelam e desaceleram. A própria tradição simplesmente se dissolverá, porque continuar fazendo aquilo não será mais empolgante para ninguém. A tradição se torna redundante.
O fato é que precisamos sacudir as coisas. Precisamos criar esse espaço em que a tradição possa ser desafiada. Ao longo do tempo, esse desafio vai mantê-la viva, porque ela reflete um pouco do contemporâneo. Com o [passar do] tempo, ela vai se cristalizar naquilo que, para a geração seguinte, espera-se que a tradição seja.
BSBN: Há esse equívoco de que a tradição é algo do passado. Considerando que a tradição existe, ela sempre esteve no presente. A tradição deve ser dinâmica. Para mim, a prática de pensar com a tradição, para além da dicotomia da tradição versus o moderno, seja lá o que isso queira dizer, é pensar em continuidade. Todos viemos de algum lugar. Todos temos que nos situar dentro de espaços e histórias particulares.
Acho que, sim, a tradição não pode ficar no passado. Não pode ficar para trás. Na verdade, a tradição está à frente de nós. Para todo designer de moda, o momento da apresentação de uma coleção na passarela ou em um espaço expositivo é um dos momentos mais importantes. No meu tempo livre, gosto de assistir a essas apresentações de muitos de seus colegas.
Não consigo deixar de pensar que, caminhando pelos mercados de Bamenda, Iaundé, Kumasi ou Acra, muitas vezes vejo roupas mais inspiradoras e sofisticadas e mais bem feitas do que nas passarelas de Paris, Londres ou Nova York. Sei que não precisamos pensar em termos tão binários. Gostaria que você pintasse para nós uma imagem das ruas e dos mercados de Acra, Kumasi ou alguns desses lugares e como talvez tenham provocado impacto em o seu trabalho.
T-M: Devo comentar o fato de que as passarelas são um resultado do capitalismo. Elas são criadas não apenas para a apresentação, mas para vender roupas. Elas são muito, muito bem calculadas.
Nas ruas e nos mercados de Acra, Kumasi ou aonde quer que você vá, as coisas são diferentes. Trata-se de autoexpressão. As pessoas estão nas ruas usando ou o máximo ou ainda muito pouco, mas naquele pequeno espaço de tempo elas estão portando o que acreditam ser a melhor representação delas naquele dia. Existe um ar de presença. Existe um ar de satisfação. Elas estão vendendo coisas que adoro ver nas ruas aonde quer que eu vá.
É o modo como as pessoas combinam suas roupas, porque somos muito diferentes. O modo como as pessoas combinam suas roupas vai contar um pouco, talvez, sobre a sociedade em que elas vivem, de onde elas vêm, e assim por diante. De certa maneira, o que eu procuro é olhar para todas as coisas que penso que não se encaixam, porque, para mim, moda é isso. Qualquer coisa que não se encaixe é o que, para mim, é o certo. Eu me interesso muito por aqueles que ousam não se encaixarem.
BSBN: Um dos poucos motivos que me faziam ir à igreja aos domingos era para ver o desfile. Acho que as pessoas iam à igreja para isso, para se apresentarem.
T-M: Elas ainda fazem isso.
BSBN: Evidentemente, para se apresentarem para algum Deus, mas também umas para as outras. A forma como essas mulheres
enrolavam tecidos ao redor do corpo, os arranjos de cabeça, os detalhes, os brincos, os anéis, e assim por diante. Era como se cada pessoa fosse uma peça de arte montada. Eu me interesso por isso. Às vezes, vejo os designers e sinto falta de tudo isso. Sinto falta de toda essa ousadia, de buscar o choque de cores, de formas, de conceitos de beleza.
T-M: O problema é que, enquanto há pessoas lutando pelo pão, outras estão lutando pelo dinheiro. Quando grandes empresas são donas de praticamente tudo, isso significa que elas precisam sempre ganhar muito dinheiro para se manterem em atividade. Sim, existem alguns poucos designers que sacodem a moda estabelecida e criam coisas brilhantes, mas não é aí que vamos encontrar inspiração.
A inspiração são as pessoas que possuem negócios independentes, pessoas que expõem as próprias emoções, pessoas que são supercriativas e não querem tentar se encaixar. Novamente, eu sempre digo isso. Em primeiro lugar, você precisa obter conhecimento. Precisa entender os fundamentos do que está fazendo, porque o conhecimento dá a oportunidade de conseguir bagunçar as coisas. A partir do momento em que você entende como uma coisa funciona, é mais fácil brincar com ela. Em primeiro lugar, uma grande fundamentação.
BSBN: É por isso que você se cerca de outras pessoas criativas, outros artistas? Vejo muitos músicos, pintores, escultores em seu universo.
T-M: Sem dúvida. Pelo que estou dizendo, acho que você provavelmente entende que não busco inspiração na roupa ou na moda. Na verdade, não acompanho de fato nenhuma tendência da moda. Estou mais interessado em pessoas criativas.
Como você disse, músicos, escultores, ceramistas, qualquer coisa que é criada a partir da mente de alguém através de suas mãos, do coração para a mão, é o que me inspira. Porque quando vou assistir à apresentação ou à exposição de alguém e me sinto inspirado, quero voltar correndo para casa e criar algo belo, pois é nisso que reside a magia. Uma pessoa pode vir ao meu espaço e ter esse brilho no rosto, algo que é muito difícil de se ter, mas, quando você consegue isso, aí está a satisfação.
“Então, aquele artista nigeriano-estadunidense”… Calma, respire. Agora vá e veja o trabalho de outra pessoa. No momento em que você vê aquilo, aquilo lhe dá uma urgência para criar algo que também é poderoso. Isso é o que me inspira. As pessoas são pessoas aonde
quer que você vá. Se você se conecta com o ponto de vista das pessoas, tudo se abre como uma flor. É aí é que está a magia.
BSBN: Bem, lentamente, temos que encerrar, e acho que seria injusto terminar esta conversa sem fazer a pergunta crucial que todos aqui querem fazer, que é: por mais belos que sejam esses paletós, esses T-Kimonos, essas camisas e calças que você faz, essas roupas são caríssimas. Então, a pergunta é: como podemos na prática pagar por uma peça T-Michael? Faço essa pergunta também em relação à sustentabilidade.
T-M: Sim, é uma bela pergunta. É, na verdade, uma pergunta belíssima, porque a questão é que, quando as coisas são bem-feitas, elas de fato tendem a custar um pouco mais. Leva tempo para desenvolver essas ideias. Leva tempo para conseguir os tecidos certos. Os tecidos são muito bem-feitos. Toda a tecnologia por trás… nós já conversamos sobre isso. Tudo é feito para durar. Por mais que eu faça roupas, na verdade meu interesse não é que as pessoas fiquem comprando de mim. Quero que elas tenham uma peça, e quero que elas usem essa peça o máximo que puderem até que ela acabe. E depois elas podem remendá-la também. Existe uma certa dose de… eu vejo isso como uma forma de arte.
Não se trata de comprar um casaco no fim de semana e depois comprar outro para o fim de semana seguinte, e depois outro na outra semana. É uma questão de encontrar a peça que funcione para você, e realmente usá-la à sua maneira. Se eu encontrar você na rua e vir que ficou bem em você, isso será o bastante para mim, aí vou achar que fiz bem meu trabalho.
BSBN: Como nós conjugamos humanidade, Michael?
T-M: Acordando todos os dias e pensando: o que faz o mundo girar? O mundo gira quando pensamos que todos deveriam estar vinculados a nós de alguma forma. Qualquer negócio, não importa o que você faça, é sempre uma questão de pessoas. Quanto mais você se envolve com as pessoas, mais chance de sucesso terá naquilo que faz. Isso, para mim, é a base de qualquer forma de conjugação de humanidade. Muito obrigado.
Upcycling: uma tecnologia afetiva e política
Manauara Clandestina
Texto elaborado a partir de conversa entre a equipe da Fundação Bienal de São Paulo e Manauara Clandestina em 10 de abril de 2025.
Upcycling
Para mim, o upcycling1 foi uma revelação, porque eu vim desse contexto de achar que a moda eram as grandes marcas, as coisas caríssimas. O upcycling revelou-se como uma tecnologia de possibilidade e, de fato, uma política de vida, pois nada mais é do que reciclar o que era velho, o que foi deixado de lado ou que ia para o lixo, transformando-o em um novo produto, com outra cara e outro conceito.
Temos difundido essa palavra. Eu transmuto o que foi deixado de lado, renovando a ideia do que era aquilo. Então, faço uma análise também em relação ao corpo da travesti, uma análise do corpo da mulher preta cis, que, normalmente,
Pertencimento
Digo que a igreja foi a minha
Belas-A rtes, pois foi na igreja que isso tudo começou. Quando não tinha mais espaço lá para mim, percebi que eu tinha que voar –a vida sempre foi assim na minha cabeça. Sempre sonhei com isso. Quando eu era criança, bem pequena, falava para meus irmãos que um dia eu ia embora, ia morar sozinha em São Paulo. Então cresci e fui-me embora, de fato. Vivo as coisas que profetizei para mim quando era criança.
Na ânsia de pertencer a alguma coisa, a essa
se torna abjeto no contexto dessas relações racistas comuns ao cotidiano. Quando penso nisso, penso que é também uma maneira de lidar com esse corpo que é, de certa forma, negligenciado socialmente. Para mim, é um desafio trabalhar com upcycling e perceber as ligações que isso me traz. Não é só uma tecnologia de se vestir. É a forma como faço cinema hoje – um retalho de memórias afetivas que gravei com recortes de gravações antigas que acho que têm a ver. Pego essa trilha e monto através disso. Não está só no vestuário; o upcycling está no modo realmente de pensar e de lidar com meu cotidiano.
moda, a essa comunidade que não é a minha, que é dessa galera rica, fui acolhida pelo upcycling. E confesso que, na primeira vez que olhei, falei: “Que história é esta aqui? Isso é moda? Moda é Chanel, moda é Louis Vuitton”. Quando fui me enxergando nisso, percebi que é dessa forma que a sociedade nos trata. Ela não quer olhar para a cara da travesti. Não quer saber o que aconteceu. Ela quer ver a beleza disso. E olha lá.
É como uma autoanálise, até. Estou fazendo isso porque tenho amor por essa prática, mas,
sobretudo, porque tem muito de mim nisso. Quando assumo que meu ofício como artista vai ter o lixo como base, é também quando abraço minha infância pobre na igreja, com as irmãs do círculo de
oração e minha mãe. Vou refazendo um ciclo afetivo, só que do meu lado, do meu lugar, do meu território. Já não mais dentro de um território cristão, na igreja e tudo, mas ainda sendo a filha da minha mãe.
Encruzilhada afetiva
Digo que meu trabalho é coletivo. Quando conheci a Vicenta Perrotta2 e o ateliê, eu estava numa situação bem vulnerável, entre a rua e o abrigo. Fui então abraçada pela costura e entendi que ali no ateliê também me estava sendo dada uma missão de afeto. Busquei que minhas práticas não fossem solitárias. Obviamente, nem sempre isso é possível, mas é a premissa do meu trabalho. Ele não existiria se não houvesse essa encruzilhada afetiva, porque é dessa forma que minhas coisas são construídas. Não tem como se construir um Migranta3, por exemplo, falando de uma experiência solo de imigração. Até porque não fui a única travesti destratada daquela forma no aeroporto de Barcelona. Quando morava lá, depois de um tempo, conheci outras travestis, brasileiras, que me relataram terem passado pela mesma situação no aeroporto. Ou seja, eles dão um choque para que você entre na cidade com medo. É uma política que instaura o medo. Nos primeiros dias na cidade, quando eu
via a polícia, tremia, assim como no Brasil. Sem essa afetividade coletiva, talvez eu não tivesse tido saúde mental para conseguir dialogar sobre esse atravessamento.
Não existem condições de eu criar uma teoria sobre o upcycling de maneira solo, porque é parte de um pensamento político coletivo. Você precisa conviver com essas pessoas, mostrar que o upcycling é possível. E, às vezes, a roupa não sai tão boa assim. Mas o convívio dentro do ateliê e as conversas que tivemos foram importantes para nos unirmos. Assim como meus pais, que ainda são missionários, tenho uma missão. Eles levam a Bíblia, e eu talvez leve o upcycling. É um meio que tenho para dialogar com as meninas. Assim como a fotografia. O upcycling é uma tecnologia, sem dúvida, que permitiu que eu me unisse a pessoas que estão no corre, que têm a ver com meu trabalho ou que têm a ver com minha resistência no mundo. Vou encontrando parte de mim nessas pessoas e processos.
Moda, consumo e comportamento
A moda, em si, é um estudo antropológico de comportamento. Eu, desde criança, sempre gostei muito de moda, e era muito ligada nisso, mesmo no interior do Amazonas. Sempre que eu podia, estava antenada. Já crescida, adulta, e trabalhando no ofício como artista, percebo que não tenho como compactuar com essa moda que cria uma agenda de tendências e é avessa à natureza e ao meio ambiente. É uma agenda racista, porque coloca a moda num lugar inalcançável de status. Não vi isso como opção para mim, seguir com esse pensamento e consumo dessa moda. Então, tenho seguido um caminho em relação ao upcycling, pois é uma tecnologia que faz sentido para mim, como travesti. É muito doido, porque você consegue ver quem é a pessoa pela forma como ela se veste. Não estou falando da marca nem nada disso. É sobre como ela se comporta em relação a esse consumo ou como
Estranhamento
O upcycling gera uma estranheza por não ter um acordo com um molde comum do que as pessoas vestiriam. Ainda gera muito desconforto entre as pessoas cis, brancas, que se criaram nessa ideia de moda branca, insustentável. Gera uma insatisfação nessas pessoas perceber que agora nós,
ela se mostra para o mundo. Sem dúvida, o upcycling me fez pensar muito nisso, pois ele, normalmente, não carrega os mesmos símbolos de uma moda comum.
Tudo isso está ligado, sem dúvida, à minha identidade também. Quando você identifica uma travesti, normalmente não é só pelo fator de gênero – você percebe como se veste, como se porta. Estou refletindo sobre isso. O caminho em relação a identificar esse lugar de pertencimento, sem dúvida, também atravessa o lugar do vestuário, de entender que, com essa tecnologia, você está pensando sobre o consumo e o meio ambiente, tem a ver com o seu corpo e com o que você vive no seu cotidiano também. Tenho tentado não mais negligenciar esses atravessamentos, até porque eles estão vivos em mim, no meu cotidiano. Eles são gerados a partir da forma como me visto, como me comporto com a moda.
travestis, que saímos das periferias, estamos levando “lixo” para esses lugares, de uma maneira que não vai mais poder ser negligenciada. Porque essas pessoas criaram esses territórios justamente para que não os habitássemos, e nós chegamos discutindo isso. É um retorno muito bom. De fato, existe uma tensão
quando você chega a um espaço de moda e arte, e as pessoas percebem que você trabalha com lixo.
No início, ouvíamos críticas muito duras de pessoas que não tinham ideia do que estávamos fazendo, e, às vezes, até nossas modelos eram barradas na entrada do evento. Fomos desbravando esse território “na raça”. Enquanto estilistas recebiam financiamento para fazer seus trabalhos – e trabalhos comuns, aquilo que sempre foi feito –, nunca tivemos apoio por trabalhar com lixo. Não era agradável aos olhos deles. E deveria ser totalmente o contrário. Deveriam entender que estávamos trazendo uma tecnologia, uma novidade, e abraçá-la. Mas não foi assim
Tecnologia
Tecnologia é ressignificar o lixo. Para mim, esse é o efeito maior do upcycling, que é quando você não negligencia mais o lixo. Porque pensamos assim: “Joguei fora e isso vai sumir da minha frente”. Mas quando enxergamos o lixo como possibilidade, isso ressignifica muita coisa. Tem um retorno imenso para o meio ambiente, mas, sem dúvida, o comportamento muda em relação ao consumo, a essa política que finge que não existe um colapso ambiental para a produção têxtil no mundo hoje.
O upcycling é uma tecnologia de vida, pois retorna
no começo. Foi um trabalho de paciência, de entender que aquele era só o início e que as coisas avançariam em algum momento. Existem outras travestis e estilistas que estão fazendo isso, inclusive levando a moda às suas periferias. E estão sendo levadas agora, por conta da transmutação têxtil, para oficinas, para lugares de educação. Para mim, já é um retorno maravilhoso perceber que não vamos nos calar. E nosso movimento é ancestral. Queremos que as pessoas repensem o que estão fazendo, o consumo e o lixo também, e a forma como nos relacionamos com ele. Queremos que repensem a forma do que acham que já é descartável.
para você um novo pensamento em relação ao seu corpo, ao que você está vestindo e à forma como se mostra para o mundo, mas, sobretudo, permite um compromisso pessoal em relação ao território e ao mundo em que você vive. Essa prática é até uma terapia para mim, como travesti, lidar com esse descaso em relação à população trans, à população preta. Percebo que existe uma potência imensa nessa tecnologia e que ela é rejeitada justamente por não ter esse pacto do consumo, esse pacto que a moda tem, essa coisa do inacessível ou do que é para poucos. É como
se a moda e essas coisas finas estivessem distantes da nossa realidade, quando, de fato, o que
Migranta
A obra Migranta (2021) surgiu depois da minha primeira residência artística em Londres, a primeira fora do Brasil, que foi na Delfina Foundation. Já havia um elemento na minha cabeça que estava mexendo muito comigo, que era a roupa do trabalhador da construção civil. Isso tinha começado aqui em São Paulo. De alguma forma, essa estética sempre me atraiu. E fui entendendo, compreendendo, me relacionando, de alguma forma, com esses homens. Inicialmente, lá atrás, ainda como prostituta, e depois já como artista, fui percebendo que era como uma indumentária de imigração. Que os homens que estavam trabalhando com essas roupas não eram da cidade onde eu estava. Eram todos migrantes vindos do interior de São Paulo, mas também oriundos do Nordeste e do Norte. E, no caso de Londres, provenientes do Leste Europeu. Quando acabou a residência em Londres, bati o pé e falei que não ia voltar para o Brasil. Queria fazer um filme sobre isso. Na minha cabeça, eu ia fazer um fashion film de upcycling que trouxesse a pesquisa dessa indumentária do trabalhador, do imigrante. Só que passei por um maltrato
precisamos pensar é: é isso mesmo que quero consumir para meu futuro?
no aeroporto de Barcelona e fiquei umas boas horas sendo interrogada, enfrentando uma situação horrorosa. Falo isso no filme. Migranta é, na verdade, uma vingança contra a forma como fui tratada no aeroporto. O que era para ser um fashion film se tornou um manifesto político também. Com o passar do tempo, fui tomando essa decisão e ganhando força, pois foi um coletivo de pessoas latinas que fez parte desse trabalho que tornou Migranta uma obra de família, de quilombo mesmo. Gravei Migranta com meu dinheiro da bolsa. Não foi um orçamento fácil. Até porque eu não teria condições de pagar todo o mundo que realmente trabalhou ali comigo. E trabalharam no meio de uma pandemia. Migranta tem uma força muito grande dessa vingança e de entender esse meu ódio. Porque ainda tenho muito ódio. Migranta foi uma das formas pelas quais eu talvez tenha organizado esse ódio. E também essa beleza, porque não deixei de fazer o upcycling. O upcycling, na verdade, foi o elo para as pessoas chegarem, trazerem coisas e costurar.
Migranta me dá uma esperança muito grande por não ser só um filme; ele se tornou um movimento mesmo que eu deixei para
Barcelona, uma house de vogue lá em Barcelona, de uma família só de artistas latinos. Migranta se tornou também um coletivo de performance de artistas latinos que estão trabalhando na Europa e se apresentando.
Futuro
Sou o futuro. Vivo no futuro. Estou no futuro. Estou dialogando sobre uma estratégia para o agora. Agora, para mim, já é o futuro. Vivi muitas vidas já nesta. Então, dialogo com o futuro. O futuro não teria como existir sem Xica Manicongo.4 Não teria como existir sem minha mãe e as senhoras da igreja, que recolhiam móveis velhos pelas ruas e, juntas, numa oficina, refaziam e distribuíam entre elas. As travestis e as pessoas pretas já têm essas tecnologias para esse futuro. Somos tolhidas desse futuro, mas vivemos esse futuro agora. E estou num futuro de travestis organizadas. E que, dessa vez, não vão parar até
Deixamos, de certa forma, um legado para a cidade. É uma coisa que gosto de me perguntar: o que pode um grupo de travestis organizadas? Pegamos esse ódio como motor e seguimos assim.
serem ouvidas e vistas. Vivo num futuro em que minhas antepassadas tiveram que sofrer muito para que eu estivesse aqui. A ideia de futuro, para mim, é mexer e me vestir, me ornar do que foi jogado fora de maneira indevida, do que foi deixado de lado. Minha ideia de futuro é entender que também sou uma possibilidade. Que não estou limitada a uma esquina ou à noite. Sou esse futuro. Sou o futuro também dessa geração que repensa a forma como se comporta em relação à vida, à arte. O futuro é agora. Não consigo pensar que o futuro seria, sei lá, 2040. Estamos em 2025, gente. Estamos vivendo esse futuro agora, sem dúvida.
1
O termo em inglês upcycling se refere ao processo de reciclar materiais e objetos descartáveis de modo a torná-los produtos de maior valor.
2 Vicenta Perrotta, artista e estilista nascida em Campinas (SP), em 1979, utiliza materiais reciclados, principalmente do descarte têxtil, para criar vestimentas com foco na transmutação têxtil, conceito criado por ela. Em 2013, fundou o Ateliê TRANSmoras, espaço que oferece capacitação em corte e costura para a comunidade trans, promovendo geração de renda e autonomia. Perrotta se considera uma artista que utiliza a moda para contar histórias e transformar, através de desfiles inclusivos, com performances e maquiagem pensadas para corpos trans. Para saber mais, ver: Jurandy Valença, “Vicenta Perrotta: ativismo, moda e autonomia ‘trans’”. Continente, ed. 247, jul. 2021. Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/247/vicenta-perrotta-ativismo--moda-e-autonomia-rtransr. Acesso em: jun. 2025.
3 A obra, apresentada na 60ª Bienal de Veneza – Foreigners Everywhere (2024), explora a vestimenta como um dos vestígios da passagem e da fuga da colonialidade, além de retratar uma experiência pessoal da artista no aeroporto de Barcelona, em 2021.
4 Xica Manicongo é considerada a primeira travesti do Brasil. Nascida no antigo reino do Congo, foi trazida para cá como escravizada na segunda metade do século 16. Perseguida pela Inquisição, sua história foi recuperada nas últimas décadas e se tornou símbolo da luta LGBTQIA+ no país.
Mel […] é uma espécie de saliva das estrelas, ou a umidade do ar.
– Plínio, o Velho, naturalista romano, século 1 d.C.
No inverno passado, em Berlim, todas as nossas abelhas morreram. Foram infectadas com o vírus da asa deformada (DWV, em inglês), espalhado pelo ácaro Varroa. O vírus deforma as asas das abelhas e prejudica suas funções cognitivas.
Cada colmeia abriga cerca de 10 mil abelhas. Durante esse inverno, todas desapareceram. Foi como se tivessem evaporado, do nada.
A abelha-de-mel ( Apis mellifera) é um inseto social, comunitário, eficiente e não individualista. A estrutura da colmeia muitas vezes é comparada à de um Estado totalitário. Uma única operária é capaz de sair voando até mil vezes por dia para coletar néctar. Ela trabalha um mês, depois morre. Todas as abelhas operárias são filhas da rainha.
Os machos, ou zangões [drones, em inglês], têm os olhos maiores. Isso mesmo, eles são conhecidos em inglês pela mesma palavra usada para se referir às aeronaves não tripuladas desenvolvidas por corporações, como a empresa de defesa israelense Elbit Systems. Essas aeronaves emitem um zumbido constante e grave durante o voo, um som que pode ser irritante. O termo inglês drone foi inspirado na Queen Bee, uma aeronave sem piloto produzida pela Marinha britânica, em 1935.
Hoje em dia, os filhos do Império britânico estão usando a tecnologia dos drones para matar na Palestina, uma terra que um dia eles colonizaram.
Este mel [aqui] foi feito por nossas abelhas entre a primavera e o verão do ano passado, antes que o vírus começasse a infectá-las. Elas trabalharam incansavelmente. Batendo as asas, elas engrossaram o néctar no calor do verão.
Eis o gosto da vida que se foi. Sim, o mel na sua cozinha foi produzido por abelhas que já não existem.
Em novembro de 2024, o Bundestag [Parlamento] alemão aprovou uma resolução contra o antissemitismo, o que, por sua vez, intensificou os ataques àqueles que defendem que o Estado israelense é um projeto de apartheid racial e aos que apoiam o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções). Em 2019, o Bundestag já havia declarado que o apoio ao BDS é caracterizado como antissemitismo, estimulando as instituições a negar financiamento e espaço a qualquer um que apoie o boicote.
Hoje, como parte de sua Staatsräson, ou “razão de Estado”, a Alemanha apoia incondicionalmente Israel, e qualquer crítica ao governo israelense é peremptoriamente tratada como antissemitismo. O povo alemão continua calado.
Qualquer um que proteste contra os massacres sendo cometidos pelos militares israelenses em Gaza, que se oponha aos assentamentos ilegais na Cisjordânia ou que expresse solidariedade à Palestina é marcado como “antissemita” – mesmo que seja judeu. Os judeus que criticam a política de Israel são chamados de “maus judeus”. É como se a Alemanha – o mesmo país que orquestrou o Holocausto e assassinou 6 milhões de judeus –agora reivindicasse o direito de decidir quem é um “bom judeu” ou não.
Em 2022, fiz um curso de apicultura. Lá, conheci pessoas diferentes: a maioria eram homens mais velhos, aposentados, e alguns da minha idade, bebendo Coca-Cola em garrafas plásticas. A preocupação deles não eram os pesticidas, a privatização da água ou os microplásticos, mas a produção de mel. Para eles, abelha é gado.
O Zyklon B, originalmente um pesticida, foi usado pela Alemanha nazista no início de 1942. Dezenas de milhares de toneladas foram usadas só em Auschwitz-Birkenau, onde 1,1 milhão de pessoas foram assassinadas. Visitei Auschwitz pela primeira vez em março. As chaminés de tijolo se destacam entre as ruínas. Os edifícios foram destruídos para apagar evidências. Mas as chaminés ficaram, ainda apontando para o céu.
A Bayer, gigantesca empresa química e farmacêutica alemã, fazia parte da IG Farben, que produzia o Zyklon B. Nos anos 1940, a Monsanto fornecia sacarina para a Coca-Cola; mais tarde, desenvolveu o Roundup (glifosato) e modificou geneticamente as sementes de soja e de milho. Em 2018, a Bayer comprou a Monsanto. Depois de 7 de outubro de 2023, a Bayer hasteou a bandeira de Israel em sua sede em Berlim.
A Bayer é também um dos maiores produtores de inseticidas neonicotinoides, como a imidacloprida e a clotianidina, responsáveis pela morte em massa de abelhas. Em 2006, houve relatos da síndrome do colapso das colônias nos Estados Unidos. O fenômeno é
associado à neurotoxicidade desses pesticidas, que desorientam as abelhas e impedem que elas voltem para suas colmeias.
Em 2023, depois de finalizar o curso, comprei duas abelhas-rainhas e suas filhas de um apicultor à margem de um lago em Berlim.
As abelhas forrageiras coletam o néctar das flores usando sua probóscide, armazenam-no em seus sacos de mel e passam-no pela boca para as abelhas operárias, que as estão esperando na colmeia. As operárias então fazem evaporar a umidade do néctar batendo suas asas. Enzimas da saliva das abelhas quebram a sacarose do néctar em glucose e frutose. Quando a umidade chega a 20%, as operárias selam a colmeia com cera. O resultado –80% de açúcar – é quase imperecível.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, as abelhas polinizam mais de um terço das safras globais. Mas com a destruição dos hábitats, infecções e mudanças climáticas, os insetos polinizadores estão desaparecendo – para serem substituídos pela polinização artificial. Essa mudança terá um impacto profundo no fornecimento global de alimentos.
O silêncio da Alemanha sufoca seus imigrantes. Depois de 7 de outubro de 2023, a máscara caiu. A Erinnerungskultur – “cultura da memória” – do país se revelou vazia. A ideia era que o povo alemão confrontasse os crimes nazistas e falasse abertamente sobre eles. Eles cultivariam sua imaginação para garantir que os erros do passado nunca mais se repetissem. Mas, na verdade, o que aprendemos nesses oitenta anos?
Quando dezenas de milhares de pessoas se reuniram no portão de Brandemburgo para protestar contra a ascensão da extrema direita, elas não viram a islamofobia e a arabofobia dentro de si mesmas. Elas protestaram contra o fascismo dentro de casa, mas se calaram diante do apartheid e do colonialismo na Palestina.
Em março, trabalhadores da BVG, a empresa de transporte público de Berlim, entraram em greve por melhores salários e condições de trabalho. Enquanto isso, a Alemanha e a União Europeia expandiam seus orçamentos militares, buscando estimular a economia através da guerra, ignorando o efeito disso nas vidas e no planeta.
Se Rosa Luxemburgo – revolucionária judia nascida na Polônia – tivesse sido bem-sucedida em sua revolução democrática e anti-imperialista de 1919, o Holocausto talvez nunca tivesse acontecido.
Em uma carta de 1898, enviada pouco depois de se mudar para Berlim, Rosa escreveu sobre a cidade:
Fria, sem graça, massiva – um verdadeiro quartel militar –e os queridos prussianos com sua arrogância, como se todos tivessem engolido o porrete com o qual um dia foram espancados.
Mais de um século mais tarde, Berlim parece a mesma. A atmosfera em 2025 lembra a dos tempos de Rosa Luxemburgo – um Estado policial cercado pelo partido de extrema direita, a AfD [em português, Alternativa para a Alemanha]. O mesmo “porrete” de que Rosa falava – mais uma vez, a Alemanha o engoliu. Hoje a polícia brande esse porrete contra manifestantes que denunciam o genocídio de palestinos. Aqueles que continuam calados parecem se manter de pé como se suas colunas tivessem se fundido ao porrete.
Rosa Luxemburgo se opôs à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), lutou pela emancipação dos trabalhadores e, ao lado de seu colega socialista Karl Liebknecht, foi uma das líderes da Liga Espártaco, grupo socialista radical e precursor do Partido Comunista Alemão. Em 1919, após um levante fracassado, Rosa e Karl foram detidos. Karl foi espancado e baleado. Rosa foi espancada, baleada na cabeça e atirada em um canal – seu corpo ficou perdido por meses.
Em 1926, o arquiteto Ludwig Mies van der Rohe construiu um monumento de tijolos. Ele disse: “Como [eles] foram baleados diante de um muro de tijolos, um muro de tijolos foi o que eu quis construir como um monumento”.1
Em 1935, os nazistas destruíram o monumento. Os escritos de Rosa foram queimados.
O nome de Rosa continua vivo – como uma estação de metrô na linha U2 de Berlim, como nome de uma rua e como uma pequena praça em frente do teatro Volksbühne.
Por que a Alemanha não conseguiu deter o Holocausto? Por causa do silêncio – porque “nós não sabíamos”. E agora isso está acontecendo mais uma vez.
Todas as manhãs eu caminho pela Torstraße, em Berlim, com meu filho até o ponto de ônibus da Rosa-Luxemburg-Straße. Todos os dias, nós caminhamos em direção a seu nome – a mulher que defendeu a classe trabalhadora, que se opôs à guerra e foi brutalmente executada em 15 de janeiro de 1919. Quando nos aproximamos da esquina, meu filho fica procurando adesivos colados nos muros e postes. “Olha, mamãe, ali tem um”, ele aponta. “Palestina livre.” Mesmo aos sete anos, ele sabe que dizer a palavra “Palestina” na Alemanha significa escolher cuidadosamente o momento. Encontrar esse adesivo é como encontrar um tesouro. “Lá está outro!”, ele sussurra com excitação. Os adesivos são de melancias, bandeiras palestinas2 – símbolos de solidariedade.
Deixe que a saliva das abelhas que não existem mais goteje sobre esses tijolos cozidos. Pegue aquilo que nunca foi dito, moa como grãos de centeio, misture com sua própria saliva – e engula.
1 Ludwig Mies van der Rohe, apud Nathaniel Flakin, Revolutionary Berlin: A Walking Guide. Londres: Pluto Press, 2022, p. 67.
2 A melancia tem sido usada como símbolo da Palestina pelo fato de que, quando cortada, apresenta as mesmas cores de sua bandeira nacional: vermelho, preto, branco e verde. Ver “How the Watermelon Became a Symbol of Palestinian Solidarity”. Time, 20 out. 2023. Disponível em: https://time. com/6326312/watermelon-palestinian-symbol-solidarity. Acesso em: maio de 2025. [N.E.]
Tecnologia ancestral: oralidade, memória e espiritualidade
Gê Viana
Texto elaborado com base em conversa entre a equipe da Fundação Bienal de São Paulo de São Paulo e a artista Gê Viana, em 10 de abril de 2025.
Gê Viana
Radiola de Promessa, 2022
Da série Atualizações Traumáticas de Debret
Impressão digital em papel algodão 29,7 x 40,2 cm
Galeria Superfície
Prelúdio
Este é o primeiro trabalho1 em que não vou usar arquivos coloniais. É uma Invocação bem doida que me foi dada. E eu pensei: como vou desenrolar isso? Qual seria outra forma de ver esses arquivos, de interagir com o meu arquivo fabulado durante esse percurso de tantos anos?
Quando o Thiago [de Paula Souza] propôs que eu
não usasse essas imagens, que ele chama de “fantasmas”, acabou me tirando de um eixo já muito confortável. Porque hoje em dia a gente sabe que existe uma prática muito frequente da colagem e da fotomontagem a partir das imagens históricas dos viajantes que chegaram ao Brasil no período colonial, que eu gosto de chamar de “visajantes”, que é tipo uma visagem meio viajante.
E então, quando comecei a pegar as imagens desses viajantes, senti uma certa dificuldade de produzir Atualizações traumáticas de Debret, 2 porque a série parte dessa pintura feita pelos viajantes do período colonial que registra um modo ainda muito precário dessa população. Na minha prática da colagem, há essa miudez, há a criação das indumentárias, e uma coisa que se vê na maioria dessas litogravuras realizadas por esses homens é que as pessoas estão sempre com o rosto para baixo. Então, nas minhas colagens, eu tento levantar esse rosto. Não tem o olhar dessas pessoas, essas pessoas não são apresentadas com o olho vivo nessas litogravuras, nessas aquarelas, então o que eu faço é um esboço do que pode ser uma ancestral antiga.
Comecei a produzir a série Atualizações traumáticas de Debret, mas, depois, deixei de lado, porque já não era sobre Debret, já era Radiola de promessa. Esse povo
quilombola, originário, que se apresenta nas minhas colagens… Não é mais a obra do Debret, é a colagem da gente, é a nossa história, é se apropriar também de uma autoria nossa que não precisa mais ter essa articulação com os viajantes. Esse novo trabalho que apresento na Bienal reflete um momento da minha vida que me permite retratar, dar protagonismo a essas pessoas. Obviamente, é importante pensar nesse arquivo como algo do qual podemos nos apropriar, e sobre o qual podemos refletir fora da narrativa colonial. Isso é algo que venho problematizando muito no meu trabalho.
Nossos antigos jamais deixaram de comemorar, de vibrar, de festejar. Então, por que isso não é apresentado para nós dentro dessa narrativa? Esse foi o estopim para que eu começasse a usar essas imagens. E acho que a resistência está aí mesmo. Está em assimilar a vida de uma forma bonita, de uma forma afetuosa.
Colagem das vozes
Eu entendo essas imagens coloniais como um ponto de partida para entender minha ancestralidade. Por exemplo, a série Paridade junta um corpo de uma pessoa de um povo originário da América Central com o rosto de alguém daqui do Maranhão, ou da Amazônia. Acho que
minhas colagens provocam um sentido histórico desse cruzamento das populações negras e indígenas. Tanto no sentido de despertar algo relacionado ao lugar das parecenças, como de provocar algo muito mais importante, que é a história dessas pessoas ou como duas histórias se cruzam.
Gê Viana
Sem título [Mantinha Marques], 2021
Da série Paridade
Fotomontagem impressa em papel jornal
Primeira camada: Mantinha
Marques em Urbano Santos, Maranhão, fotografada por Gê Viana
Segunda camada: Koon-za-ya-me, Female War Eagle [Águia de guerra feminina], de George Catlin (1844) 180 x 120 cm
A partir de Paridades, eu começo a entender o que posso produzir em relação à minha ancestralidade. Começo a entender a história da retratada, dona Mantinha, e de sua família, e que isso também tem a ver com a história da minha família. Não conheci a família dela; mas somos do mesmo povo, nossas histórias têm um laço umbilical, histórico, territorial, como um rio que conecta memórias.
O termo “remixar a imagem” é da experiência que eu tenho com minha família,
que passou boa parte da vida trabalhando em uma roça que era para nosso sustento. Quando você planta, e está diante de um fruto, de uma árvore, de uma coisa que é sua, que sabe que foi você que plantou, consegue criar uma conexão com essa planta, com esse território. Acho que minhas colagens são isso, cada colagem é uma conexão, uma história, um podar, são ramais de tempo que vou costurando.
A ferramenta da colagem é muito prática e muito fácil no início. Mas, ao mesmo tempo, quando a pesquisa ganha corpo, você começa
a sentir certa dificuldade, porque está criando uma história. Sou viciada na colagem. Antes, eu só pegava a imagem e ia colocando outras camadas de imagens. Agora não, agora é o caminho inverso: acho que, primeiro, vem a literatura, principalmente do Maranhão; eu me debruço muito na intelectualidade negra maranhense, de pessoas como Mundinha, Maria Aragão, professor Carlos Benedito e outras referências. Minhas colagens se conectam com as temporalidades das encantarias,3 dos terreiros, dos quilombos. Boa parte do que está na minha colagem se apresenta dentro desses espaços de sociabilidade. É um pouco difícil de entender meu trabalho fora desse lugar, desassociado dele. As pessoas da tradição do tambor de mina, do terecô, do tambor de crioula4 conhecem meu trabalho, e muitas vezes conseguem se conectar com essa história. Mas minha produção também está num outro nível, que é um estágio que só eu posso imaginar, que só eu posso conduzir, e então vou criando, vou entendendo esses lugares, esses tempos.
Posso dar um exemplo muito vivo dentro da minha prática, que é falar sobre dona Maria Dalva (Dadá), do quilombo Santa Rosa dos Pretos. Ela certa vez me disse: “Minha filha, a força da mina vem da cabeça, tudo que eu sei vem da cabeça”. Minha colagem mais recente foi criada junto com a Dadá, que é uma
mestra da mina. Ela me ajudou no fazer dessa colagem, mas isso não aparece; e, mesmo assim, sua presença está lá. Quando penso em tecnologia ancestral,5 parto desse ponto da espiritualidade, de um ambiente comum, afetivo e orgânico.
Radiola de promessa, que é o embrião do trabalho que vai estar na 36ª Bienal, se apresenta dentro de um tambor de mina, porque, ao mesmo tempo que as pessoas estavam carregando radiolas,6 estava acontecendo uma roda de caixeiras do Divino Espírito Santo, que cantavam músicas para o Divino. Então, naquele momento, veio à minha mente uma litografia de Debret, que retrata homens escravizados carregando uma mercadoria para um senhor, dono de um mercado grande lá no Rio de Janeiro. Fiquei doida para ir para casa, porque eu queria muito chegar e produzir essa imagem; ela veio para mim muito forte. E talvez tenha uma relação muito intensa com as liturgias que Maria Dalva canta. Quando olho para essas imagens, fico pensando nessa presença. Que povo é esse que estabelece uma conexão espiritual tão grande com Dadá, que faz ela cantar em um dia tantas liturgias, tantas doutrinas? E será que esse povo da Dadá não é esse povo que eu estou retratando? São fabulações que vou criando também. Então, esses lugares vão sempre me dar base para fazer, para criar, para contar essas histórias.
Memória sônica
A música está totalmente presente nesse trabalho da Bienal. Dona Maria Dalva é uma mulher que canta muito, carrega muita doutrina na cabeça; são músicas mineiras que também me fazem pensar nas antigas lá da Casa da Mina,7 ou da população africana oriunda do reino de Daomé,8 que chegou ao Maranhão com suas tecnologias, sua língua e sua cultura. Fico pensando no cruzamento que mais uma vez aparece, agora com o reggae, aqui em São Luís. A gente não fala inglês, não sabia exatamente que música era aquela, e a entendia como uma música internacional; as imagens não existiam, mas a gente foi recriando essa música em nosso território – sabemos como ela envolve nosso corpo quando a radiola toca. A gente só consegue dançar agarradinho, consegue criar toda uma dinâmica cultural e política de resistência em grupo, tão presente nas populações negras. A gente foi rodando, rodando, rodando, até criar um corpo
Alcântara
No período colonial, a cidade de Alcântara, no Maranhão, ficou marcada economicamente pela produção de algodão e de cana. Com o declínio dos grandes fazendeiros, as pessoas se juntaram novamente e
apresentado, um corpo muito nosso, único. Porque, na década de 1970, não tinha essa tecnologia digital, da TV, das imagens do que rolava na Jamaica.
A radiola é só um elemento para falar dessa história, porque, na verdade, o que está em torno dessa história, o fazer dessa história são as pessoas. Quando eu cheguei ao quilombo Mocajituba, em Alcântara, percebi que boa parte das pessoas que fazem a festa de São Benedito (da família de dona Maria Clores)9 dançam tambor, depois dançam a radiola, segurando São Benedito; são as pessoas que também estão em casa dançando, recebendo suas entidades. Então, eu penso nesse tempo muito circular, e a radiola é só um instrumento para que as coisas aconteçam de forma mais digna. A radiola é um instrumento econômico, para além da festa, da diversão, do descanso e do corpo livre. Quero neste trabalho da 36ª Bienal apresentar uma narrativa mais íntima de arquivo.
voltaram para suas terras, e então começou novamente esse lugar que é compartilhado. Isso também é uma tecnologia, um modo de pensar, esse compartilhamento de terra que não tem cerca, não tem divisão. No começo dos anos 1970, muitas
comunidades quilombolas foram afastadas por causa da construção da base de Alcântara, ou Centro Espacial de Alcântara (CLA).10
Há ainda hoje uma resistência que busca a permanência da dinâmica anterior, com suas ritualísticas, sua religiosidade, motivada pelo desejo das pessoas de estarem em sua terra, pois ali estão enterrados seus entes antigos, ali está a pedra de cantaria, um ponto específico em que as pessoas rezam.
Alguns querem a base lá, com a justificativa de que é para o desenvolvimento. Esses estão pensando no turismo. Mas outros acham que isso não é desenvolvimento, porque como essas pessoas vão pescar? Em determinados dias do mês, um foguete sobe, e isso afeta diretamente as marés, impedindo
Além da escola
Recentemente, entendi que essas imagens que produzo não são mais minhas. É claro que existe a autoria da Gê Viana, mas ela já ultrapassou esse lugar de arte intocável. Há crianças cortando, picotando, reatualizando minha própria atualização. Eu fui ao Rio de Janeiro, e uma professora me mostrou o trabalho de uma turma que tinha mais de vinte colagens baseadas em minha produção. Não consegui entender a dimensão daquilo no meu corpo. Esse é o futuro. O futuro é composto de
que as pessoas se aproximem do mar para pescar. É muito contraditória essa tecnologia apresentada ali. E sabemos muito bem que, caso aconteça o pior, todo o mundo afunda, porque, ali, é uma base de guerra. Mas também existe a fé de dona Miúda que diz: “Enquanto a gente puder estar aqui rezando, orando, fazendo nossas preces, a gente vai continuar”.
Então, é interessante pensar que, enquanto essas pessoas estão mexendo com uma tecnologia exorbitante, outras estão num outro lugar, de uma tecnologia da fé, da reza, do mato, do feitiço, de fazer benzimento. Não há nada maior do que a nossa fé. Eu sempre escuto desses antigos, enquanto eles tiverem fé, eles vão existindo.
outras pessoas pensando, remixando coisas que várias mulheres estão produzindo na arte com colagem. Tenho recebido convites para colocar minhas imagens em livros didáticos e revistas, e fico muito contente com o viés educativo que meu trabalho mobiliza. Esses livros didáticos estão sendo atualizados, e é legal entender que meu trabalho, hoje, tem sido usado para falar dessa outra história, porque é uma coisa que vou deixar para meus sobrinhos, os filhos deles, enfim, é pensar nesse futuro da imagem.
Minha formação é em licenciatura, mas aconteceu de eu me concentrar mais no âmbito artístico. A base da minha educação é a escola pública, e é importante ressaltar isso. Minha formação em artes visuais foi em universidade pública federal. Quando eu penso na tecnologia, nessas novas ferramentas digitais que se apresentam como sendo eficazes, talvez a gente pudesse problematizar o fato de como isso também pode ser prejudicial. Acho que a gente tem que tomar muito cuidado com a tecnologia. Hoje, muitas crianças utilizam o celular em sala de aula, e isso pode ser bom, de acordo com um contexto pedagógico.
Gê Viana
Tudo que há de bonito entre nós, 2024
Da série Sapatona
Colagem digital sobre Keïta, de Alex Agbalo
Impressa em fine art
100 x 80 cm
Acervo da artista
Mas como a escola pode organizar isso, para criar, expandir coisas dentro da instituição?
Outra dinâmica educativa que acho importante enfatizar é a própria rua, o próprio fazer artístico na rua – como os professores podem se organizar colocando esses alunos para produzir e pensar coisas também fora da sala de aula?
Eu gosto muito da série Sapatona. Quando comecei a apresentá-la, senti um impacto muito grande; às vezes eu estava colocando essas colagens na rua e era abordada pelas pessoas. A rua é esse lugar educativo; acredito muito que, quando coloco uma obra na rua, estou exportando para lá uma
plataforma de reflexão para a população, seja um grupo social que já tem relação com o assunto, seja um grupo que não se reconhece ali ou cuja religião não admite dois corpos lésbicos na rua entrando em contato com o amor, com o afeto e com o cuidado.
Uma ferramenta que é importantíssima no fazer educativo, e que tenho certeza de ser eficaz, é o uso do lambe-lambe.11 Não estou nem criticando a ideia da arte dentro do livro, mas, na rua, há um impacto que é público, não é privado, não é o livro que está na sala de aula; essas minhas imagens que estão nos livros também estão nas ruas. Então, a ideia é criar um lugar também de confronto com quem não consegue lidar com essas imagens nem assimilá-las por causa da religião que pratica. Muitas vezes, em colagens minhas, principalmente as da série Atualizações traumáticas de
Debret, as pessoas não conseguem perceber o motivo de as mulheres estarem com uma roupa que se assemelha à vestimenta do tambor de mina (todas usam um tecido branco na cabeça), e isso as afeta diretamente em sua religiosidade. Então, não há lugar melhor do que a rua e do que o lambe-lambe para assimilar esse tipo de problema religioso, de gênero, porque o lambe-lambe está ali; ele pode ser rasgado, mas pode ser reposicionado, novamente.
E isso vai criando camadas diferentes na rua, para que as pessoas percebam que existe esse outro modo de ver. Existe essa outra narrativa, não é só a narrativa da minha família, da minha religião, da minha igreja. Então, essa é uma ferramenta importante sobre a qual podemos pensar, e acredito que a utilização dessas tecnologias seja bastante eficaz.
1
O trabalho em questão é o projeto comissionado para a 36ª Bienal de São Paulo.
2 A série Atualizações Traumáticas de Debret é um conjunto de colagens digitais de Gê Viana que se apropria de imagens do Brasil no século 19, feitas pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Ao reinterpretar as imagens, a artista buscou construir novas narrativas a partir das memórias e experiências das culturas afroindígenas, desconstruindo cenas da violência colonial.
3 Para saber mais sobre as encantarias maranhenses, ver Mundicarmo Ferretti, Maranhão encantado: encantaria maranhense e outras histórias. São Luís: UEMA, 2000.
4 Manifestações culturais e religiosas de matriz africana que se desenvolveram nos estados do Pará, Amazonas e Maranhão.
5 Segundo Gê Viana, a tecnologia abrange um conceito extenso, englobando técnicas e conhecimentos ancestrais de povos negros e indígenas.
6 No Maranhão, radiolas são grandes conjuntos de caixas de som, montados como paredões, utilizados, principalmente, para reproduzir o estilo de música reggae.
7 O Maranhão, principal centro de preservação da cultura de Mina no Brasil, possui as linhas Jejê (Casa das Minas) e Nagô (Casa de Nagô). A Casa das Minas, fundada na segunda metade do século 19, é o terceiro terreiro registrado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e foi tombado em 2002.
8 Atual Benim.
9 Maria Clores e todas as pessoas citadas neste texto são bases fundamentais para a construção do trabalho da artista Gê Viana.
10 Localizada a 32 quilômetros de São Luís, a base espacial de Alcântara foi criada durante o governo militar a partir da apropriação de terras quilombolas. Em 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por violações contra essas comunidades e foi instituído um Grupo de Trabalho Interministerial a fim de pensar alternativas para a demarcação das terras.
11 Na 35ª Bienal de São Paulo, a equipe da Fundação Bienal desenvolveu a prática Coreografar a palavra – lambe-lambe. Disponível em: https://35.bienal.org.br/gesto-coreografar-a-palavra-lambe-lambe/. Acesso em: maio 2025.
Conversa com Sara Ouhaddou
Alya Sebti
Texto elaborado a partir de conversa entre a equipe da Fundação Bienal, Alya Sebti (cocuradora da 36ª Bienal de São Paulo) e a artista, em abril de 2025.
Alya Sebti: Olá, querida Sara. Eu quis fazer esta conversa com você para a Invocação #4 da 36ª Bienal de São Paulo, porque sua prática se conecta muito com as formas de conhecimento que exploramos nessa última Invocação e na primeira.
A primeira Invocação, que ocorreu em Marrakech, investigou a escuta profunda e a recepção ativa durante o encontro, ao passo que a última, realizada em Tóquio, se voltou para o “vale da estranheza”1 e o limiar entre sensação, afetividade e humanidade.
O projeto Atlas Aomori, que você vem desenvolvendo desde 2018, se fundamenta nesses dois lugares. Ele se localiza entre a cordilheira do Atlas, tão próxima a Marrakech, e Aomori, um pouco mais distante, no Japão, conectando-se com Tóquio.
Ambos os temas estão muito presentes na sua prática. Um é a escuta como metodologia, que é bastante emblemática da sua abordagem colaborativa. Outro é a presença de figuras criadas com inteligência artificial que conseguem estabelecer pontes entre duas culturas. Primeiro, eu gostaria de perguntar o que a inspirou a começar o projeto Atlas Aomori, conectando a cultura Amazigh, da cordilheira do Atlas, com o período Jomon, em Aomori, no Japão.
Sara Ouhaddou: Obrigada. É uma boa pergunta para mim, porque me leva a dois anos atrás, quando tive o que julgo ser uma intuição. Enquanto viajava pelo sul do Marrocos, na cordilheira do Atlas, mas também no deserto, coletei todos os sinais e símbolos que encontrei e que haviam sido criados na região. Eu queria saber o que havia ali antes mesmo da cultura Amazigh, durante os períodos pré-históricos.
Eu estava fazendo essa pesquisa e, no ano seguinte, fui convidada para ir ao Japão. Fui até lá com um livro que havia criado com os desenhos produzidos no Marrocos durante o que chamamos de período proto-histórico, quando os seres humanos começaram a se comunicar usando símbolos e sinais. Assim que cheguei no Japão, comecei a mostrá-lo a todas as pessoas que eu conhecia.
A primeira coisa que fiz foi procurar entender a história do Japão, mas rapidamente percebi que seria difícil ter acesso ao período pré-histórico do país. Encontrei o período Jomon ao indagar diretamente as pessoas in situ. O fato de ser estrangeira também dificultou o acesso às informações, mas – talvez porque as comunidades de artesãos são coletividades humanas maravilhosas e nós falamos a mesma língua – de alguma forma nos conectamos, e algumas dessas comunidades que
conheci em Tóquio começaram a me mostrar os diferentes lugares onde eu poderia ver o que chamamos de cerâmica Jomon. Ainda estou estudando isso. E foi então que vi que alguns dos sinais e símbolos da cerâmica Jomon eram os mesmos que eu havia coletado no Marrocos. Fui ainda mais longe e entendi que alguns dos símbolos tinham o mesmo significado e a mesma forma.
AS: Você disse que começou como uma intuição, e isso é algo muito presente na sua prática em geral. Podemos fazer uma associação interessante com a terceira Invocação que realizamos, sobre improvisação e intuição. Isso remete também a uma entrevista que fizemos com o artista Tanka Fonta, que falou sobre o quanto a prática dele também é orientada pela intuição. Ele disse que isso acontece quando você se abre para a linguagem da empatia. É algo que vejo muito no seu trabalho. Você está em constante conexão, aberta à linguagem da empatia com tudo, com todos, você se vincula em um nível diferente, que vai além da linguagem que nos ensinaram.
É o seu modo, eu sinto, de conectar sinais e símbolos. É algo que você tem feito em muitos projetos, mas especialmente neste. É só você, no fim das contas, que faz essas conexões. Sinto também que, em grande medida, traz consigo essa linguagem da empatia na sua prática cotidiana, não apenas no seu trabalho artístico.
SO: Ah, é bom pôr em prática a empatia, não? Reconhecer que não só a intuição, mas também a empatia é parte do que nós fazemos. Acho que é a primeira vez que ouço isso, e realmente gostei. Porque é verdade, sou apenas eu [que teço as conexões]. Sempre digo que se trata, como você sabe, de uma ficção verdadeira.
AS: Você começa com a intuição, depois constrói a ficção. A partir dessa hipótese ficcional inicial, cria toda uma metodologia de colaboração. Então, constrói, em certo sentido, uma memória compartilhada. Você poderia, por favor, falar um pouco mais sobre essa metodologia e essa cartografia da memória compartilhada?
SO: Sim, você tem razão. Está tudo vinculado. Pois, então, eu comecei muito naturalmente. Comecei encontrando minha própria família. Voilà! Eis a base, porque são as pessoas mais próximas. Por meio
delas e do conhecimento delas, e daquilo que compartilhamos, pude me abrir para novas comunidades.
Outro elemento é o fato de que estou sempre retornando. Pode levar três meses ou dez anos, mas eu sei, e as pessoas que eu encontro e com quem colaboro sabem que eu vou voltar. Assim, a confiança na continuidade da conversa é crucial. No cerne da colaboração está o retorno, o reencontro, manter a relação viva, o contato. Fiz isso no Japão; fui em 2018, e mantivemos a relação, mesmo durante o período da covid-19. E depois voltei. A maior parte do tempo nós apenas nos sentamos e conversamos. Mas essa é a coisa mais preciosa que você pode fazer: permitir-se sentar e conversar. É a partir disso que a intuição se constrói. Você se nutre, todos nos nutrimos, e depois a coisa cresce.
Portanto, no centro da minha prática está o tempo em que nos sentamos juntos e simplesmente conversamos. Assim, intuitivamente, comecei a documentar esses momentos de conversa, onde quer que seja, mesmo durante as férias, mesmo com meus pais. E, em determinado momento, depois de coletar tanta informação e tantas sensações, entendi que, se eu quisesse fazer algo com isso para nós todos, juntos, ou se eu quisesse deixar um vestígio em algum lugar, para nós, eu precisava mapear aquilo.
Sinceramente, se você tem todas essas relações dentro de si, elas o devoram. A empatia é boa, mas, a partir de certo ponto, ela devora a sua alma. Você precisa colocar isso para fora. A única maneira que encontrei de me livrar disso foi visualmente: foi o começo do mapeamento. Foi assim que, ao longo dos anos, no meu ateliê, fiz aqueles mapas. Eu ainda tenho esses mapas, e os completo. A certa altura, eu envio os mapas de volta para a comunidade com a qual estou colaborando. E, como você disse, a comunidade não precisa ser um grupo de artesãos. Pode ser uma equipe de museu. Então, por exemplo, no Japão, foi a equipe do museu: enviei o mapa e pedi que me ajudassem a completá-lo com o que eu não sabia. Eles fizeram isso e me enviaram o mapa de volta, e estou com ele aqui. É assim que a colaboração aparece no mapeamento.
AS: É muito bonito. Existe algo realmente fascinante na sua prática, não só na forma como você usa sinais e símbolos, mas também como você desconstrói a linguagem, e mais especificamente os alfabetos. Estou pensando na forma como você tem trabalhado com simbolismos de diversas eras, com base em registros muito antigos que você reuniu no mapeamento da memória compartilhada, mas também nos símbolos digitais que você explora na instalação de vídeo conectada a este trabalho.
SO: É, isso também me surpreendeu muito. Mas acho que isso está ligado ao compartilhamento de tudo com as pessoas que eu encontro e à ideia de manter a discussão viva. Isso também significa crescer junto com essas pessoas. Nesse grupo há gente de todas as idades. Há idosos, crianças, algumas que conheço desde os dez anos de idade, que hoje nem são mais crianças. E isso foi muito importante, porque eu os vi se desenvolverem, vi suas ferramentas se desenvolverem, vi seus interesses mudarem, assim como os meus.
E, muito rapidamente, em nosso tempo contemporâneo, a questão digital surge em toda parte, tanto com a geração mais velha quanto com a geração mais nova, porque isso se tornou parte de nossa vida. Assim, desde o início do projeto, eu sabia que, ao olhar profundamente para a linguagem, para o modo como a linguagem funciona, eu teria que enfrentar em algum momento a tecnologia, e a tecnologia digital.
No Japão, isso foi mais forte. Quando estudei o kanji [sistema de ideogramas chineses usados pelos japoneses], dentro da história da língua japonesa, logo entendi como eles inventaram o emoji. E isso é o bastante para uma artista pensar: O.k., a questão digital já está aqui.
É o bastante também para ver a conexão – como os seres humanos mudam suas ferramentas, mas como não mudamos profundamente, porque os emojis são a mesma coisa que os desenhos pré-históricos, basicamente. Nesse caso são imagens, apenas ferramentas diferentes. E é fascinante para mim, porque está tudo ligado ao artesanato também. Está tudo ligado à produção manual, e aos gestos da mão, mudam apenas as ferramentas. E, quando você muda a ferramenta, muda as formas. É assim que eu vejo, na verdade.
A instalação final do projeto se chama Une Conversation banale [Uma conversa banal]. Chama-se assim porque usamos todos os níveis de linguagem – escrita, leitura, linguagem digital – todos os dias. Então, pensei: se eu fizer uma instalação desafiando a ideia de linguagem, desafiando a ideia das regras do alfabeto, tal como a política as criou, preciso incluir todos os tipos de linguagem que existem.
A instalação é composta de duas cabanas em diálogo. É como se fossem duas pessoas nativas, cada uma de uma região. Uma está no Marrocos, na cordilheira do Atlas, e a outra está em Aomori. Escolhi Aomori porque o artesanato de lá é muito parecido com o da cordilheira do Atlas. As cabanas não têm idade, elas estão ali desde sempre, duas pedras. Assim, as cabanas são corpos que escutam e memorizam seu ambiente através do tempo e do espaço. E elas sobrepõem tudo. É o que elas fazem: simplesmente sobrepõem. Em determinado momento, ao sobrepor, elas aprendem. Assim que aprendem,
Sara Ouhaddou
Atlas-Aomori project, 2017/2022
Atlas – Une conversation banale [Uma conversa banal]
Exposição Les Etres Lieux, Maison de la Culture du Japon, Paris, 2022
elas precisam compartilhar. Então, a instalação é simplesmente como um ser humano funciona.
Memorizamos, aprendemos, compartilhamos. Eis o que elas fazem. Mas eu queria que elas fizessem isso apenas no espectro dos sinais e dos símbolos, como se o mundo, para elas, jamais tivesse inventado os alfabetos como os conhecemos hoje. Todos eles – arábico, latino, até a forma contemporânea do kanji – são formados por aqueles sinais e símbolos que vêm de nossa humanidade mais profunda. Elas funcionam apenas com isso, e se comunicam com isso.
Mas elas estão equipadas de ferramentas. E isso, para mim, é uma forma de falar sobre a evolução do artesanato, sobre os meios artesanais, como se transformam ao longo do tempo. E é também uma experimentação para ver como se dá a hibridização quando você conserva uma coisa, mas altera outra. Então, elas se atêm à sua linguagem, mas precisam fazer com que sua linguagem sobreviva. A única maneira de sobreviver é aceitar as mudanças de seu tempo. Se não aceitaram o alfabeto, tiveram que aceitar a tecnologia. Foi o que fizeram para sobreviver, para fazer seu conhecimento sobreviver. Assim, as cabanas estão mudando; ao longo do tempo, elas se equiparam a iPhones, telas e câmeras. Elas filmam suas paisagens, elas as compartilham, elas as discutem.
A partir de certo ponto, todos esses sinais e símbolos se tornaram sinais e símbolos digitais. É assim que elas conversam hoje em dia – enviam mensagens de texto em uma linguagem que inventaram. Foi assim que tudo aconteceu para mim. E a questão é: como algo mais antigo sobrevive hoje em dia?
AS: É uma grande transição até chegar a essa questão, porque, como você disse, as pessoas enviam mensagens de texto, elas se comunicam umas com as outras. Para esta última Invocação, em Tóquio, a Bienal está explorando a forma como figuras e humanoides digitais evocam afetos, memórias, estranhezas, e é por isso que abordamos o vale da estranheza, pois essas formas medeiam ou representam a experiência humana. Em Atlas Aomori, você cria pontes entre culturas e histórias distantes por meio de símbolos e símbolos contemporâneos.
Você vê o papel da presença digital dessas formas humanoides no seu trabalho como uma forma de transmitir cultura e memória e de fazer pontes culturais através do tempo e das geografias?
SO: Ao criar o projeto e ao pensar neles como almas, rapidamente pensei que a única forma que eles tinham de sobreviver, tendo vindo de tempos antigos, era se adaptando ao novo.
Grande parte da minha prática é desconstruir o alfabeto; palavras ou fragmentos de palavras se tornam formas e são esvaziadas do significado que carregam. Essa experiência é inspirada na história dos meus pais, que chegaram à França sem saber o alfabeto latino e tiveram que se adaptar em um universo de sinais que precisavam aceitar e decifrar. Tento imaginar como a história poderia ter sido diferente – e se as pessoas tivessem tido a oportunidade de não aceitar a colonização? E se tivessem tido a oportunidade de permanecer em seu patrimônio da oralidade? Isso teria sido ótimo para meus pais, na verdade, porque [teria produzido] menos frustração. Se eles tivessem tido essa opção, algumas outras coisas poderiam ter acontecido.
Você não pode se ater a tudo do passado, porque isso significaria que você está morto. O movimento da vida segue em frente. É preciso fazer algumas mudanças para sobreviver, e o que são elas? Aqui, as cabanas escolhem se adaptar à tecnologia de sua época, e creio que isso seja uma resposta ao conhecimento antigo, e é algo que eu faço, evidentemente, na minha prática diária com a comunidade dos artesãos. Acho que é uma maneira de preservar conhecimentos antigos.
AS: Tenho uma última pergunta. Você disse que, se não quisermos morrer, temos que nos adaptar. Existem ferramentas capazes de criar essas pontes entre culturas e, como dissemos, preservar e proteger formas ancestrais de conhecimento.
Minha última pergunta envolve mais amplamente a Bienal. Esta edição da Bienal nos convida a imaginar que humanidade é uma prática e um verbo, algo que você conjuga todos os dias, e não tanto uma identidade fixa. Se humanidade for uma prática e um verbo, algo que você faz todos os dias, qual seria o seu verbo e por quê?
SO: Compartilhar. Certamente meu verbo seria compartilhar.
1 Referência ao ensaio de Masahiro Mori, “The Uncanny Valley”, que foi a inspiração para a Invocação #4 da 36a Bienal de São Paulo, realizada em Tóquio. O ensaio foi publicado em IEEE Spectrum, 12 jun. 2012. Disponível em: https://spectrum.ieee.org/the-uncanny-valley. Acesso em: maio 2025.
Conversa com Andrew Maerkle
Thiago de Paula Souza
Conversa realizada por e-mail em junho de 2025.
Thiago de Paula Souza: Quando começamos a planejar a Invocação #4, o ponto de partida foi o conceito do “vale da estranheza”, cunhado pelo falecido Masahiro Mori. Em seu ensaio “Manifesto da ciborgue ansiosa”, Tavia Nyong’o [pp. 72-87 deste volume] sugere que talvez “o mundo em que vivemos está se tornando um vale da estranheza”. Você poderia falar um pouco sobre o modo como esse conceito de Mori pode ser interpretado em 2025 e como ele se relaciona com as práticas artísticas contemporâneas? E qual é o papel das tecnologias na cena artística contemporânea?
Andrew Maerkle: Masahiro Mori introduziu o conceito “vale da estranheza” para descrever a sensação de estranhamento provocada nas pessoas diante de robôs que pareciam “demasiado humanos”. A expressão se referia ao formato de um gráfico que mapeia a resposta emocional humana a diferentes tipos de robô, de modo que o conceito essencialmente externaliza nossas emoções. Assim, eu o vejo como uma ferramenta para visualizar a dinâmica de identificação e de dissociação entre o self e o Outro. Um elevado grau de “outrificação” ocorre inconscientemente, muito antes da aberta demagogia de políticos como Adolph Hitler ou Donald Trump. Reconhecer que cada um de nós carrega seu próprio vale da estranheza ajuda a ter mais consciência de nossa participação nos discursos que tentam minimizar ou negar a atuação do que percebemos como sendo estrangeiro. No contexto do Japão contemporâneo, por exemplo, a metáfora espacial de um “vale” é útil para pensar os legados imperialistas ainda não resolvidos, sempre ameaçados de apagamento por políticas nacionalistas que visam um esquecimento “deliberado”. Talvez, como em Irumagawa, peça contemporânea de teatro nô de Shiori Watanabe [pp. 44-47] − ambientada no limiar entre a vida e a vida após a morte−, o vale da estranheza crie um espaço para invocar os sobreviventes das atrocidades japonesas nas guerras e para “falar com eles” – emprestando, aqui, a expressão de bell hooks. De modo similar, Asako Iwama [pp. 148-153] aborda um “vale da estranheza temporal” ao utilizar o mel, evocando os genocídios do passado e do presente.
O vale da estranheza é também uma poderosa imagem para pensar a tradução, hoje cada vez mais envolvida com a inteligência artificial. Com frequência recorremos a ferramentas como DeepL ou Google Translate para ter acesso imediato a traduções em outras línguas, mas esses dispositivos ocultam o trabalho intelectual envolvido no enfrentamento das diferenças culturais – justamente onde a tradução pode ser mais transformadora. Assim, o estranhamento provocado pelo vale da estranheza
existente entre os idiomas não deve ser evitado, mas acolhido por seu amplo potencial. Yūki Nagae [pp. 122-123] aborda essa questão quando utiliza a tradução automática para compor um poema em resposta a leituras de texto gravadas em português por Conceição Evaristo. Também acredito que esse pensamento informe o desenvolvimento da Mwananchi.ai, por Tavia Nyong’o − um chatbot customizado que “busca democratizar a inteligência artificial incorporando nela línguas, narrativas e epistemologias locais”.
Em suma, abordar a Invocação por meio dessa compreensão ampliada do vale da estranheza nos levou a considerar práticas artísticas que se baseiam em preocupações temáticas profundas, ao mesmo tempo tocando em questões tecnológicas. Creio que o programa alcançou uma síntese contundente entre poética, política e reflexão crítica.
TdPS: As tradições Zen e budistas foram centrais na articulação de Mori do vale da estranheza, e sabemos que muitos artistas e estudiosos, em diferentes geografias, se inspiraram nessas filosofias. Você considera que essas tradições ainda têm um papel importante nas práticas artísticas contemporâneas no Japão?
AM: O budismo e o Zen estão profundamente enraizados na cultura japonesa. Qualquer pessoa criada em um contexto japonês tem, em algum nível, acesso a essas tradições. Por essa razão, os artistas japoneses são muito cautelosos ao se referirem ao budismo ou ao Zen de modo muito explícito, pois isso pode resvalar para o kitsch, reforçar estruturas patriarcais ou levar a interpretações reducionistas.
Por exemplo, Kishio Suga, artista do movimento Mono-ha, se inspirou no filósofo budista Nagarjuna (c. 150-250 d.C.), assim como em pensadores modernos, como Gilles Deleuze e Maurice Merleau-Ponty, para desenvolver suas “situações” escultóricas, que se situam entre os diferentes estados do ser. Mas em seus escritos ele tem o cuidado de não associar diretamente sua obra ao budismo. Certa vez, o crítico, curador e poeta japonês Shuzo Takiguchi respondeu em tom de brincadeira quando questionado sobre a relação entre Marcel Duchamp e o Zen: “Não há nada mais perigoso para um japonês do que dizer a palavra ‘Zen’”.
Portanto, há certa assimetria no modo como artistas japoneses e não japoneses incorporam essas ideias, tema abordado por You Nakai em sua palestra-performance sobre o envolvimento dos músicos John Cage e David Tudor com a cultura japonesa [pp 94-105].
TdPS: Em todas as Invocações, o interesse foi explorar pontes possíveis entre a cultura tradicional e as práticas contemporâneas.
Sempre foi importante interagir com essas tradições modo crítico, evitando torná-las meras celebrações de símbolos que, à distância, possam parecer “autênticos” ou representativos de um território, mas que vistos de perto talvez reflitam visões caricatas de uma região ou até mesmo propagandas nacionalistas. Como você observa o envolvimento de artistas e teóricos em Tóquio − e no Japão em geral − com elementos do passado do país?
AM: Isso foi algo em que pensei muito enquanto preparávamos esta Invocação. O teatro nô e o bunraku, por exemplo, entraram como pontos de referência, mas é um exagero dizer que eles exerçam forte influência nas formas de expressão contemporâneas.
Em vez disso, a poesia emergiu gradualmente como um modo mais vital de expressão, que articula o passado e o presente no Japão. Ela ofereceu um fio condutor contínuo, da antiga arte do teatro nô ao movimento global do hip-hop, representado por rappers como Danny Jin e Namichie. A poesia também se mostrou relevante para as questões sobre o modo como a cultura responde a novas tecnologias. Os poetas do programa foram centrais para desvendar o tema do “vale da estranheza”: Natsumi Aoyagi [pp. 60-63] criou uma performance em colaboração com as assistentes digitais Alexa e Siri; Gozo Yoshimasu [pp. 88-92] e Takako Arai leram poemas que refletem sobre a história das transformações da indústria, do trabalho e do meio ambiente em diferentes regiões do Japão; e Sakisaka Kujira [pp. 106-107] resgatou o grau de opacidade presente na fala cotidiana utilizando a linguagem de sinais. A poesia também foi um meio de invocar as vozes ausentes. Vimos isso na combinação de um vídeo de Theresa Hak Kyung Cha, Mouth to Mouth [Boca a boca] (1975) – no qual as imagens da artista em um monitor de TV articulam os sons vocálicos da língua coreana – com a instalação sonora de Cecilia Vicuña, Chuva sonhada por meio do som: homenagem a Theresa Hak Kyung Cha (2021) − que homenageia a visão poética de Cha, embora lamente sua morte violenta, em 1982, por um estuprador e assassino. O coletivo Multiple Spirits [pp. 108-111] contribuiu para esse diálogo incorporando fragmentos de textos de Cha, Vicuña, Conceição Evaristo e de Trinh T. Minhha, em sua intervenção audiovisual multilíngue. Poesia como polifonia; poética polimorfa – sua natureza fluida e difusa nos ajudou a apreciar as continuidades culturais específicas do Japão, desafiando pretensões essencialistas de japonismo. É importante observar que a estrutura tripartite desta Invocação, encenada em três locais − The 5th Floor, Sogetsu Kaikan e o campus de Komaba da Universidade de Tóquio –, ecoou, de certo modo, a estrutura jo-ha-kyu do teatro clássico japonês.
Sobre os autores
Alya Sebti é curadora de arte contemporânea e diretora da ifa-Galerie (Institut für Auslandsbeziehungen), em Berlim, onde criou a plataforma de pesquisa e exposições Untie to Tie – On Colonial Legacies in Contemporary Societies. Foi cocuradora da bienal europeia Manifesta, em Marselha (2020), curadora convidada da Biennale de Dakar (2018) e diretora artística da Marrakech Biennale (2014). Orienta pesquisas curatoriais com programas de mentoria na residência artística ZK/U (Berlim) e no MACAAL (Marrakech).
Andrew Maerkle é escritor, editor, tradutor e vive em Tóquio.
Atualmente, é diretor editorial da Art Week Tokyo e colaborador de revistas internacionais como frieze, Artforum e Art & Australia. Seu
livro de traduções Kishio Suga: Writings, vol. 2, 1980-1989 foi publicado este ano pela pela editora Skira. De 2010 a 2024, foi editor adjunto da publicação online ART iT | International Edition e, entre 2006 e 2008, atuou como editor adjunto da ArtAsiaPacific, em Nova York. De 2018 a 2023, lecionou na Graduate School of Global Arts da Tokyo University of the Arts.
Anna Roberta Goetz é curadora e escritora. Trabalhou no Marta Herford Museum (Herford, Alemanha) e no Museum MMK Für Moderne Kunst Frankfurt. Foi curadora assistente e gerente de projeto do Pavilhão da Alemanha na 55ª Bienal de Veneza (2013). Organizou exposições individuais e coletivas de destaque em diversos países, além de ter lecionado em várias academias de arte internacionais, como
a Zurich University of the Arts e a Städelschule (Frankfurt). Entre suas publicações estão Rodney McMillian: The Land: Not Without a Politic, organizado com Kathleen Rahn (2024), e Cinthia Marcelle – By Means of Doubt, organizado com Isabella Rjeille (2023).
Asako Iwama é uma artista estabelecida em Berlim e em Tóquio. Seu trabalho aborda os aspectos sociais da alimentação por meio de workshops experimentais e pesquisa de campo. Em seus projetos recentes, investiga mudanças históricas e tecnológicas na relação entre elementos naturais e a materialidade ou subjetividade do corpo, utilizando práticas como moldagem, rastreamento e coleta para refletir sobre essas transformações. De 2005 a 2015, trabalhou como cozinheira no Studio Olafur Eliasson (Berlim), onde gerenciou a obra The Kitchen, e também foi cocriadora do livro Studio Olafur Eliasson: The Kitchen (2013).
Bidou Yamaguchi é um artista reconhecido por criar as máscaras utilizadas no teatro nô tradicional japonês. Destaca-se entre a nova geração na revitalização das técnicas e estéticas tradicionais transmitidas ao longo dos séculos no Japão. Tendo estudado com o mestre de máscaras nô Ogawa Gendō, Yamaguchi desenvolveu profundo conhecimento dessa arte por meio do contato com uma valiosa
coleção que inclui exemplares com mais de 500 anos, mantida por Hōshō, uma tradicional família local. Ampliando sua expressão artística, ele criou máscaras nô inspiradas em pinturas ocidentais na série Retratos. Seu trabalho é amplamente reconhecido e já foi apresentado em museus e universidades no Japão, Estados Unidos e Países Baixos. Suas obras fazem parte de coleções prestigiadas, incluindo o Rijksmuseum, em Amsterdã, e o Art Institute of Chicago.
Bonaventure Soh Bejeng
Ndikung é curador, autor e biotecnologista. Atua como diretor e curador geral do Haus der Kulturen der Welt (HKW), em Berlim. É o fundador e ex-diretor artístico do SAVVY Contemporary (Berlim), além de diretor artístico do sonsbeek20->24 (Arnhem). É professor e chefe do corpo docente no programa de mestrado em estratégias espaciais na weißensee academy of art berlin. Entre algumas de suas obras publicadas estão The Delusions of Care (2021), An Ongoing-Offcoming Tale: Ruminations on Art, Culture, Politics and Us/Others (2022) e Pidginization as Curatorial Method (2023).
Deivison Faustino é doutor em sociologia e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Tem experiência com ensino,
pesquisa e extensão nos temas saúde e racismo, digitalização da saúde, educação das relações étnico-raciais, pensamento antirracista, e capitalismo e racismo. É autor dos livros Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro (2018), Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade (2022); O colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana (2023) e Balanço afiado: estética e política em Jorge Ben (2023).
Gê Viana Gê Viana é artista visual formada pela Universidade Federal do Maranhão. Atua entre o espaço doméstico e o urbano, utilizando colagem manual e digital, pintura e a técnica do lambe-lambe. Sua prática parte de imagens de arquivo e da memória oral de sua família, articulando narrativas do cotidiano afro-diaspórico maranhense e confrontando a cultura hegemônica. Participou da Bienal das Amazônias (Belém, 2023), do 38º Panorama da Arte Brasileira (Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2024), da mostra Histórias brasileiras (MASP, São Paulo, 2022) e da Borås Art Biennial (2024). Suas obras integram coleções como as da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Gōzō Yoshimasu é poeta e artista multimídia, figura central da vanguarda japonesa desde os anos 1960. Sua prática busca recuperar e reinventar
os vínculos entre poesia e performance, transformando a linguagem em gesto e invenção. Seus manuscritos operam como colagens visuais e textuais, integrando referências literárias e idiomas coletados em viagens e trocas epistolares. Criou também a série gozoCiné, em que combina vídeo, composição poética espontânea e leitura performática. Apresentou individuais no National Museum of Modern Art (Tóquio), no Ashikaga Museum of Art, no Okinawa Prefectural Museum & Art Museum (Naha) e na Hokkaido University Museum (Sapporo).
Keyna Eleison é curadora, pesquisadora e educadora em arte e cultura. Eleison coordenou todos os equipamentos públicos da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e lecionou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na qual também foi coordenadora de ensino. Foi curadora da 10ª Bienal Internacional de Siart, na Bolívia (2018), curadora da 1ª Bienal das Amazônias (2023), foi diretora artística do MAM Rio (2020-2023) e diretora de pesquisa e conteúdo da Bienal das Amazônias.
Lynn Hershman Leeson é artista e cineasta reconhecida por seu trabalho nas artes visuais e no cinema, explorando temas como a relação entre humanos e tecnologia, identidade, vigilância e o uso da mídia como ferramenta de empoderamento contra a censura e a
repressão política. Recebeu diversos prêmios, incluindo o SIGGRAPH Lifetime Achievement Award e o Prix Ars Electronica Golden Nica. Em 2022, recebeu uma menção especial do júri na 59ª Bienal de Veneza. Em 2023, foi agraciada com um Doutorado Honorário pelo Pratt Institute, em Nova York, e teve seu NFT adquirido pelo San Francisco Museum of Modern Art, o primeiro da coleção do museu.
Manauara Clandestna é artista visual e estudante de cinema. Sua formação foi marcada pela vivência em missões evangélicas no interior do Amazonas, onde iniciou seu contato com a arte por meio do teatro e da música na igreja. Sua produção emerge como expressão da vida noturna urbana e se desenvolve em performances que exploram a experiência travesti, atravessada por processos de transição e afetividade. Propõe reflexões sobre as subjetividades de corpos dissidentes por meio de construções poéticas ligadas ao universo da moda. Teve sua obra exibida no Instituto de Arquitetos do Brasil e no MASP (ambos em São Paulo), no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Festival Internacional de Cinema de Edimburgo, na 1ª Bienal das Amazônias (Belém) e na 60ª Bienal de Veneza.
Marylya é cantora e compositora, e fez sua estreia em Los Angeles. Quando o renomado escritor japonês Kenji Nakagami ouviu a gravação de um de seus concertos nos Estados Unidos, decidiu apresentar o trabalho dela ao público japonês. Marylya já se apresentou em diversas partes do mundo, especialmente nos Estados Unidos, Europa e Ásia. Ao longo de sua carreira, trabalhou com diversos artistas, incluindo colaborações frequentes com o fotógrafo Nobuyoshi Araki e o dançarino de butô Kazuo Ohno. Além disso, tem uma longa trajetória de performances ao lado do poeta Gōzō Yoshimasu, tanto no Japão quanto em outros países.
Multiple Spirits Ver p. 113 deste volume.
Natsumi Aoyagi é uma artista contemporânea que trabalha com mídia audiovisual, desenvolvendo projetos baseados em pesquisa e trabalho de campo. Suas atividades recentes incluem a exposição individual Logbook of a Sea Goddess (Towada Art Center, 2022), a indicação para a 7ª edição do Women to Watch realizada no National Museum of Women in the Arts Japan (NMWA Japan, 2022) e a participação na ICC Annual 2024: Faraway, so close (NTT InterCommunication Center [ICC], 2024). Sua coletânea de poemas Done Being Nurtured (thoasa, 2022)
recebeu o 28º Prêmio Nakahara Chuya e foi descrita como representante do futuro da poesia japonesa. É também diretora do espaço artístico e livraria kohonya honkbooks.
Nina da Hora é pesquisadora em justiça e inteligência artificial (IA), com foco no combate ao racismo algorítmico. Recebeu o título de Global Fellow da Ford Foundation (2024), é fundadora do Instituto da Hora e mestre em Inteligência Artificial Crítica na Unicamp. Atua em conselhos que promovem políticas e inovações responsáveis em IA.
Sakisaka Kujira é representante da Kotoba-Sha, escola de língua japonesa localizada na cidade de Okegawa, província de Saitama. Em 2022, publicou sua primeira coletânea de poemas, For a Very Small Understanding (Shironeko-sha), e em 2023 lançou seu primeiro livro de ensaios, The Ideal Temperature of Love Between Couples (Hyakumannen Shobo). Contribui com poesias e críticas literárias para jornais distribuídos pela Asahi Shimbun e pela agência de notícias Kyodo Tsushinsha, além de revistas como Gendai Shi Techo.
Sara Ouhaddou é artista e vive entre o Marrocos e a França. Ela nasceu na França numa família marroquina e essa dupla cultura influencia sua
prática como um diálogo contínuo. Em seu trabalho, ela obtém um equilíbrio entre as formas de arte tradicionais e as convenções da arte contemporânea, procurando colocar em novas perspectivas as continuidades culturais esquecidas da criação artística. Ouhaddou trabalha in situ, produzindo obras baseadas em encontros com comunidades, artesãos e investigadores, enquanto explora locais e objetos patrimoniais. Cada uma das suas obras é um projeto de aprendizagem, troca de conhecimentos e histórias íntimas ou universais.
Shiori Watanabe é artista contemporânea baseada em Tóquio. Graduou-se em escultura na Tokyo University of the Arts (2015) e concluiu o mestrado em belas-artes (MFA) na mesma universidade (2017). Em suas obras, explora as intersecções entre arte e cultura urbana. Exposições recentes incluem: 宿/Syuku na Shiseido Gallery (Tóquio, 2024); Tototarari Tarariratarari Agarirarari To, no Shinjuku Kabukicho Noh Stage (Tóquio, 2022); Bebe, na Whitehouse (Tóquio, 2021); Non-Human Control, na Tav Gallery (Tóquio, 2020); e Dyadic Stem, uma exposição em parceria com Shinjiro Watanabe na 5th Floor (Tóquio, 2020).
Tavia Nyong’o é crítico, estudioso de arte e performance e professor da Universidade de Yale nas áreas de Estudos Afro-Americanos, Estudos
Culturais e Teoria Estética. Seus trabalhos exploram a intersecção entre história, imaginação e estética da vida Negra pelas lentes da performance. Entre seus livros premiados estão The Amalgamation Waltz: Race, Performance, and the Ruses of Memory (University of Minnesota Press, 2009), Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life (New York University Press, 2018) e Black Apocalypse: Afrofuturism at the End of the World (University of California Press, 2025). Atualmente, conclui uma pesquisa inovadora sobre temas que abrangem da história cultural da tecnologia digital à dissidência racial e sexual na arte e na cultura.
Thiago de Paula Souza é curador e educador. Foi cocurador do 38º Panorama da Arte Brasileira no MAM São Paulo (2024), da mostra Some May Work as Symbols: Art Made in Brazil, 1950s-70s, no Raven Row (Londres), do Nomadic Program da Vleeshal Center for Contemporary Art (Middelburg) entre 2022 e 2023, da While We Are Embattled, no Para Site (Hong Kong) e da Atos de Revolta, no MAM Rio (2022). Entre 2020 e 2021, fez parte da equipe curatorial da 3ª edição do Frestas – Trienal de Artes (São Paulo). Foi consultor curatorial para a 58ª Carnegie International (2021-2022). Entre 2018 e 2019, assinou a curadoria da primeira exposição individual de Tony Cokes
no BAK (Utrecht). Fez parte da equipe curatorial da 10ª Berlin Biennale (2018). Atualmente, integra o Comitê Artístico da NESR Art Foundation, em Angola, e é doutorando no programa de artes da HDK Valand – University of Gothenburg.
T-Michael é alfaiate, designer e artista multidisciplinar ganês-norueguês. Sua prática investiga a intersecção entre a tradição sartorial e o discurso cultural contemporâneo. Com um compromisso rigoroso com a excelência artesanal, sua marca homônima, junto à Norwegian Rain (roupas de alta funcionalidade), T-Kimono (kimonos recontextualizados), Film Lab e T Creative Spaces, propõe novas formas, materialidades e narrativas. Com quase trinta anos de experiência, seu trabalho se equilibra entre precisão e fluidez, em que a poética da construção desafia paradigmas convencionais da moda masculina e além.
You Nakai é membro do grupo No Collective, com o qual realiza performances que incluem música e musicistas, dança e dançarinos, mansões musicais assombradas, canções de ninar e outros elementos. Nakai também publica livros infantis experimentais escritos por crianças e outras criações literárias como membro da plataforma editorial Already Not Yet. Conduziu uma abrangente pesquisa sobre David Tudor, cujos resultados foram
publicados como Reminded by the Instruments: David Tudor’s Music (Oxford University Press, 2021).
Suas iniciativas artísticas recentes incluem retomar – após um hiato de cinquenta anos – o projeto inacabado Island Eye Island Ear, um plano especulativo concebido por Tudor em meados dos anos 1970 para transformar uma ilha inteira em um gigantesco instrumento musical. Nakai atualmente é membro da Universidade de Tóquio, onde desenvolve pesquisa performativa sobre a noção de influência, ministra cursos sobre História Fake da Música Ocidental e Pseudo-história da Música Experimental; é anfitrião do Side Effects Lab [Laboratório de Efeitos Colaterais] e preside o Department of Avant-Garde Arts [Departamento de Artes de Vanguarda].
Yūki Nagae é poetisa e romancista. Conceitua a poesia não apenas como forma textual, mas também como uma ação. Com base no conceito de “poesia em ação”, que utiliza elementos desde a mídia digital até a água e outros elementos naturais, Nagae propõe novos modos de ver e perceber o mundo – ela desconstrói o ambiente e a sociedade por meio de um olhar poético e os reconstrói através da tecnologia. Nagae apresentou seu trabalho em eventos por todo o Japão e em outros países, incluindo o Jonas Mekas Poetry Day (2024), organizado pelo Centre Pompidou (Paris) e
também fez a curadoria de projetos, incluindo The Touch of the City on the Skin of Poetry (2022). Seu livro de poemas Fuzai Toshi recebeu o Rekitei Prize (2019) e sua obra de ficção Jisuberi foi indicado ao Akutagawa Prize (2025).
Fundação Bienal de São Paulo
Fundador
Francisco Matarazzo Sobrinho · 1898–1977 · presidente perpétuo
Conselho de administração
Eduardo Saron · presidente
Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente
Membros vitalícios
Adolpho Leirner
Beno Suchodolski
Carlos Francisco Bandeira Lins
Cesar Giobbi
Elizabeth Machado
Jens Olesen
Julio Landmann
Marcos Arbaitman
Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa
Pedro Aranha Corrêa do Lago
Pedro Paulo de Sena Madureira
Roberto Muylaert
Rubens José Mattos Cunha Lima
Membros
Adrienne Senna Jobim
Alberto Emmanuel Whitaker
Alfredo Egydio Setubal
Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires
Angelo Andrea Matarazzo
Beatriz Yunes Guarita
Camila Appel
Carlos Alberto Frederico
Carlos Augusto Calil
Carlos Jereissati
Célia Kochen Parnes
Claudio Thomaz Lobo Sonder
Daniela Montingelli Villela
Eduardo Saron
Fábio Magalhães
Felippe Crescenti
Flavia Buarque de Almeida
Flávia Cipovicci Berenguer
Flavia Regina de Souza Oliveira
Flávio Moura
Francisco Alambert
Heitor Martins
Isay Weinfeld
Jeane Mike Tsutsui
Joaquim de Arruda Falcão Neto
José Olympio da Veiga Pereira
Kelly de Amorim
Ligia Fonseca Ferreira
Lucio Gomes Machado
Luis Terepins
Luiz Galina
Maguy Etlin · licenciada [on leave]
Manoela Queiroz Bacelar
Marcelo Mattos Araujo
Mariana Teixeira de Carvalho
Miguel Setas
Miguel Wady Chaia
Neide Helena de Moraes
Nina da Hora
Octavio de Barros
Rodrigo Bresser Pereira
Rosiane Pecora
Sérgio Spinelli Silva Jr.
Susana Leirner Steinbruch
Tito Enrique da Silva Neto
Victor Pardini
Conselho fiscal
Edna Sousa de Holanda
Flávio Moura
Octavio Manoel Rodrigues de Barros
Conselho consultivo internacional
Frances Reynolds · presidente
Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente
Andrea de Botton Dreesmann, Quinten Dreesmann
Barbara Sobel
Caterina Stewart
Catherine Petitgas
Flávia Abubakir, Frank Abubakir
Laurie Ziegler
Mélanie Berghmans
Miwa Taguchi-Sugiyama
Pamela J. Joyner
Paula Macedo Weiss, Daniel Weiss
Sandra Hegedüs
Vanessa Tubino
Diretoria
Andrea Pinheiro · presidente
Maguy Etlin · primeira vice-presidente
Luiz Lara · segundo vice-presidente
Ana Paula Martinez
Francisco Pinheiro Guimarães
Maria Rita Drummond
Ricardo Diniz
Roberto Otero
Solange Sobral
Fundação Bienal de São Paulo – Equipe
Superintendências
Antonio Thomaz Lessa Garcia
Junior · superintendente executivo
Felipe Isola · superintendente de projetos
Joaquim Millan · superintendente de projetos
Caroline Carrion · superintendente de comunicação
Irina Cypel · superintendente de relações institucionais e parcerias
Superintendência executiva assistência
Beatriz Reiter Santos · assistência executiva
Marcella Batista · assistência administrativa
Superintendência de projetos
Produção coordenação
Bernard Lemos Tjabbes
Dorinha Santos
Marina Scaramuzza produção
Ariel Rosa Grininger
Camilla Ayla
Carolina da Costa Angelo
Nuno Holanda Sá do Espírito Santo
Tatiana Oliveira de Farias assistência
Fabiana Paulucci
Ziza Rovigatti
Superintendência de comunicação coordenação
Rafael Falasco · editorial assessoria
Adriano Campos · design
Eduardo Lirani · produção gráfica
Fernando Pereira · assessoria de imprensa
Francisco Belle Bresolin · projetos
digitais e documentação
Julia Bolliger Murari · redes sociais
Luciana Araujo Marques · editorial
Nina Nunes · design assistência
Marina Fonseca · redes sociais
jovem aprendiz
Victória Pracedino
Superintendência de relações institucionais e parcerias assessoria
Luciana Raele
Raquel Silva
Victória Bayma
Viviane Teixeira assistência
André Massena
Jefferson Faria
Laura Caldas Educação gerência
Simone Lopes de Lira coordenação
Danilo Pera
assessoria
André Leitão
Renato Lopes
Tailicie Nascimento assistência
Gabri Gregorio
Giovanna Endrigo
Julia Iwanaga
Vinicius Massimino
jovem aprendiz
Lincon Amaral
Arquivo Bienal gerência
Leno Veras coordenação
Antonio Paulo Carretta
Marcele Souto Yakabi assistência
Ana Helena Grizotto Custódio
Anna Beatriz Corrêa Bortoletto
Daniel Malva Ribeiro
Gislene Sales
Gustavo Paes
Kleber Costa Timoteo
Raquel Coelho Moliterno
Thais Ferreira Dias
jovem aprendiz
Ilana Alionço
Manoel Assis
Administrativo-financeiro Finanças gerência
Amarildo Firmino Gomes coordenação
Edson Pereira de Carvalho assessoria
Fábio Kato assistência
Silvia Andrade Simões Branco
Gestão de materiais e patrimônio gerência
Valdomiro Rodrigues da Silva Neto coordenação
Larissa Di Ciero Ferradas · gestão de materiais e patrimônio
Vinícius Robson da Silva Araújo · compras assistência
Angélica de Oliveira Divino
Daniel Pereira
Sergio Faria Lima
Victor Senciel
Wagner Pereira de Andrade auxílio
Isabela Cardoso jovem aprendiz
Lucas Galhardo
Planejamento e operações
assessoria
Rone Amabile
Vera Lucia Kogan
Recursos humanos coordenação
Andréa Moreira · recursos humanos
Higor Tocchio · departamento pessoal assistência
Matheus Andrade Sartori
Patricia Fernandes
Tecnologia da informação consultoria
Ricardo Bellucci
Júlio Coelho
Matheus Lourenço assistência
Jhones Alves do Nascimento
36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas –
Da humanidade como prática
Equipe conceitual
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung · curador geral
Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza · cocuradores
Keyna Eleison · cocuradora at large
Henriette Gallus · consultora de comunicação e estratégia
André Pitol, Leonardo Matsuhei · assistência de curadoria
Arquitetura e expografia
Gisele de Paula, Tiago Guimarães
Alexandra Souza, Santiago Rid · assistência de arquitetura
Agence Clémence Farrell · consultoria inicial de arquitetura
Identidade visual
Studio Yukiko
Projetos e produção Conservação coordenação
Patrícia Guimarães dos Reis equipe
Alice Quintella Tischer
Daniel Zuim Mussi
Ellen Marianne Röpke Ferrando
Fabiana Franco Barbosa Oda
Gisele Guedes
Thaís Ramos Carvalhais
Valerie Midori Koga Takeda
Consultoria acústica
Alexandre Sresnewsky
Consultoria de audiovisual
Patrícia Mesquita
Coordenação de montagem
Alexandre Cruz, Arão Nunes
Mauro Amorim
Logística de transporte
Nilson Lopes · nacional
Waiver Arts · internacional
Produção da programação pública
Helena Prado
Seguro Fine Arts
Sonia Sassi
Comunicação e editorial Assessoria de imprensa
Index · assessoria de imprensa nacional
Sam Talbot · assessoria de imprensa internacional
Conteúdo audiovisual e registro fotográfico
Bruno Fernandes
Duma Hub de Inovação Criativa e Produção Artística
João Gabriel Hidalgo
Design assistência
Aninha de Carvalho Price
Tamara Lichtenstein
Editorial
Cristina Fino · coordenação editorial das publicações educativas #3/#4
Deborah Moreira · assistência
editorial
Website
Fluxo
Invocações
Marrakech – 14-15 nov 2024
LE 18 · coorganização
Laila Hida · diretoria do espaço parceiro
Youssef Sebti · produção local
Zora El Hajji · assessoria de imprensa local
Mahacine Mokdad, Sofian
Amly, Hamza Morchid, Youssef
Boumbarek · conteúdo audiovisual e registro fotográfico
Embaixada do Brasil em Rabat / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações Exteriores · apoio local
Guadalupe – 5-7 dez 2024
Lafabri’K · coorganização
Marie-Laure Poitout · presidência do espaço parceiro
Léna Blou · diretoria do espaço parceiro
Hellen Rugard · produção local
Annik Benjamin · tradução simultânea
Cédric Marcellin, Philippe Hurgon · conteúdo audiovisual e registro fotográfico
Institut Français; Embaixada do Brasil em Paris / Instituto
Guimarães Rosa · Ministério das
Relações Exteriores · apoio local
Zanzibar – 11-13 fev 2025
Bernard Ntahondi · coorganização
Dhow Countries Music Academy (DCMA) · instituição parceira
Halda Alkanaan · diretoria da instituição parceira
Mohammed · conteúdo audiovisual e registro fotográfico
YAS, Fondation H, Embaixada do Brasil em Dar es Salaam / Instituto
Guimarães Rosa · Ministério das
Relações Exteriores · apoio local
Tóquio – 12-14 abr 2025
Andrew Maerkle, Kanako Sugiyama · coorganização
The 5th Floor; Sogetsu Kaikan; The University of Tokyo (com ACUT) · espaços
Jordan A. Y. Smith · assessoria do programa de poesia
Tomoya Iwata · produção local
Yoshiko Kurata · assessoria de imprensa local
Wataru Shoji · engenharia de som
Art Translators Collective · tradução simultânea
Kenji Agata, Naoki Takehisa, Sora Shirai, Takuma Osugi, Yoshikatsu Hirayama · conteúdo audiovisual e registro fotográfico
Embaixada do Brasil em Tóquio / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações Exteriores; Art Center, The University of Tokyo (ACUT) · apoio local
Publicação educativa #4
Organizado por
Equipe conceitual e Fundação
Bienal de São Paulo
Publicado por
Fundação Bienal de São Paulo e Center for Art, Research and Alliances (CARA) em português e em inglês
Projeto gráfico
Studio Yukiko
Coordenação editorial
Cristina Fino
Diagramação
Aninha de Carvalho
Assistência de edição
Deborah Moreira
Preparação e revisão
Bruno Rodrigues, Sandra Brazil, Tatiana Allegro
Tradução
Alexandre Barbosa de Souza, Gabriel Bogossian [pp. 72-97], Mariana Nacif Mendes
Fundação Bienal de São Paulo. Todos os direitos reservados. As imagens e os textos reproduzidos nesta publicação foram cedidos por artistas, fotógrafos, escritores ou representantes legais e são protegidos por leis e contratos de direitos autorais. Todo e qualquer uso é proibido e condicionado à expressa autorização da Fundação Bienal de São Paulo, dos artistas e dos fotógrafos. Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos das obras reproduzidas. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas.
Este livro foi publicado em português e em inglês em junho de 2025, como parte do projeto da 36ª Bienal de São Paulo.
Distribuição gratuita.
O título da 36ª Bienal de São Paulo, “Nem todo viandante anda estradas”, é formado por versos da escritora Conceição Evaristo
Fundação Bienal de São Paulo
Pavilhão Ciccillo Matarazzo –Parque Ibirapuera
Av. Pedro Álvares Cabral – Moema 04094-050 / São Paulo – SP bienal.org.br
Center for Art, Research and Alliances (CARA)
225 West 13th Street
Nova York, NY 10011 cara-nyc.org
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bukimi no Tani : o vale da estranheza : a afetividade do humanoide: publicação educativa : vol. 4 / organização Fundação Bienal de São Paulo; curadoria Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. -- São Paulo: Bienal de São Paulo, 2025.
ISBN 978-85-85298-91-3
1. Arte - São Paulo (Estado) – Exposições
2. Bienal de São Paulo (SP)
3. Cultura
4. Educação
5. Mediação
I. Fundação Bienal de São Paulo.
II. Ndikung, Bonaventure Soh Bejeng.
25-279078
Índices para catálogo sistemático:
1. Bienais de arte : São Paulo: Cidade 709.8161
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
CDD-709.8161
transportadora oficial agência oficial
apoio institucional
parceria estratégica
patrocínio master
patrocínio
apoio
parceria cultural apoio mídia
apoio internacional
realização
apoio local
Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam