36ª Bienal de São Paulo (2025) – Coletânea

Page 1


Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

36 a Bienal de São Paulo

36 a Bienal de São Paulo

Desde a sua criação em 1951, a Bienal de São Paulo é marcada pela sua constante renovação. Cada novo capítulo de sua história propõe um modo de existir no tempo e no espaço, sempre em diálogo com o contemporâneo. A 36ª edição do evento, com o título Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, parte de um conceito curatorial elaborado por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Inspirado no poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, o curador geral propõe uma escuta atenta das múltiplas formas de humanidade em deslocamentos, em encontros e em negociações.

A Fundação Bienal de São Paulo entende que sua missão se organiza em torno de um preceito central: a relevância. Isso significa produzir sentido, gerar acesso e impactar de forma positiva o maior número possível de pessoas. Ser relevante é responder às questões mais urgentes do nosso tempo sem deixar de também abraçar as dúvidas e incertezas, isto é, fazer perguntas. Para isso, a seleção curatorial, atribuição de cada nova gestão, é o primeiro passo. Dela se desdobram os artistas e suas obras, escolhidas por sua potência crítica, estética e conceitual, e por sua capacidade de refletir ou tensionar desafios coletivos. Mas nenhuma obra se completa sozinha: é preciso criar condições para que os visitantes se aproximem, interajam e encontrem no evento um espaço para a troca. Essa construção é feita antes, durante e depois da visita, com materiais educativos, conteúdos digitais e publicações inéditas, que juntos ampliam as experiências e fomentam a aproximação com a arte contemporânea, assim como sua pesquisa e a formação de público.

Ser parte do desenvolvimento de uma Bienal é um privilégio. É assistir à história da arte acontecer diante dos olhos – e ver-se dentro dela. Ao acompanhar o nascimento de uma exposição dessa escala, integramos o processo vivo da criação. Desde as decisões conceituais até a desmontagem e os muitos processos de tratamento dos resíduos quando o evento se encerra, cada etapa exige coordenação precisa, diálogo constante e responsabilidade compartilhada entre profissionais de múltiplos campos de atuação.

Esta edição tem ainda uma característica especial: sua duração expandida, de setembro de 2025 a janeiro de 2026, estendendo em um mês sua presença no calendário cultural. Mais do que uma ampliação no tempo, trata-se de potencializar as possibilidades de encontro. E, como sempre, o acesso é gratuito, tanto à exposição quanto à sua programação – um compromisso da Fundação com a democratização da arte e com a constante construção de um público cada vez mais participativo da cultura.

Nada disso seria possível sem o comprometimento conjunto dos nossos parceiros, em especial os órgãos públicos e as empresas patrocinadoras que acreditam na relevância da arte como forma de criar um futuro melhor para todos. E, claro, também não seria possível sem os profissionais da Fundação Bienal e a grande rede de colaboradores que, com diligência, garantem o cumprimento de prazos exigentes, a execução rigorosa das ações planejadas, a manutenção da saúde financeira da instituição e a boa conservação dessa joia do modernismo que é o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, palco principal de todos esses encontros. É esse empenho que garante a permanência de um projeto histórico que se fortalece há mais de sete décadas – orientado pela certeza da excelência e relevância.

O Ministério da Cultura celebra a 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, edição inspirada nos versos da célebre escritora Conceição Evaristo. Por meio da Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, o Governo Federal tem orgulho de ser um dos realizadores deste tão importante evento que reúne grandes artistas de todo o mundo ao redor de questões fundamentais para a contemporaneidade, amplificadas por um programa educativo que é referência internacional.

As artes visuais têm o poder de nos confrontar com os temas mais desafiadores de nossos tempos valendo-se de abordagens poéticas complexas e irredutíveis a simplificações ou respostas fáceis. Mais do que oferecer soluções, a Bienal coloca perguntas e multiplica pontos de vista, estabelecendo contato com o diverso, com outras experiências de vida, distintas formas de estar no mundo. Visitar a Bienal é ampliar repertórios estéticos e éticos com o exercício de empatia envolvido no contato com a obra de arte, essencial para o fortalecimento de uma cultura cada vez mais cidadã.

O Ministério da Cultura tem atuado de forma incansável para fomentar o setor cultural, criando oportunidades para artistas e trabalhadores das mais diversas linguagens e campos da cultura. Por meio de iniciativas como a Lei Rouanet, a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, este Ministério tem tido a alegria de fomentar projetos por todo o país, fortalecendo a economia criativa e trabalhando para a implementação de políticas culturais permanentes e democráticas.

A Bienal de São Paulo promove o encontro com a arte de forma integralmente gratuita, em um esforço de democratização do acesso à cultura aliado às políticas públicas desenvolvidas por este Ministério. A arte e a educação são indispensáveis para assegurar o direito a uma cidadania plena e crítica que cabe a todos os brasileiros e brasileiras. Por isso, o Governo Federal, aqui representado pelo Ministério da Cultura, segue comprometido com o investimento em iniciativas que promovam a vivência cultural plena, para que as gerações presentes e futuras tenham acesso à experiência transformadora que é a arte.

Ministra da Cultura – Governo Federal do Brasil

Há mais de 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem desempenhado um papel fundamental para a valorização da arte, cultura e educação de uma sociedade complexa e heterogênea como a brasileira. Essa atuação se expande por meio de parceiros essenciais para o desenvolvimento do setor da economia da cultura e das indústrias criativas, como a Fundação Bienal de São Paulo.

O Itaú Unibanco se orgulha de ser o parceiro estratégico da Fundação Bienal de São Paulo – uma parceria de 27 anos, sendo esta a 12ª edição realizada nesse período –, reafirmando o compromisso com a promoção das artes visuais e o seu papel transformador. A Bienal de São Paulo é um importante espaço de encontro e intercâmbio entre artistas, curadores, críticos e público.

Nesse campo, o Itaú Cultural articula ações de fruição, formação e fomento, entre elas, as exposições individuais e coletivas que acontecem tanto na sede na Avenida Paulista, 149 (com entrada gratuita) quanto em equipamentos nas cinco regiões do país. Entre as exposições de 2025, destaque para Carlos Zilio – A querela do Brasil, com curadoria de Paulo Miyada, que trará uma retrospectiva desse artista que, com erudição e irreverência, explorou as tensões da arte brasileira. Também serão dedicadas mostras à artista visual Rivane Neuenschwander e ao curador e crítico Paulo Herkenhoff.

Acesse itaucultural.org.br para navegar pelas exposições virtuais Filmes e vídeos de artistas, com produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na Coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. Já na Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia. itaucultural.org.br) você tem acesso a centenas de verbetes de personagens, de obras e de eventos de artes visuais.

Estar presente na Bienal de São Paulo reforça nosso objetivo de construir vínculos com diferentes públicos, prezando pela diversidade de formatos, pensamentos e subjetividades e fomentando o fazer criativo e crítico através da arte e da cultura brasileiras.

Itaú Cultural

A Bloomberg se orgulha de patrocinar a 36ª edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano continua a tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas ao público.

Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, as quais, segundo acreditamos, são um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos. Bloomberg

Para o Bradesco, um banco brasileiro por excelência e que completou 83 anos, arte e cultura não são apenas elementos fundamentais à formação da identidade de um povo ou à construção de seu patrimônio imaterial, mas também uma jornada de inclusão e cidadania, uma saudável convergência entre diferentes pontos de vista. É, por assim dizer, um caminho em direção ao novo, mas com o cuidado de valorizar aquilo que é especial o bastante para ser história ou tradição.

Portanto, quando se fala em arte e cultura, perdem sentido as fronteiras entre passado, presente e futuro, entre o que é forma ou conteúdo. Tudo vira reflexão e aprendizado, tudo se transforma em provocação e surpresa.

Foi a partir dessa interpretação, combinada à visão positiva do papel das empresas na viabilização do que a sociedade considera importante, que o Bradesco se tornou patrocinador da 36ª edição da Bienal de São Paulo, seguramente um dos principais eventos do país voltados a estimular o circuito artístico, divulgar as diversas expressões de arte e promover o intercâmbio cultural, com tudo de bom que ele agrega.

Ao participar de algo a um só tempo grandioso e de muitos significados, o Bradesco compartilha com a Fundação Bienal de São Paulo – que organiza o evento há mais de seis décadas – o propósito de democratizar o acesso à cultura, multiplicar seu alcance e promover a valorização da arte.

É um caminho sem fim, sem volta, repleto de desafios e ao menos uma certeza: quanto mais gente participando dele, melhor!

Bradesco

A Petrobras possui uma história de mais de quarenta anos acreditando de forma contínua na cultura como elemento transformador e fonte de energia para a sociedade. Apoiando projetos únicos e parcerias de longo prazo, construímos uma relação de respeito e colaboração com realizadores e iniciativas em todo o país.

O Programa Petrobras Cultural tem a brasilidade como elemento norteador, que se materializa nas temáticas, origens, curadoria, história e características de cada projeto que selecionamos. Por meio do incentivo a diversos projetos, colocamos em prática nossa crença de que a cultura é uma importante energia que transforma a sociedade. Acreditamos que, com criatividade e inspiração, promovemos crescimento e mudanças.

A Bienal de São Paulo é um dos mais prestigiosos eventos do setor no país e no mundo. O patrocínio da Petrobras reforça o papel da empresa na promoção da cultura, em suas diversas formas, consolidando a companhia como uma das maiores apoiadoras das artes no Brasil.

Eventos como a Bienal de São Paulo contribuem de forma relevante para a economia, promovendo inovação, criatividade e sustentabilidade à dinâmica econômica. A Petrobras é uma aliada do desenvolvimento do país em seus diversos setores. Investe em muitas formas de energia, e a cultura certamente é uma delas.

A Petrobras tem orgulho em apoiar a cultura brasileira em sua pluralidade de manifestações, levando a arte a todos os públicos, por todo o país. Porque cultura também é nossa energia.

Para conhecer mais sobre o Programa Petrobras Cultural, visite petrobras.com.br/cultura. Petrobras

O Instituto Cultural Vale acredita no poder transformador da cultura. Como um dos principais apoiadores da cultura no Brasil, patrocina e impulsiona projetos que promovem conexões entre pessoas, iniciativas e territórios. Seu compromisso é tornar a cultura cada vez mais acessível e plural, ao mesmo tempo que atua para o fortalecimento da economia criativa.

Assim, é uma alegria fazer parte da realização desta 36ª Bienal de São Paulo e de seu programa educativo, que experimenta novos formatos e abordagens. Formulado a partir das Invocações propostas pela curadoria – encontros com poesia, música, performances e debates que investigam noções de humanidade em diferentes geografias –, o programa educativo expande a comunicação da Bienal com os diferentes públicos e promove sua difusão para além do espaço e do tempo de exposição, de maneira interdisciplinar.

A cada nova edição, a Bienal nos convida a repensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado. Nesse sentido, conecta-se ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil.

Onde tem cultura, a Vale está.

Cultural Vale

Instituto

Há 110 anos, o Citi faz parte da história do Brasil, acompanhando suas transformações e impulsionando seu desenvolvimento. Nossa trajetória se confunde com a do país: somos testemunhas e participantes de um Brasil que se reinventa e que avança.

Mais do que uma instituição financeira, somos uma presença que acredita na força da cultura e da educação como motores de um futuro mais inclusivo, inovador e sustentável. Investir nesses pilares é também valorizar a pluralidade, a criatividade e o talento que definem o espírito brasileiro.

É com esse compromisso que, pela primeira vez, temos orgulho de apoiar a 36ª Bienal de São Paulo – um dos mais importantes espaços de expressão artística da América Latina, onde o Brasil pensa, sente e se reinventa através da arte.

Acreditamos na arte como agente de transformação social. A criação artística tem o poder de provocar diálogos, ampliar repertórios e inspirar novas possibilidades de mundo. Ao patrocinar a Bienal, reafirmamos nosso compromisso com a cultura, com a inovação e com todos aqueles que, por meio da arte, constroem novas narrativas para o presente e o futuro.

Citi

A Vivo acredita na cultura como meio de transformação social e é uma das principais marcas apoiadoras das artes visuais, cênicas e da música no Brasil. A arte, como a tecnologia, cria conexões entre as pessoas e incentiva a busca do equilíbrio entre a história, a natureza e o tempo.

Atualmente, a Vivo é patrocinadora dos principais museus do Brasil, como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), a Pinacoteca de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), além do Instituto Inhotim e do Palácio das Artes, ambos em Minas Gerais, e do Museu Oscar Niemeyer, no Paraná.

O Teatro Vivo, localizado em São Paulo, conta com uma curadoria de peças contemporâneas, que promovem reflexões sobre questões atuais e valorizam a diversidade cultural. Além disso, o espaço é totalmente acessível, oferecendo recursos como tradução em libras, audiodescrição e equipe treinada, garantindo inclusão para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Em 2024, recebeu mais de 50 mil pessoas.

A marca também apoia projetos no universo da música que são genuinamente brasileiros e regionais, reforçando a proximidade com a cultura local em eventos icônicos e tradicionais do nosso país, como Festival de Parintins, Galo da Madrugada, Festival Çairé, Lollapalooza, The Town e Vivo Música.

As iniciativas da marca no âmbito cultural ampliam o acesso ao conhecimento com novas formas de vivência e aprendizado, fortalecidas nos aspectos de diversidade, sustentabilidade, inclusão e educação. Todas as informações estão reunidas e são compartilhadas nos perfis @vivo.cultura e @vivo no Instagram.

Vivo

Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir processualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos.

O encontro entre arte e educação – ambas entendidas como campos do saber – permite a torção do tempo e do espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e sobre ele interferir? Ela nos permite (re)povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas e, assim, talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente com as questões que atravessam a existência.

É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 36ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade.

Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado na promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários, formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante, com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito, e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.

Sesc São Paulo

Da calma e do silêncio

Conceição Evaristo

Nem todo viandante anda estradas

Da humanidade como prática

Um conceito em três fragmentos

Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Entrada

Tsitsi Jaji

Nuvens se alastram

Etel Adnan

Eu afirmo

Abdellatif Laâbi

On a tous besoin de rêver (Todos nós precisamos sonhar) Alya Sebti

No tempo circular indígena

Márcia Wayna Kambeba

Tout moun se moun

Jean Casimir

Da humanidade como práxis

Encontros em três fragmentos

Abena P. A. Busia

O et e o humano

Yásnaya Elena Aguilar Gil

Nós / Eles

Rodney Saint-Éloi

Caminhando juntos

Notas sobre a solidariedade para além da empatia

Anna Roberta Goetz

Nós é que somos a função

Joshua Chambers-Letson

Desvios radicais

Errância como prática

abolicionista

Juliana Borges

Se a humanidade é um verbo, este é caminhar

Jacques Attali com

Alya Sebti e

Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Vertigem

Nam Le

Trovador de Guanajuato

Kim Cheng Boey

Palavras juntas

são melodia

Keyna Eleison

Ouvimos o som da floresta

ancestral

Linh Nga Niê Kdam

Mulheres-cabaças

Creuza Krahô

Protestos nus na África, o digital e o humano

Naminata Diabate

Horizonte de plenitude

Hervé Yamguen

Vórtice

Recitação da passagem

Edimilson de Almeida Pereira

Ukutshisa Ateando fogo ao arquivo

Panashe Chigumadzi

Paisagens temporárias

Thiago de Paula Souza

Os mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra

Conjugando o H-U-M-A-N-O

Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Da calma e do silêncio Conceição

Evaristo

Em: Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2021.

Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim versejar o âmago das coisas.

Quando meu olhar se perder no nada, por favor, não me despertem, quero reter, no adentro da íris, a menor sombra, do ínfimo movimento.

Quando meus pés abrandarem na marcha, por favor, não me forcem. Caminhar para quê? Deixem-me quedar, deixem-me quieta, na aparente inércia. Nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra.

Nem todo viandante anda estradas

Da humanidade como prática

Um conceito em três fragmentos

Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Fevereiro, 2024

Traduzido do inglês

Aviso de isenção

Esta Bienal não é sobre identidades e suas políticas; não é sobre diversidade nem inclusão; não é sobre migração nem democracia e suas falhas…

Aviso de reivindicação

É sobre a humanidade como verbo e como prática, sobre o(s) embate(s) e as negociações quando do encontro de mundos distintos, sobre desmantelar assimetrias como um pré-requisito para o exercício da humanidade como prática, sobre a alegria e a beleza e suas poeticalidades enquanto forças gravitacionais que mantêm nossos mundos no eixo… pois a alegria e a beleza são políticas. É sobre imaginar um mundo onde enfatizamos nossa humanidade.

Fragmento I – Da calma e do silêncio

Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim versejar o âmago das coisas.

Quando meu olhar se perder no nada, por favor, não me despertem, quero reter, no adentro da íris, a menor sombra, do ínfimo movimento.

Quando meus pés abrandarem na marcha, por favor, não me forcem.

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar, deixem-me quieta, na aparente inércia. Nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra.

Conceição Evaristo, “Da calma e do silêncio”1

O conceito da 36a Bienal de São Paulo é uma proposta para pensar, ouvir, ver, sentir, perceber o mundo do ponto de vista do Brasil – suas histórias, paisagens, filosofias, mitologias e complexidades –, já que a ficção que é o Brasil é o ponto culminante de muitos mundos e suas tangentes. Dito isso, será dada ênfase à escuta como base fundamental para praticar a humanidade. Como escreveu Jacques Attali em seu seminal ensaio Noise: The Political Economy of Music [Ruído: A economia política da música], “há 25 séculos, o conhecimento ocidental tenta ver o mundo. Mas ele não entendeu que o mundo não é para ser contemplado. É para ser ouvido. Não é para ser lido, mas escutado”.2 Aparentemente herdamos um mundo construído por pessoas que tentaram vê-lo e lê-lo. Pode-se dizer que, para conjugar a humanidade como verbo, é preciso aprender a ouvir o mundo, ouvir os campos, ouvir as plantas e os animais, ouvir as pessoas, ouvir as vozes das ondas que acariciam as praias, o murmúrio das águas, os ventos que esculpem a areia e os contornos da terra, ouvir os sussurros das rochas, colinas e montanhas, ouvir a miríade de seres que compõem nossos estuários. Podemos dizer com segurança que há uma correlação entre as impossibilidades de ouvir e a desumanização, além de privação de direitos, apropriação de terras e até destruição do meio ambiente.

Nesta proposta, o espaço físico e filosófico do estuário será usado como metáfora para espaços de encontro, negociações, trocas, convívio, sobrevivência, sustento, luta, desamparo, reparo, reabilitação, necessidades… espaços nos quais as práticas da humanidade poderiam adquirir novos significados.

Dos estuários de Santos e Bertioga, em São Paulo, ao estuário do Capibaribe, em Recife, ou da Lagoa dos Patos, que vai

de Porto Alegre à cidade de Rio Grande, o momento em que dois cursos d’água se encontram, como um rio que encontra o mar, é um momento de negociação de assimetrias físicas e químicas que cria um extraordinário ecossistema onde vicejam caranguejos, jacarés, peixes, aves migratórias, manguezais, ostras, fitoplâncton, caramujos, algas, tartarugas marinhas, zooplâncton e até mesmo humanos. Uma característica única de um estuário é sua interdependência. Cada ser tem um papel, um nicho (o nicho das ostras, por exemplo, é a filtragem; cada ostra filtra cerca de duzentos litros de água por dia), no sustento de cada espécie, no ecossistema como um todo e na vigorosa biodiversidade, sobretudo graças aos variados níveis de salinidade decorrentes do encontro da água doce com a salgada. Assim, para um amplo espectro de seres, os estuários são importantes como habitat, como fonte de recursos e como um espaço para reprodução ou transição em nossos ecossistemas, e sua existência é crucial para o meio ambiente. Os estuários atuam como sistemas tampão durante períodos de erosão, inundação ou chuvas intensas, e também ajudam a filtrar a água doce. No entanto, em decorrência da intensa urbanização, da dragagem, da pesca predatória, da poluição, da exploração de petróleo e gás etc. em escala planetária, os ecossistemas dos estuários estão perdendo o equilíbrio, assim como a humanidade está perdendo o controle de si mesma e do mundo.3 Ao invocar a pluralidade de seres e suas coexistências e contingências dentro do espaço do estuário como uma metáfora para as relações dos indivíduos entre si e com os outros seres, este projeto remete de forma tangencial à 27ª Bienal de São Paulo, de 2006, intitulada Como viver junto e curada por Lisette Lagnado, bem como à 2ª Bienal, de 1953 (ou “Bienal da Guernica”), em termos de ações e urgências em jogo.

Assim, quando Conceição Evaristo escreve, em “Da calma e do silêncio”, que “Nem todo viandante/ anda estradas,/ há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra”, pode-se pensar nos estuários como o epítome desses mundos submersos penetráveis pelo silêncio da poesia da natureza e, ao mesmo tempo, como o caminho de coexistência que é tecido quando os diferentes mundos de água doce e salgada convergem, como um caminho que os humanos, enquanto viandantes, podem percorrer. O Brasil nasceu do violento encontro entre povos indígenas, colonizadores europeus e africanos escravizados. Toda civilização se origina de um encontro, independentemente do quão violento ele possa ser, e algumas levam

mais tempo do que outras para germinar. Para que a germinação e o cultivo adequado aconteçam, deve-se ter paciência para morder e rasgar as palavras até o tutano dos verbos, perseverança para contemplar o distante de modo que a clareza dos mais ínfimos movimentos ao longe possa ficar impregnada em nossa íris, como Evaristo insinua.

Então que caminhos devemos percorrer para praticar a humanidade como verbo? Como nos dar ao luxo de sair dos trilhos, sair da estrada, aceitando a errância, nos perdendo, encontrando outros mundos?

Fragmento II – Une Conscience en fleur pour autrui

Ma joie est de savoir que tu es moi et que moi je suis fortement toi. Tu sais que ton froid dessèche mes os et que mon chaud vivifie tes veines.

Ma peur fait trembler tes yeux et ta faim fait pâlir ma bouche. Sans ta force d’être un feu libre ma conscience serait plus seule que la terre morte d’un désert. Ma vie offre des clefs émerveillées à la perception de ta propre essence. Lorsque tu veilles sur ma liberté tu donnes un ciel et des ailes au mouvement de mon espérance. Mon désir d’être heureux, s’il cessait un instant de compter avec le tien tomberait aussitôt en poussière. Quand tu saignes au couteau mon identité nos consciences vont ensemble à l’abattoir.

[Minha alegria é saber que você é eu e que eu sou fortemente você. Você sabe que seu frio seca meus ossos e meu calor revigora suas veias. Meu medo faz tremerem seus olhos e sua fome faz minha boca empalidecer.

Sem sua força de ser um fogo livre minha consciência estaria mais só do que a terra morta de um deserto. Minha vida oferece chaves maravilhosas à percepção de sua própria essência. Quando você zela por minha liberdade você dá um céu e as asas ao movimento de minha esperança. Meu desejo de ser feliz, se deixasse por um instante de contar com o seu, imediatamente se transformaria em pó. Quando você corta à faca minha identidade nossas consciências vão juntas ao matadouro.]

René Depreste, “Une Conscience en fleur pour autrui” [Uma consciência em flor para os outros]4

O artista Leo Asemota uma vez perguntou: quando você olha no espelho, quem você vê? Ele mesmo se adiantou e respondeu que há, é claro, a possibilidade de só ver a si mesmo, mas, quando ele olha no espelho, ele vê todas as pessoas que vieram antes dele e todos que estão sob seus cuidados. Esse espírito de interligação vertical e horizontal pode ser outro elemento crucial na conjugação da humanidade.

Nesta época de profunda crise política e social em que estamos inseridos no mundo, a questão de quem vemos quando olhamos no espelho torna-se ainda mais importante. Ver uma multitude no espelho é reconhecer sua existência, suas preocupações e, finalmente, cuidar de seu bem-estar.

O Estado-nação é um desses construtos que parece ver apenas a si mesmo quando olha no espelho. É por isso que reforçamos nossas fronteiras com muros, travamos guerras, expulsamos imigrantes, destruímos o meio ambiente etc. Será que poderíamos realmente olhar no espelho e ver a humanidade? Em todas as suas formas e cores, com todos os seus defeitos e qualidades, com todos os seus tons de cinza e todas as suas imperfeições? Em sua forma atual, o espelho diante do qual nos movemos está todo quebrado, e, ao invés de um reflexo, parece que estamos vendo refrações infinitas que levam ao esquecimento. Mas até mesmo um espelho quebrado tem conserto. Para se engajar nesse processo de reparo,

no entanto, é preciso ser guiado pelas máximas de René Depestre em “Une Conscience en fleur pour autrui”: “Minha alegria é saber que você é eu/ e que eu sou fortemente você”, ou “minha vida oferece chaves maravilhosas/ à percepção de sua própria essência”.

A humanidade é uma prática.

A humanidade é um verbo.

É algo que pode ser conjugado.

Fragmento III – A intratável beleza do mundo

O que surge do abismo

é um rumor de vários séculos. E é o canto das planícies do oceano.

As conchas sonoras se esfregam contra os crânios, ossos e bolas verdes de canhão no fundo do Atlântico.

Nesses abismos há cemitérios de navios negreiros, muitos de seus marinheiros. A voracidade, as fronteiras violadas, as bandeiras, erguidas e tombadas, do mundo ocidental. […] Mas esses africanos deportados quebraram as barreiras do mundo. Eles também abriram, com respingos sangrentos, os espaços das Américas. […]

O que resta desses outrora transbordados, desse lodo do abismo, são todos os velhos mundos que foram esmagados para dar origem a uma nova região. Um mundo arrasou a África. Essas Áfricas impregnaram os mundos de longe. Isso evidencia e nos permite entender o Todo-Mundo, presente em tudo, válido para todos, múltiplo em sua totalidade, cuja base é o rumor do abismo.

Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, “L’Intraitable beauté du monde” [A intratável beleza do mundo]5

O estuário de Recife, em Pernambuco, é um espaço de múltiplos encontros. Não é apenas o ponto onde a água doce se encontra com a salgada, mas foi também o primeiro porto nas Américas em que pessoas escravizadas retiradas à força da África se viram diante do chamado “novo mundo”. Desde sua fundação em 1537 pelos colonizadores portugueses, Recife é um local singular em que

aquilo que emergiu daquele abismo, daquele fosso, apesar de violências revoltantes, sempre pôde manifestar sua beleza intratável. Um local onde os rumores advindos das profundezas daquele abismo (ou decorrentes do próprio abismo) ainda ressoam em todas as ondas ávidas e se manifestam como aquela noção de Todo-Mundo. No Brasil, aquela “intratável beleza do mundo” deu origem a alguns dos mais importantes movimentos culturais e artísticos do século 20, como: o movimento antropofágico dos anos 1920, que moldou e embasou uma vanguarda brasileira e gerou o “Manifesto Antropófago”, além de uma estética e política que Oswald de Andrade chamou de “transnacionalismo canibal” (filosofia que reivindicava a canibalização, a ingestão, a digestão de outras culturas como meio de impor o Brasil diante do domínio cultural durante e após a colonização europeia, como tão bem mostrou a 24a Bienal de São Paulo, curada por Paulo Herkenhoff com Adriano Pedrosa); o Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento fundado por Abdias do Nascimento em 1944 para lidar com a escassez da presença e da dignidade negras nas artes performáticas brasileiras, dando início a um movimento de dramaturgia afro-brasileira, que também se engajou politicamente ao levar a luta antirracista para a Assembleia Constituinte de 1946 e influenciar “a criação da Lei Afonso Arinos, a primeira voltada a coibir o racismo”;6 a “Eztetyka da Fome” do Cinema Novo, filmicamente formulada por Glauber Rocha em 1965, entendendo o cinema como uma importante ferramenta e arma para a luta revolucionária; o movimento tropicalista de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Torquato Neto nos anos 1960, que, com seu manifesto Tropicália: ou Panis et circencis, defendia um “campo para reflexão sobre a história social” por meio da música, do cinema e de outras expressões artísticas que sincronizavam as culturas da África e do Brasil e encontravam uma voz política no auge da ditadura civil-militar brasileira; ou o movimento manguebit dos anos 1990 no Recife, que pregava uma revolta musical contra a estagnação sociopolítica, econômica e cultural e uma resistência à agenda neoliberal que havia usurpado a maior parte da América Latina, que defendia uma memória cultural que abarcasse todos os atributos mencionados anteriormente (“presente em tudo, válido para todos, múltiplo em sua totalidade”) e que optou por sair do cul-de-sac socioeconômico por meio de uma pidginização de escapes sonoros e gêneros como makossa, rumba congolesa, reggae, coco, forró, maracatu, frevo, bem como rock, hip-hop,

música eletrônica e funk. O cerne do Fragmento III é o movimento manguebit e seu manifesto “Caranguejos com cérebro”, escrito em 1992 pelo vocalista Fred Zero Quatro e pelo DJ Renato L. e trazido à tona por duas bandas lendárias e dois álbuns de 1994 cujos títulos já revelam sua intenção: Samba esquema noise, do Mundo Livre S/A, e Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi.

Em “Manguebit”, primeira canção de Samba esquema noise, o Mundo Livre S/A fala do transistor, de Recife como um circuito e do país como um chip; aborda o manguebit como um vírus que contamina pelos olhos, ouvidos, linguagens, ondas sonoras, e esse vírus é conduzido por uhf com o auxílio de antenas-agulhas através do mangue nos estuários. A banda fala da terra como um rádio e da destruição da terra e dos afluentes. Esse foi um hino para os estranhos tempos de então e de agora.

A primeira música do Chico Science & Nação Zumbi em Da lama ao caos, intitulada “Monólogo ao pé do ouvido (vinheta) / Banditismo por uma questão de classe”, é um intenso hino duplo de provocação. Em “Monólogo ao pé do ouvido (vinheta)”, eles falam do próprio movimento como uma evolução musical para modernizar o passado, de como o medo dá origem ao mal e de como o homem coletivo sente a necessidade de lutar contra o orgulho, a arrogância, a glória, e de como os demônios destroem o poder bravio da humanidade: “Viva Zapata!/ Viva Sandino!/ Viva Zumbi!/

Antônio Conselheiro/ Todos os Panteras Negras/ Lampião”. Já em “Banditismo por uma questão de classe” eles contam uma história sobre bandidos, sobre o discurso da solução e do progresso, e como isso pode ser feito com o assassinato de pessoas inocentes pelas forças da lei e da ordem. Eles falam do banditismo como sobrevivência, como necessidade, como consequência da luta de classes.

O fato de essas bandas se referirem a um mundo livre e a uma nação Zumbi em seus nomes não é coincidência. Assim como não é coincidência o fato de elas serem de Recife. Afinal, foi lá que aconteceu o 1º Congresso Afro-Brasileiro, em 1934, incluindo ativistas como Solano Trindade – que, aliás, fazia parte da Frente Negra Pernambucana e do Teatro Experimental do Negro.7 E, ainda mais importante, foi nos estados de Pernambuco e Alagoas que o grande Francisco Zumbi (1655-1695), de origem congolesa, que entrou para a história como Zumbi dos Palmares, reivindicou seu reino, lutou contra os colonizadores portugueses, resistiu contra a escravização de africanos e libertou seu povo, realocando-o para o reino dos

maroons, os quilombos – que posteriormente seriam classificados por Abdias do Nascimento como alguns dos primeiros espaços e estruturas democráticos do que hoje é o Brasil. Os quilombos forneceram a base para a construção de movimentos como o manguebit mais de trezentos anos depois.

O Fragmento III é uma reflexão sobre o movimento manguebit e seu manifesto “Caranguejos com cérebro”, entendidos como uma representação do cérebro social coletivo.

No artigo “Innovation in the Collective Brain”, de 2016, Michael Muthukrishna e Joseph Henrich refletem sobre algo que muitas pessoas em culturas não ocidentais já conhecem desde tempos imemoriais:

Nossas sociedades e redes sociais agem como cérebros coletivos. Indivíduos conectados a cérebros coletivos, transmitindo e obtendo informações seletivamente, em geral bem distantes de sua atenção consciente, podem desenvolver projetos complexos sem precisar de um projetista – assim como a seleção natural faz na evolução genética. Os processos da evolução cultural cumulativa resultam em tecnologias e técnicas que ninguém poderia recriar individualmente em vida, e não exigem que seus beneficiários entendam como e por que elas funcionam. Essas adaptações culturais parecem funcionalmente muito bem desenhadas para atender problemas locais, mas carecem de um projetista.8

Os autores se aprofundam nas origens e maquinações dos cérebros coletivos ao discutirem seus “neurônios” e observarem como os cérebros individuais evoluem de acordo com a aquisição da cultura – os chamados cérebros culturais (cérebros que evoluíram primordialmente para a aquisição de conhecimento adaptativo). Isso quer dizer que “nossos cérebros culturais evoluíram paralelamente a nossos cérebros coletivos”. Muthukrishna e Henrich mostram como “os cérebros culturais estão ligados a cérebros coletivos que geram invenções e difundem inovações” e examinam as maneiras como “os cérebros coletivos podem se retroalimentar para tornar mais ‘inteligentes’ cada um dos cérebros culturais que fazem parte deles –ou pelo menos mais bem equipados cognitivamente para lidar com os desafios locais”.9

Os fios com que foram trançados o tecido, o cérebro cultural, o cérebro coletivo de Recife, do manifesto “Caranguejos com cérebro”, abrangem tanto o encontro de mundos distintos, cujos caminhos foram forçados a se cruzar há quase quinhentos anos, quanto as diferentes entidades sociais, como a família, as plantations, as escolas de samba, as diversas redes sociais. Como afirmam Muthukrishna e Henrich:

A estrutura mais básica do cérebro coletivo é a família. Aqueles que estão se iniciando no aprendizado cultural primeiro têm acesso a seus pais, e possivelmente a uma gama de aloparentes (tias, avôs etc.). As famílias estão inseridas em agrupamentos maiores, que podem assumir muitas formas, de grupos de caçadores-coletores igualitários a vilas, clãs e sociedades do “grande homem”, de cacicados a Estados com diferentes graus de democracia e de sistemas de livre mercado e bem-estar social, além de grandes sindicatos.10

Além do povo, as referências geográficas e geológicas de Recife também desempenham um importante papel na manifestação daquele cérebro cultural e coletivo que deu origem ao movimento manguebit. A cidade de Recife está situada na confluência dos rios Beberibe e Capibaribe, que avançam majestosamente até desaguar naquela enorme massa de água, o Atlântico Sul, em cujo ventre, em cuja tumba, as vozes ainda cantam. A topografia e o clima também contribuem para a formação do conhecimento. Com sua floresta tropical, seu alto índice pluviométrico, seu clima de monções, seus estuários, sua alta umidade relativa do ar, Recife já foi chamada de filha do mangue, e seu Parque dos Manguezais também empresta o nome ao manguebit. Mas essa riqueza natural e ecológica de Recife, que poderia ser um sonho para alguns, se tornou um pesadelo para a população da cidade. No artigo “Life Reborn in the Mud” [A vida renasce na lama],11 Alice de Souza escreve sobre a Ilha de Deus, que foi amplamente negligenciada e abandonada à própria decrepitude nos anos 1970 e 1980 – não havia água, luz elétrica, nem atenção do governo. Em meio a essas terríveis condições sociopolíticas e econômicas, a ilha era chamada de Ilha sem Deus. Como se o descaso em relação à ilha não fosse suficiente, em 1983 duas fábricas próximas provocaram um desastre

ambiental ao despejar na água dejetos da produção de sabão, contaminando peixes e plantas aquáticas, que eram os principais meios de subsistência na região. Isso levou à fome e ao êxodo em massa dos habitantes da ilha, que foram em busca de campos mais férteis. Ao mesmo tempo, o índice de criminalidade disparou na ilha, que se tornou local de esconderijo para gangues. Mas essa situação não se restringia à Ilha de Deus, uma vez que a construção desenfreada em Recife, a contaminação do meio ambiente pelas indústrias, o lançamento de dejetos nos rios e a destruição de vidas nos manguezais da cidade (que haviam ficado supersaturados de plástico e outros resíduos) levaram a uma autossufocação. Se os rios e estuários de Recife eram as veias e artérias do lugar, então a cidade estava sofrendo de uma terrível trombose.

Em meio a esse cenário, o movimento manguebit surgiu como uma revolução cultural nos anos 1990, basicamente para dizer “Chega!”, ao lado de diversos grupos ambientais voltados ao reflorestamento nos manguezais, que pretendiam arregaçar as mangas e entrar na lama até os joelhos a fim de retirar o plástico dos estuários.12 Esse novo movimento chegou com um novo som: o manguebit.

O Fragmento III desta Bienal faz um tributo ao movimento manguebit como um descendente de todos os grandes movimentos que já surgiram no Brasil. Conforme afirma Melcion Mateu em seu ensaio “Nação Zumbi: Two Decades of ‘Crabs with Brains’ (and Still Hungry)” [Duas décadas de “Caranguejos com cérebro” (e ainda com fome)]:

O termo “manguebit” é, em si mesmo, uma palavra-valise, híbrida, que faz referência a um cenário local (“mangue”) e à tecnologia global (“bit” ou dígito binário, como na ciência da computação): um movimento enraizado em seu próprio ambiente, mas conectado à tecnologia global […]. Uma antena parabólica inserida na lama se tornou a imagem conceitual para descrever um movimento que almejava conectar a cultural local à cena mundial.13

Ou seja, o manguebit é um paradigma conceitual que concilia as noções de maternidade, fertilidade, diversidade, produtividade com a noção de uma tecnologia, mídia digital ou computação que pode facilitar o sincretismo, que pode criar uma ponte não

apenas através do Atlântico, mas entre aqueles que sobreviveram em terra firme e aqueles que ainda estão presos no abismo. A tecnologia nesse contexto tem um duplo propósito de conectar e subverter. O manguebit também deve ser entendido como a possibilidade de criar tecnologias, ciências e artes que não apenas reflitam o cotidiano, mas que também sejam fundamentais para a subversão dos terrores da normatividade. Dessa forma, as tecnologias e ciências que foram criadas para desprivilegiar as massas são reapropriadas e destituídas de seus propósitos originais no que podemos chamar de armas de subversão em massa.

O manifesto “Caranguejos com cérebro” se relaciona diretamente com a população de Recife, à qual muitos se referem coloquialmente como caranguejos que moram no mangue. Os caranguejos, assim como as lagostas e os camarões, são conhecidos por serem mestres da navegação em seus territórios e até mesmo em territórios desconhecidos, pois são donos de uma memória sofisticada. Descobriu-se que eles têm uma capacidade cognitiva para aprendizado complexo, apesar de seus cérebros rudimentares. No artigo “Clever Crustaceans”, Erica Westly afirma que caranguejos “podem se lembrar da localização de um ataque de gaivotas e aprender a evitar aquela área. Entre os mamíferos, esse tipo de comportamento envolve múltiplas regiões do cérebro, mas um estudo publicado na edição de junho do Journal of Neuroscience sugere que o caranguejo C. granulatus pode se virar bem com poucos neurônios”.14 Experimentos feitos por neurocientistas da Universidad de Buenos Aires para testar a capacidade de memória dos caranguejos mostraram que eles podem reter informações por mais de 24 horas, que é o parâmetro clínico para a memória de longo prazo na maioria dos animais, incluindo os humanos. E mais: eles demonstraram a capacidade de aplicar o conhecimento adquirido para seu próprio bem-estar e sobrevivência. Os pesquisadores atribuíram esse comportamento aos neurônios lobulares gigantes dos caranguejos, que aparentemente conseguem armazenar informações sobre diferentes estímulos. Sabe-se que os caranguejos aprendem a partir de seus erros, que são ambidestros, que têm um senso de compaixão que os leva a proteger seu território e que as mães-caranguejo são muito zelosas, chegando a colocar conchas de caramujo em volta de seus filhotes para que eles absorvam mais cálcio.

Este é um convite para que artistas, intelectuais e pessoas das mais variadas camadas sociais reflitam sobre o cérebro social

e cultural do coletivo, que exprime o ambidestrismo, a inteligência e a prudência dos caranguejos como uma forma de ser no mundo, como uma forma de ser um humano melhor. Este é um convite para que artistas, intelectuais e pessoas das mais variadas camadas sociais ponderem sobre espaços como os estuários e os manguezais, que são uma evidência de solidariedade, de coexistência de uma variedade de seres, plantas, animais e micélios que, em sua maioria, ajudam na subsistência uns dos outros, quando abandonados pelos humanos. Portanto, se essas criaturas que têm o que nós, humanos, chamamos de “cérebros primitivos” podem fazer um uso tão competente de sua memória e ter tanta compaixão, por que os humanos não podem? Ou será que eles podem?

A relação entre caranguejos e humanos, tão importante no movimento manguebit, já tinha sido descrita no romance seminal de Josué de Castro, Homens e caranguejos, lançado em 1967. Na época, Josué de Castro era conhecido por sua pioneira obra ecológica sobre a política da fome, Geografia da fome, publicada em 1946. Médico em Recife, Castro havia conduzido estudos com trabalhadores e declarado que a “doença basal” deles era a fome, que se manifestava clinicamente como anemia, desnutrição calórico-proteica e muito mais. Ele estabeleceu uma relação entre a realidade socioeconômica da população de Recife e sua manifestação biológica da fome. Em Homens e caranguejos, seu trabalho posterior, escrito durante o exílio em Paris, ele conta uma história ficcional de pobreza relacionada a sua infância, narrando a trágica vida do jovem João Paulo. O autor entrelaça a história das lamentáveis condições de vida de todas as pessoas ao redor do garoto com a narrativa do padre Aristides, que tem um desejo insaciável pelo caranguejo conhecido como guaiamum. Naquele espaço de exílio e desesperança, Castro deu de presente ao mundo um livro que pinta a realidade dos “condenados da terra”. Não chega a surpreender que o personagem principal, João Paulo, desapareça durante uma trágica enchente que literalmente apagou toda a aldeia. Mas, como escreve Castro, o que levamos conosco são “seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama”.15

Essas relacionalidades entre os seres da terra e das águas, aqueles nos pântanos, colocadas em evidência pelas bandas Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi de forma tão descon-

traída e crítica, essas relacionalidades entre gêneros diferentes, entre deuses e seres humanos e outras existências apresentadas por Mário de Andrade, essas relacionalidades propostas por Castro, essas relacionalidades que fazem a mediação entre os rumores de vários séculos atrás e os de hoje, que estabelecem uma negociação entre as vozes advindas do fosso e as vozes daqueles que ainda sobrevivem… Todas essas relacionalidades dialogam com um cérebro abrangente e resiliente: o cérebro do mangue. O primeiro manifesto do mangue, “Caranguejos com cérebro”, foi estruturado em uma trilogia: “Mangue, o conceito”, “Manguetown, a cidade” e “Mangue, a cena”… Agora podemos imaginar “Mangue, a exposição”. Uma exposição que nega a noção darwiniana de sobrevivência do mais apto e prega a coexistência, a interdependência, o amor, a alegria, a beleza como base para a intratável beleza do mundo.

Estrutura

Exposição/Manifestação: esta mostra reúne artistas das Américas, da África, da Ásia, da Europa e da Oceania que trabalham em diferentes disciplinas e fazem experimentações em forma e conteúdo para ter suas obras expostas no Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Será dada uma ênfase especial a práticas sonoras.

Invocações/Afluentes: mantendo-nos fiéis à metáfora do estuário, evocamos aqui o conceito de afluente para conotar os espaços por meio dos quais um corpo d’água flui em direção a outro. Neste projeto, Afluentes são programas desenvolvidos com instituições culturais em São Paulo e ao redor do mundo – formatos discursivos e performativos do projeto (palestras, oficinas, leituras de poesia, música, instalações, performances). Os programas que acontecem no período que antecede a exposição da Bienal são chamados de Invocações, e aqueles que ocorrem em paralelo são chamados de Afluentes. As reflexões proporcionadas pelas Invocações servem de base para as manifestações no Pavilhão Ciccillo Matarazzo e no Parque Ibirapuera. Elas são uma referência tangencial à 32a Bienal de São Paulo (2016), com curadoria de Jochen Volz, na qual foram organizados Dias de Estudo em quatro cidades ao redor do mundo.

Programa público: o programa público é composto de uma série de performances, gestos sônicos, sessões de contação de histórias e

palestras. No cerne do programa público estará a “Radio du conte vivant”, que remete ao projeto Mobile Radio da 30a Bienal de São Paulo (2012), com curadoria de Luis Pérez-Oramas e intitulada A iminência das poéticas. A “Radio du conte vivant” se inspira na seminal palestra de Patrick Chamoiseau,16 “Circonfession esthétique – Le conteur, la nuit et le panier” [Circonfissão estética – O contador de histórias, a noite e o cesto], em que o autor discute a importância da “oralitura” como uma estratégia narrativa essencial nas culturas caribenhas, utilizando “fábulas, jogos de palavras, rimas, adivinhas, canções, uma filosofia popular transmitida por meio de provérbios […]”. Ele acrescenta que “a transmissão é, portanto, feita essencialmente sem muitas palavras, por meio de proximidade, observação, imitação, sensação, humildade e aquela dose de inconsciência necessária para que se busque ser um mestre da palavra”.

Programa educativo: a contação de histórias como prática para conjugar a humanidade será o modus operandi do programa público e do programa educativo, e isso está alinhado com o que Chinua Achebe disse quando lhe perguntaram, durante uma entrevista de 1998, “qual é a importância das histórias?”, ele respondeu:

Bem, contar histórias é o que nos torna humanos. E é por isso que insistimos. Sempre que estamos em dúvida sobre quem somos, recorremos às histórias porque é o que fizemos na raça humana. Não há grupo que não faça histórias. Contar quem nós somos – e deixar que as histórias nos lembrem disso – parece ser um ponto determinante da própria natureza, da própria constatação de nossa humanidade. Pois haverá dias em que não teremos tanta certeza de que somos humanos ou, o que é ainda mais comum, de que outras pessoas são humanas. É nas histórias que entendemos a continuidade dessa afirmação de que você é humano e de que sua humanidade depende da humanidade de seu vizinho.17

Coro: uma parte importante tanto do programa público quanto do programa educativo é a criação do coral The Tout Moun Choir para a 36a Bienal de São Paulo, bem como colaborações com corais locais. O nome do coral vem da máxima da revolução haitiana “Tout moun se moun”, que declara que todos os seres humanos são iguais,

que todo humano é um humano e, portanto, tem o direito de ser tratado como tal com o devido respeito e dignidade. Os corais são o epítome da interdependência coletiva.

Adoção de obras: os cidadãos são convidados a adotar obras de arte para promover a exposição. Ao fazer isso, eles se aproximam dos artistas e podem servir como mediadores entre as obras e o público.

1 Conceição Evaristo, “Da calma e do silêncio”, em Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008, p.122.

2 Jacques Attali, Noise: The Political Economy of Music. Trad. Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985.

3 Emily Caffrey, “The Importance of Estuarine Ecosystems”, Ocean Blue Project. Disponível em: oceanblueproject.org/ what-is-an-estuary/. Acesso em: 2025.

4 René Depestre, En État de poésie (Petite sirène). Paris: Les éditeurs français réunis, 1980.

5 Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, “L’Intraitable beauté du monde”, em Manifestes. Paris: La Découverte, 2021, pp.33-55.

6 “O teatro dentro de mim”, Itaú Cultural, 2016. Disponível em: ocupacao.icnetworks.org/ocupacao/abdias-nascimento/ o-teatro-dentro-de-mim/. Acesso em: 2025.

7 Amurabi Oliveira, “Afro-Brazilian Studies in the 1930s: Intellectual Networks between Brazil and the USA”, Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v.8, n.1-2, 2019.

8 Michael Muthukrishna e Joseph Henrich, “Innovation in the Collective Brain”, Philosophical Transactions of the Royal Society B, 19 mar. 2016. Disponível em: royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/ rstb.2015.0192. Acesso em: 2025.

9 Ibid., p.10.

10 Ibid., p.10.

11 Alice de Souza, “Life Reborn in the Mud”, Believe Earth, 17 nov. 2017. Disponível em: believe.earth/en/life-reborn-in-the-mud/. Acesso em: 2025.

12 Ibid.

13 Melcion Mateu, “Nação Zumbi: Two Decades of ‘Crabs with Brains’ (and Still Hungry)”, Crítica Latinoamericana, 5 dez. 2012. 14 Erica Westly, “Clever Crustaceans”, Scientific American Mind, v.22, n.5, nov. 2011, p.14.

15 Josué de Castro, Homens e caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967.

16 Patrick Chamoiseau, “Discours inaugural de la Chaire d’écrivain en résidence”, Sciences Po, Paris, 27 jan. 2020.

17 “Nigerian Author Chinua Achebe in 1998”, New York State Writers Institute, out. 1998. Disponível em: www.youtube.com/ watch?v=vKDupjm2fU8. Acesso em: 2025.

Entrada

Tsitsi Jaji

In memoriam, GLJ

Traduzido do inglês

E o caranguejo clama das areias acima e das areias abaixo: não me chame de crustáceo! Sou elefante, sou zebra, embora em menor grau, e sou cauda de dragão, bafo de cachorro de dragão. Sou javali, coroado de gente, sou o mestre dos mestres. Sou a filha dos seguidores mais dedicados da girafa.

Sou o tráfego de peônias entre o ar e a terra, que a cada ano se desfaz em calor, preso nesse longo e generalizado morrer evidente há séculos. Não sou grupos espalhados de ladrões que medem o saque com régua e compasso. Sou, ao mesmo tempo, a caçadora de esquilos e a caçadora de ratos. Nos meus olhos, você vai encontrar a memória de como um rio se converteu em braço do mar e outro em gelo.

Não me chame de crustáceo! Faça como eu: dance a dança da aranha para todo lado. Nós estamos nos engasgando com os grânulos duros do petróleo e, acima de nós, o sol arde para o caranguejo e para o signo do caranguejo. Eu sou o caranguejo do céu e a aranha fervilhando lá embaixo.

Sou mais corajosa do que minhas histórias, e o material de vocês. Sou a mulher branca agarrada ao meu profundo amor negro – meu um ano aquém do dourado, meu porque sou dele, sempre arranhando as conchas um do outro. Nós somos o que mais te preocupa, imortais nesse glorioso caos que são os filhos dos filhos dos nossos filhos.

Cante. Cante sobre como eu e eu entramos no território pela brecha de sangue das coxas da mãe. Nós todos fomos ovulados, mas não o todo absoluto. Olhe a tartaruga. Olhe os nematoides em suas colunas de areia. Olhe a cúpula matrescente abaixo e o falo azul no ventre da outra. Veja como diferem as conchas, tão claro quanto o sal e o açúcar, a genética do aqui e do passado. Somos espelhos vivos vivendo em cada lado. Considere isso uma alegria. Ame os rijos jardins ocultos e os quebra-ventos, os capins-amargosos e as uvas-do-mar.

A cicatriz do reflexo nos junta para uma história ardente, a tensão total de seu arco. Você vai terminar, como eu, como nossos antepassados, que não sabiam nos soletrar como humanos, para que isso atordoasse o homem e fizesse a mulher morrer. No longo espelho de nossa idade, temos cada vez mais companhia. Mais mãos ficam irritadas com o uso, mais humores azedam de vez em quando. Você uivou quando chegou, estava faminto quando chegou sem dentes e sua primeira urgência foi aprender a sugar/engolir/sobreviver.

Criança como velho, o alcance mais distante do espelho é nossa grande entrada na terra após o sal. Flutuamos sem peso, dentro e fora da terra. Caranguejos duplamente rastejantes: em cada fim ainda temos que andar. Nossa língua entra e sai do discurso. O sentido é feito por outros. A escolha intriga, a intenção agarra e finda. Descansamos mais, com nossos olhos fechados. Observamos a meia-idade olhar para seus poros no reflexo, bem perto de onde os eus primordiais se empoleiram na maré alta. Eles se incomodam com o que veem, então põem uma corzinha, ou músculos, ou caçam alguém para desdenhar. Nós observamos dos polos inferiores do tempo, duas vezes bebês, pois o abraço do estuário começa conosco. Raiz.

Não nos prenda na sua gramática, enjaulados sob a superfície. Não nos envie em sua missão. Somos todos chegantes: um destino só nos encalharia no deserto lúgubre. Desde antes da água, estamos aqui/depois da água somos elefantes, somos conchas moles, somos turbas de peixes naufragados. De agora em diante, somos a conjugação da primeira membrana da ameba. Essa era infinitesimal que atravessamos foi o brejo, o mistério escuro e gelatinoso do outro lado da Luz. Nós habitamos esse portal infinito, a vulva entre o sangue vital e a vida, sempre água, sempre rompendo, sempre copulando.

Nuvens se alastram

Etel Adnan

Para June Jordan

Em: The Indian Never Had a Horse & Other Poems. Sausalito: The Post-Apollo Press, 1995. Traduzido do inglês

Nuvens se alastram carregadas de chumbo pairando sobre esta terra

Eu queria cantar novas óperas às Serras sobre os cadáveres das Crianças-Flor mas

tudo terminou em gritaria e silêncios.

Os novos ancestrais estão deitados ao pé de outras montanhas e outras covas:

Malcolm X Martin Luther King Abdel Kader o soldado Sufi e todos vocês chefes indígenas cujas lágrimas são os temporais da Califórnia.

Estamos sozinhos. Veículos blindados colhem os jovens numa colheita mortal

manifestantes militantes presos libertos

com canções fúteis nos lábios sacrifício ao último deus da Paz

abandonaremos até mesmo aquele deus: pelo milho que cresce nas encostas montanhosas da Guatemala.

nações indígenas precisamos da sabedoria que desce às suas visões diárias

olhem o que fizemos com a nossa mãe Terra!

Deus é mulher se Deus for criador

Mas somos todos parte e agente de uma criação contínua: não queremos dividir cabeças nações ou átomos...

nas celas mais escuras das prisões há sempre uma luz que ilumina o mundo

não vamos nos tornar Os Grandes Ceifadores da Vida jogando nossas crianças na Grande Fornalha.

Ah, a beleza maldita do inferno que assombra os poderosos!

Eu vejo indígenas carregando o corpo de Guevara pelas selvas que murcharam feito rosas por causa de sua morte.

Quando chove anjos choram por misericórdia: a raça humana eles dizem corre perigo

o que seriam dos anjos se nós desaparecêssemos?

Eu vejo os olhos gregos da minha mãe perscrutando a agonia do meu pai árabe

duas civilizações estavam morrendo juntas

dois estranhos amantes estavam dizendo adeus ao mundo

não quero ver o nosso planeta ir para o mesmo caminho:

relutantemente tendo aprendido o grande segredo no momento da Grande Jornada.

Não somos primitivos o bastante para implorar aos poderosos que poupem nossos continentes as armas deles escapam à nossa força

não se enganem: Jesus não está voltando somos um só povo distribuído em tantos ramos

a árvore genealógica atravessa o Grande Oceano.

Minha amiga foi à Nicarágua e aprendeu um clima totalmente diferente ela não consegue viver longe de um tipo de estação a estação do amor dela ela conhece a inexistência da América Latina

é da América Indígena que falamos

500 anos da Inquisição Espanhola não esmagaram a língua do vento.

Ficamos para trás nos nossos quartos miseráveis o futebol é nossa Ilíada e o jato presidencial é nossa Odisseia

mas lá onde é quente tão perto da linha do Equador que o céu começa a girar tem gente cujos olhos nunca morrem cujos corações sangram sangue e paixão os indígenas estão chegando...

Eles trazem facões para o matagal que protege o rosto do sol.

Eu afirmo

Abdellatif Laâbi

Em: Je Rêve le Monde, assis sur un vieux crocodile. Voisins-le-Bretonneux: Rue du Monde, 2015. Traduzido do francês

Eu afirmo que não há outro Ser humano senão Aquele cujo coração treme de amor por todos os seus semelhantes

Aquele que deseja ardentemente mais para eles do que para si mesmo liberdade, paz, dignidade

Aquele que considera que a Vida é ainda mais sagrada do que suas crenças e suas divindades

Eu afirmo que não há outro Ser humano senão Aquele que luta sem descanso contra o Ódio dentro de si e à sua volta

Aquele que, ao abrir os olhos de manhã, se interroga: Que vou fazer hoje para não perder minha qualidade e meu orgulho de ser humano?

On a tous besoin de rêver (Todos

nós precisamos sonhar)

Traduzido do inglês

Assim, pores do sol são violentamente belos, eu diria que por definição, mas há certas luzes que não são coloridas no sentido habitual, luzes elementares, mercuriais, prateadas, sulfurosas, acobreadas, que nos fazem parar, depois perder o equilíbrio, que nos fazem abrir os braços sem saber o que fazer, que nos param como se tivéssemos sido atingidos por um raio, um raio suave, de boas-vindas. Espero por essas luzes, sei que alguns de vocês o fazem também, onde quer que estejam, quando estão parados diante do mar, sozinhos, na calma de seu espírito. Sejam planetários.1

1. Sobre a beleza

Fevereiro de 2025, em algum lugar entre Carcavelos e Lisboa. Parada em frente ao mar, percebo que as ondas se movem ritmadamente. Ondas grandes quebram em uma série de sete, então vem um momento de suspensão – um momento para ganharmos fôlego. Um eterno ciclo repetitivo. Não importa o que aconteça, mesmo que o mundo pareça desmoronar, há uma chance de se ganhar fôlego e se mover depois das grandes ondas quebrarem. Grandes ondas vêm em um ritmo de sete, depois vem a calmaria.

Brisa, respiração, descanso. Esta manhã acordei com notícias assustadoras de guerras, sua violência insustentável e seus silêncios ensurdecedores. As políticas anti-imigração da extrema direita pela Europa estão gritando em uma câmara de ecos lado a lado com o governo Trump nos Estados Unidos, que nunca esteve tão perto do autoritarismo. Espaços de resistência para a liberdade artística e intelectual estão entrando em um estado de imobilidade. Pessoas que expressam apoio àqueles que sofrem estão sendo silenciadas e deportadas. Há medo, e nós nos esquecemos de como lidar com ele.

O lugar mesmo onde me encontro é um limiar, uma borda do oceano. Ao sul está o Marrocos, o país de onde venho e para o qual sigo voltando. Há o Estreito de Gibraltar: catorze quilômetros que separam os continentes da África e da Europa. Catorze quilômetros que carregam tanto desejo, repulsa e morte. Situada nesse limiar, penso na falecida fotógrafa e ativista Leila Alaoui. Ela passou meses na fronteira no Norte do Marrocos, agindo como voz e testemunha para

aqueles que tentavam cruzar o Estreito ou que ainda sonhavam com isso. Alaoui criou a série de fotografias No pasarán [Não passarão] (e depois o filme Crossings [Travessias]) como um testemunho, para levar as histórias e os sonhos de crianças, jovens e pais cujas vozes haviam sido desumanizadas pelos filtros de políticas anti-imigração e pela propaganda. Em uma de suas imagens, vemos uma parede rachada com as palavras “abram as portas ou eu vou explodir tudo”.

Virando para o oeste, quase posso ver as engrenagens da máquina colonial que começaram a girar aqui mesmo – uma história de dominação, extração, fragmentação. A história se repete. Hoje, o mundo parece estar à beira do colapso, com a explosão de guerras simultâneas, a ascensão de partidos políticos de extrema direita em vários países usando mecanismos semelhantes de alterização para criar um inimigo comum, a celebração de políticas de expansionismo territorial baseadas em intimidação e um renascimento da masculinidade tóxica, tudo em meio a uma aguda crise climática que a história humana nunca experimentou antes. O mundo lá fora parece cair aos pedaços, com a dissolução de sociedades e uma profunda incerteza. Dizem que a história é escrita pelos vencedores. Será que a atual aliança de valentões irá escrever a história do colapso neste exato momento? Haverá algum passado sobre o qual escrever?

É urgente que cultivemos um exercício consciente de humanidade. Hoje, mais do que nunca, é crucial reivindicar um modo de pertencer ao mundo e se comprometer com esse pertencimento a cada dia – um exercício de escuta, de acolhimento, de lembrança daqueles que vieram antes e de ação por aqueles que virão depois de nós. Resistir e lutar por uma humanidade que reconheça a união e a interconexão no centro de sua prática é uma decisão. Mas quando tudo parece colapsar, como podemos encontrar inspiração e força para nos movermos?

Então me dou conta: olho para a beleza impressionante do oceano, a repetição tranquilizante das ondas, a harmonia dos elementos, uma força majestosa e calma. Ouço meus filhos rindo, correndo descalços na areia atrás de uma gaivota. Raios de luz furam as nuvens, abrindo espaço e refletindo nas ondas e nas linhas de espuma como espelhos. Vejo a beleza violenta a que Adnan se referiu. “Atingidos por um raio, um raio suave”, ela escreveu. E se esse raio primeiro nos faz parar, depois perder o equilíbrio – se há um momento no qual abrimos os braços e não sabemos o que fazer –, algo crucial acontece nessa hora. É a gestação da força vital que

provê a possibilidade de definir um novo ritmo, um desejo de ação para realizar uma mudança.

Conforme testemunhamos este momento de fragmentação acelerada, acredito que a beleza seja essencial para vicejar neste mundo, e a experiência da beleza pode ser uma força motriz que faça a humanidade se mover, andar, desejar estar junto e caminhar em direção à transformação. Para mim, a beleza não é um ideal ocidental infundido socialmente e baseado na simetria; não é uma superfície polida para ser comodificada. A beleza é uma força que pulsa pelo corpo e perturba aquilo que é conhecido. Beleza é ressonância. É o tremor de vozes em uníssono, o ritmo da respiração coletiva, a generosidade da presença. É fricção, vulnerabilidade e profundidade. Ela toca em algo sensorial e íntimo – move o coração, agita a alma, nos compele a agir, a nos reunirmos, a lembrarmos. A beleza é uma necessidade. Uma bússola. Um modo de resistir à fragmentação. Como Diane Lima escreveu em seu ensaio para a 35ª Bienal de São Paulo: “É para encontrar a beleza que desafiamos o impossível”.2 Não simplesmente para sobreviver, mas como uma força motriz para lembrar, reinventar e praticar a conexão com os outros. A beleza é uma portadora da esperança, um lembrete de que pertencemos uns aos outros.

Em Mother Earth’s Laments [Lamentos da mãe Terra], a canção composta para a instalação concebida para a 36ª Bienal, o artista Emeka Ogboh criou um momento no qual a tristeza pode ser transformada em esperança e desejo de mudar, tocada e levada pela beleza do ritmo e a profundidade da voz. A despeito da situação alarmante de uma Terra enfraquecida, segue existindo uma janela de tempo para correções e mudanças.

Oh, my children, hear my final song, Before silence takes what has been all along. Yet seeds of change can still grow strong Will you rise to heal where you’ve done wrong?

[Oh, meus filhos, ouçam minha última canção, Antes que o silêncio tome o que existiu desde sempre. Sementes de mudança ainda podem crescer fortes Você se erguerá para consertar seus erros?]

Emeka Ogboh, Mother Earth’s Laments

Esta é a frase que guardo: “Sementes de mudança ainda podem crescer fortes”. Ainda há tempo para nos erguermos e consertarmos nossos erros.

Para que a experiência da beleza por meio da arte se torne uma força de mudança social, ela precisa estar acessível para além das paredes de círculos exclusivos. A arte e sua beleza não podem ser um refúgio tranquilo para um público privilegiado. Para que a arte desafie narrativas dominantes, sirva de catalisador para a reflexão e a ação e encoraje o pensamento crítico sobre a injustiça e a desigualdade, ela deve se tornar um espaço compartilhado, uma energia viva. A arte deve se mover; deve circular e ser partilhada. Deve vagar pelas ruas, entrar nas casas, unir vozes. Somente então ela poderá desafiar narrativas dominantes, agitar a memória coletiva e abrir caminhos para novos imaginários.

No entanto, políticos estão falando de uma Zeitenwende:3 uma mudança de paradigma. Iniciativas culturais pelo mundo estão sendo ameaçadas por cortes drásticos de financiamento em favor de gastos em defesa e armamentos. Nessa paisagem cultural cada vez mais precária, uma instituição como a Bienal de São Paulo pode ser uma fortaleza de resistência com sua longeva história de liberdade, acesso livre e prioridade dada à educação e à mediação. Ela é crucial para fortalecer as conversas, criar alianças entre ilhas de resistência que põem a acessibilidade da arte e do pensamento crítico no centro de suas práticas.

Um dos gestos fundamentais da 36ª Bienal toma forma no convite a diversas instituições culturais para pensar juntos sobre a humanidade como um exercício. Os programas Conjugações e Afluentes estão entrelaçados no próprio tecido do processo curatorial. Desenvolvido em colaboração com instituições artísticas e culturais do mundo todo, Conjugações é uma constelação de workshops, performances, palestras e ativações no interior do Pavilhão da Bienal. Os Afluentes ocorrem nas instituições locais parceiras: Casa do Povo e La Friche. Cada espaço é convidado a conjugar a noção de humanidade no interior de sua própria geografia, história e vocabulário, oferecendo leituras plurais que expandem, contradizem ou aprofundam os verbos que indicam o que significa ser humano, fortalecendo alianças e reconhecendo as interconexões de uns com os outros.

2. Sobre sonhos

Março de 2025, Berlim, Neukölln. Encontro-me sentada em um pequeno restaurante, de frente para uma grande janela que enquadra a cidade como se ela fosse um arquivo móvel. É o começo da primavera – o tipo de noite quando Berlim começa a prolongar seus dias, oferecendo um crepúsculo efêmero. Do lado de fora, sucedem-se silhuetas: hipsters de bicicleta passam por muros cheios de grafites, que servem como lembrança mais que como decoração. Este é o sudeste da capital alemã, um distrito que historicamente ficou do lado ocidental do Muro de Berlim, mas por pouco. Não faz muito tempo, famílias foram divididas por uma ditadura feita no concreto. Os sedimentos da Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos ainda são evidentes nesse terreno, sobrepostos por uma leveza peculiar no ar: as duas dimensões paralelas, dentro e fora, oscilam, aparentemente ignorando uma à outra. Do lado de dentro, o garçom conta histórias fascinantes, não só sobre vinho, mas sobre um prato elaborado com 25 camadas delicadas de batata. Uma humilde arquitetura do cuidado e da obsessão. Será, sem dúvida, o melhor gratinado que já comi.

Vou me encontrar com Bonaventure para nos prepararmos para uma entrevista que conduziremos em alguns dias com o escritor e economista Jacques Attali.4 Tentar dar sentido às aceleradas e absurdas mudanças políticas do nosso tempo significa correr a uma velocidade ainda mais absurda. Mas aqui e agora há um momento de trégua, uma calmaria, enquanto Bonaventure fala sobre a poeta Forugh Farrokhzad. “A poesia é fundamental”, ele diz. On a tous besoin de rêver [Todos nós precisamos sonhar].

Em seu livro de ensaios e poemas Your Silence Will Not Protect You [Seu silêncio não vai te proteger], Audre Lorde escreve: “Os pais brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe negra dentro de cada um de nós – a poeta – murmura nos nossos sonhos: sinto, logo posso ser livre. A poesia cunha a linguagem para expressar e autorizar essa demanda revolucionária, a implementação dessa liberdade”.5 Arte e poesia são feitas do mesmo tecido dos sonhos – aqueles espaços liminares nos quais a lógica se dissolve e verdades mais profundas começam a murmurar. Se a humanidade não é uma condição fixa, mas um exercício, como acreditamos, então ouvir os sonhos torna-se um ato de resistência silencioso e

diário contra as perigosas certezas racionais do cartesiano “penso, logo existo”, credo que moldou uma era e ainda sustenta estruturas de dominação, individualismo e separação.

Ouvir os sonhos é reconhecer nosso enredamento de uns com os outros, com o não visto, com o não dito. É reivindicar a possibilidade de uma humanidade coletiva formada não somente pela razão, mas pelo sentimento. As palavras de Lorde ecoam aqui com clareza: “Sinto, logo posso ser livre”. Os sonhos trazem mensagens e falam além de nossa compreensão comum da linguagem. Ouvi-los e deixá-los guiarem nosso movimento é uma prática de abertura, de empatia, de aceitação dos sentimentos antes de tentar entender.

Isso me lembra uma história com a qual cresci em Casablanca: a artista Chaïbia Talal tinha 25 anos quando acordou de um sonho e começou a pintar. “Vejo outra vez um céu azul onde velas giram, pessoas desconhecidas me abordam, dando-me papel e lápis. No dia seguinte, fui imediatamente comprar tinta azul, do tipo usada para pintar batentes de portas, e comecei a realizar tingimentos e impressões.”6 Era 1963; Talal era uma viúva trabalhando como faxineira para cuidar de seu filho de onze anos. Ela seguiu seu sonho, deixando que ele guiasse sua prática como artista. Na cena artística marroquina daquele período, grandemente dominada por homens, ela começou a tirar seu sustento da pintura, passou a fazer parte de uma galeria baseada em Paris fundada pela marchand brasileira Cérès Franco e se tornou uma artista internacionalmente aclamada, que lutou por toda a vida contra o analfabetismo, uma condição de que dizia abertamente sofrer a vida inteira. Talal garantiu que seu filho, o pintor Hossein Talal (1942-2022), tivesse acesso a educação e cultura como prioridade.

Ao longo da jornada de preparação desta Bienal de São Paulo, estive em diálogo constante com o artista Tanka Fonta sobre esse espaço liminar entre intuição, sonho e a busca pela verdade. Observei como seus sonhos e intuições têm guiado sua prática, como ele recorda lugares onde nunca esteve. Na obra musical que criou para a Bienal, The Invocatory Call and Chants of the Ibirapuera Park [O chamado e os cantos de invocação do Parque Ibirapuera], Fonta fala sobre um diálogo místico – uma conversa entre ele e a própria essência da natureza. Para ele, a grama, as pétalas e as árvores oferecem cada uma seus cantos únicos, trazendo mensagens sobre a interconectividade de toda vida, a fluidez do tempo e as energias universais que ligam todos os seres.7

Quando Fonta fala de sua prática, ele fala sobre escutar sua intuição, sobre sua missão de se reconectar com e de aprender (ou lembrar) a língua da empatia. Ele cria um alfabeto além das palavras. Uma cosmologia de seres, memória de lugares desconhecidos, conexões do visível e do invisível. Ele nos fala com palavras que talvez não entendamos, um alfabeto que talvez não sejamos capazes de decifrar, mas a mera experiência de estar diante de sua obra é profundamente tocante. Ele consegue falar conosco por meio de uma linguagem da empatia, da conectividade. Sua instalação será um mural sobre o emblemático estuário em forma de âncora, uma figura que abarcará os três andares do Pavilhão. Um totem, uma invocação. O artista Michele Ciacciofera nos lembra que algumas das primeiras esculturas criadas pela humanidade, os menires, foram concebidas como uma tentativa de conectar a terra e o céu.8 Eram totens. As formas totêmicas que aparecem ao longo do percurso desta exposição continuam esse caminho de conectar o visível e o invisível.

3. Sobre o silêncio e o movimento

Fevereiro de 2025. Amanhecer. No caminho para o aeroporto, abro o grupo de WhatsApp da equipe conceitual da Bienal. A tela acende com a notícia devastadora: o artista e poeta Frankétienne faleceu.9 Meu estômago se aperta. Ainda me lembro de nosso encontro há um mês – sua vitalidade, sua risada, sua generosidade inabalável. Aos 89 anos, sua força criativa era uma lição de humildade. Ele encarou o mundo com a urgência de alguém que ainda acreditava na beleza como resistência. Nas nossas últimas trocas, imaginamos um delicado pingue-pongue de formas: o time curatorial selecionaria uma constelação de pinturas e Frankétienne responderia com poemas – falados, ofertados como um sopro. Ele estava radiante de excitação com a ideia. Ele queria ler, dar voz, reunir outras pessoas em torno da linguagem como vibração, como movimento. “Et le rêve est revenu, dans la magie du silence musical.” [E o sonho voltou, na mágica do silêncio musical.]10

Sua poesia parecia um choque, e levava meu pensamento para águas profundas. Trazer sua voz para a Bienal soava essencial e urgente a todos os integrantes do time conceitual. E agora, como nos lembra Hervé Sabin, seu colaborador de longa data, plus que jamais – mais que nunca. Sua voz está conosco – nos silêncios, nas fraturas, nos espaços que continuamos a abrir para o sonho.

Je persiste à sonder les brumes et les nuages de l’horizon sous le clignotement de la toute petite flamme rebelle à la mort.

Vivre

Fremir

Bondir11

[Continuo sondando as névoas e nuvens do horizonte sob o bruxulear da pequena chama que se rebela contra a morte.

Viver

Tremer Saltar]

A humanidade é também um exercício de transição de um mundo a outro. E, entre eles, devemos tomar a iniciativa para nos rebelarmos contra a morte. Viver/ Tremer/ Saltar.

Tomar a iniciativa, como um exercício de humanidade, é uma resistência contra a definição estática, amnésica e autocentrada de humanidade, cujo colapso estamos observando. Quando Bonaventure e eu finalmente entrevistamos Attali, que baseia muito de sua prática na exploração da história e no desenvolvimento de mecanismos para projetar e predizer iniciativas futuras, perguntamos a ele: se a humanidade pudesse ser conjugada, qual seria o verbo? “Caminhar”, ele disse sem hesitação. “O sedentarismo é um parêntese. Tudo o que é importante que foi feito no planeta, na humanidade, foi feito caminhando.”

As palavras da lendária artista Werewere Liking me vêm à mente, particularmente sua reflexão sobre caminhar como ato vital e essencial. “Étant la marche elle-même en tant qu’ultime action.” [“Sendo a própria caminhada a ação definitiva.”] Esse verso, como todo o poema “À Manthia Diawara et à tous nos rêves de renaissance – 1” [Para Manthia Diawara e todos os nossos sonhos de renascimento – 1], fala da natureza da vida, sempre voltando, sempre transformando, mesmo através da morte e da seca. Nesse sentido, caminhar se torna um profundo ato de resistência: uma recusa em permanecer estagnado em face da adversidade. É uma prática que nos impele para a frente quando tudo o mais parece imobilizante, quando somos confrontados com as forças paralisantes do mundo. Caminhar, nesse contexto, não é só movimento, mas uma forma corporificada de resistência – um gesto em direção

ao outro, à Terra, um processo contínuo de renovação. Ela escreveu esse poema enquanto viajava, caminhando em meio a vilarejos remotos entre o Senegal e o Mali, parte de La Caravane de la poésie Gorée-Tombouctou [A caravana da poesia Gorée-Timbuktu]. Ao longo do caminho, Liking e outros doze poetas compartilhavam suas palavras, encontrando pessoas nos espaços intermediários e oferecendo poesia como uma troca viva. Viajar e caminhar em direção aos outros era uma prática de renovação, um gesto de solidariedade e conexão, uma recusa em permanecer estática e silenciada.

4. Sobre a convicção

Marrakech, 2010. Estou em um encontro com Simon Njami, meu mentor, logo depois de realizar a curadoria de uma das minhas primeiras exposições individuais, You Never Left [Você nunca partiu], de Youssef Nabil. Estou cheia de esperança e de um senso de propósito, e no entanto uma incerteza permanece – um questionamento sobre se meu otimismo com o caminho de realizar curadorias sobre beleza, eternidade e amor pode de fato sobreviver em meio às dinâmicas com frequência cínicas do mundo da arte. Ouvindo minha hesitação, Simon me olha e diz algo que iria moldar cada passo da minha jornada daquele momento em diante: Não é ingenuidade, é uma convicção.

Aquela convicção, aquela crença profundamente enraizada, tem sido uma força que me guia desde então. Ao longo dos últimos quinze anos, escolhi escutar – escutar de fato – artistas e poetas. Foi por meio de suas visões que cheguei a compreender a beleza como resistência. Eles são os sonhadores que têm o poder de reimaginar o mundo, de tecer conexões onde a fragmentação prossegue. Para mim, a curadoria diz respeito à criação de espaços nos quais a beleza pode ser ouvida, em que o poético torna-se ferramenta para lembrar de nossa humanidade compartilhada. Nesse exercício, encontrei não só minha vocação, mas meu modo de estar no mundo.

No poema que inspirou o título desta edição da Bienal de São Paulo, Conceição Evaristo escreve: “Nem todo viandante/ anda estradas,/ há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra”.12 Artistas e poetas são aqueles que podem navegar os mundos submersos: eles criam línguas para acessar um vislumbre de tais mundos. Talvez a beleza possa nos ajudar a nos aproximar desses mundos ocultos e invisíveis. Agora, quando o mundo parece estar

nos seus últimos suspiros, ouçamos as vozes dos poetas e artistas para encontrar forças para caminharmos juntos no fazer da humanidade. E depois de ouvi-los, devemos agir – em benefício e sob o comando da beleza que nos foi concedida. A beleza pode emergir do silêncio ou de sussurros, e pode ser transmutada em poder.

Abril de 2025. Estou ouvindo a palestra de Ben Okri na Haus der Kulturen der Welt em Berlim enquanto escrevo as últimas linhas deste ensaio. Ele também fala de beleza. Cito aqui, de memória, as palavras dele: “A beleza deve ser convulsiva. Não pode ser passiva. Precisa ser vital. Deve nos chacoalhar. Uma força da verdade”. A violenta beleza a que Etel Adnan se refere em seu parágrafo citado como epígrafe deste ensaio talvez seja o que cria a convulsão que Okri pede. Uma convulsão para reconhecer e sentir a interconectividade entre os seres e o solo com o qual vivemos. Uma convulsão para lembrar que a humanidade não pode sobreviver sendo estática e fragmentada. Uma convulsão para experimentar a força da verdade e o poder de resistir e caminharmos juntos em direção a um exercício diário de humanidade.

Adnan escreveu Shifting the Silence [Deslocando o silêncio] em 2020, aos 95 anos. Ela tinha consciência de que a morte se aproximava. Conforme observava um mundo em choque por guerras e catástrofes climáticas, com o reconhecimento doloroso de que esse seria seu último livro publicado, ela virou o olhar do leitor em direção à luz com uma recomendação final: “Sejam planetários”.13

1 Etel Adnan, Shifting the Silence. Nova York: Nightboat Books, 2020, p.17.

2 Diane Lima, “O impossível”, em Coreografias do impossível, catálogo de exposição. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p.28.

3 “Regierungserklärung von Bundeskanzler Olaf Scholz am 27. February 2022”, 27 fev. 2022. Disponível em: www. bundesregierung.de/breg-de/aktuelles/regierungserklaerung-vonbundeskanzler-olaf-scholz-am-27-februar-2022-2008356. Acesso em: 2025.

4 Ver, neste volume, Jacques Attali em entrevista por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e Alya Sebti.

5 Audre Lorde, Your Silence Will Not Protect You. Londres: Silver Press, 2017, pp.10-11.

6 Brahim Alaoui, “Chaïbia a les yeux, les mains fertiles”, diptyk, 10 dez. 2020. Disponível em: www.diptykmag.com/ portrait-chaibia-a-les-yeux-les-mains-fertiles/. Acesso em: 2025.

7 Alya Sebti e a equipe da Fundação Bienal de São Paulo se encontraram com Tanka Fonta para conversa publicada no volume 3 das publicações educativas da 36ª Bienal.

8 Michele Ciacciofera, “Alfabeto del Contemporaneo”, MagaMuseo, 27 jun. 2024. Disponível em: www.youtube.com/ watch?v=04ZCx70osWA. Acesso em: 2025.

9 Jean-Pierre Basilic Dantor Franck Étienne d’Argent, conhecido pelo pseudônimo Frankétienne, foi um escritor, poeta, dramaturgo e pintor haitiano.

10 Frankétienne, Anthologie secrète. Montreal: Mémoire d’encrier, 2006, p.55.

11 Ibid.

12 Conceição Evaristo, “Da calma e do silêncio”, em Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008, p.122. 13 Etel Adnan, op. cit.

No tempo circular indígena Márcia Wayna Kambeba

Nem todo viandante anda estradas,

Porque ver é encontrar caminhos

Onde os pés do mundo ainda não pisaram,

Onde o vento carrega palavras,

Onde as folhas sussurram a história.

Obedecendo ao tempo circular dos povos

Memória e oralidade para sermos continuidade.

A humanidade, para nós, não é pressa, É prática de passos lentos,

De olhos que enxergam o invisível

Nas sombras da floresta, Nas curvas do rio que canta.

Memória e saberes ancestrais.

Sentir é deixar-se enraizar como a árvore que escuta o tempo, que conhece o ritmo das chuvas e o silêncio das manhãs.

Pensar é lembrar o que o velho diz:

Que o universo respira junto, Que somos a mão de um ciclo eterno

E as folhas de um mesmo galho,

A vida nascida de uma mesma raiz.

No silêncio/tempo que em mim habita.

Nem todo viandante anda estradas,

Porque às vezes o caminho é dentro,

É no chão das memórias antigas,

É no fogo que aquece o peito,

É no ato de ouvir o mundo

E de viver, como prática, a humanidade.

Tout moun se moun

Traduzido do francês

O projeto imperial desvendado1

A historiografia apresenta uma narrativa sobre o passado do Haiti, elaborada sobretudo a partir de uma seleção de documentos disponíveis nos arquivos das potências derrotadas durante a Guerra da Independência: França, Inglaterra e Espanha.2 Ela apregoa as ausências e as obscuridades da memória dessas potências. Convém corrigir o projeto delas utilizando nossa própria memória.

A pilhagem dos bandidos-conquistadores no século 16 e o controle sistemático dos bens produzidos por escravizados e cativos nos séculos 17 e 18 se acumulam e reforçam o poder do Estado, que se distancia assim dos empobrecidos dominados por desigualdades cada vez mais intransponíveis. No final do percurso, os operadores do Estado e as companhias comerciais adquirem uma liberdade de ação que foge ao controle das instituições que promovem tais desigualdades. Chegamos perto do apocalipse porque, a princípio, os pesquisadores fascinados por fatos e ações do mundo moderno não percebem que este silencia sistematicamente o alcance das ações levadas a cabo por populações exploradas. Nós nos vemos num beco sem saída porque essas ações são as únicas que antecipam e resolvem os seus delitos. A incapacidade dos dominantes de acolher qualquer alteridade paralisa seu público. A diversidade do outro se afoga numa espécie de universalidade que banaliza qualquer contestação que possa ultrapassar o cotidiano e explicar a ameaça sempre iminente de implosão.

No caso dos haitianos, após o genocídio perpetrado pelos bandidos-conquistadores, três grupos de condenados da terra substituem a primeira nação: os rejeitados das costas ocidentais da Europa, vagamente unidos por um feudalismo em mutação; os serviçais escravizados que se juntam a eles; e a pletora de cativos sequestrados no golfo da Guiné.

As narrativas históricas registram a existência desses seres vulneráveis, descrevendo a violência contínua que o Estado e suas instituições implementam para garantir o cumprimento de seus projetos. A banalização dessa violência e dos sofrimentos que ela provoca elimina a necessidade de que os arquivos do Estado a registrem. Assim, o conhecimento, sempre novo, das penalidades causadas quase não modifica o itinerário dos poderes estabelecidos. Desse ponto de vista, descobrimos as ligações que subordinam o Haiti aos impérios coloniais.

Os dois lados da colônia

Se, por outro lado, procuramos aquilo que une os haitianos, avançamos num campo que exige que os impérios coloniais utilizem a violência bruta sem parar. No início, a brutalidade é essencial para suas relações com os habitantes da ilha, marginais por definição.

Aqueles que optam por viver na ilha Tortuga – piratas e ladrões de estrada, bem como huguenotes, judeus e mouros – são rapidamente oprimidos pelas deportações de vagabundos e pessoas errantes forçadas a integrar-se nas plantations. 3 A esses pobres diabos juntam-se os cativos, que, por 36 meses, se vendem como escravos para pagar sua passagem.

Ao se esforçar para sobreviver, esse grupo de infelizes produz uma variedade da língua antilhana distinta da parisiense e comparável às línguas das províncias de onde vêm. Essa linguagem específica reflete a divergência entre sua realidade de subordinados e aquela para a qual se desloca a corte do rei, um afastamento decorrente de seu isolamento e da discriminação social e religiosa imposta a seu cotidiano. Seu uso do crioulo atesta sua autonomia.

Os funcionários do império não percebem que o papel do crioulo nesse microcosmo excede as funções de gestão administrativa atribuídas ao francês parisiense e precede a sua entrada no meio. A precedência da língua real provém de seu poder, não de sua sofisticação, antiguidade ou generalização nessa geografia. Os assédios da Inquisição espanhola levaram os emigrantes de Santo Domingo a pedir proteção às autoridades parisienses, que despacharam para lá as poderosas companhias comerciais mercantilistas. Elas promovem o estabelecimento de agricultores ricos e comerciantes nas cidades portuárias, cujo domínio do francês é indiscutível. No entanto, tal inserção não abala a hegemonia da língua local, como estabelecido por Jean Fouchard4 em referência aos falantes “marrons”.5 O uso de idiomas provinciais indica sua importância na vida cotidiana de pequenos agricultores e “pequenos brancos”,6 bem como seu impacto na estruturação da língua crioula. A essa diversidade entre camadas sociais de origem europeia acrescentam-se fraturas étnicas, obscurecidas pela percepção que se tem da maioria remanescente como uma massa indiferenciada de negros. Por volta de 1700, dois terços da população provinham do golfo da Guiné, proporção que chegaria a noventa por cento no final do século. O país acredita ter recebido 21 etnias

diferentes, entre as quais podemos citar os Nagô, os Axânti, os Ibo, os Wolof, os Bambara, os Hausa, os Congo e os Mandingo.

A necessária adoção do crioulo por essas pessoas que seriam enterradas socialmente exige distinguir as relações sociais internas da colônia das relações políticas dessa entidade com sua metrópole. Os cativos são subjugados por coveiros, que também são explorados pelo império.

Observamos, logo de início, que a história do Estado colonial e do Estado do Haiti pode seguir o caminho indicado pelos arquivos tradicionais e chegar ao contrato político que o primeiro impõe ao segundo. Já a história dos haitianos acusa uma rota cuja fonte pode fluir na direção oposta. Uma análise de dados que favoreça o saque da riqueza local, incluindo a exploração excessiva da força de trabalho, só pode levar a um quadro imperial e evitar o surgimento de uma formação soberana. No sentido contrário, uma análise da história dos haitianos, isto é, de sua busca incessante por soberania, registra a erosão permanente de qualquer subordinação ao Estado e ao império.

O contrato social necessário: Tout moun se moun

Ao desembarcar, os guineenses falam diversos idiomas da África Ocidental. Por sua multiplicação vertiginosa, eles acabam por se apropriar da língua corrente e se inscrever na sociedade colonial. Das práticas que essa maioria tece com as pessoas ao redor, emerge a base dos valores de um modo de pensar que é característico dos falantes desse idioma e, consequentemente, das classes que o falam.7 Essa multiplicidade de grupos étnicos se transforma em uma nação americana como resultado de condições de exploração que vão além do humanamente suportável. Essas pessoas atravessaram o Atlântico em unidades individuais desprovidas de tudo. Frágeis, somente reduzem sua vulnerabilidade por meio da solidariedade e da reciprocidade com companheiros de infortúnio. Para atrasar sua morte, recorrem aos mais básicos pontos de contato e constroem novas comunidades, portanto novas individualidades, capazes de dar as costas às definições-chave do sistema de plantation e de superá-las. Ao caminhar por esse Gólgota, essas pessoas acentuam as diferenças entre a língua corrente e a dominante, acrescentam a ela uma flexibilização que traduz suas experiências, bem como uma sintaxe e uma semântica próximas dos idiomas da África Ocidental.

Elas também impõem uma escolha de categorias que reorganizam sua realidade e cujo inventário ainda não foi feito. Podemos citar atores importantes numa história contada em francês que são inconcebíveis em crioulo: os antigos homens livres, os novos homens livres e o exército indígena são exemplos claros disso.

O conteúdo da língua dos cativos, ao contrário daquela dos emigrantes de origem europeia, não coincide com as ideias e os valores que ordenam a vida na corte dos reis da França e de seus servos. Um inventário da língua local permitiria desenhar a arquitetura do mundo dos oprimidos.8 A corte real e a metrópole têm seus arquivos “formais” organizados a partir de seu desejo de regular o universo e toda a humanidade. Esse pensamento ilusório ainda não se concretizou, como a própria existência do crioulo o atesta.

Na linguagem corrente, os cativos negam categoricamente que foram escravizados, mesmo que suas condições de vida tenham sido determinadas por instituições escravagistas. A percepção e a rejeição da injustiça de sua situação são perenes. Seu mundo em formação não permite determinar as datas em que uma ou outra proposta foi eliminada do mundo dominante, mas certos marcos são visíveis. O contrato social preliminar que une os haitianos é estipulado na Constituição de 1801 de Toussaint Louverture. Lê-se no artigo 3: “Não pode haver escravizados neste território, a servidão está abolida para sempre. Todos os homens aqui nascem, vivem e morrem livres e franceses”.9

Observar as conquistas da Revolução Haitiana (1791-1804) como a única revolução escravista bem-sucedida é aprisioná-la na história de um pensamento dos tempos modernos e recusar-se a compreender o processo de contestação iniciado logo que os escravizados chegaram. A sociedade dominante está enredada no impensável. Ela sabe que seres socialmente mortos não podem se rebelar; para isso, é preciso estar “socialmente bem vivo”.

A questão pendente, portanto, é saber como esses agrupamentos de miseráveis inventam uma vida social própria, ou seja, como eles formam um contrato social e se convertem em uma nação. Como eles se destacam dos conquistadores todo-poderosos, formando uma comunidade ativa e contestadora?

A expressão “tout moun se moun” é usada para negar qualquer diferença significativa entre as pessoas, consideradas no plano individual. Em crioulo, é no mínimo absurdo pensar que o nobre é essencialmente superior ao plebeu. Esse princípio, herdado do

feudalismo, é repugnante ao pensamento haitiano. Por outro lado, para as oligarquias da época, a escória de seus países – esses “povos do último nada”10 – , assim como os negros, seriam, por definição, inferiores a eles.

Na fantasia dessas oligarquias, as palavras “tout moun” traduziriam uma distorção da expressão francesa “tout le monde” [todo mundo]. Ora, a ênfase produzida pela redundância destoa do francês da corte real, e parece claro que a expressão não pode derivar dessa fonte, apesar da evidente semelhança de sua assonância. A redundância nega não a alteridade entre os indivíduos, mas qualquer hierarquização dessa alteridade.

As pessoas do golfo da Guiné que foram forçadas a se instalar no Haiti são os bantos. O termo “moun” significa “humano”, e “mountou” é usado no singular. A expressão “tout moun se moun” significaria, portanto, “todo ser humano é humano”, e daí se subentende: todos devem ser tratados da mesma maneira. Por conseguinte, os tempos modernos estão seguindo pelo caminho errado desde o início da aventura imperial, porque não compreendem que a igualdade fundamental daqueles que integram a força de trabalho é compatível com a diversidade de suas condições de trabalho.

Outra confusão deve ser eliminada. “Tou” em crioulo haitiano não se traduz como “tout ” [tudo] em francês, com duas letras “t”. Em crioulo, não há letras mudas, e as duas palavras são certamente pronunciadas da mesma forma. Mas o “tou” (sem o “t” final) significa “também”. Um haitiano se defende de algum tipo de afronta dizendo: “mwen se moun tou”, para expressar que ele é uma pessoa e que ninguém pode desrespeitá-lo. Ele não quer dizer: “Eu também sou um mundo”.

Sempre na mesma linha, e para enfatizar a igualdade de todos os bantos ou humanos, na nossa experiência de oprimidos, a alteridade do outro torna-se superficial. A sentença “nou se menm nou menm nan” é outra redundância sem sentido na língua imperial. Ela quer dizer que “vocês são simplesmente nós mesmos”, mas, como no “tout moun se moun”, somos responsáveis por eliminar o “vocês” e dizemos palavra por palavra: “Nós somos os mesmos nós mesmos”. Ou seja, nossos pontos de contato são muito mais importantes do que nossas diferenças.

Além disso, na profunda crise que o Estado haitiano atravessa hoje, incapaz de controlar a sede de sua burocracia e as relações de sua cidade primaz com as províncias, se bandidos entrarem na sua casa e ameaçarem exterminar toda a sua família, se lhe derem tempo,

você perguntará: “Pou ki sa n ap touye nou? ” . Em tradução literal: “Por que estamos nos matando?”.

Tudo, portanto, parece indicar que, no confronto com os conquistadores-bandidos, conseguimos eliminar o “vocês” de nossa conversa. Desconsiderando a segunda pessoa do plural, será que admitimos ser impossível se comunicar com os “nobres”, na medida em que eles se consideram como tal? O crioulo haitiano reconhece que há pessoas que, a partir de seu lugar de enunciação, simplesmente não conseguem nos entender, e vice-versa? Pois essa igualdade primordial é uma experiência cotidiana, não um valor a ser alcançado em um paraíso ultraterrestre, cuja existência supostamente certa não nos impediria de aceitar os ditames da razão instrumental.

Como resultado, embora o conceito de raça – essencial para a implantação da modernidade ocidental que nos assedia – seja manipulado, ele continua sendo estranho para nós. O conquistador das novas colheitas, não podendo fundamentá-lo racionalmente, o impõe por meio da violência. O mesmo acontece com o conceito de classe, ainda que a violência subjacente esteja envolta num disfarce melhor. Esses conceitos determinam nossas condições de vida, mas tais condições não nos definem e não definem os parâmetros de nossa existência. Elas permanecem externas à nossa realidade, na qual “tout moun se moun” .

Dignidade e precariedade

Obviamente, o povo haitiano vive numa pobreza terrível. Eles fazem tudo o que está a seu alcance para salvaguardar o respeito e a dignidade que os definem nos piores momentos da história. As comunidades são responsáveis por seus membros e, reciprocamente, respondem por eles. Todos respeitam os anciãos e os invisíveis, discutem e resolvem seus problemas na linguagem que estes lhes legaram.

A comoção atual vem de nossa irrupção, toda anárquica, na vida pública. Essa chegada inesperada devasta o cerco que a ocupação estadunidense tem preparado desde 1915. Ao nos imporem suas políticas do tipo Jim Crow, coroadas por programas de ajuste estrutural, estão destruindo nosso confinamento. Quer queiram, quer não, estamos invadindo a capital que a ocupação construiu para si mesma. Como ainda não entende o que significa “tout moun se moun”, ela não sabe para onde correr; enquanto estamos morrendo sem entender por que estamos nos matando.

1 O título é emprestado da obra-prima do barão de Vastey, Le Système Colonial Dévoilé. Cap-Henry: Chez Roux, o impressor do Rei, out. 1814.

2 Robert D. Taber, “Archives of the Revolution: Toward New Narratives of Haiti and the Revolution”, The William and Mary Quarterly, v.75, n.3, jul. 2018, pp.541-550.

3 Charles Frostin, Les Révoltes blanches à Saint-Domingue aux XVIe et XVIIIe siècles (Haiti avant 1789). Paris: Éditions de l’École, 1975, p.70.

4 Jean Fouchard, Les Marrons de la liberté. Paris: Éditions l’École, 1972.

5 Os “marrons” seriam equivalentes aos quilombolas no Brasil.

6 Os “pequenos brancos” (no original, petits-blancs) eram os trabalhadores brancos da classe baixa.

7 Thomas Madiou observa: “As massas, sendo negras e gozando de todos os direitos civis e políticos, estavam ganhando terreno por todos os lados e, com elas, seus costumes, que eram basicamente guineenses, criavam raízes. Os mestiços, que compunham um décimo da população, eram em grande número quase idênticos aos negros no que diz respeito aos costumes, hábitos e inspirações”. Histoire d’Haïti, t. v, 1822-1818. Porto Príncipe: Henri Deschamps, 1988, p.107.

8 Essa fonte de informação é pouco explorada a partir desse ângulo e merece mais atenção. A língua crioula constitui um espaço de negociação onde está em jogo o destino da nação e sua reentrada na política. Faltam referências históricas. Além disso, é útil observar as variações no significado das palavras quando os monolíngues falantes de crioulo conversam entre si e as diferenças que se arrastam quando as trocas são feitas entre os falantes monolíngues de crioulo e os bilíngues francês-crioulo. Dado o prestígio tradicional do francês, o significado que ele dá a uma palavra ou a uma expressão tende a se impor neste segundo caso. 9 Louverture, no entanto, ainda pensa em termos de antigos e novos homens livres. O contrato que ele institucionaliza é retomado nos artigos 2 e 3 da Constituição de Dessalines (1805), no artigo 1 da de Christophe (1806), no artigo 2 da de Pétion, eleito por quatro anos (1807), e no artigo 1 da constituição que institui a presidência vitalícia (1816). Ele não é mais encontrado na Constituição de 1843.

10 Charles Frostin, op. cit., p.167.

Da humanidade como práxis

Encontros em três fragmentos

Abena P.A. Busia

Traduzido do inglês

Pelas nossas paisagens

Florescem espaços de encontros contrastantes: Onde oceanos e rios se fundem, Onde as águas doces correm rumo ao abraço do sal.

O oceano é o que, e o oceano é quem somos: Fragmentos da criação, Água encerrada em carne que pensa, ansiando por liberdade.

Partículas de histórias – depositadas como cracas ou conchas das eras –

Tudo o que está sepulto dissolvendo-se aos poucos enquanto espera ser reivindicado.

Partículas de histórias – depositadas entre folhagens em decomposição e rochas por eras –

Tudo o que está sepulto marmorizando-se aos poucos enquanto espera ser desenterrado.

Próximo encontro: camadas do antropoceno

Água encerrada ansiando por liberdade

Pode se tornar uma perigosa

Força criativa:

Ilhas de destroços à espreita como espuma insolúvel em águas cênicas enquanto geleiras derretem e lagos evaporam e os picos das montanhas caem por terra e as florestas se ressecam em desertos e o fundo do mar termicamente aquecido apodrece.

Camadas de plástico calcificado e sufocante representam os estratos de rochas sedimentares de nossa era radioativa; Com tanta poluição, o que resta para purificar ou preservar?

Se a humanidade é uma prática, estamos indo mal,

Se é um verbo, é defectivo Uma forma não conjugável

Existindo apenas no tempo presente –Desprovida de passado, despojada de futuro, Despojada de passado, desprovida de futuro, Apenas existindo, sem sentido –Ferindo e sendo ferida.

Encontros eternos: manguezais celestiais

Assim como os ciclos do cosmo

as mudas paisagens sonoras das estrelas eternamente conosco, eternamente nós –Os manguezais ainda lutam para crescer

Naquelas áreas entrecorrentes

Onde oceanos encontram e deixam a costa

No rugir dos maremotos

Entre idas e vindas, em constante mudança.

A Via Láctea é nosso Corpo Menstrual

Gerando o gás e a poeira das estrelas, Sangrando nosso sol, guiando nossa lua

Que guia o movimento de nossos oceanos

Que guia o fluxo dos ciclos menstruais

Ajustando o movimento de nossas lactações.

Certas coisas se movem sem nosso consentimento

Certas coisas existem sem nosso conhecimento

Ainda assim temos artesãos da palavra para testemunhar com os olhos]

E artistas visuais como testemunhas auditivas

De outras histórias

Retomar o que a gente era –

Transformar o esquecimento

No abraço de quem somos –

Livrar o agora do que somos

Cantar o que podemos ser

No ser.

Enquanto ouvimos novamente o murmúrio das primeiras águas

Conjugando uma nova humanidade.

O et e o humano

Yásnaya Elena Aguilar Gil

Traduzido do espanhol

As tradições de pensamento estão sempre mudando, como o rio de Heráclito; e, ainda assim, são (e não são) sempre o mesmo rio. Essas tradições são formuladas em múltiplas línguas, que oferecem uma base semântica a partir da qual se tecem linhas de conceitos, ideias e análises nas diferentes culturas do mundo. Essas tradições podem, por vezes, se traduzir em práticas culturais, mas nem sempre é o caso. Quando menciono ou descrevo um conceito da tradição mixe, povo indígena ao qual pertenço, não pretendo afirmar que todas as práticas culturais de todas as pessoas mixe estejam necessariamente orientadas por tais tradições.

Por exemplo, afirmar que, na tradição de pensamento mixe, a noção de terra como propriedade privada não tem o mesmo peso que possui na tradição de pensamento ocidental não significa que todas as pessoas mixe pensem ou ajam assim. A ideia de propriedade privada da terra, tão central no pensamento ocidental, pode muito bem orientar as práticas concretas de pessoas mixe. Fazer esse esclarecimento prévio antes de esboçar algumas ideias sobre a humanidade me parece importante, pois ajuda a evitar generalizações – e, em muitos casos, romantizações – das práticas culturais dos povos Mixe. Seria como assumir que os valores da democracia ocidental se refletem fielmente nas práticas políticas dos Estados-nações contemporâneos, o que não é verdade. Ainda assim, esses valores compõem uma tradição de pensamento e iluminam diversos fenômenos.

Feito esse esclarecimento prévio, gostaria de abordar alguns traços da tradição de pensamento dos povos indígenas – mais especificamente dos povos mesoamericanos e, de forma ainda mais concreta, do povo Mixe – sobre o que se entende por humano. Enquanto a tradição humanista encontra grande acolhida no Ocidente, em outras tradições de pensamento o humano se apresenta de forma diferente. Em muitas dessas tradições indígenas, a humanidade é apenas um elemento entre outros dentro da natureza. A divisão fundamental entre natureza e cultura (ou seja, entre natureza e humanidade), tão central à tradição ocidental, não encontra correspondência em diversas cosmologias dos povos originários.

Para dar um exemplo: durante a realização dos rituais mixe – que geralmente acontecem nas montanhas, em cavernas e em outros pontos específicos do território – é possível ouvir narrativas orais que revelam uma compreensão do humano como parte de um todo complexo e contínuo que, na língua mixe, se denomina et. Essa palavra tão curta é, ao mesmo tempo, verbo e substantivo:

como verbo, significa “estar/existir”; como substantivo, poderia ser traduzida como “tudo o que é/tudo o que existe”. Proponho uma metáfora: imaginemos a realidade como um único corpo – a humanidade seria uma mão que, conceitualmente, foi separada de modo abrupto desse corpo. Na tradição ocidental, posso nomear a natureza como algo distinto do humano; a palavra et, em mixe, ainda contém o humano.

Os rituais, frequentemente classificados como pensamento mágico no Ocidente, na verdade são evidências de que, para a cultura mixe, a humanidade ainda não foi completamente separada daquilo que chamamos de natureza. Norma Palma Aguirre, do povo Rarámuri, expressa isso com clareza em um ensaio sobre a noção de território:

Para os Rarámuri, o território não é um espaço à parte; não podemos dizer “nós e o território”, nem podemos dizer “nosso território”. Não sentimos como nosso o espaço em que vivemos, não o possuímos [...] não podemos dizer “daqui até ali é meu”, “essa floresta é minha” ou “essa água é minha”; muito menos que isso pode ser vendido ou trocado. [...] Aprendemos que somos parte do território, que somos uma unidade.1

Se, para os povos indígenas, as pessoas são uma unidade com o território, a violência que recai sobre a terra recai também sobre as sociedades que nela habitam. A violência contra os defensores do território é, nesse sentido, uma extensão direta da violência contra a natureza.

Por outro lado, a divisão que de fato se estabelece no Ocidente carrega uma violência primordial fulminante: implica separar, amputar, rasgar um contínuo e criar o mundo do humano como uma entidade apartada da natureza. Uma vez que o humano é extirpado do mundo natural, tudo o que não for cultura ou civilização passa a ser erigido como um grande Outro – algo que depois pode ser subjugado, controlado ou dominado. Nessa lógica, os bens comuns da natureza tornam-se recursos naturais privados; a própria natureza se transforma em mercadoria. Nessa tradição de pensamento, tudo o que se aproxima do mundo natural será lido como selvagem, primitivo, incivilizado. Grande parte da justificativa para a escravização de populações africanas sequestradas para explorar os territórios desse

continente consistia justamente em colocá-las do lado da natureza; lidas como primitivas, sua opressão parecia perfeitamente justificável. A discussão sobre se as populações nativas desse continente tinham ou não alma foi, no fundo, uma disputa sobre onde situá-las: do lado da natureza (dos animais) ou do lado do humano (da civilização). Os povos do mundo que não fizeram essa separação inicial entre natureza e humanidade expressam, no exercício de sua relação com os ecossistemas, estratégias que fizeram com que grande parte das reservas naturais do planeta estivessem localizada em seus territórios. Não surpreende, portanto, que os bens naturais dos povos indígenas ainda sejam espaços onde a máquina que transforma natureza em mercadoria não penetrou por completo. Tampouco causa espanto que empresas, Estados ou o crime organizado cobicem justamente esses territórios e os recursos que podem extrair deles: agora que o restante do planeta foi devastado, avançam sobre aquilo de que os povos cuidam há séculos. O ataque aos territórios indígenas – hoje reconhecidos como “reservas naturais” – intensificou-se com a colonização europeia, processo fundamental para o surgimento do capitalismo. Uma vez subjugadas e exploradas as terras europeias, a engrenagem que converte natureza em mercadoria se voltou ao restante do mundo. A principal ameaça enfrentada hoje pelos povos indígenas é essa máquina extrativista, que avança ceifando também a vida de quem tenta barrar o seu curso. Sustentada por uma tradição de pensamento que separa a natureza da humanidade, essa lógica extrativista é justamente a que nos trouxe à emergência climática atual, que promete morte e ameaça a própria vida. Diante da crise climática, surgem respostas variadas. Há quem negue o fenômeno para não comprometer o funcionamento da máquina extrativista a serviço do crescimento econômico capitalista. Mesmo entre os que reconhecem o problema, as propostas sobre o que fazer são diversas e muitas vezes contraditórias. Existem posturas ecofascistas que chegaram a propor a eliminação de populações com altas taxas de natalidade; outras defendem que o próprio sistema capitalista oferecerá soluções tecnológicas para o problema; há ainda quem veja na energia nuclear a resposta. Tudo, menos questionar o crescimento econômico. Por outro lado, há ambientalismos de tradição europeia que, de fato, questionam radicalmente o funcionamento da própria máquina extrativista. Ainda assim, esses ecologismos continuam a colocar no centro uma natureza concebida como separada do humano. Segundo sua

tradição de pensamento, a natureza segue sendo um Outro, só que, agora, um Outro do qual é preciso cuidar.

Entre os povos indígenas – em sintonia com suas tradições de pensamento –, poderíamos dizer que o ambientalismo se enuncia como “defesa do território”: um território que inclui a humanidade como apenas um de seus muitos elementos. Talvez por isso, em conversas com mulheres zapotecas defensoras do território, da água ou das florestas, elas raramente se definam como ambientalistas ou ecologistas. Em muitos casos, suas lutas são contadas em línguas que não fazem essas distinções. E, ao explicarem sua atuação, citam com frequência outras forças não humanas que também protegem os bens naturais: fala-se de raios enfurecidos quando se agride a floresta, ou das serpentes guardiãs das nascentes, entidades não humanas que tornam possível que os pulmões do planeta estejam hoje nos territórios daqueles que foram chamados de silvestres, selvagens ou primitivos.

Essas visões divergentes entre tradições de pensamento, que entendem de forma tão contrastante a relação entre humanidade e natureza, acabam criando situações em que a tradução se torna indispensável. Quando a defesa legal precisa ser articulada, as concepções sobre o que significa um rio ameaçado para uma cultura precisam ser convertidas para a linguagem do direito, para o discurso do direito positivo. O significado complexo da água para uma cultura se traduz, se reduz e se resume na expressão “direito humano à água”. Para dar apenas um exemplo, a natureza parece importar somente à medida que se humaniza. Mas interromper a violência contra a terra – e contra quem a protege – exige um caminho de volta: curar a ferida que separou o humano da natureza, reparar o primeiro rasgo que justificou a mercantilização dos bens naturais, recompor a ruptura original que nos apartou da terra. A emergência climática grita por isso: é um lembrete do que o capitalismo tentou apagar – que somos, e sempre fomos, natureza.

Aura Cumes, antropóloga do povo Kaqchikel da Guatemala, enfatiza que, na tradição de pensamento ocidental, o humano foi, em muitas ocasiões, equiparado ao “homem”. Não é por acaso que, durante muito tempo, a palavra “homem” podia perfeitamente ser usada como sinônimo de “humanidade”.2 Além de ter sido pensado como uma entidade separada da natureza, o humano também foi construído com uma carga de gênero – um gênero definido pela oposição binária e hierarquizada. Em contraste, na tradição de

pensamento mixe, os substantivos não marcam o gênero, sendo impossível inferi-lo a partir de palavras isoladas.

As tradições humanistas, que colocam o humano no centro, ainda se baseiam nessa separação fundadora que nos aparta de todo o restante da existência. Que outras práticas poderiam curar essa ferida fundamental? Há alguma forma de recolocar o humano no todo que é a existência e a realidade? A emergência climática talvez possa ser lida como um grito violento, um lembrete.

A tradição dos Nahuales (tso’ok na língua mixe) abre um leque de possibilidades: as pessoas podem ser também animais ou aquilo que se costuma chamar de forças da natureza. Não se trata apenas de uma visão mágica do mundo, mas da construção de um universo narrativo que reforça a ideia de continuidade entre os humanos e as demais entidades. Uma pessoa com tso’ok pode se tornar raio, tempestade ou vento, mantendo uma vontade que atravessa as formas que assume. O que acontece aos tso’ok afeta as pessoas também: se o animal de alguém é um felino, a saúde desse felino será refletida na saúde da pessoa a quem está ligado.

O antigo sistema de atribuição de nomes também revela essa continuidade entre o que o Ocidente separa em humanidade e natureza. Meninas e meninos recebiam nomes do calendário tradicional mixe, compostos de um número e do nome de um animal, um elemento vegetal ou um fenômeno natural, como um terremoto.

A crise do humano, e das tradições que o colocam no centro, reside, assim, nesse corte conceitual inaugural, nessas fronteiras que fixaram o homem como rei da criação. Talvez, ainda inscritos nessa mesma tradição ocidental e diante das crises atuais, devamos buscar mais respostas em Eva do que em Adão. Talvez seja necessário nos aproximarmos da serpente, nos reconhecer nela e encontrar, quem sabe, o caminho de volta a esse et primordial que nos lembra que a humanidade é, afinal, parte de tudo o que existe.

1 Disponível em: tzamtrecesemillas.org/sitio/territorio/. Acesso em: 2025.

2 Disponível em: www.revistadelauniversidad.mx/ articles/8c6a441d-7b8a-4db5-a62f-98c71d32ae92/ entrevista-con-aura-cumes-la-dualidad-complementaria-y-elpopol-vuj. Acesso em: 2025.

Nós / Eles

Rodney Saint-Éloi

Traduzido do francês

Nós

Eles

Eles

Nós As palmeiras exigem o sacrifício do vento

O mar é um garotinho que o infinito importuna

Meu destino está no navio negreiro

Que fala dentro de mim

O Ancestral de Gorée a quem cortaram o braço direito

Meu rosto esconde as rugas do medo

É aí que chega o medo

Um medo que me precedeu

Por muito tempo

Muito tempo

Sem que eu soubesse

Eu sou

Eu não sou

Onde está a questão

Meu corpo é o corpo do delito

Ah, o que me aconteceu numa manhã de inconsciência

O que aconteceu a mim mesmo no fim de uma terra chamada ilha

Porque não tem água, justamente

Porque não tem mais terra, justamente

Essa terra tem a nostalgia das águas revoltas

Leiam meu nome nas asas de uma borboleta

Eles nomearam meu povo com o nome deles

Eles nomearam minhas cidades com nomes de bordéis

Eles nomearam meus ventos ao sabor dos rios

Eles penetram nos meus segredos sem pestanejar

Quando digo honra

Eles apontam seus fuzis para a savana adormecida

Quando digo honra

Eles desviam a cabeça com frieza

Eles nos deram, deram

Eles nos deram o dom, clamam

Eles nos deram a paz, dizem

Eles nos deram a palavra, dizem

A geografia a moral e a beleza

Eles nos deram a plantação e a civilização

Eles nos deram o chicote e o escarro da morte

Eles nos deram tudo menos o dom de escolher o canto de céu que teríamos elegido por leal na língua e no poema que falam da beleza de nossas nações]

Eles nos deram tudo menos o dom de chorar por nossos mortos quando nossas entranhas são]  colhidas pela multiplicação das dores

Eles nos deram tudo menos o direito de escolher o nome dos nossos cães, dos nossos amores, ]  de escolher o nome que desejamos dar a nossas colinas nossos rios nossas flores

Jamais teremos direito às lágrimas

Jamais teremos direito aos gritos

Jamais teremos direito à nossa sepultura

Eles nos deram o que têm

Eles deram deram deram

O verbo dar lhes pertence

E a coisa que eles dão é a coisa deles

Somos dois séculos de curvatura

Temos a mão da humilhação e do pecado

Somos dois séculos de bandeiras enlutadas

Então cantamos com as mãos em cruz

Então dançamos com os pés tortos

Eles deram golpes no sol

Eles deram golpes na árvore

Eles deram golpes no pássaro

Ninguém nos pediu para falar

Ninguém ouviu nossas vozes

Ninguém deu fôlego às nossas línguas

O silêncio germinou em nós

É verdade que há eles

É verdade que há nós

Entre eles e nós

As montanhas dividem ao meio os destinos

Mas sabemos dizer nós

Sabemos amar com amor nossos amores

Temos cromossomos

Temos genomas

Temos o tamanho conveniente do cérebro

Nossos vícios e nossas estripulias fecundaram as ciências

Temos nosso lugar ao sol

Nossos mares conversam com os arco-íris

Nossos tambores à noite chovem estrelas

Estamos em pé na barca da história

Ah, habitamos os parênteses ausentes

Ah, que lição de história apagada

Quem nos dirá um dia o número sorteado

O sol se torna cego sobre os rios

A lua clareia os horizontes

Temos nossos cantos de caçarolas

Estamos em pé com nossas canções nossos espelhos

Quem escreverá a história dessa epopeia

E a bússola o mangue que funda o território

Quem fixará aos nossos pés

Os limites das ilhas à mercê do vento

Camaradas, há dois séculos

Estou louco da mesma loucura

Estou louco da mesma história

Repito toda noite as mesmas palavras

Aprendo o verbo ser

Levanto a cabeça

Levanto a cabeça

E digo aos quatro horizontes

Honra

Quem me dirá Respeito

Caminhando juntos

Notas sobre a solidariedade para além da empatia

Traduzido do inglês

Em otomi, até hoje uma das línguas indígenas mais faladas no México, a palavra para “irmão” tem uma quantidade de conotações complexas que revelam muito sobre o modo de pensar dessa rica cultura. Primeiramente, a palavra não é usada como substantivo, mas como verbo – um verbo reflexivo, para ser mais exata. Isso significa que dizer “ele é meu irmão” é, na verdade, dizer “estamos nos irmanando um ao outro”. Além disso, esse verbo em otomi tem um homófono, ou seja, uma palavra pronunciada da mesma forma, mas com um significado diferente: assim, além de descrever uma relação familiar, o termo também significa “ir”, ou “caminhar”. Então, quando dizemos “ele é meu irmão” em otomi, estamos também dizendo “nós caminhamos juntos”.

Eu sempre me fascino com a maneira como as linguagens nos permitem compreender outros modos de pensar e outras abordagens de entendimento de nosso papel no mundo e de nossas relações com as pessoas, animais, plantas e outros seres. A linguista misteca Yásnaya Elena Aguilar Gil sempre alarga meus horizontes a esse respeito. É o caso do ensaio dela para a presente publicação,1 no qual ela discute como o termo misteca “et ” descreve o ser humano como parte de um todo complexo e contínuo. Da mesma forma que “irmão” em otomi, “et ” também é um verbo e um substantivo, e significa tanto “ser” no sentido de “existir” quanto “tudo que é/ tudo o que existe”. A distinção entre natureza e cultura (isto é, entre natureza e humanidade), que é característica da tradição ocidental, não tem equivalente aqui, como em muitas outras tradições de pensamento de culturas indígenas em todo o globo. A humanidade é entendida como parte de um todo mais amplo no qual tudo o que existe “se irmana” e “caminha junto”. A humanidade é considerada um conjunto de parafusos dentro de um sistema vasto em que tudo se determina e se impacta potencial e mutuamente. Vivemos em uma época em que essa estrutura sistêmica está mais evidente do que nunca. Ao mesmo tempo, nota-se a completa falta de consciência desse fato. Como nunca antes, o espírito de nossas sociedades se caracteriza pelo individualismo. Todo mundo está voltado exclusivamente para o próprio bem-estar e age para este fim, ignorando os efeitos de longo alcance que seus próprios atos podem ter. O resultado, que vivenciamos atualmente, é um nível de divisão, violência e destruição que não vemos desde as grandes guerras do século 20. Ao mesmo tempo, hoje fala-se mais de solidariedade em pronunciamentos públicos do que antes. Como se explica isso?

Na teoria, expressar solidariedade é uma maneira de tomar uma posição, compreendendo a si mesmo como parte de algo maior, pelo qual somos corresponsáveis. A solidariedade de grupo com frequência é expressa quando caminhamos juntos – por exemplo, em manifestações. O termo “solidariedade” em geral é visto como um sinônimo do conceito mais antigo de “fraternidade” e é amplamente considerado – ao lado de liberdade, igualdade e justiça – um valor político e social fundamental. Suas raízes conceituais remontam ao direito romano, no qual o termo obligatio in solidum era usado para descrever uma forma de obrigação segundo a qual cada membro de uma comunidade era responsável pelas dívidas dela e, vice-versa, a comunidade era responsável pelas dívidas de cada um de seus membros. Foi só no começo do século 19 que o termo se generalizou e passou a ser aplicado ao campo da política e da sociedade como um todo.2 Ele se desenvolveu no contexto dos movimentos trabalhistas e é um conceito genuinamente moderno – usado, em vários momentos do século 20, em alusão a relações sociais ou morais entre indivíduos que, em princípio, são iguais, para expressar apoio a grupos vistos como desfavorecidos ou oprimidos. Na última década, o termo parece ter experimentado uma ressurgência. Meu argumento é que as redes sociais desempenharam um papel crucial nesse desenvolvimento. Em todo caso, as mídias sociais fizeram com que expressões virtuais de solidariedade, a meu ver, degenerassem em frases vazias e se tornassem meros apelos por atenção: quando nada muda para aqueles que são o objeto dessa solidariedade, esta não passa de uma formalidade discursiva.

Atualmente, no caso das guerras na Ucrânia e em Gaza, para ficar apenas em dois exemplos, pode-se até mesmo notar que, em contraste com outros movimentos de protesto das últimas décadas, literalmente se exige uma mostra de solidariedade para com um ou outro lado dos conflitos. E, se você não atende essa exigência, é logo tachado de apoiador do lado oposto. Vemos uma pressão absurda não só para que as pessoas tenham opinião, mas para que a expressem em público, o que estranhamente parece ter um efeito de formação de identidade. Em especial na Alemanha, expressar uma opinião sobre a guerra em Gaza, por exemplo, é como pedir para ser linchado: é fácil virar alvo de preconceito e desprezo devido às definições simplistas produzidas por instituições públicas que alegam deter o poder de possuir a soberania da interpretação sobre uma definição única.

Não estou interessada, aqui, em discutir a guerra em Gaza ou a atual bagunça da cultura do debate na era das redes sociais. Tampouco estou interessada em analisar o que de fato o destacado fenômeno das expressões de solidariedade nas redes sociais é capaz de alcançar. Gostaria, em vez disso, de refletir se a disseminação visual dos exageros do terror em todas as suas formas, em imagens e números – disseminação essa que almeja expressar solidariedade evocando a empatia do espectador para com as vítimas do sofrimento descrito – não seria, na verdade, profundamente não empática. A solidariedade, por definição, não é altruísta? Contudo, não estaria essa pressão para tomar posições na verdade colocando o sofrimento de um contra o outro, revelando assim um desequilíbrio de poder? A escritora e historiadora da arte Aruna D’Souza suspeita estar em voga uma política da empatia, “a qual permite que a pessoa conclamada a ser empática permaneça em uma posição de supremacia, distribuindo justiça como uma questão de bondade –ou piedade, talvez”.3 Duvido que as pessoas que expressam sua dor e seu choque nas redes sociais sejam capazes de pôr qualquer coisa em movimento – como fazer o governo questionar e adiar o apoio financeiro a determinado grupo –, por isso esse tipo de expressão de solidariedade de sofá, por assim dizer, que apela à empatia pelos retratados, me deixa com um gosto amargo na boca.

Não posso deixar de ver tais apelos à empatia nas redes sociais como parte de uma autoapresentação midiática de quem se acredita no lado certo da história, em vez de pôr-se de prontidão para proteger a dignidade humana do próximo, que é o que se está alegando fazer, afinal de contas. O sistema neoliberal que predomina nas sociedades em que vivemos nos condicionou a pôr nosso bem-estar acima do dos outros e, nesse sentido, a pôr nossa própria identidade (e nossa marca) em primeiro lugar. Acabamos criando uma paisagem midiática e política na qual provocar reações de empatia se tornou a ferramenta ideal para posicionar e representar a nós mesmos (e não a causa em questão) politicamente, uma vez que mira a mudança individual, e não a ação coletiva. Em uma paisagem como essa, os sofredores, ironicamente, é que têm o fardo de apresentar seu sofrimento da maneira mais espetacular possível e de dividi-lo com o mundo de um modo que, primeiro, seja ideal para ser repostado e, segundo, que sua representação de dor supere a dos outros. Assim, a empatia é estilizada como um pré-requisito da solidariedade e da ação política.

Ao seguir definições correntes do termo “empatia”, falamos da competência cognitiva de compreender os sentimentos de outra pessoa, de nos identificar com suas emoções como se fossem nossas e de estar disposto a responder condignamente às necessidades da pessoa. Mas como poderíamos nos supor capazes de ver a nós mesmos em outra pessoa, a qual vive em circunstâncias completamente diferentes, que dirá exigir moralmente que os outros empatizem com as experiências de outra pessoa – sobretudo quando, ao postarmos nas mídias sociais, nem ao menos conhecemos esses indivíduos? Não estaria essa convicção baseada no pressuposto da comparabilidade de uma vida com outra, deixando de levar em consideração a diversidade de vidas e de modos de ser? Como propõe Aruna D’Souza, e se baseássemos nossa política não em nossa capacidade de empatizar com pessoas cujas experiências são distantes das nossas, mas sim em nossa disposição para cuidar delas apenas em função de elas serem seres humanos? D’Souza defende pensar a solidariedade para além da empatia. Ela acredita que a identificação emocional com os outros, como um pré-requisito para a solidariedade, deixa de construir pontes produtivas que formem alianças. Assim, tendemos a evitar o dever de encarar a complexidade do agir humano e aceitar contradições. Pelo contrário, ela sugere que a solidariedade se baseie em alianças temporárias, específicas a certos contextos, que admitam diferenças e às vezes ambiguidades. Trata-se de entender cada indivíduo como alguém moldado por uma rede multifacetada de circunstâncias. Os atos e as opiniões de diferentes pessoas não podem ser julgados com base na mesma lógica. Trata-se de reconhecer as circunstâncias que conduziram a esses atos e opiniões, mesmo que não consigamos nem queiramos representá-los nós mesmos. Nesse sentido, reconhecer não é o mesmo que justificar.

Lembremos, por exemplo, do ataque à equipe editorial da revista satírica francesa Charlie Hebdo em 2015, na esteira da controversa publicação das chamadas “charges de Maomé”. Em primeiro lugar, o islã tem uma forte tradição de aniconismo. Em segundo lugar, uma charge infame chegou a mostrar o profeta com uma bomba no turbante, reforçando o estereótipo do islã inerentemente associado ao terrorismo. Sob o slogan “Je suis Charlie” [Somos todos Charlie], e no espírito de defender a liberdade de expressão, um movimento de solidariedade para com as vítimas do ataque – a equipe editorial – rapidamente se espalhou pela mídia. O slogan convidava as pessoas a identificar-se como parte desse grupo;

pessoas que sentiam que seu direito à liberdade de expressão havia sido violado. Mas quem é que pode reivindicar para si uma ilimitada e indisputada liberdade de expressão?4 Essa retórica está alinhada com a que foi usada após muitos ataques ao mundo ocidental nas últimas décadas, quando as pessoas afirmam que se trata de uma ofensa ao “nosso” modo de vida, que “nós” deveríamos defendê-lo por meio da expressão de solidariedade. É uma retórica política que atribui valores a estilos de vida, e assim também aos grupos de pessoas que os representam: um ranking e, portanto, um status dentro de uma sociedade.

O movimento de solidariedade “Je suis Charlie” foi criticado por deixar de perceber que nem todo mundo na sociedade tem a mesma liberdade de expressão. Também se apontou que a liberdade de expressão sempre termina onde a dignidade de outra pessoa é questionada ou julgada inferior, o que claramente aconteceu nesse caso. Os cartunistas deliberadamente pisotearam os valores de outra comunidade em nome da sátira, dessa forma colocando-se a si mesmos “acima” de tal comunidade. Esse exemplo ilustra como hierarquias sociais podem surgir e ser reproduzidas quando a solidariedade se liga à identificação emocional, e quão complexo o sentimento de solidariedade pode ser.

Estou convencida de que, caminhando juntos no espírito da fraternidade, somos capazes de condenar os atos violentos dos agressores e ao mesmo tempo criticar os cartunistas. Os fins nunca justificam os meios. Pelo contrário, devemos ser capazes de ouvir e reconhecer as razões que levaram a tal ato, mesmo que pessoalmente não possamos empatizar com elas. Esse caso mostra que, quando a solidariedade se combina com uma empatia incondicional e acrítica, a complexidade das circunstâncias deixa de ser reconhecida.

D’Souza propõe uma forma de solidariedade política baseada não na empatia, mas no respeito à opacidade. Ela cogita uma maneira de tolerar o desconhecimento do outro e ainda assim cuidar dele, mesmo sem compreendê-lo de todo ou identificar-se com ele, sem traduzir a nós mesmos aos termos dele.5

Na qualidade de seres pensantes, nossas crenças são a fundação de quem somos e de como nos vemos. Se essa fundação, em sua forma atual, é posta em xeque, o edifício construído sobre ela pode facilmente começar a tremer – o que, como demonstramos em nossa Invocação em Guadalupe, não leva necessariamente a uma queda, mas nos ajuda a nos manter em movimento e a fortalecer

nossa humanidade. Esse segundo capítulo do programa público da Bienal foi inspirado nas teorias da coreógrafa e antropóloga Léna Blou, que, com base na experiência caribenha e no espaço teórico que dela se alimenta, propõe abandonar o pensar com estruturas fixas em favor de um improvisar diante da opacidade do mundo em que vivemos.

Nesse sentido, estou convencida de que o desafio fundamental da humanidade é reconhecer e ouvir outros humanos e outros modos de ser no escopo da tarefa mútua do cuidado, mesmo que não possamos nos identificar com todos os traços divergentes. É parte de nossa responsabilidade básica encarar esse teste em nossa vida e continuar questionando nossa própria noção de individualidade e as certezas associadas a ela, a fim de permitir que os outros tenham prioridade, mesmo que não compartilhemos de suas convicções nem sejamos capazes de ter empatia para com os motivos que os movem. É uma obrigação cuidar um do outro com base na humanidade que conecta a todos nós em nosso âmago. Aceitar esse dever é parte da ideia essencial de entender a humanidade como uma prática. Assim como o conceito de democracia, a humanidade não é algo que possa simplesmente ser postulado: ela só se confirma por meio de nossos atos, de nossas formas de lidar com todos e tudo aquilo que nos rodeia. Um Estado só é plenamente democrático quando garante a seus cidadãos o acesso a princípios democráticos e os representa em suas instituições, e quando os cidadãos constantemente praticam e defendem esses princípios. Da mesma maneira, “humanidade” significa caminhar juntos e irmanarmo-nos uns aos outros, sermos humanos para e com os outros, apesar e em reconhecimento de nossas diferenças, sempre, igualmente, como irmãos unidos por uma noção de cuidado.

1 Ver, neste volume, ensaio de Yásnaya Elena Aguilar Gil.

2 Susanne Boshammer, “Solidarität”, em Stefan Gosepath et al (orgs.), Handbuch der Politischen Philosophie und Sozialphilosophie. Berlim: De Gruyter, 2008, pp.1197-1201. Disponível em: www.zora. uzh.ch/id/eprint/5616/1/HPPS_HPPSID_321.pdf. Acesso em: 2025.

3 Aruna D’Souza, Imperfect Solidarities. Nova York: Columbia University Press, 2024, p.30.

4 Ibid., p.81.

5 Ibid.

Nós é que somos a função

Traduzido do inglês

A crise de nosso tempo é justamente a da autodissolução desta era.

Nos últimos tempos, ao menos uma vez por ano, dou uma aula sobre o influente ensaio “The Ceremony Must be Found: After Humanism” [A cerimônia deve ser encontrada: após o humanismo], escrito em 1984 pela autora, crítica e teórica feminista negra Sylvia Wynter.1 O ensaio é tão desafiador quanto gratificante. Creio que os estudantes, bem como o professor, precisam de tempo para se acostumar à sua escrita, que exige que o leitor desacelere e preste atenção, movendo-se com cuidado pela prosa densa mas sempre generosa e gerativa. Escrito em meio a uma ampla crise nas humanidades – a qual Wynter descreveu na época, entre outras coisas, como uma “crescente deserção estudantil em direção às áreas vocacionais da educação” –, o ensaio situa essa crise dentro de uma “crise generalizada da episteme/organização do conhecimento, deflagrada […] no século 19”.2 Essa episteme, ela sugere, se baseia na “tríade” “biologia, economia e filologia/estudos literários”.3

Conforme Wynter argumenta em todo o ensaio, existe uma relação entre a base material de uma sociedade (a configuração e as formas que assume) e os meios performativos e epistemológicos por meio dos quais ela conhece e narra a si mesma. Segundo sua descrição, o surgimento dos Studia Humanitatis no Renascimento italiano encenava uma deposição da episteme teológica absoluta da ordem feudal, colocando o Homem no centro, lugar onde antes estava o Divino, e reescrevendo o mundo através de um discurso da razão natural ali onde anteriormente a vontade divina reinava inconteste. Para Wynter, “foi essa reescrita do conhecimento que constituiu a heresia fundacional dos Studia Humanitatis originais, vistos em sua acepção mais ampla como conhecimento humano de seu mundo socio-humano, a heresia que estabeleceu as bases de nosso mundo racional moderno”.4 O argumento de Wynter se apoia em um diagnóstico presciente da “crise generalizada da episteme/ organização do conhecimento”: “a crise de nosso tempo é justamente a da autodissolução desta era”.5

O que em parte costuma surpreender a mim e a meus alunos no argumento de Wynter é que ele não termina por desacreditar as humanidades, mesmo que faça uma crítica mordaz de seu papel

destrutivo no ordenamento colonial e racial de nosso mundo. Como nota Wynter, ainda que tenham destronado o absolutismo teológico, os Studia ainda preservavam, mantinham e reproduziam vários dos aspectos dessa ordem precedente. Isso inclui uma série de binômios fundacionais, como a cisão entre ordem e caos ou alma e corpo. De fato, a ordem absoluta do Divino, quando substituída pela figura do Homem dotado de razão, ainda supunha uma universalidade que com frequência era violentamente constituída por aquilo que Wynter chama de “super-representação do Homem”. Aqui, a figura bastante provinciana do Homem (branco/europeu, heterossexual e dono de terras) é definida como o representante universal do “humano”. Como já apontei em outro ensaio, quando o Homem é constituído em contraposição a seu Outro racial e colonial, esse processo reifica e reproduz todo um conjunto de novas oposições fundacionais:

O Homem natural e dotado de razão (vida/ordem/nós-eu) é contraposto a esse Outro – a figura insensata e irracional da morte/caos/eles. Assim que as ordens coloniais da Europa se estabelecem, essa figura é racializada e representada como negra (enegrecida) e indígena (o “preto” e o “nativo” [bem como o “asiático”]). Essa distinção fornecia uma armação epistemológica para justificar tanto as ordens estabelecidas do capitalismo e do colonialismo racial quanto a subordinação, a sujeição e até mesmo a destruição genocida dos muitos Outros do Homem dentro desses sistemas.6

O que surpreende no ensaio de Wynter, portanto, é sua insistência no poder dos Studia de reescrever o conhecimento de uma maneira que talvez ainda permita uma reescritura do mundo por meio de uma nova e herética reinvenção das humanidades. Em uma era na qual, como Wynter profeticamente observou,

até mesmo o processo autocorretivo das ciências naturais se vê ameaçado pela crescente hegemonia de uma tecnociência que busca manipular os processos físicos da natureza a fim de aumentar o poderio militar e econômico de alguns grupos humanos em detrimento de outros, clama-se por uma oposição paralela àquela da heresia original dos Studia. 7

Essa oposição, sugere ela, pode ser alcançada não por meio da abolição completa dos Studia, e sim por meio da própria reorganização de sua heresia. Os Studia deveriam, em outras palavras, “ser reinventados como uma alta ordem do conhecimento humano, capaz de prover uma ‘visão de fora’ que tome o humano, e não qualquer de suas variações, como Sujeito”.8 Essa “visão de fora” precisaria ser encenada de dentro dos Studia, em parte para afastar a reconstituição de uma “variação” específica, privilegiada, como “Sujeito”. E como exemplo de um tal lugar a partir do qual essa oposição poderia ser desenvolvida, Wynter oferece “a visão” a partir do difícil, marginalizado e muito cerceado lugar dos estudos negros. Ela espacializa isso dando como exemplo um Centro de Cultura Negra localizado no campus universitário onde ela trabalha e que foi fundado durante os anos 1960 e 1970, na esteira dos movimentos globais e regionais pela vida negra e pela liberdade negra:

Aqui, a visão a partir do Centro de Cultura Negra põe ênfase na nova função da literatura […] A visão do Centro de Cultura Negra, portanto, insiste hereticamente que, longe de afirmar que “a literatura não tem função”, como se costuma supor, nós é que somos a função. É através de modos específicos de imaginar sujeitos das ordens estéticas que a Palavra-figuração da literatura urde em grandes arroubos de engenhosidade retórica que podemos imaginar/vivenciar nós mesmos, nossos modos de ser.9

Note-se que não é apenas o estudo do humanístico vis-à-vis o literário que está em questão aqui. Como “a visão” do Centro de Cultura Negra sugere, é também da literatura – ou da estética – a competência de nos ajudar a reimaginar e revivenciar “nós mesmos [e] nossos modos de ser”. Se foi através da “Palavra” que o absolutismo teológico do ordenamento cristão do mundo feudal pôde se estabelecer, então foi também através do emprego do pensamento racional que os Studia Humanitatis puderam encenar o refazer herético do mundo por meio de sua própria narrativa do Homem, da literatura e da poética. Por sua vez, a investigação humanística alinhada aos pensamentos não hegemônicos e engajada com a estética pode ainda desempenhar um papel irruptivo na remodelação de nossos muitos mundos interconectados e em crise. É por isso que Wynter

insiste “que, longe de afirmar que ‘a literatura não tem função’, como se costuma supor, nós é que somos a função”.10

Esse sentimento é retomado por Kandice Chuh no livro The Difference Aesthetics Makes: On the Humanities “After Man”, de 2019. Encampando o pensamento de Wynter, Chuh almeja “descrever um humanismo diferente do humanismo liberal burguês, e sugerir como e com que fins as humanidades podem ser organizadas em torno de uma tal alternativa e que trabalho podem fazer”.11 O humano, mais uma vez, é aqui retido como parte da análise, embora Chuh empregue similarmente a imagem para fins heréticos ao mirar “em um entendimento da existência humana a ser definida não pela individualidade discreta e autoconfiante, mas pela relacionalidade constitutiva”.12 A estética e as práticas estéticas que surgem sobretudo de uma posição minoritária desempenham, mais uma vez, um papel-chave nesse movimento.

Por meio de uma análise do romance O livro do sal, de Monique Truong, lançado em 2003 – que revisita o caso amoroso queer entre Gertrude Stein e Alice B. Toklas a partir da perspectiva de um cozinheiro vietnamita queer empregado por elas –, Chuh retraça em que medida Truong “confere textura estética à modernidade colonial e vê como ela falha em erradicar a queeridade [queerness], em conseguir disciplinar o desejo exaustivamente ou, de modo semelhante, em captar as classes inferiores, os desidentificados, os queers, os exilados”, bem como os racializados.13 De um modo similar à “visão” tomada a partir do Centro de Cultura Negra de Wynter, O livro do sal opera uma “prática de criar razão e sensibilidade a partir da estética, do entendimento da estética como operante em, e sendo emitida por, outras sensibilidades, sempre relacionais, infinitamente presentes. Esta é, por fim, uma prática humanística iliberal, voltada para fora, e que se abre para a diferença, para a relação, para o in-finito”.14 O conceito de Chuh de uma “prática humanística iliberal”, assim como o clamor de Wynter por uma nova heresia, encontra na estética um poder para reescrever “o humano”, se não os próprios mundos que brotam da arte da autonarrativa autopoética da humanidade. Voltei nossa atenção para o interesse comum de Wynter e Chuh por um humanismo herético que poderia surgir “após o Homem” à medida que tento formar uma linguagem a partir do interior de nossa mais recente crise existencial. Trata-se de uma crise não apenas para as humanidades, mas também para a

própria forma da “existência humana”, descrita por Chuh como uma “relacionalidade constitutiva”, assim como se trata de uma crise para o planeta, uma vez que o Homem nos conduziu às raias da autoaniquilação militar e ecológica. O alerta de Wynter de que “mesmo o processo autocorretivo das ciências naturais se vê ameaçado pela crescente hegemonia de uma tecnociência” soa perturbadoramente perspicaz no momento atual, em que os oligarcas da tecnologia assumiram uma posição de destaque na nova administração presidencial dos Estados Unidos. Esse novo regime flerta e simpatiza abertamente com o nacionalismo branco cristão e com ambições imperiais e territoriais, ao mesmo tempo que desmonta regulamentações ambientais e atira uma bola de demolição sobre instituições de ensino científico e humanístico, em um processo de redistribuição vertical de recursos em larga escala. Esse ataque direto a instituições de produção de conhecimento segue a trajetória mapeada por Wynter através de uma redistribuição de recursos de uma maneira que vai “aumentar o poderio militar e econômico de alguns grupos humanos em detrimento de outros”.15 É notável, portanto, que essa abordagem tenha feito par com uma redução da figura do Homem por meio de uma campanha virulenta contra a figura do imigrante racializado ou anteriormente colonizado, através de leis, políticas e práticas desumanizadoras e anti-imigração. Espaços voltados a minorias, como o Centro de Cultura Negra, a partir dos quais a “visão de fora” poderia ser constituída, são ainda mais precarizados por interdições vagamente definidas contra “a diversidade, a equidade e a inclusão” (DEI). Enquanto o “DEI” define uma abordagem largamente corporativa para o aprimoramento da estratificação racial, as movimentações oficiais para banir esse modelo da indústria pública e privada, bem como de setores culturais e educacionais, têm expandido sua definição para tentar suprimir e banir a arte, a literatura e a crítica que reconhecem a raça e a colonialidade como fatores sociais e históricos de vulto, ou que simplesmente enfocam as histórias de pessoas racializadas e colonizadas. Esforços similares de banir a “ideologia de gênero” (isto é, o mero reconhecimento da existência de pessoas trans e queer, ou mesmo do feminismo) sublinham ainda mais o que está em jogo no reacionário cerceamento das Ordens do Homem. Quando Wynter aponta que “a crise de nosso tempo é justamente a da autodissolução desta era”, ela oferece uma perspicaz

profecia da atualidade, à medida que testemunhamos o nítido e simultâneo desmantelamento do império estadunidense, bem como a consequente ordem política e militar global instaurada na esteira da Segunda Guerra Mundial. Também estamos testemunhando “a autodissolução desta era” através de um colapso dos significados e dos saberes, acelerado pela tecnologia e pelas redes sociais em benefício de uma classe financeira e tecnológica que agora desempenha um papel de protagonismo no desmantelamento e na refação do Estado moderno. Não admira, portanto, que a investigação humanística interessada nas questões de raça e racismo, colonialismo, gênero, sexualidade, acessibilidade e outros marcadores de diferença social contra os quais o Homem se codificou esteja sob ataque. Se as atuais investidas contra a investigação humanística que assume a “visão de fora” sugerem alguma coisa, é que Chuh e Wynter não estão exagerando ao descrever os poderes socialmente performativos da “heresia” impostos por tais “humanismos iliberais”. Em outras palavras, o esforço de censurar e desmantelar as artes e as humanidades, em especial aquelas encenadas a partir de uma posição minoritária, não reflete sua irrelevância, mas indica uma medida de seu sucesso potencial.

As humanidades e o domínio da estética podem ter poderes fracos em comparação com o arsenal econômico, político e militar brandido por essa nova classe dirigente global. Essa classe governante, por sua vez, parece alegremente anunciar a obsolescência do “humano” – seja por meio da imposição da inteligência artificial às pessoas ou do dilaceramento absoluto de qualquer deferência social e política às ordens já inadequadas dos “direitos civis” e dos “direitos humanos”, tal como testemunhamos na destruição genocida da vida de palestinos em Gaza e na Cisjordânia ou no conjunto das crescentes agressões da democracia ocidental a pessoas racializadas, imigrantes, pessoas trans, mulheres e trabalhadores pobres. No entanto, os ataques diretos à produção de conhecimentos minoritários e humanísticos sugerem seus poderes latentes e sua capacidade de conquistar, nas palavras de Wynter, a refação e imaginação de “nós mesmos [e] nossos modos de ser”.16 Para este fim, nosso interesse na “humanidade como prática” pode carregar em si as sementes para transformar o mundo, permitindo-nos remodelá-lo para compor um lugar que, em vez de ser hostil, tenha potencial para acolher a continuidade, a subsistência e a sobrevivência da humanidade. O sucesso da nova direita fascista nos Estados Unidos, como em outros lugares, reside justamente no poder performativo

da Palavra. Isto é, reside no poder da performance e da autopoiese de constituir a realidade contra a razão, assim como remolda o mundo quando mentiras são transformadas em verdade e o conhecimento verificado é tachado de “fake news” e de manipulação de fatos. A sanha de destruir a investigação humanística e censurar práticas estéticas não é uma luta contra o poder epistemológico ou estético de moldar o mundo; é uma luta para ganhar supremacia sobre esses mesmos poderes. Não devemos renunciar ao direito a essas artes.

Não foram só os críticos e filósofos contemporâneos que previram essa rota. Há muito tempo os artistas estão na vanguarda dessa luta. Lembro-me, aliás, de um ensaio de Yoko Ono escrito em 1962, “The Word of the Fabricator” [Palavras de uma criadora].17 Denunciando seu desprezo contemporâneo a “qualquer ato ficcional no reino da consciência”, Ono – assim como Wynter e Chuh – abraçou o poder que a Palavra e a ficção têm de remodelar e refazer o mundo:

Se adotarmos regras as mais ficcionais possíveis, só então poderemos talvez transcender nossa consciência. Meu atual interesse é justamente em um mundo de regras ficcionais, as leis de quem cria: pedir a nós mesmos que imaginemos um círculo perfeito e uma reta perfeita que somente existem em nosso mundo conceitual […] Não conheço outro jeito senão apresentar a estrutura de um drama que pressupõe a ficção como ficção, isto é, uma verdade inventada.18

Devemos, por um lado, resistir à imposição da “verdade inventada” do fascismo sobre nossa realidade, sem, por outro, renunciar ao poder herético dos Studia de “imaginar/vivenciar nós mesmos, nossos modos de ser” de forma totalmente nova por meio da transformação da consciência.19 Dessa maneira, poderemos encontrar no conceito de “humanidade como prática” um meio de refazer o mundo em face daquele que habitamos presentemente. Nosso mundo atual caminha cada vez mais não rumo à obsolescência das humanidades, mas à total destruição da existência humana, que se define pela “relacionalidade constitutiva” e pela diferença infinitamente variável. O mundo que sonhamos, conforme as diretrizes dadas por Wynter, Chuh e Ono, pode encenar a realidade de uma forma diferente.

1 Sylvia Wynter, “The Ceremony Must be Found: After Humanism”, boundary 2, v.12, n.3, primavera-outono 1984, p.20.

2 Ibid.

3 Ibid.

4 Ibid., p.21.

5 Ibid., p.20.

6

Joshua Chambers-Letson, “Towards a New Heresy: Sylvia Wynter’s ‘The Ceremony Must Be Found: After Humanism’”, em Ceremony (Burial of an Undead World). Leipzig: Spector Books/ Haus der Kulturen der Welt, 2023, p.31.

7 Sylvia Wynter, op. cit., p.56.

8 Ibid.

9 Ibid., p.50.

10 Ibid.

11 Kandice Chuh, The Difference Aesthetics Makes: On the Humanities “After Man”. Durham: Duke University Press, 2019, p.xi.

12 Ibid.

13 Ibid., p.120. Ver também Monique Truong, The Book of Salt. Boston: Houghton Mifflin, 2003.

14 Kandice Chuh, op. cit., p.120.

15 Sylvia Wynter, op. cit., p.56.

16 Ibid., p.50.

17 Yoko Ono, “The Word of a Fabricator”, em Yes: Yoko Ono, orgs. Reiko Tomii e Kathleen M. Friello. Nova York: Japan Society/H.N. Abrams, 2000.

18 Ibid., p.285.

19 Sylvia Wynter, op. cit., p.50.

Desvios radicais

Errância

como prática abolicionista

ATO I – Caminhos que não são estradas

Se nem todo viandante anda estradas, poderíamos supor que nem toda estrada é caminho? Nem toda rota deve ser seguida, nem toda linha traçada. Há percursos que não cabem em mapas, ao passo que há rotas que sobrevivem nas memórias dos corpos, pela insubordinação de passos e lutas. O mundo em que vivemos é de chão ferido pelo concreto, enquanto este último tenta impedir outros rumos. Em pequenas rachaduras, irrompem-se sussurros que se tornam gritos errantes, buscando o movimento da vida. Errar é verbo de quem vive.

Errar é verbo dúbio. De um lado, transitivo direto e indireto, de significado antônimo de acerto. É o que não acerta, é o que se engana, o que se perde em; de outro, intransitivo, ganha outra roupagem, mais clássica em sua etimologia, e se torna vaguear, andar sem destino, perder-se. Uma acepção mais próxima do latim errare, que é apartar-se do caminho e hesitar. Errar é, antes de tudo, ação sobre si mesmo.

Ainda em sua dubiedade, errar adquire dimensão de recusa, de movimento ante a contenção, a normalização, a imposição de rota única. Errar, nos sentidos da errância contemporânea, é uma prática de invenção e reinvenção. Se a proposta é a humanidade como prática, a errância se apresenta como política dos gestos, dos afetos, da escuta e, principalmente, da dúvida. A certeza não cabe onde se pode errar. O ancoradouro da certeza é o encerramento da pergunta, da troca justa, de permitir se reconhecer no estranho. Ser viandante emerge como oposição à lógica do controle, como um movimento apesar das grades, das normas e das fronteiras, é confrontar a humanidade-substantivo, estanque, e rasgar sentido para o verbo. Pessoas negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, ciganas, LGBTQIA+, periféricas são cotidianamente proibidas de circular, sob vigilância constante, se não estatal, social. Atravessamos a cidade como se andássemos sobre um terreno minado. O Estado penal-policial nos torna alvos, nos objetifica e está sempre determinando lugares aos quais deveríamos pertencer. CEP-Alvo. Pele-Alvo. A errância, nesse sentido, é entendida como tensionamento à ideia de respeitabilidade – um conjunto de normas morais, estéticas e comportamentais ocidentais impostas aos grupos racializados para que sejam tolerados na esfera pública. Um dos principais argumentos para desviar da denúncia do racismo na

transformação da pele negra em suspeita é da cultura e dos costumes. O tal “suspeito” é construído por e para uma performance de gênero-racializada. Assim, constitui-se um paradigma sobre como falar, se vestir, se portar e ocupar espaços. Errar, nesse sentido, não é apenas a falha, mas tudo fora do padrão burguês-branco-europeu. Para os europeus, isso se dá pelas qualificações aos povos latinos, africanos, árabes e asiáticos. Na dinâmica intranação, a reorganização paradigmática do branco adequa e impõe as qualificações do não-ser, do erro, aos grupos racializados e subordinados sob a lógica colonial-moderna. Errância, quando demandada por corpos racializados, rompe com exigências de domesticação e assimilação, recusa aceitações que exigem sacrifícios da linguagem, da corporeidade e da ancestralidade. O pretuguês é um exemplo de errância.

Ao desenvolver o conceito de “pretuguês”, Lélia Gonzalez explicitou que o português não passou incólume aos atravessamentos da visão de mundo dos povos aos quais foi imposto. Assim, podemos pensar o pretuguês como uma errância que não é erro, mas reinvenção. Um desvio que desmonta mitos de universalidade impositivos e denuncia epistemicídios. Muitas vezes ridicularizado, apontado para ser corrigido, o pretuguês nomeia o invisibilizado pela norma, cria brechas na censura. A errância, portanto, é política ao reivindicar o direito ao movimento. Errar como declaração de direito ao riso e à liberdade.

Neste texto, exercerei errância pelo deslocamento, uma travessia para pensar a humanidade como prática radical. O desvio como tecnologia ancestral do que se afirma, como ensinado por Nego Bispo, o começo, o meio e o começo. Quem tem direito de errar? Quem pode perder-se para se reencontrar? A curva escolhida ante o desempenho, escolher o tropeço, a pausa, o recuo, o respiro, a escuta e o encontro. A recusa do encarceramento e do silêncio. A errância não como fuga, mas como criação de futuros abolicionistas.

ATO II – Errar como saber

Proponho o erro não como tropeço, mas como traçado. Não se trata de ideia nova, dado que em sua essência o verbo carrega o vagar, ser andarilha. Tampouco algo inovador no que se pensa na filosofia e nas ciências sobre o erro, como esse é absorvido e questionado no Ocidente. A errância, como apontado nos estudos de Michel Pêcheux e de João Flávio de Almeida, não deve ser compreendida

como desorientação, mas como movimento. Se há busca constante pela perfeição e por pretensões de verdade, o erro, ou o ato de buscar evitá-lo, é o que movimenta atualizações – ainda que se problematize se há possibilidade de atingir a perfeição. O corpo que anda inventa, reinventa, reinscreve território, escuta e aprende enquanto se desloca. Ao propor uma epistemologia da errância, ambos os autores propõem o saber a partir da discussão que fazem sobre linguagem, língua e discurso, como algo dinâmico, indefinido, que se modifica à medida que nos movemos. Pensar não é apenas acumular verdades – o que seriam estas, afinal? –, mas confrontar dúvidas, tropeçar nos sentidos, hesitar nas palavras. Assim, os saberes afro-indígenas insurgem-se como pedagogias do movimento, como começo-meio-começo. Cosmologias que, em grande parte, não se organizam na rigidez, nem em linha reta – o que não significa caos nem desordem, e sim outra forma de ordenamento – mas em circularidade. Saberes que caminham com o tempo e com a terra, sob uma percepção do mundo não como externo, mas como organismo vivo, com quem se conversa, se dança, se troca. Nesse contexto, errar não é desvio, mas parte do caminho. Na antropologia, o perspectivismo ameríndio apresenta outra forma de conhecer: buscar compreender o outro não sob nossa perspectiva, mas reconhecendo que cada ser carrega sua própria perspectiva do mundo. O humano, então, se torna perspectiva, não uma essência paradigmática. Poderíamos compreender, portanto, o conhecimento não como domínio, mas como trânsito entre formas de ver e ser visto. Com isso, o monopólio do saber se estilhaça e passa a ser visto como distribuído entre todos os seres. Estudiosos como Eduardo Viveiros de Castro, Tânia Stolze e Manuela Carneiro da Cunha nos oferecem essa inversão radical de compreender a forma de conhecer. Em soma com a errância, o deslocamento não perde o centro porque recusa a ideia de centro único. São saberes que caminham. O erro não é o que precisa ser extirpado, mas a possibilidade de recomeço – começo-meio-começo. O tempo não é linear, mas espiralar, porque não gira em si mesmo, mas por muitas origens e muitos futuros. Nesse mesmo sentido, errância e quilombo se encontram. O quilombo como materialização da recusa do erro como falha e da afirmação do desvio como caminho e política de vida. A historiadora e intelectual Beatriz Nascimento, bem como outros intelectuais negros como Abdias do Nascimento e Clóvis

Moura, afirmou o quilombo não apenas como espaço geográfico, mas como temporalidade, alternativa de organização social e tecnologia de existência. Nasce do deslocamento forçado e o transforma em refundação. Uma alternativa de organização porque questiona o modelo de Estado colonial vigente até então, cria e recria ante o sequestro e a perseguição. O quilombo físico foi uma afronta ao projeto colonial porque um desvio à propriedade, à linearidade, enquanto propunha comunidade e ancestralidade compartilhada como futuro. Não foi apenas sobre fugir, mas principalmente sobre fundar de outro modo, amar de outro modo, saber de outro modo, viver sem dono e sem cativeiro, viver sem prisão, desviar para a liberdade. A errância como radicalidade da dignidade da rota fora da história oficial, reescrevendo liberdade com mãos negras e indígenas. A errância como vida viva.

A desobediência, nesse contexto, não é uma falha moral, mas uma escolha consciente de caminhar fora da estrada traçada pela dominação. O quilombo passou a ser não apenas um destino, mas uma travessia e um outro horizonte, transformado em pedagogia viandante que reinventa o mundo.

ATO III – Narrar-se fora da estrada

Como pensar a errância na dinâmica da humanidade como prática sem dialogar com uma criação fundamentalmente humana como a literatura? Em variadas personagens podemos analisar a torção na incorporação da errância como destino, condição e reconstrução. O erro não é apenas um acontecimento no enredo literário, mas constitutivo na experiência verossímil do mundo contado.

Quincas Berro Dágua é o personagem de Jorge Amado que abandona a respeitabilidade burguesa para vaguear pelos subterrâneos em recusa ao que lhe foi atribuído para performar. Nessa errância, reinventa a si mesmo e o sentido de liberdade. Para alguns, um erro; para Quincas, salvação. A personagem Riobaldo, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, é constituída na dúvida, em uma travessia existencial de tensões que habitam a vida. Anda, reconta, se perde e, nesse movimento, constrói sentido. Se voltarmos à tradição clássica, encontraremos a personagem homérica da Odisseia, Ulisses para alguns, Odisseu para mim, por um preciosismo de quem passou pelas letras clássicas. Um errante por excelência. Odisseu não retornou a Ítaca, após a guerra de

Troia, apenas para reencontrar a amada Penélope, mas por destino. Mesmo assim, sua travessia de retorno demora anos e é marcada por desvios, atrasos e encantamentos. Cada “erro” de Odisseu se transmuta em fabulação.

O Macunaíma de Mário de Andrade escapa ao perfil clássico de herói, mas tem sua trajetória repleta de contradições e subversões. Talvez, a personagem que melhor personifique, na literatura brasileira, uma personagem-errância. No entanto, ainda encontramos Macabéa, em A hora da estrela, de Clarice Lispector. Diferente de Macunaíma, a personagem lispectoriana revela uma errância que é quase apagamento, mas que se insurge em força ante a opacidade. Na literatura de Conceição Evaristo, a errância emerge na vida narrada de corpos e personagens que dialogam com vidas historicamente expropriadas do direito de errar. Há figuras, como em Ponciá Vicêncio e tantas outras em Becos da memória, que andam, resistem, reconstituem caminhadas, redesenham territórios de afeto. A errância insurge no cotidiano para recriar o que parece interditado e proibido.

Também podemos verificar exemplos de “personagens-errância” em Shug Avery, de A cor púrpura, romance de Alice Walker. Da errância como desejo por liberdade e vida. Os impactos são severos por essa escolha: escândalo, fofoca, julgamento. Mas Shug insiste na errância como desorganização para viver onde e como quer. E essas escolhas levam a renascimentos e restaurações de laços.

A geração beat, símbolo da contracultura estadunidense na literatura, é outro exemplo de errância, mas como rebelião e busca.

A estrada, em On the Road, de Jack Kerouac, não é apenas física, mas também de sentidos. Uma busca da humanidade como prática? Recusa ao conformismo e a moralismos; escrita em movimento, explorando o improviso referenciado no jazz. Para outros ícones do movimento, como Diane di Prima, a exploração errante confronta a ideia de mulher, de maternidade, de ativismo. A errância como desobediência formal e existencial e se reinventar do possível. Poderia citar várias outras personagens. A literatura é importante na discussão da humanidade como prática porque nos mostra que errar é humano porque ato de criação. Personagens que caminham fora da estrada não pela fraqueza, mas por escolhas, pelo destino, por vocação. A reta é uma ilusão e há sabedoria no tropeço. O sociólogo e crítico literário Antonio Candido afirmou a literatura como um direito humano fundamental por nos permitir

“exercer a condição de sujeitos”. A verossimilhança como marca literária permite que a ficção revele verdades mais profundas que o real imediato e sustente a literatura como o espaço do indizível, de tornar crível o que é vivido, sobretudo por aqueles cujas experiências são historicamente silenciadas. Errar, como gesto narrativo e político, é também insistir em escrever mundos que escapem do destino traçado. É fazer da vida uma travessia que recusa o fim, porque começa e recomeça sem cessar.

ATO IV – Cárcere e desumanização: prisão e morte do movimento

A prisão é a arquitetura mais brutal da negação da errância. Se errar é caminhar, pensar, desejar, transformar, recriar, a prisão congela o tempo e deteriora o corpo. O cárcere é um dispositivo colonial-moderno que não pune apenas um ato, mas captura toda a possibilidade do movimento, impacta comunidades e abre feridas sociais sem nenhuma intenção de curá-las. O sistema prisional, o complexo industrial-prisional e o aparato de segurança pública, cada vez mais crescentes, pouco têm a ver com criminalidade e combate à violência. Na verdade, operam como instrumentos de controle social, racial e territorial, funcionando para conter populações historicamente marginalizadas, manter estruturas de desigualdade e sustentar uma lógica de lucro e exclusão baseada na punição e na vigilância dos corpos considerados descartáveis. Por isso, me pergunto: quem pode se mover? Quem pode errar? Quem pode sonhar? E quem pode viver?

A errância, enquanto prática de humanidade, é vetada a corpos racializados, periféricos e dissidentes. O movimento pode ser um risco de vida, o encerramento da “liberdade”, ou da ideia dela, já que essa é constantemente vigiada e disciplinada. O cárcere é onde o Estado abandona qualquer pretensão de reconhecimento: é a morte do movimento, da escuta, da subjetividade. É o não-lugar da humanidade.

Longe de ser uma exceção, o sistema prisional é uma das faces triunfantes do projeto colonial, capitalista, patriarcal e racial.

A função é administrar populações racializadas e, portanto, consideradas descartáveis. A prisão produz silêncios e memórias apagadas e, mais importante e perigoso: produz a pedagogia do medo. A tentativa de disciplinamento e correção por uma culpa, que é mais entranhada

do que necessariamente cometida, molda o sujeito sob a violência e não sob o cuidado, a responsabilização e reparação coletiva. O abolicionismo penal, especialmente em sua vertente negra, não é apenas necessário, mas urgente. É uma errância insurgente que recusa as rotas impostas pela colonialidade, pelo racismo e pelo capitalismo, e propõe o desvio como criação de novos caminhos de justiça, cuidado e liberdade – uma prática radical de humanidade que se move rompendo muros. O cárcere é desvelado não como falha do sistema, mas como o sistema em seu pleno funcionamento. A pensadora e abolicionista penal Ruth Wilson Gilmore propõe uma “geografia da abolição”, onde territórios e comunidades deixem de ser mapeados pelo medo, pela punição e pelo controle, para serem reconstruídos a partir de vínculos de solidariedade, redes de cuidado, reparação e justiça coletiva. Em vez de prisões, escolas; em vez de patrulhamento, escuta; em vez de punição, responsabilização e transformação. É nesse espaço possível que a abolição se torna horizonte, prática e promessa, além de incontornável ante a barbárie. O abolicionismo penal afirma radicalmente a humanidade como prática, como um exercício coletivo de reconstrução da vida. A crítica ao punitivismo é também uma aposta no amor como prática política, como nos lembra bell hooks, um exercício de escuta, de restauração e de responsabilização sem a necessidade de punir. Nenhum ser pode ser plenamente humano se não puder se mover. O abolicionismo penal, portanto, é a recusa do mundo que pune para construir e sustentar o mundo que cuida.

ATO V – Liberdade como verbo: reimaginar o viver –

“somos começo, meio e começo”

Para os que foram historicamente impedidos de andar e de errar, a liberdade não pode ser mero substantivo; precisa afirmar-se, junto à humanidade, prática. A liberdade não como destino, mas como travessia, como um movimento constante de inventar mundos que recusem estruturas que desumanizam. Ao afirmar a liberdade como uma luta constante, Angela Davis rompe com uma ideia liberal de liberdade, limitada à ideia de posse ou direito individual que se materializa de forma seletiva, racializada e mercantilizada. As armadilhas das concepções clássicas, fundadas no individualismo, são ferozes em corpos cujas vivências enfrentaram o sequestro e o cativeiro

e enfrentam o cárcere e a pólvora dentro da lógica do capital e do Estado-nação. Para Davis, o exercício da liberdade supõe transformações estruturais que rompam com a desigualdade, o encarceramento e a pobreza. A liberdade como processo e movimento.

Escritor, poeta, filósofo, líder quilombola, Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nego Bispo, afirmava que “somos começo, meio e começo”. Como espiral de retorno e avanço, desvio e reinvenção. Nesse sentido, a liberdade seria vista não como fim de uma estrada, mas o que se constrói a cada passo fora dela. A liberdade, então, precisa ser a liberdade como prática em territórios que resistem à lógica punitiva, nas zonas abolicionistas onde o cuidado substitui o castigo, onde a vida vale mais do que a norma. Terreiros, quilombos urbanos, ocupações, coletivos periféricos, projetos de justiça restaurativa, mães que lutam por memória e verdade.

Para esse exercício, a escuta senta-se ao centro para que seja permitido que o outro exista sem justificativas. A escuta não é mais ato passivo, mas, como propõe a comunicóloga, diretora artística e poeta Lua Leça, ativo, atuando como ferramenta de reconstrução. A escuta ativa como base de qualquer justiça que se proponha equânime, reparadora e transformadora. Nenhum desses caminhos é fácil. Reafirmar humanidade e seu exercício, disputar os sentidos e rumos da liberdade, reivindicar o erro como caminho emancipatório não é um caminho, ou caminhos, fácil. Reconhecimento, responsabilização, reparação e reconciliação demandam a permissão do erro no percurso não como uma falha a ser extirpada, mas como parte do movimento de crescimento, convívio e refazimento dos tecidos sociais. Reconhecer que errar é parte do humano é o primeiro passo. Reimaginar a humanidade e o mundo passa por reimaginar a liberdade e a justiça. Por entender que há construção e devir constantes, que não há linhas retas, mas múltiplos horizontes.

ATO VI – Invenção de outros mundos –humanidade como prática

A errância possibilita o encontro. Quando o mundo empurra obediência, linha reta, disciplina colonial, patriarcal, capitalista-racial, é no desvio que reencontramos o outro e a nós mesmos. É importante lembrar que uma das acepções de “errar” é “perder-se em si”. Demanda, portanto, esperançamento, caminho fora de

rotas impostas. Nessa recusa, na errância, a humanidade pode, enfim, ser prática como gesto cotidiano de outras existências, de afeto e de recriação.

Em Tudo sobre o amor, bell hooks apresenta o amor como um horizonte político, que exige responsabilidade, compromisso e ação. Uma prática fundada na relação. Em tempos de barbárie e destruição, exercer amor-prática e humanidade-prática é insistir que a vida importa – e presta, Fernanda Torres. Afirmar a felicidade-prática como possibilidade coletiva de bem-viver e de caminhos comunitários e compartilhados. Significa romper com a lógica da competição, do individualismo – que não apaga a individualidade –e permitir que a vida pulse no entre, no comum. A comunidade, então, se torna mais do que um lugar, mas uma tecnologia de cuidado ancestral reinventada.

A errância se torna vital. A desobediência como seu motor imperativo quando leis se organizam para destruir. Desobedecer à normalidade colonial, ao castigo como justiça, à solidão como destino. E, ao errar, criar outra ordem possível, que abra caminho para o cuidado, para a escuta e para a reparação. Nessa construção, a liberdade que exclui o erro é logo percebida como prisão disfarçada. As rotas e desvios cultivam alegria onde há ausência, praticam humanidade cotidiana. Em diálogo antropofágico, errar se torna gesto de digestão crítica, a errância se alia à antropofagia para construir caminho múltiplo, plural, em que cultura não é apenas consumo, mas forma de fazer viver.

A errância como movimento de quem ousa viver para além do permitido, que vislumbra muito mais do que o possível.

A errância que grita: “SOMOS COMEÇO, MEIO E COMEÇO”. Somos o passo fora da linha. Somos quem desvia para viver. Somos quem produz alimento enquanto as mães empunham memórias que reafirmam VIDA.

Se a humanidade é um verbo, este é caminhar

Jacques Attali com Alya Sebti e Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Conversa realizada em março de 2025 Traduzida do francês

BONAVENTURE SOH BEJENG NDIKUNG: Há cerca de quinze anos, conheci seu livro Noise: The Political Economy of Music [Ruído: A economia política da música] (1977), e algo me tocou muito. Como alguém que trabalha com artes visuais, como curador, você nos encoraja a ouvir ao invés de olhar, e isso tem sido uma grande fonte de inspiração. Quando fui convidado para ser curador da 36a Bienal de São Paulo, fiz a proposta da Humanidade como prática em reação a tudo o que está acontecendo no mundo.

Parte do título desta Bienal, Nem todo viandante anda estradas, conta com versos do poema “Da calma e do silêncio”, da escritora Conceição Evaristo. Refletir sobre a humanidade e suas perspectivas é um segundo elemento que me levou até seu trabalho. Em muitas publicações, você fala da humanidade, da história e do futuro da humanidade. Se os caminhos que a humanidade percorreu até agora nos trouxeram até aqui, quais são os outros caminhos que podemos seguir?

Você escreve que aprendemos história e tiramos lições para o nosso futuro. Queríamos falar com você. Falar de humanidade, da importância do som no nosso tempo, falar de governança.

ALYA SEBTI: A história que me trouxe até você foi quando eu li, na adolescência, La Confrérie des éveillés [A confraria dos despertos] (2004). Isso mexeu muito comigo, porque eu estava num momento de questionamento em relação às diferentes religiões, às separações a que sua instrumentalização pode conduzir. E tem sido realmente algo fundamental para compreender muitas coisas, incluindo a importância da filosofia num momento como o de hoje. E talvez uma das questões seja como podemos nos manter relevantes, como podemos encontrar o caminho certo para uma Bienal que pretende ir além das fronteiras, ir além das nacionalidades, superar as barreiras identitárias, propor uma visão de práticas ou propostas de práticas da humanidade. Como a arte e a beleza podem permitir isso?

JACQUES ATTALI: Há um conceito que me ocupa muito neste momento, talvez porque seja o tema do meu próximo livro, aliás, e que

poderia lhes servir neste momento: o conceito de gratidão. Acredito na gratidão pela vida, pelos outros, pela natureza, pelas raízes, a cultura, a arte e o artista, por si mesmo, pelo próprio corpo.

Em primeiro lugar, a neurociência demonstra hoje que sentir gratidão é um fator de felicidade e de bem-estar, e que existe uma extraordinária reciprocidade nisso... Temos o mesmo sentimento quando sentimos gratidão e quando fazemos algo que cria gratidão no outro. Alguém faz algo por mim, eu sinto gratidão, e isso gera um sentimento no outro também. Enquanto isso, quando faço algo por alguém, é o mesmo nas neurociências celulares.

Então, para nos colocarmos num estado do que é chamado psicologia positiva, ou gratidão, sem que isso seja forçado, há muitas coisas que fazem hoje com que digam que é preciso escrever um diário de gratidão todos os dias, mas penso que é sempre útil recordar o que se deve dizer aos pais, aos amigos, aos adversários, que colaboraram muito sendo adversários, alimentaram com sua inimizade, e o que devemos aos outros é muito, muito importante.

Acho que isso cria um sentimento de plenitude logo de cara para a Bienal, porque é preciso sentir ao mesmo tempo gratidão e reconhecimento, porque a gratidão é o que eu sinto, e reconhecimento é o fato de reconhecer que preciso fazer algo pelo outro, e isso é, portanto, ação. E esse reconhecimento também pode ser acompanhado, em certas circunstâncias, por um dever de ingratidão, de escapar a um ambiente familiar, às regras que foram estabelecidas; um artista só pode ser ingrato para com os seus mestres, porque deve escapar deles. Portanto, é essa dialética que penso que poderia lhes ser útil; também poderia ser cheia de gratidão, e isso é complicado como conceito, no que diz respeito às gerações futuras, porque precisamos delas, mesmo porque quando formos velhos precisaremos delas, isso é para nós; são os relatórios do que acontece hoje nos países onde a taxa de natalidade está caindo e os países estão desaparecendo.

BSBN: Dá pra acreditar que chegamos a esse ponto no mundo, quando olhamos o que está acontecendo nos Estados Unidos com as deportações de imigrantes? Será que chegamos até aqui porque somos ingratos? Por que a humanidade está tão ensimesmada? Conseguimos praticar essa gratidão?

JA: Na realidade, uma constante muito grande da humanidade é que odiamos dever algo a alguém. E assim que devemos algo a

alguém, encontramos uma razão para odiá-lo para não lhe dever nada, para não estar em dívida com ele.

Se alguém lhe fez um favor, isto se torna intolerável. É preciso detestar essa pessoa. Essa é também a fonte do antissemitismo e da relação com os imigrantes. Não porque precisamos deles. E isso é uma coisa muito antiga. Por exemplo, no exército romano, os soldados cujas vidas foram salvas por outro soldado ficavam imediatamente zangados com aquele que salvou suas vidas para que não tivessem que fazer a mesma coisa.

Portanto, a ingratidão é uma contrapartida natural da generosidade. E uma civilização é aquela que ultrapassa isso e que reconhece a importância da gratidão e a barbárie da ingratidão. E penso que esse é um tema muito importante. Devemos ter gratidão pela natureza. Falamos da gratidão necessária pelos antepassados, pela natureza, pelos animais. O fato de estarmos apenas de passagem, sermos apenas inquilinos do espaço, o devolvermos aos outros. Esse é um tema que considero útil para vocês, porque ele é muito estruturante.

BSBN: Para esta Bienal, Nem todo viandante anda estradas, queremos aprender com os participantes como eles usam sua arte para dar forma à humanidade. Na verdade, todos os dias, quando nos levantamos, devemos nos perguntar se a humanidade é um verbo, como conjugá-lo?

JA: Eu diria “caminhar”. Primeiro porque a humanidade está em marcha há 300 mil anos e esse estilo de vida sedentário começou há 10 mil anos e ele se fechou, parou. O sedentarismo é um parêntese. Tudo o que é importante que foi feito no planeta, na humanidade, foi feito caminhando. Em primeiro lugar, porque os filósofos gregos caminharam e os povos caminham. E é no caminhar que a humanidade se criou, é no caminhar que a humanidade encontrou a sua origem, a sua identidade: ela caminha. Ela é de fato a única espécie viva que caminha. Portanto, a própria natureza da humanidade é caminhar. Quando a humanidade para, é porque está trancada, está aprisionada. Há um haikai japonês muito bonito que diz: “Quando você viaja, pense em sua casa; quando você está em casa, pense em viajar”. Isso significa que, quando você está em casa, tem que receber bem os viajantes, porque já foi um viajante e quer ser novamente, então você tem que recebê-los como se fosse o viajante.

E quando você é um viajante, pense em sua casa. Isso significa que, quando você é um viajante, pense nas pessoas da casa. Você tem que se comportar bem com elas para que o recebam bem, porque, quando você está em casa, você quer que aqueles que vêm até você se comportem bem. Acho que esse é um haikai sobre tudo.

BSBN: De fato, neste momento, na minha instituição em Berlim (Haus der Kulturen der Welt), temos uma exposição chamada Moussafiri. A palavra Moussafiri vem do árabe, mas é a mesma palavra em suaíli, romeno, e urdu, e significa tanto viajante quanto hóspede. Estamos partindo, mas também estamos em algum lugar. Além disso, também é importante saber que a palavra hôte remete a hostil. O hôte [anfitrião] é aquele que recebe e aquele que é recebido. É por isso que Jacques Derrida fala em hospitalidade. E o hostile é o inimigo. Por isso, devemos ter sempre em mente que o outro é uma ameaça se não nos encontrarmos em uma situação de gratidão, de bondade, que é uma qualidade extraordinária.

AS: Em relação ao seu conceito de gratidão, faço uma ligação com o segundo fragmento do conceito da Bienal. É reconhecer a importância que o outro tem na sua construção. Só existimos se estivermos juntos. Por isso Bonaventure cita os versos de René Depestre em “Une Conscience en fleur pour autrui” [Uma consciência em flor para os outros] no texto do conceito curatorial: “Minha alegria é saber que você é eu/ e que eu sou fortemente você”. Porque eu me vejo em você e você se vê em mim.

JA: Esse é o trabalho de Emmanuel Lévinas. Sobre a importância do outro na definição da sua identidade. É por isso, aliás, que o viajante solitário está condenado à morte. Ele nunca se safa quando viaja sozinho. A condição humana é definida pela viagem. Seguir caminhando também é uma maldição.

BSBN: Em Camarões, e em toda a África Central e África Ocidental, dizem que, se queremos partir depressa, vamos sozinhos, se queremos ir longe, vamos juntos. Para ir longe, pensamos com a comunidade. Isso é importante.

JA: Nomadismo. Estou escrevendo uma história do nomadismo, e creio que isso é estruturante nas nossas sociedades. Seja o nomadismo real, seja o que estamos vivendo hoje, isto é, o nomadismo virtual. As pessoas que gostam de videogames praticam o nomadismo, mas o nomadismo virtual.

Há muitas pessoas que estão no nomadismo virtual. De fato, existem três categorias de pessoas. Há aqueles que têm muitos meios e podem viajar livremente como quiserem. Há entre 3 bilhões e 4 bilhões de pessoas muito pobres que são nômades do campo para a cidade, da cidade para outra cidade e depois para outro país. E, no meio, há pessoas que sonham em ser nômades de luta, que tremem com a ideia de se juntar aos nômades da miséria e que se afogam no nomadismo virtual dos videogames.

Isso é a humanidade. Nós caminhamos ou fingimos caminhar, mas procuramos. Desde que fomos expulsos do paraíso, encontramos isso em muitas civilizações. Na Etiópia, e nas civilizações hindus, há a ideia do homem que foi expulso de algum lugar e que caminha, e que caminhar é sua maldição, mas, ao mesmo tempo, é isso que ele vivencia. É isso que o faz encontrar coisas novas, inventar, descobrir. É isso que o torna ele mesmo.

AS: Um dos seus livros refere-se à figura do hipernômade como uma forma possível de poder reparar ou reinventar formas de humanidade que colocam a esperança, a escuta, a empatia no centro. Como isso funciona exatamente para você? Como podemos imaginar esse indivíduo, essas iniciativas hipernômades em um mundo como o de hoje? E fortalecê-lo para torná-lo mais capaz de resistir e inventar a sua própria definição?

JA: Não sei... Provavelmente isso virá depois de uma grande catástrofe que nos fará perceber que não podemos continuar assim. Essa grande catástrofe pode acontecer e fazer com que todos mudem ou pode levar algumas pessoas a mudarem em algum lugar. Imagino com facilidade ilhas de radicalismo não violento que proporão estilos de vida diferentes e que serão pouco a pouco esmagadas pelo sistema ou se aglutinarão para criar um outro sistema. É assim que vejo.

BSBN: Pode partir dos artistas?

JA: Os artistas fazem parte disso. De um modo coletivo, sim, eles fazem parte. Em particular, a arte conceitual, na minha opinião, é muito importante nessa dimensão, porque é uma arte e um pensamento explícito.

BSBN: Eu queria retomar a questão do som e da música. Para esta edição da Bienal, pensamos muito numa direção da música que surgiu no Recife nos anos 1990, o manguebit, criado em reação às mudanças neoliberais que destruíram a cidade. Eles criaram um manifesto chamado “Caranguejos com cérebros”, no qual falaram sobre como repensar a sociedade a partir do som. Eu queria voltar ao que você escreveu sobre o som, “Music as a possibility of fashioning the world” [Música como possibilidade de moldar o mundo]. Criar as sociedades com a música.

JA: A música é uma arte extraordinária porque é uma arte de sinais que não precisa de nada além da voz ou do pensamento e que pode, portanto, explorar o campo de possibilidades muito mais rapidamente do que todos os outros formatos. A música, a matemática e as finanças são três áreas que estão na abstração pura e que podem avançar muito rapidamente. Estamos fazendo progressos na sociedade. Temos hoje uma matemática que está anos-luz à frente daquilo que a humanidade precisa para avançar. Temos instrumentos financeiros muito à frente e muito perigosos, muito poderosos, muito mais do que a humanidade precisa, e a própria música explora o campo das possibilidades. Ao explorar o campo das possibilidades, ela vê de antemão o que os outros poderão ver mais tarde – se quisermos ouvi-la em todas as suas formas; ela sempre nos diz que é barulho, que são artistas. O que mais busco é o momento em que, na catástrofe absoluta, ou as pessoas se trancarão como narcisistas para ouvir apenas sua própria música, ou ouvirão sua própria música para trocar e criar com os outros.

É por isso que dou grande importância ao que acontece com os instrumentos musicais. Acho muito importante ver os instrumentos musicais aparecerem e se desenvolverem, porque isso significa que eu me aproprio da música, não só a ouço, e se eu mesmo a faço para mim, isso é também uma forma de confinamento; se eu mesmo fizer para colocar a apresentação no Instagram ou no TikTok, isso é narcisismo; se eu mesmo fizer como um pedido aos

outros que venham fazer música comigo, uma música mundial, de alguma forma teremos algo.

Estou sempre muito interessado em ver novas formas de música que são fruto do compartilhamento, da mistura de músicas diferentes, e hoje tenho a impressão de que isso está funcionando. Houve um momento, até não muito tempo atrás, em que eu estava muito preocupado ao ver todas as formas de narcisismo da música: quando ouvimos sozinhos, fazemos tudo só por nós, tocamos apenas para nós; compomos nós mesmos ou simplesmente nos apresentamos pelo puro espetáculo. Vejo isso ressurgir e isso me dá um sinal muito importante sobre bandas, orquestras. E essa é a nova forma, esse é o renascimento da civilização voluntária: nos reunimos voluntariamente. É por isso que a música é muito sismicamente interessante. No Brasil vemos muitas pessoas fazendo música juntas.

AS: A música e a dança influenciaram a nossa compreensão de Humanidade como prática. Temos nesta Bienal quatro publicações educativas que dialogam com as Invocações. Realizamos a primeira Invocação em Marrakech em torno da “escuta profunda e da recepção ativa”, além da respiração. A segunda foi em Guadalupe, em torno de um movimento de dança chamado Bigidi, que é ao mesmo tempo um passo em que nos deixamos balançar, mas não cair, e um conceito filosófico. A terceira foi em Zanzibar, sobre o Taarab e a improvisação, então tivemos uma conferência com os músicos de Taarab, os teóricos do Taarab, e essa confluência. A próxima será em Tóquio, em torno da questão da tecnologia e da humanidade.

BSBN: Talvez seja justamente essa a nossa próxima pergunta sobre a tecnologia do nosso momento e esse futuro da humanidade, pensando em todas essas tecnologias, porque, como você disse, a fala pode se tornar uma arma letal quando é usada como calúnia; se não houver equilíbrio, a troca pode se tornar frustrante e, portanto, perigosa. Se vemos o que aconteceu entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky, o discurso foi tão violento que se tornou uma arma, mas o que está acontecendo nas redes sociais é esse discurso unidirecional. Eu estava pensando

nisso quando você falava sobre orquestras, porque criar orquestras também é criar oportunidades para ouvir. E não há escuta.

AS: Como você pode imaginar uma forma de humanidade em que as tecnologias atuais tendem a ser mais fragmentadas ou em que não há empatia, não há escuta? Como você imagina uma humanidade possível com tecnologias que acompanham essa maneira empática de apreender a humanidade?

JA: Essas tecnologias são reversíveis, elas podem ser utilizadas para o bem ou para o mal, então podem ser utilizadas de forma altruísta, de forma empática, para expressar gratidão pela colaboração em conjunto, para inventar coisas novas, para superá-las; é uma questão de vontade das pessoas, e a vontade vem, na minha opinião, mais do medo do que de qualquer outra coisa. Será preciso haver medo dos desastres para que as pessoas possam reagir.

Às vezes penso em Karl Marx, a quem no final os socialistas alemães pediram opinião sobre o seu primeiro programa para o primeiro congresso do Partido Socialista Alemão, que viria a ser em Gotha, na Alemanha, e ele escreveu um texto chamado “Crítica ao programa de Gotha” (1891). É um texto muito difícil; basicamente ele diz que eles não entenderam nada e que o socialismo não pode estar em um país, ele deve ser global, eis o que temos que fazer. E misteriosamente ele terminou esse texto com algumas palavras em latim, porque ele falava muito bem latim: Dixi et Salvavi anima meam, que significa algo como “estou dizendo isso para salvar minha alma e não acredito nem um pouco no que digo...”.

Eu não queria chegar a esse ponto, mas às vezes começo a pensar e acabo dizendo que é verdade que ele entendeu que socializar em apenas um país seria um desastre. Ele tinha visto isso em relação à Rússia, mas enfim.

AS: Você mantém o vislumbre de esperança?

JA: Sim. Sabe, tomo muitas vezes um exemplo do Brasil: é como um jogo de futebol. Se você é um espectador de uma partida e é um torcedor da equipe, pode ser otimista ou pessimista: vamos perder, vamos ganhar. Mas, se você é um jogador em campo, não

faz sentido ser otimista ou pessimista, você tem que vencer, e para vencer tem que estar em boa forma, seus parceiros devem estar em boa forma, trabalhar juntos para definir uma estratégia, conhecer a estratégia do adversário e implementar essa estratégia. O meu ponto é que não adianta sermos otimistas ou pessimistas, temos que ganhar o jogo. A única coisa que posso dizer para hoje é que estamos no intervalo e que o jogo está 2 x 0 e que a equipe à frente somos nós.

BSBN e AS: É Le Cantique des oiseaux [O canto dos pássaros].

JA: É verdade. Por que vocês pensaram no Le Cantique des oiseaux?

AS: Porque há pouco falávamos sobre isso com um artista que vai trabalhar, entre outras coisas, com a obra Le Cantique des oiseaux como referência em seu próprio trabalho. Tal como seu exemplo de um jogo de futebol, no final do seu percurso são a si próprios que os pássaros encontram.

BSBN: Você falou de música, matemática e finanças. Eu gostaria de ouvir mais a sua perspectiva sobre as finanças, especialmente no contexto contemporâneo com alguém como Elon Musk, que é quase presidente, que gere as finanças, mas também no contexto da economia, em que temos um sistema de tributação que os Estados Unidos estão impondo à União Europeia, ao México e ao Canadá, entre outros.

JA: É uma questão que sempre foi encontrada na história: a cooperação ou o conflito entre pessoas poderosas e pessoas ricas.

E, em geral, as pessoas poderosas ganham quando têm tempo para vender, caso contrário, as pessoas ricas ganham, porque sempre têm tempo para vender, mas a coisa costuma acabar mal. Hoje Musk encarna o poder do mercado, o poder das finanças, que é por natureza apátrida – no momento ele cuida dos Estados Unidos, mas ele mesmo é alguém planetário: Starlink é planetário, SpaceX é planetário, Tesla é planetário, enquanto Trump é alguém que, em princípio, tem apenas quatro anos e está limitado aos Estados Unidos, portanto, há potencialmente um conflito entre os dois, seus interesses não estão alinhados. Por enquanto, as finanças estão a serviço do poder político, mas isso não vai durar.

A condição de nação é importante hoje? Porque, se pensarmos no contexto financeiro, há coisas mais importantes e mais fortes do que as nações. Se tomarmos a Tesla como exemplo, a condição de nação só pode ser importante se tiver os meios de poder, isto é, o exército, a polícia e a possibilidade de fechar fronteiras, e é isso que Trump está fazendo. Se as fecharmos, isso dá ao Estado-nação um poder que normalmente já não tem, porque o mercado mundial destrói nações, destrói Estados – não nações, mas destrói Estados. Então Trump é um reacionário que está tentando colocar o poder de volta onde normalmente está; os russos estão fazendo o mesmo, eles querem absolutamente manter o poder; os chineses estão fazendo o mesmo, eles recusam a abertura. Mas a abertura é natural, eles não serão capazes de parar os imigrantes, pois eles não podem parar o movimento de capitais, mesmo que possam freá-los um pouco de vez em quando, pois isso é mais poderoso.

A humanidade escolheu. Ela poderia ter escolhido outra coisa, mas escolheu a liberdade como o valor supremo. Ela poderia ter escolhido a igualdade e poderia ter escolhido a fraternidade, mas escolheu a liberdade, e essa escolha significa liberdade de movimento, não há fronteiras, e não importa o que Trump tente fazer para parar tudo com tarifas alfandegárias, com barreiras aos migrantes, isso não vai funcionar, exceto para estabelecer temporariamente ditaduras como os russos ou os chineses. Teremos o mesmo problema na África porque a África tem 1,5 bilhão de habitantes, isso será 2 bilhões e meio, será quase 4 bilhões no final do século. É gigantesco e é algo incontrolável, então também lá os Estados não vão conseguir se manter.

A menos que possamos imaginar cidades que são geridas de forma inteligente, penso que as cidades – se estamos à procura de utopias urbanas – são muito interessantes. Existem cidades que são modelos de qualidade de vida e que estão até começando a se isolar como tais. As cidades mais bem-sucedidas hoje são Oslo, Zurique e Helsinque.

AS: Então é dessas ilhas de resistência que você fala no início desta entrevista.

BSBN: Mas, em vez de pensar no micro, o macro, como a União Europeia, não vai funcionar, é a última oportunidade do macro e isso tem que funcionar, caso contrário será

um caos total. Isso pode funcionar, o Trump nos ajuda ao se retirar da Europa.

AS: De fato, não faz muito tempo que você publicou um editorial sobre essa questão da União Europeia, em particular sobre o uso da força para a defesa da Europa, e de algum modo sobre essa espécie de última chance. Há também o fator tempo, em que as temporalidades são muito lentas em comparação com a urgência da situação, mas há também uma situação, vivida de uma forma um tanto passiva na Alemanha, em que temos a impressão de que há um rearmamento ou uma proteção sendo feita à custa de outros orçamentos, seja cultura ou educação.

JA: Mas a Alemanha tem margem de manobra suficiente para aumentar seu orçamento de defesa sem reduzir seu orçamento de cultura.

BSBN: Ainda assim, eles o fazem. Aliás, o primeiro orçamento que eles reduzem é o da cultura. E há a questão do Zeitenwende, da mudança temporal, da mudança de paradigmas defendida por Olaf Scholz, antigo chanceler da Alemanha. A gente se perguntava o que é essa Zeitenwende; você também escreveu que, quando dois poderes se enfrentam, é um terceiro que vence. Quem é que está vencendo agora?

JA: A China, temporariamente.

BSBN: E qual é a posição da Arábia Saudita nessa história? Onde está agora a paz no Oriente Médio? Ela está sendo negociada na Arábia Saudita, assim como a paz na Ucrânia com a Rússia?

JA: A Arábia Saudita está se tornando a nação central do Oriente Médio e se vê como uma potência com toda a região – um moderno Irã, Israel, Egito, Etiópia, os países do Golfo –, mais poderosa do que a Europa. E ela tem um meio para tal, porque o centro do mundo está se movendo e o Oceano Índico será o centro do mundo. Então ela tem uma enorme força potencial. Pronto. Será que respondemos a todas as suas perguntas?

BSBN: Uma última pergunta: você previu o futuro da humanidade do nosso ponto de vista e nos deu uma receita de como prever o futuro de uma forma metodológica e pragmática. Vou tentar praticar isso, você disse que devemos fazê-lo todos os dias, vamos tentar, mas vamos tentar prever o futuro da humanidade deste ponto de vista neste dia de 2025.

JA: Penso que haverá uma grande crise e que tudo ficará bem depois, mas uma grande crise significa uma consciência de que ela virá de uma grande guerra ou de uma catástrofe climática ou de ambos ao mesmo tempo e, em seguida, haverá um despertar, teremos essa vitória da gratidão, do altruísmo, da consciência da importância das gerações.

É muito simples, o que temos que fazer é não tomar nenhuma decisão que não esteja de acordo com o interesse das gerações futuras, é assim que tomamos uma decisão pessoal ou coletiva, pensando se ela é útil para as gerações futuras. É o fato de não termos pensado nas gerações futuras que nos colocou nesta catástrofe ecológica. Então é isso que temos que fazer na nossa vida pessoal e na vida política. Há alguns países que começaram a colocar na sua constituição o fato de que qualquer decisão que não esteja de acordo com o interesse das gerações futuras é inconstitucional, o que é muito importante.

AS: Muito obrigado, senhor Attali, nos veremos no mais tardar este ano em São Paulo?

JA: Prometo que sim. Obrigado.

Vertigem

Nam Le

Traduzido do inglês

Até agora nosso modo de vida parece ser queimar a grande graça.

Transduzir o anseio de todas as coisas em uso breve.

Você se lembra?

Na floresta

Fui tomado por um desejo selvagem de floresta. Pelos meus ossos, meu cólon, eu sentia um silêncio, sinal de ruptura como se vindo de um canhão sísmico

E então: diapasão.

Vibrado até perder todas as minhas estruturas, meus primevos arranjos sólidos em cacos caí de joelhos

O mundo agora todo som, som absoluto, vertiginoso, E eu caí – estava caindo – enchendo – cheio –enquanto o som continuava a se derramar em mim como sentimento, oceânico.

Você criou um espaço pra isso?

Todo som animal e industrial e abiótico, sim, mas eram boias noturnas sobre coeficientes humanos –

E eu subia por baixo & ao redor deles em correntes divinas. Como?

Meus canais iônicos foram sacudidos em harmônicos?

Achei que tinha ouvido as águas salgadas escorregando contra as doces,] dicções sem recurso da turbulência, portões na água se abrindo para outras frequências:

O que você ouviu?

Bocas nas árvores.

Folhas fervendo sol em açúcar, madeira-clara.

Metabolismo dos grãos verdes, canção endossimbionte.

Oh, mas que estranha colheita solar que viva é um gás – moleza!

Banco de terra, com suas inúmeras fricções sônicas.

Agitação e forrageio com nervuras, justa chuva moderada de solum,

Roncos dos sacos de pólen da antera e o estigma incha, deseja. Mínimas sementes.

Tudo tocando o instrumento de todo o resto.

Tudo usando uns aos outros por necessidade.

Como as cilhas das raízes estremecem meus sensores mecanossensoriais também?

Me pergunto:

Como é que era a dinâmica das membranas deles?

E a água

Na margem, todas as lâminas de junco afiando-se, afiando-se.

Por baixo:

Sons granulares de areia, conglomerado, turno de carga de leito –

Os anéis de água verde-musgo com entrelaçada luz encoberta.

Fala de caranguejo, os altos cantos de dor dos corais mineralizando, cristais crescendo nos fantasmas da água.

Gemidos sub-audíveis de rizomas antigos de ervas marinhas, plâncton, larvas, bivalves, moluscos, os peixes que cancelam a contagem.

Assim como o infra-som que atravessa a placa continental e o mar e mantém sua certeza

minha audição se tornou bêntica:

Oceano real, ur-oceano, sua reserva total de grãos finos: ácido e ferro, micróbios dividindo a água – silvo plasmático –grandes criaturas marinhas em canais sonoros profundos fazendo música que enfeitiça seu sangue.

Ou: talvez as moléculas de mim tenham se lembrado de que eu era majoritariamente nada. Vazio e vibração.

E então nos sincronizamos com o todo-nada, Nos tornamos um único gânglio espiral –Super-homem, suspenso, super-audição.

Muita coisa para dizer

Diga

Causa final –

emaranhando som e acontecimento:

Tudo isso:

Pulso uterino do planeta-mãe. Arritmia.

Dom insondável do impulso e da sucção repentina – jorro de citoplasma –de célula em célula

Decomposição de biomassa em combustível

E os espectros estelares cantam em tons astrais –corridas cromáticas de fusão, metais, magnetismo. Ventos solares de longa duração.

O anseio sendo o primeiro princípio. Igual por igual e por desigual (a lei da graça é essa entrega) –ordem e sua falta

Fui preenchido, fui esvaziado.

Então, ali –o equilíbrio trêmulo de todas as coisas.

Calor e luz, som, sal e doçura, umidade, pressão, densidade, gravidade passaram por mim

E ali estava eu, estrutura das estruturas, centrado no ponto imóvel.

Não há ponto imóvel

Concedendo animacidade – chame de modo de vida –

Super-homem? Mais para Ménière

Para a necessidade vital – chame de amor –

De, e ao longo de, todo gradiente.

Eis que você ouve: Entupimento e hemorragia no labirinto.

Estiramento cístico, ulceração, Subcorrentes cerebroespinais. Distúrbio do ouvido interno.

Sem ponto imóvel. Sem centro. O que você sente é a náusea de um corpo a uma velocidade incalculável: velocidade da rotação do planeta, velocidade maior de sua volta ao redor do sol que gira ainda mais rápido ao redor da galáxia que é arremessada mais rápido ainda, a velocidade de ordem desconhecida]

Não.

Eu estava imóvel.

Imobilidade é relativa.

Tudo é relativo –nada é por si só.

Tudo precisa de todo o resto para saber algo de si.

Fluxo elétrico através de bainhas de nervo lisas; troca sináptica química; pulsar do sangue & chiado dos dendritos na panela óssea.]

Estruturas em estruturas.

Estruturas clamando por dissipação. Eu sei o que eu ouvi.

O que é uma revelação senão o cérebro em delírio?

Estou pedindo o mundo.

Trovador de Guanajuato

Cheng Boey

Em: The Singer and Other Poems. Melbourne: Cordite Press, 2022.

Traduzido do inglês

Viver é fácil, pode acreditar, sentado no banco, ouvindo as vozes felizes-tristes da banda de mariachis desfiando números no coreto. É fácil esquecer as imagens na TV do hotel, o rolo de corpos na vala de jovens mulheres em Juárez, enquanto mães em luto exigem respostas; é fácil acreditar na felicidade humana ao ver

casais e famílias passeando pelo jardim ou fazendo piquenique no gramado, muito fácil esquecer os imigrantes sequestrados, setenta e dois deles, executados pelo cartel porque não podiam pagar o resgate nem servir de pistoleiros ou mulas. Tudo vira um borrão, as meninas e mulheres estupradas, traficadas ou mortas, e o muro enorme e a grade em Tijuana.

À luz suave e filtrada, você vê duas crianças correndo em círculos em volta dos pais, e o que volta quando o menino para e os olhos dele encontram os seus sob o poente é você num corpo infantil, perseguindo sua irmã em volta dos seus pais, as longas sombras deles se beijando no gramado diante das Cinco Árvores do Esplanada,

e você não pensa no pai e no menino afogados no Rio Grande, ao sul da vida que nunca alcançaram.

Você não nota que o momento já passou mesmo enquanto a luz o atravessa, e as sombras se esticam dos carvalhos e pinheiros, até tudo se tingir de um azul crepuscular. Você esquece o Cristo negro diante do qual ficou em transe

numa igreja pequena fora da rua principal, a escuridão pesando mais na luz trêmula das velas refletida no corpo de ébano, e naquele credo escuro de dor e morte as perguntas pareciam recuar no silêncio que envolvia a forma inerte na nave, coberta apenas com um pano branco bordado. Você deixa

o parque e se junta a um bando de turistas seguindo um trovador, um flautista vestido com roupas medievais, e esquece a galeria dos mortos no museu que tanto aterrorizou Ray Bradbury. Você havia subido a colina, depois do café e dos huevos rancheros, passando por igrejas vomitando fiéis

cobertos de rendas e sedas dominicais, sob o jato de sol de inverno nas casas coloridas de estuque descascado, uma paleta terrosa e viva, e pelo mercado sonolento onde uma velha mirrada quis ler sua sorte, depois por um córrego entupido de lixo e encostas de terra e cinzas, por prédios desmoronando, e perto do meio-dia

você chegou ao Museo de las Momias e entrou nas salas em penumbra. Erguidas e cercadas por vitrines, nuas ou envoltas, nunca sepultadas, porque não pagaram o imposto da morte, as múmias desmentem que a morte seja bela ou serena como os inumeráveis Cristos mortos que você já viu.

Você teve sua cota de morte depois da mãe e do recém-nascido, e do cadáver no caixão vestido em seu terno dominical, já gasto e embotado como os próprios ossos.

Você saiu para a luz viva do dia, e ficou parado sob o sol manso do inverno, pensando nos mortos que você carrega na urna e podem pesar como uma semente,

leve como a fumaça que saía do cigarro do seu pai, ou como a cinza que ele virou quando seu caixão foi levado ao fogo, ou pesada como os ossos dele que você segurou depois. Pesada e leve são as medidas da dança da morte que o trovador faz ao som dos acordes que a noite toca em seu violão, o grito humano aguardando ser solto.

leve como a fumaça que saía do cigarro do seu pai, ou como a cinza que ele virou quando seu caixão foi levado ao fogo, ou pesada como os ossos dele que você segurou depois. Pesada e leve são as medidas da dança do trovador ao som dos últimos acordes da morte no violão da noite, enquanto o amanhecer desponta nos morros como a paz.

Palavras juntas são melodia

Keyna Eleison

É difícil ter calma. Difícil ficar em silêncio.

E não por falta de desejo, nem por inabilidade em habitar os vazios. Mas porque o mundo, esse mundo em que vivemos, insiste em atravessar nosso corpo com urgências que não cessam. As notícias que chegam antes do café da manhã. As mensagens que se acumulam. A demanda por posicionamento. A necessidade de resposta. A insistência em estar disponível. Vivemos em um tempo que desorganiza o tempo. Em que a pausa virou um privilégio e o descanso, uma ousadia.

Para muitas pessoas, o silêncio pode ser um luxo. Para algumas, uma escolha estética. Para outras, um direito inato. O silêncio que compõe uma leitura contemplativa, o silêncio que antecede uma fala segura. Mas, para algumas de nós, o silêncio tem uma outra biografia. Uma outra carga. Uma história marcada por silenciamentos, por apagamentos, por censuras e por ausências forçadas. O silêncio, muitas vezes, foi o que nos restou – e não o que escolhemos.

E mesmo assim, quando ousamos falar, quando a palavra emerge, ela vem cercada por desconfiança. A nossa voz é questionada antes mesmo de ser ouvida. Nosso tom é lido como agressivo. Nossa emoção, como descontrole. Nossa denúncia, como vitimização. A nós, tantas vezes, foi negado o direito de expressar dor sem sermos patologizadas. Foi negado o direito de existir em dúvida, em hesitação, em complexidade. A calma, para nós, não é um lugar seguro. É, muitas vezes, uma exigência. Um preço para sermos toleradas. Um código de conduta imposto.

Mas há algo que se rompe quando reconhecemos isso. Há uma potência que começa a vibrar no momento em que recusamos essa dramaturgia do aceitável. Quando olhamos para a calma e o silêncio não como imperativos, mas como territórios a serem ressignificados. Quando os transformamos em escolhas, em estratégias, em gestos conscientes de cuidado, e não em modos de contenção. Quando dizemos: posso ficar em silêncio, mas só se o silêncio for meu. Posso buscar a calma, mas não se ela me for imposta. O poema “Da calma e do silêncio” nos conduz.

É por isso que participar de uma Bienal que começa com um gesto de escuta tem algo de profundo. E, ao mesmo tempo, reparador. Não se trata apenas de um gesto curatorial. É um gesto ético e um gesto espiritual. Porque escutar é abrir espaço. E abrir espaço é ceder controle. Escutar é correr o risco de ser transformado pelo que se ouve para ceder à potência de uma palavra-poema.

Ver essa palavra vir do corpo, da trajetória e da linguagem de uma mulher negra viva. Conceição Evaristo – escritora, pensadora, mestra, avó, filha, trabalhadora das palavras e da vida. Conceição, que escreve com a mão firme de quem sabe o que está em jogo. Que escreve do lugar de quem sobreviveu e não se contentou com a sobrevivência. Que escreve como quem planta – sabendo que escrever é cultivar o tempo, é esperar a germinação das palavras no corpo do outro.

A 36ª Bienal, ao tomar como impulso uma frase retirada de um de seus poemas, faz aliança. Reconhece que há conhecimento que não está nos livros de teoria. Que há pensamento, que há sabedoria que brota da carne, da travessia, da vizinhança, da rua, da dor, da alegria, da escuta, do tempo-espaço. Que o poema pode, sim, ser ponto de partida para um projeto artístico, curatorial e político. E mais ainda: que o poema é uma forma de pensamento. Não o contrário da razão, mas sua continuação sensível. Um pensamento que pulsa, que respira, que escorre.

E os versos escolhidos para o título da 36ª Bienal – e aqui importa mais o gesto do que as palavras exatas – não vêm como um lema. O título não se impõe como um título fixo. Não define. Não delimita. Convida. Abre. Permite. Convoca. E, talvez por isso, os versos formem uma frase que começa com uma negativa. “Nem todo viandante anda estradas.” Um dizer “não” que não fecha, mas que desenha um limite para que o mundo não nos engula. Um “não” que protege. Que delimita o corpo. Que marca território. Que afirma a possibilidade de outros modos de existir. Dizer “não” é uma tecnologia de sobrevivência. E, em tempos como os nossos, também de reinvenção.

Há caminhos que não se revelam à primeira vista. Há rotas que se criam na travessia, não no traçado. O nem que carregamos no corpo não é negação por ausência – é recusa por escolha. É uma forma de cuidar de si, de manter-se inteira diante das imposições. O nem nos oferece margem. Nos convida ao desvio. E, nesse desvio, há descoberta. Há outra ética possível, mais orgânica, mais justa com o tempo e com o corpo. O nem não se fecha: ele abre, desloca, desloca para abrir. Não é oposição, é condição. É o que permite que outra forma de passo aconteça.

O não que aprendemos a dizer não se volta contra o sim – pelo contrário, ele o prepara. Ele o protege de ser automático, de ser resposta sem escolha. O não afirma o espaço do discernimento.

Nos libera da exigência de corresponder, e nos devolve o direito de escolher. É um não que guarda o possível. Que não precisa ferir, que não precisa endurecer. Dizer não é escutar com atenção. É dizer: Não assim. Não nesse tempo. Não sob essas condições. E só então, com o corpo respeitado, o tempo cuidado, o afeto inteiro, podemos dizer um sim que é verdade. Um sim que nasce inteiro, e não aos pedaços.

E nesse gesto nasce o programa público chamado Invocação. Porque invocar é chamar junto. É reconhecer que sozinhas não damos conta. É saber que pensamento precisa de eco, de atrito, de troca. Invocação é mais do que um título de programação. É um chamado. Uma disposição para a escuta coletiva. Um campo aberto onde vozes diversas se encontram, não para convergir, mas para coexistir. Onde o dissenso é bem-vindo. Onde a diferença é celebrada. Onde o afeto não é adereço, mas método.

Invocação é também um lembrete de que a Bienal não acontece apenas nas salas expositivas. Ela se realiza nos encontros. Nas conversas. Nos deslocamentos. Nos corpos que se atravessam. Nos silêncios que se compartilham. Não se limita à contemplação, mas se estende como experiência viva. Como território de construção. E, por isso mesmo, precisa de mais gente. Gente com coragem de propor. Gente com disponibilidade para escutar. Gente com afeto suficiente para sustentar o que não está pronto.

Porque pensar, aqui, é um gesto coletivo. Conceituar, aqui, é um processo de escuta e reverberação. É deixar que outras palavras entrem, que outras histórias se desenrolem, que outros mundos possíveis sejam esboçados. A curadoria se torna partilha. A programação se torna rito. E cada pessoa que se envolve, que oferece tempo, pensamento, cuidado, presença, afeto, reforça essa rede viva que sustenta a Bienal.

E essa rede não é invisível. Ela vibra. Ela pulsa. Ela respira. Ela dança entre a calma e a fúria. Entre o silêncio e a palavra. Entre o gesto e o pensamento. Entre o que já sabemos e o que ainda não sabemos nomear.

A Invocação é esse campo vibratório onde o afeto vira método, e o método vira corpo. Corpo que sente, que se lembra, que sonha, que se compromete. Porque não há prática curatorial que não envolva corpos. Não há projeto expositivo que não convoque presenças. Mesmo quando tudo parece técnico, quando tudo se veste de objetividade, o corpo está lá – no mover das caixas, no

abrir das portas, no ouvir do outro, no decidir coletivo, no cansaço, no gozo, na exaustão, na vibração de estar junto. O corpo está lá quando a palavra falha. E é o corpo que continua escutando quando já não sabemos mais o que dizer.

Na Invocação, é esse corpo coletivo que se manifesta. Não como soma de partes, mas como campo compartilhado. Um corpo múltiplo que pulsa em descompasso, e ainda assim dança. Um corpo que reconhece que a política da arte não se faz apenas com ideias – mas com gestos, com comida partilhada, com decisões tomadas às pressas, com conversas sussurradas no meio da noite. Um corpo que sabe que conceito é também cansaço, também alegria, também contradição.

É por isso que o pensamento aqui não se impõe: ele se apresenta. Ele não entra rompendo a porta – ele se ajoelha, ele pergunta, ele se deixa transformar. O pensamento que guia é o pensamento do encontro. É um pensamento que se curva, como um caule diante do vento. Que escuta a maré. Reconhece que há outras formas de saber.

Estamos diante de uma Bienal que não se organiza apenas por temas, mas por forças. Por ventos, águas, sombras, memórias. Uma Bienal em que a palavra “curadoria” ganha outros sentidos: de costurar mundos com delicadeza e precisão. E é neste espaço que a Invocação se inscreve como dimensão fundamental do fazer curatorial – não apenas como atividade de mediação, mas como prática radical de escuta.

Escutar é um risco. Porque, quando escutamos de verdade, algo em nós precisa mudar. Escutar não é só ceder a palavra, mas abrir o próprio corpo para ser tocado por ela. É um gesto de vulnerabilidade, mas também de confiança. E é nessa confiança que se constrói uma rede. Uma rede que não é neutra, nem protocolar. Uma rede feita de vínculo. Uma rede de pessoas que, ao serem chamadas, respondem com presença. Gente que não está ali por obrigação, mas por implicação.

É por isso que a Invocação também é política. Porque ela se recusa a repetir as estruturas hierárquicas do saber. Porque ela não coloca os artistas em um púlpito e o público como plateia. Porque ela não transforma o pensamento em espetáculo, nem a escuta em adorno. A Invocação não tem a pretensão de produzir conclusões. O que ela oferece é um campo fértil de reverberação. Um território onde o saber não precisa se resolver – pode, simplesmente, se espalhar.

Essa Bienal não pede respostas. Ela propõe perguntas. E essas perguntas não são feitas apenas com a cabeça. Elas atravessam o corpo. São perguntas que doem, que provocam, que exigem tempo. Essas perguntas não cabem em uma legenda de parede. Elas vivem nos encontros, nos deslocamentos, nas rodas. E é nesse espaço entre saber e não saber que a Invocação se firma como prática: como quem acende uma vela antes de começar uma conversa importante. Como quem prepara o chão antes de uma cerimônia. Como quem chama por alguém não para dominar, mas para escutar. Invocar é um gesto antigo. Vem do tempo em que o mundo ainda era povoado de forças visíveis e invisíveis. E talvez por isso mesmo seja tão necessário agora.

Porque estamos vivendo tempos de velocidade extrema, de ruído contínuo, de saturação das imagens e das palavras. E, ao mesmo tempo, de vazios afetivos profundos. O tempo da produção nos empurra para a frente sem permitir pausas. Mas o tempo da escuta exige retorno. Exige demora. Exige silêncio. Exige presença. A Invocação é esse retorno. É essa pausa. É esse lugar onde a palavra pode respirar antes de ser dita.

Invocar também é lembrar. E lembrar, aqui, é verbo ancestral. Porque o que chamamos de memória não é um arquivo estático. É matéria viva, em movimento. Memória, para nós, é um tipo de futuro. Porque lembrar é também imaginar. E a imaginação, como nos ensinam as mulheres negras desde sempre, é uma forma de resistência.

É cuidar do impossível, o que exige gente disposta a atravessar o desconhecido. A não saber de antemão. A aceitar que o processo é o que há de mais verdadeiro. A Invocação não busca formalidade, busca vínculo. Não busca aplauso, busca presença. E estar presente, hoje, é também estar inteiro. Mesmo nas falhas. Mesmo na dúvida. Mesmo no cansaço. Presente como quem oferta o que tem: palavra, gesto, escuta, silêncio, raiva, alegria, sombra, canto.

E assim se costura: com fios visíveis e invisíveis. Fios que não seguem uma única direção. Fios que se entrelaçam, que se embaraçam, que se desfazem e se refazem. A Invocação é esse emaranhado vivo, que não se resolve, mas se oferece. Como oferenda, como presença, como tentativa. Porque, afinal, estar aqui juntas é também aceitar que estamos todas em um processo que só se revela com o caminhar. E há caminhos que não se pode fazer sozinha. É caminhar com outros seres, visíveis ou não. É negociar cada passo

com a lama, com a água, com o sol que queima e com a sombra que abriga. É saber que cada movimento implica o todo. Assim também é a Invocação: uma travessia em comum, uma escuta mútua, uma arte de caminhar junto.

O afeto aqui não é adorno. Não é suavização. O afeto é método. É ele quem sustenta as decisões difíceis, quem ampara as palavras duras, quem sustém o corpo quando a dúvida vem. O afeto é aquilo que resiste quando os conceitos falham. Quando a teoria se mostra insuficiente. O afeto é o que nos faz seguir mesmo sem garantias. Mesmo quando estamos cansadas. Mesmo quando há conflito. Porque há cuidado no centro da força. E há força no centro do cuidado.

A Invocação é, nesse sentido, um ensaio de mundo. Um esboço de uma política sensível. Uma prática de democracia radical. Porque invocar é também assumir responsabilidade. É saber que quem chama responde. Quem convoca escuta. Quem abre espaço precisa sustentar o que entra. E sustentar não é controlar. É acompanhar. É cuidar. É manter acesa a chama do que ainda não sabemos nomear.

E o que ainda não sabemos nomear é o que mais importa. O possível que escapa das categorias. O que não se rende às palavras prontas. O que só se reconhece no gesto. No olhar que se demora. Na pausa que acolhe. No erro que se assume. No silêncio que nos religa. Por isso, o silêncio aqui não é ausência. É potência. É presença plena. O silêncio é o espaço onde as palavras nascem. É o ventre do discurso. É o intervalo entre uma respiração e outra. O silêncio é o lugar da escuta mais profunda. O lugar onde o tempo se dobra. Onde o espírito se manifesta. Onde o afeto se torna linguagem.

E há uma beleza enorme, e talvez uma revolução sutil, em começar uma Bienal ouvindo um poema. Um poema de Conceição. Um poema que diz não. Que nos obriga a parar. A não seguir como sempre. Que nos convida a outra cadência. Que nos lembra que a arte, quando é viva, não se acomoda. Quando é viva, exige. Quando é viva, transforma.

Ela é o corpo que convoca outros corpos. A voz que chama outras vozes. A ideia que aceita se desfazer para que outra possa nascer. Ela é ritual, é conversa, é política, é respiro. É rede, é raiz, é chama.

E, por fim, talvez seja isso que esta Bienal nos propõe: que possamos viver o pensamento não como imposição, mas como

invocação. Que possamos pensar com o corpo, com o tempo, com o outro. Que possamos afirmar que a arte é um campo em disputa, sim – mas também um campo de encantamento. Que há beleza na resistência. Que há política na delicadeza. Que há alegria na recusa. Que há mundos inteiros no gesto de dizer: não assim. Mas assim, sim. Em roda. Invocando.

E eu estive ali. Com o corpo inteiro. Com o coração tremendo diante do que se revela quando a palavra cede lugar à escuta. Quando o gesto pede presença. Quando o tempo desarma o controle e abre passagem para o que pulsa mais fundo. Estive ali com tudo o que trago: as memórias das que vieram antes de mim, os silêncios que me atravessaram, as recusas que precisei aprender a dizer, as alegrias que insisto em cultivar como forma de existir. Porque não se trata apenas de um evento. Não é uma programação. É quase um sopro. Um respirar coletivo. Um chamado que ecoa dentro e fora. E eu ouvi esse chamado. Não como quem responde a um dever, mas como quem reconhece um canto antigo. Algo que vibra lá atrás, no tempo das primeiras histórias contadas ao redor do fogo, nas noites em que a floresta se tornava voz.

Na Invocação, me vi espelho e tambor. Fui palavra, mas também fui silêncio. Fui caminho, mas também fui pedra. Fui presença atravessada. Fui água levando as perguntas que ainda não sei responder, mas que já me transformam. E sigo. Sigo invocando. Sigo oferecendo. Sigo partilhando esse campo onde a arte se curva ao tempo do mundo, onde a política encontra o afeto, onde o pensamento dança e se faz corpo — corpo comum, corpo vivo, corpo em assembleia.

Ouvimos o som da floresta ancestral

Linh Nga Niê Kdam

Traduzido do vietnamita

Sou Linh Nga Niê Kdam, uma filha da etnia Ê Đê. Rastreei minha origem até o buôn1 Ea Sút, na cidade de Ea Pok, distrito de Cư M’gar, na província de Đak Lak, no Vietnã. Nossa comunidade Ê Đê conta com 500 mil pessoas, que vivem principalmente na província de Đak Lak, com alguns grupos menores espalhados nas províncias de Đak Nông e Phú Yên. Os Ê Đê são até hoje uma sociedade matrilinear, em que as mulheres detêm privilégios sociais e a herança material. Propostas de casamento são iniciadas pela casa da noiva, e o noivo depois passa a integrar a família da esposa. Por isso, as crianças também carregam o sobrenome da mãe. Antigamente, como ocorre com outras etnias do planalto, o povo Ê Đê praticava uma religião animista e politeísta. Para que qualquer atividade corra bem, deve-se rezar para os Yangs.2 Se você tiver sucesso, deve agradecer; do mesmo modo, se ofender os Yangs, deve pedir perdão. A fim de se comunicar e negociar com os Yangs, as pessoas costumavam usar o som dos gongos de cobre. Como os Yangs tinham um papel crucial na vida cotidiana dos Ê Đê, sua adoração se fundiu a nosso calendário agrícola, nosso ciclo vital e nossas relações sociais. Dependendo da escala do favor pedido, o tamanho dos sacrifícios também mudava; ou seja, quanto maior o pedido, maiores eram os animais e os recipientes de vinho de arroz oferecidos. Quando um ritual terminava, os animais sacrificados eram compartilhados entre os membros do buôn, o que marcava o prelúdio do encontro comunitário. Além das oferendas, a produção de sons também era parte do processo ritualístico, bem como a diversão durante as congregações. Era assim que a música – e o som – permeava nossa vida, dos rituais às atividades comunitárias. Desse modo, o som dos gongos ecoava continuamente pelas florestas, montanhas e buôns. Essa proliferação sonora assinalou o nascimento de diversas músicas de gongo. Depois de algum tempo, o povo definiu que cada ocasião ou evento teria sua própria música de gongo. A reza a um Yang em particular deveria ser acompanhada de um som próprio, ao passo que a invocação de outro Yang deveria ser harmonizada com uma melodia ou um ritmo diferentes. Isso também ajudava a avisar os moradores de buôns vizinhos – pelo som do toque do gongo – sobre os eventos sociais que estavam acontecendo. As melodias de gongo são divididas em categorias: para invocar divindades (Rieo Yang, Drong Yang), para fazer anúncios públicos (Ieo wit hgum), para celebrar visitantes (Drông tuê) etc. Nos planaltos, também ouvíamos o farfalhar das folhas, o rugido das cachoeiras, o assovio do vento, a respiração da luz e

o murmúrio do rio e criávamos melodias improvisadas como as que fazem lembrar as cachoeiras (Drai ênai), as tempestades de granizo ou as rocas girando (Kong Dar), Chiriria! Todo ano, nosso denso calendário de festividades e rituais permitia que as pessoas exibissem seu talento, facilitando assim a troca entre um buôn e outro. A partir de certo momento, nossa música de gongos original foi expandida para incluir instrumentos de bambu (como o hluê ching), cujos tons eram modelados a partir dos do gongo. O uso desses instrumentos ampliou nossa prática musical diária, nas horas posteriores ao trabalho no campo ou nas noites depois de uma cerimônia. Além disso, nós também cantávamos poemas narrativos em rima sobre a origem dos Ê Đê, os heroicos Dams3 e as belas H’Bias.4 Esses poemas podiam ser cantados por dias a fio, cativando os ouvidos de centenas de pessoas.

Os Ê Đê estão entre os grupos do planalto central que têm a maior quantidade de instrumentos musicais. Além do gongo, que qualquer outra etnia da região possui, os Ê Đê criaram inúmeros instrumentos a partir de materiais encontrados na natureza, como na floresta ancestral, ou conhecidos do cotidiano, moderno ou tradicional, como o bambu lồ ô, 5 a madeira, a seda de abacaxi selvagem, peles e chifres de búfalo ou até fios de telefone. Os instrumentos criados podem ser classificados como de percussão, sopro, cordas friccionadas, arco ou vibração – cada um gerando sons únicos, diferentes uns dos outros, e mesmo assim chegando ao coração de todos os ouvintes. Enquanto o gongo é normalmente usado para invocar divindades ou para anúncios da comunidade, outros instrumentos são usados em situações específicas: para momentos íntimos (Đing buôt, Tak tar, Đing Tút, Goc), confissões amorosas (Gong, Kni, Bro), ritos funerários (Đing năm, Đing Tút) ou avisos de ataques (Ky Pah).

Até as crianças e os adolescentes da região desenvolveram uma alta sensibilidade para o som e talento musical, graças a um calendário social cheio de festividades e rituais sucessivos, e também devido ao desejo por diversão depois do trabalho ou às cerimônias acompanhadas de sons. Os ouvidos das crianças eram inundados com sons desde que elas abriam os olhos pela primeira vez, como parte da cerimônia de soprar as orelhas, que marcava o nascimento de uma nova alma. Essa alma ia então sendo nutrida com música ao longo da vida, como nas ocasiões em que o gongo soava nos encontros familiares (na limpeza dos campos, na celebração do primeiro

broto de arroz ou na primeira colheita). Quando as crianças enfim passavam por todas as cerimônias de iniciação à vida adulta – casamento, a construção da própria casa, as graças e os bons votos aos mais velhos –, os sons continuavam a ecoar pela vida delas, acompanhados dos sons da floresta, das montanhas e dos rios.

Fui educada formalmente na música clássica ocidental, na Academia Nacional de Música do Vietnã. No entanto, como uma mulher Ê Đê, lembro-me de ficar hipnotizada com os sons da música de meu povo desde que eu ainda batia na cintura de meu pai. Quando era criança, eu era ninada pelos toques dos gongos de diferentes etnias do planalto central, desde os animados sons ondulantes dos Jrai, o timbre profundo dos Bâhnar, até o júbilo sublime dos Sê Đăng e o allegro vivace dos Ê Đê. Essas memórias de infância, cheias de sons, ficaram adormecidas por muitos anos, até que acordaram em sonoras vibrações em 1980, quando ouvi outra vez as melodias do Đing Tút, feito de palha por agricultoras que tinham vindo me cumprimentar em M’Drăk (província de Đak Lak), em uma casa tradicional de palafitas com um fogareiro quente e paredes manchadas de fumaça.

Dali em diante, eu apenas escutei. Escutei os sons que convidam pessoas e Yangs para diferentes cerimônias, como a celebração que os Bâhnar fazem quando a primeira gota d’água sai da fonte deles (et tnok dak), a comemoração dos Ê Đê depois do primeiro feixe de arroz obtido de cada colheita (hoă esei mrâo), a contemplação dos Jơ Lơng diante dos primeiros brotos de arroz (Ét dong), a desmontagem das sepulturas de madeira dos Jrai depois que o espírito do morto já ascendeu (Pơ Thi), a demonstração de gratidão aos céus e à terra dos Sê Đăng (bơ nê) e as orações dos Mnông pedindo por saúde. Esses sons elevados dos conjuntos de gongos não só destacavam a alegria das comunidades, como também encantavam meus ouvidos e meu coração. Antes que me desse conta, eu já tinha dedicado toda a minha vida a eles.

Infelizmente, minha felicidade ficou incompleta. Meu coração se entristece quando observo a infinitude de problemas que abafaram os sons e a bela música das várias comunidades do planalto central, minha comunidade Ê Đê em particular. O primeiro fator foi a mudança nas práticas religiosas. A erosão gradual de nosso culto politeísta levou ao desaparecimento das cerimônias e rituais que o acompanhavam. À medida que novas religiões penetravam a esfera sociocultural do planalto e substituíam as festividades

indígenas por seus rituais, os Yangs deram lugar a outras figuras de veneração, como Jesus ou Buda. Outro fator foi o choque cultural entre os povos do planalto e as autoridades das outras regiões, que impuseram culturas estranhas às nossas. O golpe final em nossa cultura fundada no som, no entanto, foi o extenuante período de crise econômica pós-1975, que forçou as comunidades indígenas a trocarem seus instrumentos sagrados por comida e outros serviços básicos. Devido à escassez econômica, nossas festividades também passaram a ser organizadas de modo esparso, e o som dos gongos desapareceu da vida cotidiana. A esse período se seguiu o influxo da cultura da internet, e nossos jovens foram levados por novas informações e modos de vida sedutores. O desinteresse e a ignorância deles em relação aos costumes ancestrais levou a um longo hiato na produção de instrumentos e sons tradicionais – alguns desapareceram completamente. Até nossos gongos foram adaptados para tocar na escala heptatônica ocidental. Os mais velhos, como eu, que guardamos com carinho nossas tradições, testemunhamos com pesar e nostalgia como nossa cultura aos poucos foi se tornando obsoleta. Felizmente, depois que a Unesco reconheceu a zona da cultura do gongo no planalto central do Vietnã como patrimônio cultural imaterial, houve uma mudança de percepção e perspectiva no governo. Eles passaram a produzir e circular mais informações nas redes sociais, como documentários sobre as práticas culturais de diferentes etnias que pedem por um renascimento e uma preservação das culturas do planalto central, incluindo nossa música tradicional. Hoje, em cinco províncias da região, além do Festival da Cultura do Gongo, há também apresentações para visitantes. O turismo comunitário incorporou as culturas indígenas, particularmente nossa música, para impressionar visitantes de dentro e fora do país, do coro de gongos da igreja, que toca nas missas de domingo em Kon Tum, à série Experience the Gong [Experimente o gongo] todo sábado no centro de Pleiku e ao programa Echoing Gong [Ecoando o gongo], duas vezes por semana em Buon Ma Thuot. Cursos organizados por músicos novos e velhos, que ensinam jovens a tocar gongos e outros instrumentos tradicionais, também começaram a surgir. Tudo para que o som dos instrumentos volte a ser mais presente na vida de nossos filhos, para que eles possam nutrir orgulho por sua cultura.

A música do planalto central está renascendo em nossas comunidades. Ela não só funciona como meio de comunicação

com os Yangs e entre diferentes comunidades indígenas, mas hoje tem o papel de atrair visitantes e entusiastas da cultura ao planalto central. Nossos instrumentos dão àqueles que nos visitam um vislumbre de nossa vida, povos cujas raízes estão profundamente entranhadas na terra. Isso é um motivo de alegria, ainda mais porque nossos jovens agora aprenderam a ouvir e apreciar a beleza de nossos próprios sons. Eles aprenderam a ter orgulho de vestir nossas roupas tradicionais, não só nas performances, mas também em outras atividades, como casamentos e cerimônias. A meu ver, seus rostos se iluminam ainda mais quando vestem os brocados tecidos pelas mãos habilidosas de suas irmãs, mães e avós.

E eu, com um coração que bate no ritmo da cultura do planalto central, finalmente me senti em paz ao ver que a cultura do gongo retornou mais uma vez, pulsando no solo vermelho destes platôs.

Dou-lhes as boas-vindas à minha terra natal. Que vocês possam mergulhar nos sons dos gongos, sejam eles melífluos e suaves como os dos Jrai e dos Bâhnar, alegres e brilhantes como os dos Sê Đăng, ou vigorosos e impressionantes como os ching knah dos Ê Đê. Uma “reunião de sons” feita de cobre, bambu, madeira e pedra toca em sincronia com nosso convite.

Vamos dar as mãos e adentrar as melodias ondulantes das florestas.

Para que vocês possam ouvir e se apaixonar pelos sons do planalto, como há muitos anos eu me apaixonei.

1 Um buôn é quase equivalente a um vilarejo, ou seja, a menor unidade coletiva dos diferentes grupos étnicos do planalto central do Vietnã, incluindo o povo Ê Đê.

2 Palavra no idioma Ê Đê para designar Deus ou uma divindade.

3 Palavra no idioma Ê Đê para designar um homem honrado e talentoso.

4 Palavra no idioma Ê Đê para designar uma mulher bela e graciosa.

5 Bambusa procera, um tipo de bambu nativo do Vietnã.

Mulheres-cabaças Creuza Krahô

Publicado originalmente na revista PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 11, pp. 110-117, nov. 2017.

Moro no sul do Maranhão, no estado do Tocantins, na Aldeia Nova, onde somos uma população de 180 índios. Nasci na aldeia Galheiro, em 5 de fevereiro de 1971, ao meio-dia, perto de um pé de jatobá chamado de tehcré, onde começou a minha vida sofredora neste mundo, pois não é fácil ser uma mulher indígena.

Todas as horas eu queria mamar e minha mãe queria dormir, mas ela não podia porque tinha que cuidar de mim. Queria me ver grande, então cuidou de mim, fez os resguardos necessários e eu cresci. Tenho um metro e cinquenta e oito de altura, sou morena clara, tenho cabelos pretos e anelados, e hoje sou uma mulher Krahô.

E assim, essa mulher virou andarilha, caçando uma vida melhor para sua população sem direitos de vida, sem direito de ser pessoa no mundo em que vivemos, a escapar de uma mão que apertou nosso punho. Estava e estou em busca de direitos que nossos antepassados não viveram, como o direito à educação e à saúde.

Hoje tenho uma vida corrida: estudei no estado do Tocantins e terminei o magistério. Pensei que não iria mais estudar e novamente uma pessoa me disse: “Vai, você consegue!”. E, mais uma vez, fui fazer, passei na prova do mestrado e tive que deixar a minha família. Peguei minha mala e saí pensando o porquê de tudo aquilo… Deixar minhas crianças com o pai e imaginando se ele ia cuidar do jeito que eu cuido. Às vezes eu chorava com muita dor no coração, tanta que me apertava como uma corda no pescoço, e eu saía de perto das pessoas para que não vissem.

Fui aprovada na Universidade Federal de Goiás e passei cinco anos assim. Nunca me acostumei, mas terminei o curso e aprendi com o sofrimento, muitas vezes sem ter recursos para comer nas viagens da aldeia para a cidade. Havia ocasiões em que eu não tinha dinheiro para comprar biscoito nem picolé, as coisas mais baratas. Eu não tinha bolsa de estudo, não tinha nada, e ficava só vendo meus amigos comerem. Às vezes, alguns colegas com boas intenções ofereciam: “Você quer um sorvete?”. E eu: “Sim, aceito”. Depois que me acostumei com eles, muitas vezes ajudavam-me compartilhando quase tudo comigo. Eu fiquei muito feliz com meus amigos e amigas não indígenas, que chamamos de Cupen. São momentos difíceis sair de sua casa para estudar ou trabalhar. Não há espaço na cidade para o indígena, e a vida urbana torna-se muito complicada.

Após o contato com os não indígenas, passamos a sofrer para aprender a cultura dos Cupen. O mesmo parece não acontecer com muitos Cupen, que não se interessam por nos conhecer e, assim, respeitar. Procuro com muito esforço entender a maneira de pensar e viver dos Cupen. A maioria das mulheres Mehi – assim são denominados os indígenas, na língua Krahô – não fala a língua portuguesa, mas entende.

Apesar da mistura com os Cupen, nunca perdemos nossas maneiras de ser e viver e assim não esquecemos os conhecimentos de ser Mehi. Ainda temos marcadas em nossos corpos as festas, cantorias, corridas, pinturas, caça, pesca e tranças das cestarias. Nós somos Mãkraré, mas os brancos, não indígenas, nos chamam de Krahô. E, para nós, a mulher nunca deixa sua família assim, portanto, isso tudo que estou vivendo é muito difícil. Mas, ao mesmo tempo, foi com incentivo do marido, uma pessoa especial, e das filhas que saí para estudar, pois sabiam que o estudo iria me permitir ter conhecimentos importantes e necessários sobre os Cupen.

Todos os antropólogos que vão aos Krahô só pesquisam os homens. Eles não pesquisam as mulheres. A mulher fica de lado, sempre lá para os fundos da casa. Eles não chamam as mulheres para pesquisar. Fiquei observando isso desde quando meu marido era vivo e eu me perguntava: por que os antropólogos vão à aldeia e só pesquisam os homens? Só andam com os homens? Os mensageiros da aldeia são os homens, para dar notícia, para distribuir. Mas é falsidade os homens explicarem tudo porque não sabem tudo.

As mulheres sabem muitas coisas, passam o dia inteiro fazendo enfeite para os caçadores, porque eles não podem andar sem enfeite. Se andarem sem enfeite, não matam nada. Aprendemos assim: sabemos fazer desenho no corpo, pintar, cortar o cabelo do jeito Krahô… Só quem corta o cabelo das pessoas é a mulher mais velha que não menstrua mais, uma mulher nova não pode cortar o cabelo de ninguém. A gente tem que participar só olhando mesmo, olhando muito como corta, como arranca, porque o cabelo é arrancado um por um. Mas, mesmo assim, os homens são os mensageiros para levar as mensagens do trabalho das mulheres para os antropólogos e devolver de novo para as mulheres.

Ao pesquisar, vi que a maioria das coisas não é do jeito que estão registradas, porque são as mulheres que fazem e os homens que contam. Mal acredito que tinha tanta coisa guardada com as mulheres mais velhas! Nunca saiu nada das histórias das mulheres Krahô,

de como faziam as coisas, nenhum livro conta a mulher Krahô. Nenhum. O antropólogo pode ser mulher, pode ser homem, o que for, vai pesquisar os Krahô e só procura os homens.

Eu pesquisei a maioria das mulheres. Eu fui atrás só das mulheres. Na aldeia Pé de Coco, fui pesquisar as mulheres e depois fui pesquisar o pajé Tejapoc, que morreu no ano passado. O que as mulheres me contaram, já ele me contou diferente das mulheres. Eu juntei todo mundo e perguntei: “O que é verdade aqui agora?”. Eu estava com um som ligado ouvindo o homem falar e perguntei: “É verdade o que ele está falando?”. E a mulher: “Não!”. “E agora? Eu quero saber quem vai contar a verdade para mim!” E foi assim até chegar ao fim da pesquisa. Chegou um ponto em que as mulheres botaram os homens para trás. Sabia que tinha alguma coisa certa ainda. E foi com as mulheres. Aí eu falei para os senhores: “O homem também tem muita coisa para fazer, só que tem coisa que os homens falam que é deles e não é”. As mulheres antropólogas que já vi chegarem só pegam os homens para andar pesquisando. Olham para a mulher e vão embora, acham que ela não tem nada para dizer. Mas quem tem mesmo muita coisa para falar e muita coisa para fazer e com quem devemos aprender são as mulheres. Quando cheguei à aldeia Rio Vermelho, passaram dois dias e a velha Ahcrokwyj faleceu. Eu fiquei triste demais. Porque eu ainda tinha que conversar com ela. Conversei com ela no hospital, perguntando se estava melhor. No último dia em que conversamos foi por telefone e ela me disse: “Eu não estou bem. Vou falar a verdade, não vou viver, vou morrer mesmo”. Nossa, isso me deu uma fraqueza na perna e pensei: “Vou perder minha entrevista agora”. Então ela morreu e eu tinha que pesquisar sobre como ela estava fazendo os remédios para evitar gravidez. Ela que fazia os remédios do mato para as mulheres não engravidarem. E eu perdi essa parte porque não cheguei a tempo, envolvida com outras entrevistas. Porque como fazer para engravidar eu já tinha gravado com ela, mas a entrevista que eu queria, sobre o remédio – que folha é, que raiz é, que casca é, como fazer para não operar as mulheres Krahô –, eu perdi.

Na aldeia Rio Vermelho tem umas mulheres que só têm um filho e eu perguntei: “Por que você só tem um filho e não tem outro?”. “Porque nós tomamos remédio.” “E você não quer crescer, não?” “Não, porque não dá para ficar com um monte de filho.” Aí eu

perguntei quem fazia esse remédio: “A Ahcrokwyj”. E Ahcrokwyj me falou: “Quando você voltar da cidade, você marca um dia e a gente vai sentar para eu te mostrar como é que faz”. E foi essa parte que perdi. Não sei se tem outra mulher Krahô ainda viva que faz o remédio, pois já perguntei a várias pessoas e não encontrei outra. Eu perguntava para as mulheres o que acontecia. Eram vários os resguardos. Muitos resguardos. Alimentação, roça, como plantar banana, por que plantar banana. Por que plantar mandioca, milho, arroz. Depois eu passei a pesquisar os caçadores e os pajés. O que significa pajé? O que é o pajé que os brancos falam? Porque nós chamamos de Wajakà. Wajakà, para nós, é uma pessoa que enxerga com outro olho. Não é com esse olhar que nós olhamos. Ele tem um olho atrás e outro nos braços. Esse é o pajé. Está de noite e ele está enxergando tudo, para ele é dia. Já de dia ele não enxerga, porque está noite para ele. O animal que conversa com ele é da noite.

Os pajés mais velhos que morrem viram animais e conversam com os pajés novos, se traduzindo até chegar ao vivo, falando qual planta serve para febre, para dor de cabeça, para menstruação. Para tudo ele ensina o remédio. Então pesquisei para saber quem é pajé. São dois tipos de pajé, o feiticeiro e o do bem, o mau e o bom. Então fui atrás do mau primeiro, para saber por que ele é mau assim. E ele me contava a versão dele. Ele faz um caçador morrer da noite para o dia. E essa doença do pajé o médico não cura. Pode dar remédio, pode dar injeção que o doente continua gritando e a dor não para.

Eu visitei uma pessoa desse jeito no hospital. O pajé entrou para curar a pessoa dentro do hospital porque eu sabia que ali não era coisa que tinha vindo pelo vento. Porque a doença que vem pelo vento, ela pega quando você está dormindo, a doença entra no seu corpo. Tem um vento de madrugada, umas três horas, um vento forte que carrega as doenças. Ele dá uma soprada forte e para de vez. Lá na aldeia, quando está ventando, a gente embrulha a cabeça da criança. E nós, adultos, viramos de costas. Entre os Krahô, os pajés do bem já estão velhos, não vão demorar a morrer. Se os pajés do mal juntarem para fazer um feitiço, eles os matam rapidinho. Teve uma senhora que se chamava Pipi, da aldeia Campos Lindos. Ela foi se aposentar lá em Goiatins. Eu estava interessada em perguntar algumas coisas para ela e falei: “Posso gravar você?”. E ela perguntou: “Você vai me pagar quanto?”. Eu falei: “Quando eu me aposentar, eu te pago”. Era brincadeira minha e dela. “Quando

eu gravar você, você vai me contar histórias, vou traduzir e nós vamos ganhar com essas histórias! Mas você tem que contar as histórias primeiro.” Queria que ela falasse sobre o resguardo para ser corredora, porque ela sabia. Por que as meninas corredoras da aldeia não dormem a noite toda? E não podem namorar também? Ficamos três dias conversando. Fizemos peixe assado. Ela contava, eu ficava ouvindo e gravando.

Depois de uma semana, fui para a roça trabalhar e me despedi dela. E ela falou: “Vou te abraçar porque talvez eu não volte a te ver”. E perguntei por que estava falando aquilo. “Eu estou com medo, Creuza, agora que estou aposentada e vou para a aldeia Campos Lindos, se o pessoal souber que estou aposentada vão até me matar.” E não era verdade? Ela tirou o dinheiro, fez compras e foi para a aldeia dela. Depois de uma semana, às seis da tarde, escutei uma pessoa gritar o meu nome do outro lado do rio. Era um bilhete falando que Pipi tinha morrido. Não dava tempo de ir lá. Foi rápido. Deu uma diarreia, ela começou a passar mal, foi para a cidade e morreu. Nem o médico a medicou.

Pesquisar as mulheres é diferente de pesquisar os homens. Mas também fui atrás dos homens mais velhos, que me conhecem, me respeitam. Tem pajés que são mulheres. Tem uma pajé mulher boa, muito boa. Mas ela não pode se meter no meio de muito pajé homem que ela se prejudica. Então ela sempre está fora. Se me falarem que um pajé não é bom, eu já vou desviando o meu caminho. Não dá para conversar com ele. Ele não ensina remédio para ninguém, só para ele mesmo. Da parte do pajé mau, nem a família dele ele cura. Ele só faz o mal mesmo.

Na minha pesquisa para alcançar os entendimentos dos Krahô sobre os resguardos, os velhos e velhas me falaram sobre a história das mulheres-cabaças e dos homens-croás e me orientaram sobre como organizar todas as informações que coletei. De acordo com a história que trata dos primeiros Mehi, as mulheres-cabaças foram as primeiras pessoas que aprenderam com Sol, nosso herói criador, sobre os resguardos, e assim este saber foi sendo repassado. Sol ensinou às mulheres-cabaças que, para fazer os resguardos, elas devem usar raízes, cascas e folhas de plantas do cerrado. É uma sabedoria feminina: as mulheres mantêm vivas na aldeia as práticas de resguardo e cuidados com o corpo, elas têm essa memória. Elas sabem qual alimento deve ser usado, como deve ser comido. Todo o processo de iniciar o resguardo, vivê-lo ao

longo do tempo e finalizá-lo tem o intuito de produzir uma renovação na comunidade e na vida da pessoa.

Assim, renova-se a vida da mulher, do homem, da menina e do menino, de todos. Por exemplo, a mulher, depois de ter o primeiro filho, inicia um conjunto de resguardos e, quando finaliza, estará forte, pois não adoeceu e nem a criança e, agora, está renovada para se alimentar de outras coisas e usar folhas em seu corpo que não irão prejudicá-la ou ao bebê. A vida se renova, ela sai da casa, alcança o pátio e se envolve em outras atividades.

Os homens também entram em uma nova vida após terem realizado o resguardo do primeiro filho. Mas quem mantém os resguardos, as transformações das pessoas e a renovação da vida na comunidade é a mulher. A mulher organiza para os homens viverem o resguardo, finalizarem e renovarem suas vidas, e o movimento da aldeia acontece. As mulheres Mehi aprenderam com as mulheres-cabaças a serem orientadoras dos homens.

As cestarias guardam uma memória. Sol deixou a mulher com o corpo para carregar as coisas, e os cestos são usados no corpo da mulher para isto. Sol ensinou a fazer o cesto como, por exemplo, no formato do desenho da casca do tatu. A memória sobre esse fazer é repassada, e aquelas pessoas que têm a memória boa conseguem fazer o cesto, aquelas que vivem o resguardo da memória direito.

Havia uma aldeia onde surgiu o resguardo da memória. Nessa aldeia, as pessoas iam esquecendo o jeito de ser e viver Mehi e saíam correndo para o mato virando criaturas e seres da mata. Um velho ia dando os nomes desses seres. O Tewa foi um desses, era um Mehi que havia esquecido os resguardos. Assim, ele queimou sua perna, que ficou pontuda e fina. Ele saía matando os Mehi pelas costas com essa ponta fina. Esse Mehi, que perdeu a memória, se transformou nessa criatura da floresta que gosta de matar os Mehi. O resguardo da memória também faz a pessoa se tornar cantor e cantora, e isto deve começar quando ela ainda é pequena, continuando até a morte. Os velhos e velhas passam para os jovens esse conhecimento e jeito de viver Mehi. Essa sabedoria a ser repassada para os jovens são os cantos Mehi. Manter a memória de ser Mehi, se fortalecendo, são elementos importantes para não se transformar em criaturas da floresta.

Esse resguardo envolve aprender os cantos que estão relacionados com não comer coisas em panelas e pratos, mas só no

moquém. A pessoa deve comer alimentos assados. Usar casca, raiz e capim para limpar a cabeça. Os cheiros, as essências, as consistências dos utensílios e produtos dos não indígenas devem ser evitados. Nem todos serão cantores e cantoras, alguns demonstram que se transformarão em cantor ou cantora por volta dos nove anos de idade. Os pais e avós começam a inserir a criança nesse saber e ela não terá a mesma convivência que as outras, terá alimentação especial e uso de artesanato e pinturas também especiais. Ao longo da vida, essa criança será preparada para ser um cantor ou cantora e terá o domínio sobre a memória Mehi.

As mulheres cantoras guardam uma semente na cabeça, que veio das mulheres-cabaças. Essa semente é como um computador que guarda a memória. Para essa memória ser guardada e limpa, essas mulheres devem usar o sereno, usar vários tipos de plantas medicinais, remédios do cerrado, e devem tomar banho no rio pelas manhãs. Há músicas do dia, da noite, da meia-noite, da madrugada. Para gravar tudo isso, essas mulheres devem fazer um resguardo rígido que transforme seu corpo para ter a semente. Devem usar também um remédio para enxergar bem, para ver a noite e não sentir dor. Elas seguem um resguardo rígido, só podem fazer sexo durante o dia, não durante a noite. Ao longo da noite, elas cantam muito. A minha avó é sobrevivente de um massacre ocorrido em 1940, feito pelos não indígenas fazendeiros, que mataram vários Krahô. Na verdade, ao longo da história de contato com os não indígenas, sofremos vários massacres. Foram mortas centenas de pessoas. Nós éramos muitos e após esse massacre restaram poucos. Nós somos da tribo Mãkrarè, vivíamos em uma aldeia enorme, maior que a cidade de Carolina, Maranhão. Esse povo se espalhou e cada um levou seu nome, Mãkrarè, Kukoikamekra, Panrékamekra, eram vários que se espalharam, cada um desses povos atravessou o rio Tocantins e se espalhou. Dos Mãkrarè vieram os Krahô de hoje. Minha avó tinha dez anos quando aconteceu o massacre, ela estava lá. Nesse dia, as irmãs mais velhas estavam olhando as crianças mais novas em casa enquanto as mulheres estavam na roça. Vieram dois vaqueiros Cupen e deixaram um boi grande. Os homens Krahô estavam caçando para a festa do Ketuaie, a finalização do resguardo de três homens, duas mulheres e de várias crianças.

Os Cupen estavam dando o boi grande, falaram que era para reunirmos todos os Krahô para a festa. O boi era um presente.

Nem todos entenderam e alguns não sabiam falar, mas vieram muitas pessoas. Os dois Cupen foram embora. No final da tarde, os Krahô mataram o boi. Eram seis horas da tarde, os caçadores chegaram, correram com a tora, tomaram banho. Depois, foram ao pátio cantar. À meia-noite, eles escutaram um tiro, as mulheres começaram a perguntar o que era aquilo, se eram os maridos de algumas delas. Mais tarde, de manhã cedo, escutaram outro tiro e, em seguida, foram vários tiros, um tiro perto do outro. Chegaram muitos Cupen, atirando nos Krahô, matando todo mundo, usando facão. E as pessoas começaram a correr para o mato.

Minha avó correu na direção de um Cupen chamado Corá, que conhecia minha avó. Ele falou para ela ir para a capoeira, onde tinha os pés de banana, pois a bala entra no pé de banana e iria esfriar, não iria matá-los. Corá deixou vários Krahô passarem no lado onde ele estava. Minha avó entrou na capoeira e ficou no meio do bananal. Ficaram escondidos o dia inteirinho, escutando o barulho das balas e dos gritos. Ela estava com três meninos pequenos que choravam baixinho, não sabiam se o pai e a mãe estavam vivos.

Depois de um dia, passou um tio dela que a reconheceu e perguntou espantado: “Vocês estão aqui, cadê sua mãe?”. Ela falou que não sabia onde estava sua mãe. O tio falou que eles tinham que ir embora. Todos os Krahô, das aldeias próximas, estavam fugindo com medo de novos ataques. Todos estavam indo em direção à serrona, para o “vão do inferno”, um lugar com muitos morros perigosos para se esconder. Todos se encontravam e fugiam. Ela levou um cesto com o pano para enrolar.

Eles ficaram um mês caminhando até chegar a esse local, ficavam escondidos de dia e caminhavam quando escurecia. Não faziam fogueira, comiam cru, viviam escondidos, calados, sem fazer barulho porque estavam sendo caçados pelos brancos. Eles tampavam as bocas das crianças pequenas para elas não chorarem. Havia um velho todo cortado de facão, e ele ficava quieto, não gemia para não serem descobertos. Quando chegaram à serrona, encontrou sua mãe, mas seu pai morreu, lutando no massacre.

Eles se comunicavam por meio de uma cabacinha que fazia um barulhinho. Quando alguém saía, retornava e fazia o barulho para avisar se havia algum perigo. Às vezes, eles voltavam às aldeias para pegar alguma panela e retornavam para a serrona. Quando eles iam às aldeias, viam muitas pessoas mortas e sentiam por não terem feito a cerimônia funerária. Alguns fazendeiros

passavam em aldeias Krahô mais distantes do ataque e falavam que ali iria acontecer um massacre semelhante, diziam que eles deveriam fugir. Assim, essas terras foram ocupadas por fazendeiros. Foi o que aconteceu com a aldeia Pitoro. Os Krahô ficaram muito tempo na serrona.

Um dia, um padre de Pedro Afonso foi até a aldeia de alguns Krahô mais distantes do ataque e pediu para eles irem atrás dos sobreviventes. Esses Krahô entraram em contato com os sobreviventes e falaram para eles retornarem. Eles foram retornando e, com a ajuda do padre, reconstruíram outras aldeias, próximas ao local do massacre. Enterraram os mortos, os ossos, o que restou dos corpos. O padre falou que isso não iria acontecer mais, o SPI apareceu e fez a demarcação da Terra Indígena em 1945.

Após esse massacre, os Krahô não finalizaram a festa. A partir desse dia, os resguardos foram deixados de lado. Quase todas as crianças foram mortas. A partir desse momento, nos tornamos Krahô. A vida foi sendo retomada, mas nunca mais foi a mesma. Os saberes e cuidados com o corpo foram abalados. Depois desse massacre, tudo mudou, vieram as tecnologias, os serviços de saúde e educação que não respeitam o modo de vida dos Mehi. As pessoas não estão mais interessadas nos resguardos cotidianos que devemos viver. Os resguardos são pequenos momentos que não são vividos mais intensamente por todos.

Desde 1994, trabalho com educação junto ao meu povo. Quero construir uma escola do jeito do povo Krahô, quer dizer, com cara Timbira. Nossa educação é diferenciada, mas na prática isto nunca aconteceu. Como professora, acredito que a escola poderia se adequar e ter o aprendizado dos Cupen, que precisamos conhecer para lutarmos por nossos direitos e contra outros massacres, mas precisamos ser respeitados na nossa educação, que acontece quando se vivem os resguardos, quando se está no mato com os velhos e velhas.

Protestos nus na África, o digital e o humano

Naminata Diabate

Traduzido do inglês

Em 2 de setembro de 2024, uma conta no X me marcou (@NaminataDiabate) com notícias sobre um protesto de ativistas seminuas chamado #SayNoToCorruptionInUganda [Diga não à corrupção em Uganda]. A postagem trazia uma série de vídeos e fotos que retratavam três jovens manifestantes seminuas marchando agressivamente rumo ao parlamento em Kampala, Uganda, para denunciar a corrupção, promover a transparência e, o mais importante, exigir a renúncia da presidente do parlamento, Anita Among, que respondia a graves acusações de corrupção. Um desses vídeos, de apenas trinta segundos, mostra as ativistas Kobusingye Norah, Kemitooma Nyirabagabo e Aloikin Praise Opoloje com os seios, o rosto, as coxas e a roupa de baixo pintados com as cores da bandeira de Uganda. Suas peles nuas servem de tela para inscrições como “Abaixo a corrupção” e “Por nossas crianças”. Enquanto caminham resolutas na direção da Assembleia Legislativa, as três mulheres cantam em uníssono: “Salvem as mulheres, salvem as crianças, chega de corrupção”. Uma delas segura uma bandeira de Uganda, e as outras duas seguram cartazes nos quais se lê: “A corrupção me fodeu TANTO que vim aqui chorar”, “UGANDA NÃO É POBRE, estão roubando nossa riqueza”.1

Esses chamados, clamores e acusações, somados à vulnerabilidade e resistência das ativistas anticorrupção, constituem uma forma de humanidade como prática para a transformação social. Inúmeras plataformas de mídia social postaram, repostaram, curtiram, não curtiram e compartilharam imagens e vídeos, e criaram hashtags (#AnitaMustResign, #March2Parliament, #StopCorruption [AnitaDeveRenunciar, MarcheAoParlamento, PareACorrupção]), produzindo um discurso secundário e amplificado que era e ainda é maior do que a performance inicial das manifestantes.

As Ativistas de Uganda pela Liberdade, como se autointitulam, através de suas mensagens, reivindicam que se dê uma atenção especial a crianças e mulheres, que são categorias sociais particularmente vulneráveis. Indivíduos, comunidades e instituições deveriam garantir seu bem-estar e segurança. De fato, a sofisticação de uma comunidade deveria ser julgada com base em quão bem ela lida com seus dissidentes e seus membros mais vulneráveis.

Conforme as ativistas se aproximavam do parlamento, que tencionavam invadir, agentes de segurança frustraram seu intento, prendendo-as por volta do meio-dia. Mais tarde, elas foram levadas

até um corregedor, negaram as acusações que lhes foram atribuídas (perturbação comum, que fere a Lei do Código Penal Ugandense), não conseguiram obter direito à fiança e assim ficaram detidas até 12 de setembro. A prisão, a acusação e o modo como elas foram tratadas receberam uma acolhida ambígua do povo, especialmente online, onde os pontos de vista variaram consideravelmente – de comemorativos a neutros ou simplesmente denunciatórios, sugerindo possíveis debates sobre o significado da nudez na dissidência pública. Esse protesto nu e a consequente tentativa de invasão são o resultado de uma série de manifestações anticorrupção feitas a partir de julho de 2024, quando vieram à tona acusações contra agentes do alto escalão do poder público, incluindo a presidente do parlamento Anita Among. Em maio de 2024, a Associated Press noticiou que os Estados Unidos haviam imposto sanções a ela, ao marido e a outros agentes devido a supostos abusos de direitos humanos e corrupção grave.2 O Reino Unido também seguiu o exemplo, afirmando que Among detinha bens em seu território que não teriam sido declarados às autoridades. Ambos os países a proibiram de viajar. O presidente Yoweri Museveni – que está no poder desde 1986 (quase quatro décadas) e que abriu sindicância após a pressão de instituições internacionais –, no entanto, deixou de aprovar sanções domésticas para proteger aliados políticos influentes. Em 2024, a ONG Transparency International rebaixou a classificação de Uganda no índice de percepção da corrupção. No fim da lista, Uganda ocupava a posição 141 de 180 países,3 o que provocou revolta popular e exonerações. O mandato de quarenta anos de Museveni e sua atitude pusilânime ao lidar com a má administração de recursos que podem estar a serviço dos interesses da elite política, social e financeira são uma forma de desumanização de seus compatriotas ugandenses.

Essa alegação e o ato extremo do protesto – isto é, a humanidade como prática humanizadora – refletem a força e a visão de uma das ativistas, Aloikin Praise Opoloje. Nascida em uma família de camponeses no leste de Uganda, Opoloje explica os profundos efeitos da corrupção em sua comunidade: “Na época em que fui compreender a palavra ‘corrupção’, já devia ter visto mais de 1999 formas dela”,4 disse na edição de novembro de 2024 da Convenção de Direitos Humanos em Uganda. O fórum de sua exposição indica que os humanos e seus desafios e potencialidades estão no centro de todos os esforços. Contornando as provações de sua origem, Opoloje tornou-se estudante de direito. Em 2023, quase perdeu a

vida ao parir sua filha, confinada em uma ala lotada da maternidade com três outras mães em apuros e recebendo cuidados de uma parteira sobrecarregada e dois estagiários sem treinamento. “Fiquei lá deitada por 45 minutos sem ser suturada. Quando minha mãe pediu ajuda à parteira, ela respondeu: ‘O que você quer que a gente faça?’. Tivemos que suborná-la com 5 mil Shs para conseguir suturas às escondidas”, contou Opoloje. E concluiu: “Agora, para mim, o que me fez perceber isso foi quase ter perdido a vida em uma cama de hospital. Foi ter minha vida vendida por 5 mil Shs, que é o que a maioria de nós, ugandenses, vale”.5 Uma vida barata, uma vida barateada, uma vida descartável – uma vida, portanto, desumanizada. Beira o desumano o fato de Museveni e outras figuras públicas se recusarem a reconhecer essas histórias perversas de corrupção que beiram a desumanização.

No entanto, para contrapor-se à incapacidade dos agentes eleitos para implementar medidas de governança, incluindo acusar os infratores criminalmente, o povo por fim tomou as ruas, na esperança de expressar sua insatisfação e clamar por transparência e pela consagração de seus direitos enquanto cidadãos e humanos. Um dos protestos foi realizado em julho de 2024, ocasião em que dezenas de jovens marcharam em direção ao parlamento, cantando “Anita tem que sair”.6 Forças de segurança prenderam quinze manifestantes e os colocaram em veículos de estilo militar. Durante meses, manifestações não violentas – realizadas ou apenas planejadas – foram reprimidas e frustradas, respectivamente, devido à inabilidade dos organizadores em garantir autorização adequada. Em vez de acatar as justas exigências de seus colegas –humanos e cidadãos –, Museveni negou-lhes a humanidade/racionalidade/subjetividade ao descartá-los como “agentes financiados pelo estrangeiro” e “elementos que trabalham para interesses estrangeiros” e que estão brincando com fogo.7 Tivesse o presidente reconhecido nos seus dissidentes – humanos e racionais – seres capazes de avaliar as próprias condições de vida e de expressar o que esperam de seus líderes, Museveni não os teria infantilizado, como se fossem incapazes de tomar decisões sensatas. Tratar adultos mentalmente capazes como crianças de raciocínio ainda não desenvolvido é um método de desumanização.

As mulheres que se manifestaram contra a corrupção, impulsionadas por sua vulnerabilidade e por um acentuado senso de urgência, resolveram então intensificar sua dissidência mobi-

lizando uma incivilizada autoexposição e agressividade coletivas. Essa estratégia alcança vários objetivos que não se anulam uns aos outros: oferece resistência contra a regra irrestrita, sinaliza vulnerabilidade, expressa ira, envergonha Museveni e sua classe dirigente, faz pressão sobre quem toma decisões, usa o corpo como forma de administração de conflitos, apresenta queixas contra a má administração de recursos, mobiliza o poder da sexualidade para uma maior visibilidade e guia o elemento disseminador das plataformas de mídia social a fim de arregimentar o apoio de instituições nacionais, regionais e transnacionais.

Por convenção, destacar a vulnerabilidade (autoexposição do corpo) e oferecer resistência (autoexposição) é visto como antitético. No entanto, que tipos de criatividade humana e atuação política surgem quando se vai além da dicotomia a fim de reformular a resistência como algo que deriva da vulnerabilidade? Qual é a resistência entre a vitória e a liberdade? Os corpos expostos de mulheres seriam sempre vulneráveis? Ao explorar essas questões, parece que a vulnerabilidade (física, psíquica, ideológica e visionária) reforça e sustenta a competência de contestar práticas injustas. Pode-se até mesmo pressupor que, sem a vulnerabilidade em todas as suas formas, a resistência/contestação na forma de deliberação torna-se dúbia, insustentável, corrupta e talvez falida. Por outro lado, a resistência gera mais vulnerabilidade, já que o poder a que se opõe não cede imediatamente. Na verdade, pode reagir com arrojo, criando múltiplas estratégias administrativas, como eu demonstro em meu livro Naked Agency: Genital Cursing and Biopolitics in Africa [Agência nua: Maldição genital e biopolítica na África], publicado pela Duke University Press, em 2020. Foi exatamente assim que o protesto de 2 de setembro se desdobrou. A resistência e a vulnerabilidade não deveriam ser consideradas antitéticas; são co-constitutivas. A capacidade de reconhecer a própria vulnerabilidade e reunir forças para expô-la é um exercício de humanidade, tal como o que centenas de milhares de mulheres fizeram ao longo de décadas desde o contato colonial.

Não surpreende que a relação entre resistência, vitória, liberdade e humanidade seja instável. A vulnerabilidade das ativistas anticorrupção – mas também seu poder de criar estratégias para uma manifestação pela transformação social – é ignorada por alguns posts nas mídias sociais que penalizam as ativistas por recorrerem a um gesto baixo, desavergonhado e antifeminino. Contudo,

uma interpretação diferente seria vê-las como se elas dirigissem uma forma de vitória e de liberdade contra um sistema que parece projetado para mantê-las sem esperança/humanidade. Em suma, elas mostraram uma sofisticada racionalidade política com seu afrontoso desnudamento e sua tentativa de invasão, além de usar vários componentes dos kits de expedientes já comprovados por outros movimentos sociais. Consideremos esses passos, sem os quais uma ação contestatória não passa de um exercício de caos e fracasso:

1. articular o propósito e os objetivos do ato;

2. organizar um grupo e atribuir funções;

3. planejar o ato, incluindo decidir o formato (sentadas, gesto de desnudamento, boicote etc.), escolher hora e local, providenciar uma autorização e preparar planos de contingência;

4. preparar mensagens e materiais, incluindo a criação de slogans, cantos, símbolos, cartazes, panfletos, zines; desenvolver pontos de discussão e comunicados à imprensa; usar mídias sociais para mobilização: hashtags, vídeos etc.;

5. abordar diretrizes e preocupações de segurança, garantir acessibilidade e conseguir assessoria jurídica;

6. no dia combinado, repassar preparativos e lista de presença antes do ato, e manter o foco no propósito; e, caso tudo dê certo, o último passo:

7. dar prosseguimento, o que consiste em, entre outras tarefas, reunir-se com a equipe de organização, agradecer aos participantes, compartilhar registros do evento e manter o ímpeto.

A nudez insurgente das Ativistas de Uganda pela Liberdade seguiu boa parte desses passos, mas não concluiu a lista com base no cenário ideal, já que elas acabaram sendo presas. No entanto, seu ato ajudou a estimular outros, a construir uma coalizão e a trazer os holofotes para a causa. Durante a prisão, várias organizações de direitos humanos militaram para que elas fossem soltas. Mais importante,

as ativistas mantiveram o ímpeto com sua disponibilidade para falar com as mídias tradicionais e aparecer nas mídias sociais. Em fevereiro de 2025, o The Monitor (Uganda) publicou um artigo com o impressionante e afrontoso título “Ícone de protesto da geração Z: Vamos todos morrer, afinal”.8 A imagem principal retrata as três ativistas anticorrupção de pé, sorrindo, encarando a câmera. Enquanto duas delas levantam as icônicas mãos da vitória, uma segura um papel ilegível.

Graças às mídias sociais, conheci o #SayNoToCorruptionInUganda. Desde a publicação de meu livro, minha conta no X tem sido constantemente marcada com notícias de protestos nus realizados em todo o globo. Isso significa que #SayNoToCorruption InUganda se beneficiou tremendamente da hipervisibilidade proporcionada pelas mídias digitais. Desde a democratização e penetração da mídia em meados dos anos 2000, o desnudamento afrontoso de mulheres tem recebido atenção renovada e maior visibilidade. A criação e distribuição de conteúdo via TikTok, X, WhatsApp, Facebook, Instagram, YouTube e sites similares inspiraram boletins de notícias e o trabalho de ativistas. A midialidade e a digitalidade são instrumentos potentes por três motivos:

1. sua capacidade de evocar emoções fortes;

2. sua portabilidade, já que inerentemente alcançam públicos maiores com mais velocidade e facilidade; e por fim

3. os vários lugares em que aparecem, acessados por meio de celulares, tablets, notebooks, computadores e TVs, levando à digitalização da vida.

Um mundo visualmente saturado pode ser qualificado como a era da superexposição física e psíquica. No entanto, antes do momento em que vivemos, mulheres de dezenas de países foram às ruas sem roupa ou mostraram seus corpos nus como forma de resistência durante graves crises nacionais – sociais e políticas – a fim de punir agentes que foram eleitos. A autoexposição coletiva incivilizada foi posta em movimento em centros urbanos por mulheres de todas as idades, níveis de instrução e ocupações: viúvas, funcionárias públicas, mães, vendedoras de rua, estudantes universitárias, jovens e idosas. Isso revela o clima social e político quase desumanizador

que leva algumas mulheres a empregar aquilo que elas entendem como a sua arma mais letal.

Contra-ataques hostis às manifestantes, bem como ameaças jurídicas, prisões, ataques verbais, brutalidade física e até assassinato, refletem ainda mais a severidade das condições que provocam o gesto. Na verdade, a atuação nua como forma de administração de conflitos ocorre em contextos tão diversos como em casos de (suposta) injustiça eleitoral, posse de terras, ganância corporativa, brutalidade policial, importação de lixo tóxico estrangeiro, estudos clínicos antiéticos conduzidos por empresas farmacêuticas e políticas neoliberais vistas como adversas.

Paradoxalmente, a esfera digital participa de práticas humanizadoras e desumanizadoras de mais maneiras do que este espaço me permite expor. Por meio das mídias sociais, as ativistas aprendem, assimilam e adaptam abordagens vindas de outros contextos, construindo assim um vínculo compartilhado, ainda que tácito, de vulnerabilidade e esperança.

Simultaneamente, essa perspectiva promissora desenvolve um aspecto sinistro da internet. Graças à sua capacidade de compartilhamento, assim que as imagens das mulheres nuas são capturadas, classificadas, investigadas, arquivadas e publicadas na esfera digital, elas ficam com pouca margem para prever o resultado de sua primeira intenção. Conforme as fotos de corpos viajam através do tempo e do espaço e por mídias, plataformas e linguagens, tais imagens sofrem uma incansável onda de distorções, reações empáticas, confusões, reações quase sempre inconsistentes e deturpações. Semanas, meses, anos, décadas e ainda muito depois do evento, várias entidades podem continuar a deliberar sobre as imagens desencarnadas e com frequência descontextualizadas das ativistas. É o caso das mulheres seminuas contra a corrupção em Uganda. É desnecessário reiterar o fato de que a tecnologia digital aprimorou a humanidade ao construir pontes e melhorar a comunicação e a visibilidade. As promessas da digitalidade de acabar com a falta de liberdade, de justiça e de igualdade, no entanto, foram deixadas de lado pelo tecnocapitalismo e pelo capitalismo digital. Seguindo a lógica corporativa da acumulação absoluta, informações e imagens biológicas são capturadas, coletadas, classificadas, exploradas, modeladas, interceptadas, armazenadas, otimizadas, filtradas e convertidas em dados. As manifestantes, seus aliados e outros participantes oferecem livremente imagens e vídeos do protesto às

plataformas de mídia social para amplificar a mensagem das ativistas ou para dar um exemplo dos métodos repressivos de Museveni. As empresas que detêm essas plataformas – Meta, ByteDance Ltd., X Corp., Google – valem bilhões de dólares, e, por sua vez, transformam emoções, imagens, gestos, comportamentos, opiniões ou discursos de seres humanos, com frequência obtidos “livremente”, em amostras, dados, mercados e “bancos” facilmente exploráveis para a acumulação do lucro capitalista neoliberal e global.

A hiperdigitalização conduz à iterabilidade. Assim, acessar as imagens de Kobusingye Norah, Kemitooma Nyirabagabo e Aloikin Praise Opoloje resulta em revivê-las. Cada clique em suas fotos ou vídeos transforma sua manifestação e sua prisão em uma re-performance. As Ativistas de Uganda pela Liberdade não protestaram só uma vez; ainda estão protestando, manifestando-se, resistindo, ad infinitum. Resistem a cada vez que alguém reproduz seus vídeos ou vê suas fotos. Assim como se projeta um filme pela segunda ou terceira vez e aí talvez se vivam emoções mais intensas e uma maior identificação com os atores, as mídias sociais podem aumentar a potência desses atos de protesto, fazendo-os mais memoráveis de maneiras antes indisponíveis.

Conclusão

O ato das mulheres ugandenses contra a corrupção revela a dinâmica mutuamente complexa da des(humanização). Por um lado, a exploração, a corrupção e a recusa da subjetividade/racionalidade representam uma desumanização. Por outro, a contestação, a expressão da resistência e da vulnerabilidade levam a um exercício de humanidade/humanidade como prática. A natureza contínua da insurreição e da contrainsurreição reflete genuinamente a própria noção de (des)humanidade como prática. Esses processos precisam ser praticados porque sua cristalização (intencional ou não) sinaliza o fim da humanidade tal como a conhecemos, e isso precisa ser impedido a qualquer custo. Para que a humanidade sobreviva, ela precisa – e deve – ser posta em prática.

1 Destaques no original.

2 Associated Press, “US Sanctions Uganda’s Parliament Speaker, Her Husband and Others Over Corruption and Rights Abuses”, US News, 30 maio 2024. Disponível em: www.usnews. com/news/us/articles/2024-05-30/us-sanctions-ugandasparliament-speaker-and-others-over-corruption-and-rights-abuses. Acesso em: 2025.

3 Agence France Presse, “Ugandan Leader Says Anti-corruption Protesters ‘Playing With Fire’”, VOA, 20 jul. 2024. Disponível em: www.voanews.com/a/ugandan-leader-says-anticorruption-protesters-playing-with-fire-/7706564.html. Acesso em: 2025.

4 URN, “Aloikin Praise Opoloje ‘The Nude Protestor’ What Drives Her?” The Observer, 6 dez. 2024. Disponível em: observer. ug/news/aloikin-praise-opoloje-the-nude-protestor-what-drivesher/. Acesso em: 2025.

5 Ibid.

6 The Daily Monitor, “Security Operatives Have Intercepted About Fifteen Protesters Chanting ‘Anita Must Go’ at Railway Grounds as They Attempted to March from Nasser”, em Facebook, 25 jul. 2024. Disponível em: www.facebook.com/watch/?v=169651 9801192520. Acesso em: 2025.

7 Agência France Presse, op.cit.

8 Enock Wanderema, “Gen Z Protest Icon: We’re All Going to Die, Either Way”, The Monitor, 2 fev. 2025. Disponível em: www. monitor.co.ug/uganda/news/national/gen-z-protest-icon-were-all-going-to-die-either-way-4910106#story. Acesso em: 2025.

Horizonte de plenitude

Hervé Yamguen

Traduzido do francês

Eles-e-elas

Ao amanhecer

Depois de um tempo de atenção aos seus sonhos

Olham a profundidade do céu e as copas das árvores

E desafiam aqueles que os rodeiam

E que correm perdendo tempo

A erguer os olhos

A abrir seus sentidos

A ver a bela lua falar da sabedoria da lentidão

Eles-e-elas

Dormiram com todas as feridas no coração

Que os remodelaram para se tornarem

Seres abertos

Portas, janelas

Conscientes de todas as cores em seus ventres

Eles-e-elas

Se encontraram e se uniram

Num juramento ao redor do fogo

No turbilhão deste mundo a ser consertado

Observando o céu

Depois percebendo sinais de chuva

Pela densidade das suas palavras

Eles-e-elas

Se reconheceram cantando nus

Pois sua embriaguez de alegria está nesta nudez

De estar nos ventos

De serem sombras entre as sombras

De serem um cruzamento de beleza

Que não possui o que torna hediondo

Eles-e-elas

Levados por um diálogo fecundo com os crepúsculos

E as manhãs encantadas

Vão admirar as teias de aranha

Para se tornarem aranhas construtoras

De um horizonte de plenitude

Manter-se no centro de um horizonte de plenitude

É formar um círculo de mãos abertas até o infinito

Instantes de estações

Com a chuva e as pedras

E a terra e as árvores

E todas as palavras que não foram ditas

E só estiveram lá para dizer

Como vibrar ao essencial

Que alimenta a vida

E multiplica todos os seres vivos

Um horizonte de plenitude

Está nas entrelinhas dos provérbios

Que ligam nossos gestos à criação da paz

Com tudo que, à nossa volta, somos nós

Mergulhar num horizonte de plenitude

É cuidar do que estremece nos silêncios

É ter tempo

Para saborear os frutos

E plantar seus grãos

Para cuidar do tempo dos grãos

Tornar-se milhares de árvores

Aprender sobre si mesmo

Semear-se como abundância

Em florestas carbonizadas e poluídas

Tornar real um horizonte de plenitude

É espalhar as belas músicas do mundo

Que nos tornamos nós mesmos numa dança de fogo

Com os amanheceres e os crepúsculos

É abrir as mãos como milhares de pássaros

Para nada reter

A não ser o perfume de luz e alegria

Estar com formigas, borboletas, peixes

E homens-cores-vitalidade

De bananas e mamões naturais

No cansaço e nas doenças

No meio de paisagens devastadas

Quantos ouvem

Nas profundezas da manhã

O cantar dos galos

E vivificam o sangue

Com a densidade do silêncio noturno?

No meio de milhares de aromas

Enquanto as sirenes soam

Numa multidão que corre em todas as direções

Eles-e-elas

Agitados pelos seus mortos

Fabricam narrativas para transmitir

A memória do cuidado de tudo o que treme nos ventos

Como abelhas

Eles-e-elas têm alma e coração

Para tecer palavras ardentes

Fazer jus às experiências de beleza

Que tornam alegre sua maneira

De participar da reparação

Das rachaduras nas entranhas das paisagens

Quando eles-e-elas

Ouvem os sons de fora

E as palavras dos seus semelhantes

Cada dia é uma abertura para novos mundos

Suas respirações ritmadas pela música

Das suas longas viagens

Fazem deles oxigênio

Suportes de saberes e uma bússola

Para crianças caminhando

À bela luz avermelhada do nascer do sol

Vórtice Recitação da passagem

Edimilson de Almeida Pereira

...devemos falar da tradição não como uma necessidade absoluta e inalterável, mas como metade de uma dialética em evolução – sendo a outra parte o imperativo da mudança.

Ium certo mestre-azul-do-blues (duke ellington) disse ou parece que disse ou disseram que ele disse e continuo dizendo que ele disse que “o blues é sempre cantado por uma terceira pessoa; aquela que não está ali”. a história, segundo a terceira persona, é uma travessia. contra os muros & as torres de comando, quem narra faz-desfazrefaz o road movie da memória.

– quando não há imagem nem íris o que será uma língua um corpo aprende a esquecer o lugar de sua ancoragem.

do fundo infausto (a história) emergem barcos artefatos de captura e também a sintaxe de outro mundo (qual paisagem?) expulsando a Lei Ex Machina inimiga do sonho. – quando não há febre nem cerca o que é humano um sílex uma planta esquece o apreendido para aprender de novo

da história (escuro oceano) se erguem vozes ritmos de fala e também o concerto de outra máquina (o mundo) extraindo da Morte o signo que respira a experiência da desordem imposta pelo sistema de exploração

(complete a palavra não aniquile o poema)

exige do artista menos fome e mais técnica?

Tudo isso, exceto o regime fabril?

(marque um X no dilema, não na resposta)

– quando não há sacrifício nem arma do alto da cabeça uma fênix-umbigo se aparta do seu continente para reencontrar

no mar (de rubras histórias) outra linguagem-húmus

hino e também silêncio – findo o precipício marinho, o mundo sem norte ou sul é a casa-em-viagem.

a experiência da (des)ordem explorada na vertigem do

(não complete a palavra, libere o poema)

deseja mais do que isto ou aquilo. Nada, nada menos do que os arrepios.

(não perca tempo, o dilema é o começo)

“aquele que não está ali” – enraizado na errância – tece seu canto: contra a blitz na memória         A MEMÓRIA/ contra o desprezo ao que dançamos         A DANÇA/ contra o repúdio ao que falamos   A FALA/ contra o arame farpado LES VOYAGES

nós, os PASSANTES por essas calles, irmãs das nossas pelo comércio, abandono & filhos – ouvimos a sinfonia do Caos nos órgãos de segurança.

tantas ideias e corpos se cumpriram nessa cidade – ela se sentirá viúva se eles forem expulsos.

o Especulador que tramou vingança ergueu paliçadas e comprou o parlamento nos deve

uma noite no COFFEE COTTON CLUB uma festa com GOLD TOBACCO COOL uma frase sem DEATH PRISON BLOOD

por ventura, nessa cidade endividada de vítimas, quem passa permanece com seus ossos de marfim e livros de areia.

os PASSANTES estão ausentes nas fotografias, mas suas mãos aliviam as cãibras dos palácios. passaram-se anos e os caibros dos navios se converteram em braços.

nessa cidade de florestas ocultas e âncoras cravadas no ouvido, algo se anuncia: do mar chegam notícias da morte em festa contrária à vida.

mas os PASSANTES – com seu pensamento de ouro – ferem de êxtase o Qorpo no Caos.

a canção entoada por alguém que não está presente não serve aos ouvidos de mercador – por onde ressoam as notas que faltam? o canto mais vivo que o rapto fala de perto a quem

escreve com fúria   o exílio dança   na ilha e se diz outro   em si mesmo

– quando humano é ser fênix uma língua inaugura o trópico entre montanhas, uma vértebra em flor no oceano.

– quando a fênix tem mil sombras humano

é ser a forma infinita das falésias – pulso, aresta, linhagem sem fronteiras.

– quando a língua falafênix zen-cabeças-diquixi reinventam o road movie a furta-cor o solo-mãe do mundo

1. Chinua Achebe, “Change and Continuity in Education”, em Daily Times, 20 jan. 1977.

Ateando fogo ao arquivo

Panashe Chigumadzi

Traduzido do inglês

Ukutshisa: queimar, atear fogo, regenerar,1 renunciar ao ser material em prol do ser histórico.

Sth… re-lembremos 2 15 de setembro de 1881, sete dias depois da lua cheia. Sth, enquanto uMagwegwe Fuyane, induna do rei Lobengula, ateia fogo ao palácio do rei, aos aposentos da rainha, ao Recinto Régio, aos galpões, celeiros, estábulos, cocheiras e até mesmo às carroças do pai do rei Lobengula, o finado rei Mzilikazi. Quando por fim sua tarefa está terminada, uMagwegwe, induna de koBulawayo, aperta a mão do missionário que o acompanhava e diz: “Ngliambile”, que quer dizer: “Estou com fome”.

Sth, uMagwegwe cumpriu bem as instruções do rei. Três semanas antes, o rei Lobengula informava ao seu povo que era um prazer transferir koBulawayo – que ele fundara em 1870 como a grande capital do Estado amaNdebele, a rainha das sagradas Colinas Matobo – de sua residência em Amatshe Amhlope, as Rochas Brancas perto das Colinas Matobo, para as colinas de Umhlabatini.3

Sth, koBulawayo deve queimar porque as capitais amaNdebele do rei nunca são permanentes. Nossos ancestrais nos ensinaram a humildade perante o cosmos, a natureza e o tempo. Não devemos tentar conquistar o cosmos, a natureza e o tempo por meio da permanência. Em vez disso, devemos viver em sincronia com eles, pois a continuidade, a eternidade e a infinidade sustentam o centro de nossa cosmologia e filosofia.4 Onze anos depois de chegar a Amatshe Amhlope e nos aproveitar de seu entorno, é hora de seguirmos em frente e de permitir que a natureza retorne para seu ritmo e se revigore.5

Sth… re-lembremos 3 de novembro de 1883, o clímax de Umvukela wamaNdebele, o levante de amaNdebele contra o povo de Rhodes. Logo antes de fugir para o norte, re-lembremos como o rei Lobengula instrui seu confiável induna Sivalo Mahlangu a ser o último a sair após atear fogo à sua capital koBulawayo.6

Sth, uMahlangu ateia fogo a quatro pontos e detona os paióis de munição de koBulawayo. Sth! Uma enorme explosão! A coluna de colonos de Rhodes desce ao inferno à medida que grandes colunas de fumaça ascendem aos céus.7 O ordenança do comandante da coluna cavalga direto até o centro do inferno mas não vê

nada além de centenas de cães correndo para lá e para cá. Desolado pelo saque perdido, o major Frederick Burnham, afamado mercenário e batedor estadunidense, vai registrar com pesar que o fogo:

havia queimado uma imensa quantidade de marfim e tesouro, junto com peles valiosas e chifres que [Lobengula] tinha acumulado em seus armazéns. Fizemos um grande esforço para apagar o fogo, mas foi impossível fazê-lo, e salvamos muito pouco do que deve ter sido uma das coleções mais extraordinárias já reunidas.8

Sth... Mas.

Um catador consegue salvar o iwisa do rei Lobengula feito de chifre de rinoceronte – “o grande knobkerrie do próprio Lobengula” – e o presenteia a Rhodes, que, apesar dos protestos de sua gente reclamando da falta de um corpo de água mais extenso, exige que o seu Bulawayo seja construído em cima das ruínas fumegantes do koBulawayo do rei Lobengula. Burnham chegará a dizer: “Pareceu especialmente adequado que esse emblema de autoridade passasse das mãos do mais poderoso monarca negro da África para as mãos do mais forte regente branco que já dominou o continente”.9

E foi assim que, enquanto os ventos de novembro espalhavam as cinzas da cidade régia de Lobengula, os mercenários da Companhia Britânica da África do Sul declararam-na a nova base da fantasia de Rhodes para uma rota da Cidade do Cabo até o Cairo.

E contudo… Não é o bastante.

Após séculos de terror, todos os colonizadores brancos compreenderam – a conquista militar é boa, mas a conquista espiritual é ainda melhor.

E assim, em meio à Umvukela-Chimurenga de 1896-1897 –a guerra anticolonial travada sob a profética liderança de médiuns espirituais amaNdebele e maShona –, uma manchete do New York Times declarava, em 25 de junho de 1896: “O Deus matabele é assassinado: Burnham, o batedor americano, pode encerrar o levante”.10 Em nome de Rhodes, Frederick Burnham, o afamado mercenário, mata o médium espiritual e líder amaNdebele, Umlimo, em seu santuário sagrado nas Colinas Matobo.

Re-lembremos julho de 1898: a Companhia Britânica da África do Sul enforca Mbuya Nehanda e Sekuru Kaguvi, médiuns espirituais shona, em Salisbury. Suas cabeças são ofertadas como

troféus de conquista à rainha Vitória e levadas ao Natural History Museum, em Londres, onde estão até hoje.

Porém. Não é o bastante.

Rhodes está tão obcecado com Matobo, um portal para o mundo ancestral e o ser histórico negros, que ele sacramenta sua conquista espiritual ao ordenar que seu próprio sepultamento seja feito em cima daquelas mesmas colinas ancestrais sagradas. Pois Rhodes teme tanto o mundo espiritual negro que oferece o próprio corpo, o próprio além-vida para profaná-lo, seu próprio ser material e espiritual, para que a branquitude não pereça e tenha vida eterna.

Ao sepultar-se no santuário sagrado ancestral das Colinas Matobo, Rhodes personifica e sacramenta a eterna profanação da vida física e espiritual negra, e consagra a natureza divina do colonialismo – o ritual contínuo da violência antinegra é necessário para a perpetuação psíquico-espiritual do mundo branco. 11

Sth… re-lembremos 18 de abril de 2021, o vento sudeste sopra enquanto um fogo na mata é conflagrado nas encostas da Table Mountain e alcança os exóticos pinheiros-mansos que Rhodes insistira em plantar em solo indígena, desce até os bairros densamente povoados da Cidade do Cabo, ao Rhodes Memorial Restaurant, ao campus central da Universidade do Cabo, desaloja 4 mil estudantes e logo engole a biblioteca, queimando a Biblioteca de Estudos Africanos e seu material de arquivo de raras coleções africanas. O fogo nos pinheiros de Rhodes reduz a História com H maiúsculo – livros raros, volumes difíceis de encontrar, mais de 1300 subcoleções de manuscritos únicos e documentos pessoais, uma coleção de panfletos com 26 mil títulos (dos quais oitocentos são títulos raros ou antigos em línguas europeias e africanas publicados antes de 1925) e uma das maiores coleções de filmes africanos do mundo12 – a cinzas. Por cima do crepitar do fogo ouve-se uma cacofonia de gritos:

“Uma perda incalculável!”

“Uma tragédia!”

“Isto é uma limpeza! Os ancestrais falaram!”

“Rhodes caiu pelo fogo!”

“Atearam fogo ao nosso Futuro!”

“O fogo nos pinheiros de Rhodes completa o fogo do movimento Rhodes Must Fall [Rhodes deve cair].”

Sth… re-lembremos julho de 2019, a palestra inaugural da série dedicada à rainha Loziba, na National Gallery of Zimbabwe. Agora eu estou respondendo a perguntas relacionadas a minha conferência sobre os retratos de Ndlovukazi Lozikeyi Dlodlo, Last King of the Ndebele [Último rei dos Ndebele], a qual conduziu o povo dela depois que seu marido, o rei Lobengula, partiu durante a Umvukela wamaNdebele de 1893.

“Por que você está usando arquivos coloniais para contar a nossa história?”, uma jovem exige saber de mim. A galeria, lotada de jovens e velhos de Bulawayo, murmura em concordância.

Discorro sobre arquivos e acesso até que o historiador Pathisa Nyathi intervém:

“Quantos de vocês viram o iwisa leNkosi uLobengula?”

O silêncio da galeria é a resposta.

“Vocês não viram porque ele foi levado por Rhodes depois que Nkosi uLobengula incendiou sua capital koBulawayo ao fugir da guerra com a Companhia Britânica da África do Sul. Depois que os britânicos nos conquistaram, a cultura material africana foi demonizada e desprezada, portanto nosso povo não quis saber dela. Quando vocês perguntam sobre arquivos, precisam saber que a questão dos arquivos coloniais é uma questão de cultura material.”

Sth… re-lembremos que ambos os locais do koBulawayo do rei Lobengula foram queimados como parte das tradições cosmológicas e espirituais dos indígenas Nguni. As capitais régias dos reis amaNdebele nunca foram pensadas para ser permanentes. A filosofia de nossa cultura material africana exige humildade perante o cosmos, a natureza e o tempo, e portanto exige viver em sincronia com eles. Os amaNdebele mudavam-se quando seus reis morriam ou quando a sincronia de seus ambientes naturais – relva, caça, água – se esgotava. Sempre que os reis amaNdebele transferiam suas capitais, os locais anteriores eram queimados até as cinzas, não deixando marca de sua existência corpórea. Capitais régias eram espiritualmente fortificadas. Não se podia permitir que esses remédios caíssem nas mãos de malfeitores e por isso tudo era incendiado quando os reis partiam. Nas palavras de uNyathi: “Um assentamento que foi abandonado traz a assinatura cultural das pessoas que outrora habitaram ali”. Quer dizer, o assentamento traz isithunzi seNkosi. Em isiNdebele, isithunzi é a “penumbra”, “sombra” ou “aura” – isto

é, a aura que as pessoas projetam quando vivem sua vida, a sombra que se expande quando uma pessoa faz o bem ou diminui quando faz o mal. Como pessoas negras, estamos sempre conscientes da sombra que projetamos, e assim protegemos ferozmente nosso isithunzi como nossa reputação, “dignidade”, “integridade” e, por fim, o legado que deixaremos para trás. Para além do conceito de uma “aura”, isithunzi é mais bem capturado existencialmente como “ser”. A capital do rei é a personificação de isithunzi seNkosi, o ser do rei. Assim como o corpo do rei, a capital do rei nunca pretendeu ser permanente. Capturar uma parte dela é capturar o ser dele. É isso que os amaNdebele desejavam proteger quando queimavam um assentamento abandonado – a captura de seu ser. Não se podia permitir que seu ser caísse nas mãos de malfeitores, por isso tudo era incendiado quando o rei partia. Os assentados também compreendiam isso. Daí seu júbilo quando encontraram o iwisa do rei Lobengula entre as cinzas e o entregaram a Rhodes, que queria usurpar o ser material, espiritual e histórico dos amaNdebele.

Nas palavras de uCedric Robinson ao refletir sobre a infame Matança do Gado de 1856 pela profetisa amaXhosa uNongqwause (a destruição da providência encarnada em meio às Guerras Britânicas de Espoliação), no mal compreendido e portanto controverso capítulo 7 de Black Marxism (que trata da natureza da Tradição Radical Negra), ukutshisa é então “a renúncia do ser de agora em detrimento do ser histórico; a preservação da totalidade ontológica concedida por um sistema metafísico que nunca permitiu a propriedade em nenhum sentido, seja físico, filosófico, temporal, legal, social ou psíquico”.

Incendiar koBulawayo era renunciar ao ser de agora em prol do ser histórico.

Incendiar koBulawayo era renunciar ao ser material em prol do ser histórico.

Incendiar koBulawayo era preservar a totalidade ontológica de nosso povo.

II.

Ukukhumbula: sentir falta, lembrar, re-lembrar, ou re-lembrar o ser histórico.

Sth… re-lembremos março de 2015, enquanto uma grua ergue a massa de bronze de sua base, a multidão se aglomera pronta

para a Derrubada de Rhodes e S’thembile Msezane ascende no espírito de Chapungu, o Grande Pássaro do Zimbábue, do qual oito peças em pedra-sabão foram roubadas depois que Rhodes encomendou a Grande Escavação do Zimbábue. Sete foram devolvidas; o oitavo pássaro ainda jaz no quarto de Rhodes no Groote Schuur Museum. Msezane não busca a dominação permanente da paisagem de nossos ancestrais. Em vez de erigir monumentos permanentes em linha com a arrogância de Rhodes, Msezane re-lembra a humildade de nossos ancestrais perante o cosmos, a natureza e o tempo: não devemos tentar conquistar o cosmos, a natureza e o tempo por meio da permanência – devemos viver em sincronia com eles, pois a continuidade, a eternidade e a infinitude unem nossa cosmologia e filosofia.13 Msezane re-lembra o ser histórico de nossos ancestrais; ela não se transforma em bronze, ferro ou barro, ela se transforma em espírito.

Assim como a música infinita que acompanha as cerimônias espirituais, a práxis filosófica da possessão espiritual – aqueles no presente se comunicando com aqueles no passado a respeito do futuro por vir – é a síncope dos ritmos do tempo, re-lembrando passado, presente e futuro em histórica simultaneidade. Nas palavras do ancestral John S. Mbiti:

Uma pessoa morre e no entanto continua a viver: é uma morta-viva, e nenhum outro termo descreve melhor… Elas pertencem ao período temporal do Zamani [passado] e, ao entreter indivíduos do período Sasa [presente], tornam-se nossas contemporâneas. O estado de possessão e mediunidade é de contemporanização do passado, trazendo à história humana os seres que estão essencialmente além do horizonte do tempo presente.14

Este é o arquivo vivo. O arquivo que existe para além da concepção ocidental do arquivo como um arquivo material. Este é o ser histórico que Rhodes buscou usurpar não só assassinando nossos médiuns espirituais, os arquivos vivos de nosso ser histórico, mas também sepultando a si mesmo nas sagradas Colinas Matobo, o portal para o nosso ser cosmológico.

Ukukhumbula – a prática de re-lembrar nossos ancestrais – é uma tecnologia arquivística intergeracional de memória histórica e preservação do ser histórico. É por isso que somos solicitados

a khumbula nossos ancestrais. A re-lembrar nossos ancestrais. Por nossa parte, solicitamos que os ancestrais nos khumbula. Que nos re-lembrem. É por isso que nossa gente lamenta aqueles que não têm parentes – você não vai ter ninguém para re-lembrá-lo, para fazer libações quando você morrer?

Ukukhumbula, lembrar-se, é uma forma ativa. Isto é, ukhumbula é um chamado para o ato de honrar. Você re-lembra/ sente falta de sua irmã, liga para ela e diz: “Ngiyakukhumbula”. Você re-lembra/sente falta da sua mãe, aparece na porta dela: “Ngiyakukhumbula”. Você re-lembra/sente falta da sua avó, vai até o túmulo dela e diz: “Ngiyakukhumbula”. Eu re-lembro você. Você está re-lembrando o ser dela.

Ukukhumbula – lembrar-se, a práxis do arquivo vivo é memória intergeracional. Na cosmologia africana, entendemos que a água é onde a memória vive. A água re-lembra nossas raízes e rotas. É por isso que a água é detentora da prática espiritual por toda a África e a diáspora africana. A água é mais do que dois terços da superfície da Terra – nossos corpos e nossos ancestrais re-lembram essa ciência e sua centralidade na vida, na morte e nos suspiros entre as duas. A água é a saturação de tudo o que já existiu. A água estava aqui primeiro, antes de muitas de nossas terras. A água detém a história e se comunica mais além de nossa memória recente. É por isso que, após quinhentos anos separados pelo mar, os ancestrais africanos são capazes de falar através de Toni Morrison quando ela assim descreve o ukukhumbula:

O ato da imaginação está atado à memória. Vocês sabem, eles aplainaram o rio Mississippi em determinados trechos, para abrir espaço para casas e terrenos habitáveis. Por vezes o rio alaga esses lugares. “Alagamentos” é a palavra que eles usam, mas na verdade não é um alagamento; ele está relembrando. Relembrando onde costumava ficar.

Toda água tem uma memória perfeita e está eternamente tentando voltar para onde estava. Os escritores são assim: relembramo-nos de onde estávamos, daquele vale que percorremos, de como eram as margens, da luz que havia lá e da rota que leva a nosso lugar de origem. É uma memória emocional – aquilo que os nervos e a pele relembram, bem como o modo como tudo surgiu. E um acesso de imaginação é o nosso “alagamento”.15

Morrison fala nas línguas dos ancestrais iorubás, que nos ensinaram que “os humanos são como a água, que sempre flui para seus inícios”. Re-lembrar é alagar o mundo como fazem os corpos de água. “Re-memorar” é viajar “a um lugar para ver quais restos sobraram e reconstruir o mundo que esses restos sugerem”. Se nos relembrarmos disso, nada que possuímos poderá se perder no fogo.

O aparente paradoxo é que a continuidade, a eternidade e a infinitude sustentam o centro da filosofia e da cosmologia africanas, e contudo isso não é alcançado por meio do ser material. Nossas cosmologias e filosofias africanas sustentam que, embora elas estejam intimamente conectadas, não podemos confundir o ser material com o ser espiritual ou histórico.

Onde está nossa humildade perante o cosmos, a natureza e o tempo?

Ateemos fogo à obsessão do Ocidente com o arquivo histórico como presença e permanência material – a conquista do cosmos, do tempo e da natureza. Vamos re-lembrar e re-imaginar16 o arquivo histórico para além da materialidade.

Viver em sincronia com o cosmos requer humildade perante os elementos naturais, não mais vistos como forças de destruição material, mas como forças de renovação espiritual: água como re-memoração, fogo como re-generação.

Ateemos fogo ao futuro, e alaguemos o mundo como fazem os corpos de água.

Ukutshisa: renunciar ao ser de agora em prol do ser histórico e preservar a totalidade ontológica de nosso povo.

Ukukhumbula: relembrar nosso ser histórico. Tshisani. Khumbulani. Renunciar ao nosso ser material. Re-lembrar nosso ser histórico.

Agradeço ao historiador Pathisa Nyathi por nossa discussão sobre o incêndio de koBulawayo em 1881 e 1893. Essa discussão e o vasto cabedal de conhecimentos de Nyathi sobre a filosofia e a cosmologia africanas foram inestimáveis.

1 “Re-generate”, com hífen no original, para enfatizar o jogo entre regenerar e gerar [generate].

2 “Re-member ”, com hífen, no original, e em todas as outras menções desse verbo, como ênfase para o jogo entre relembrar e membro, no sentido de pertencente a um grupo [member] [N.E.].

3 Henri Depelchin e Charles Croonenberghs, “Gubuluwayo, Aug. 28, 1881”; “Gubuluwayo, Sept. 20, 1881”, em Diaries of the Jesuit Missionaries at Bulawayo 1879-1881. Salisbury: The Rhodesiana Society, 1959, pp.80-81.

4 Pathisa Nyathi, Continuity, Endlessness and Eternity: Keynote Address at the International Conference on Communication and Information Science, set. 2018. Disponível em: www.culturefund.org. zw/post/continuity-endlessness-and-eternity. Acesso em: 2025.

5 Henri Depelchin e Charles Croonenberghs, op. cit.

6 Pathisa Nyathi, “Chief Sivalo Installed: A Long Established Link with the Ndebele Royalty”, Sunday News, 26 nov. 2016. Disponível em: www.pressreader.com/zimbabwe/sunday-news-zimbab we/20161120/281659664632979. Acesso em: 2025.

7 Alexander Davis (org.), The Directory of Bulawayo and Handbook to Matabeleland, 1895-1896. Bulawayo: Books of Zimbabwe, 1981, p.14.

8 Frederick Burnham Russell, Scouting on Two Continents. Londres: Willian Heinemann, 1927, p.144.

9 Id. ibid., p.152.

10 “Killed the Matabele God: Burnham, the American Scout, May End Uprising”, New York Times, 25 jun. 1896. Disponível em: timesmachine.nytimes.com/timesmachine/1896/06/25/108240032. pdf. Acesso em: 2025.

11 Seguindo o argumento de Frank B. Wilderson III de que a violência antinegra é necessária para a saúde psíquica do mundo, tal como articulou em suas memórias (Afropessimism. Nova York: Liveright, 2020).

12 Ver “The University of Cape Town’s African Studies Library, Ravaged by Wildfire, Needs Your Help”. Disponível em: lithub.com/ the-university-of-cape-towns-african-studies-library-ravaged-bywildfire-needs-your-help/. Acesso em: 2025.

13 Pathisa Nyathi, op.cit.

14 John S. Mbiti, African Religions and Philosophy. Nova York: Anchor Books, 1970.

15 Toni Morrison, “The Site of Memory”, em What Moves at the Margin: Selected Nonfiction. Jackson: University Press of Mississippi, 2008. 16 “Re-imagine”, com hífen, no original.

Paisagens temporárias

Thiago de Paula Souza

Este texto busca reunir algumas inquietações que tive ao me deparar com o convite para ser cocurador da 36ª Bienal de São Paulo, e com o desenrolar do seu processo de conceitualização, preparação e execução. Nele, busco entender e relembrar algumas sínteses que me ajudaram a navegar esses meses de intensa colaboração. Além disso, outros pensamentos que ajudaram a nortear a equipe conceitual estão presentes em textos desta coletânea que colocam o conceito curatorial em relação com diferentes campos de produção de conhecimento. Ela é lançada no contexto dos quatro volumes da publicação educativa desta edição da Bienal – que tratam de questões mobilizadas nas quatro Invocações1 – e também junto à abertura da exposição e ao lançamento de seu catálogo, com textos que se debruçam sobre cada artista e suas práticas. As pistas deste livro podem ajudar a encontrar, de alguma maneira, os múltiplos mundos em que habita a humanidade e como as práticas artísticas se relacionam a eles.

I. Síntese e escuta

Sentada em um banco de madeira, de frente para seu notebook, Simnikiwe Buhlungu se apresenta e começa a leitura do texto que havia preparado. Na TV ao seu lado, assistimos em looping a um trecho, sem áudio, do documentário Growing in Music [Crescendo em meio à música],2 de 2012. O filme está legendado e mostra uma criança que é incentivada a repetir o canto de uma mulher adulta, como uma espécie de educação musical.3 A menina parece um pouco tímida e talvez não compreenda o significado dos versos, mas aceita o desafio e os entoa. Ao mesmo tempo, Buhlungu aperta o play e, por alguns segundos, ouvimos as batidas repetitivas e a melancólica linha de baixo de “Can You Feel It”,4 um hit das pistas dos anos 1980. O vídeo segue em looping; Buhlungu fica em silêncio e aumenta o volume. Agora escutamos um enxame de abelhas, e, à medida que Simnikiwe volta a falar, o volume é gradualmente reduzido. Como uma contadora de histórias, ela aproxima a cena de música eletrônica negra de Chicago nos anos 1980 à polifonia da dança em zigue-zague das abelhas,5 às festas de casamento na África do Sul e aos ensinamentos musicais em uma família de griôs.

O filme segue em looping, mas agora com o áudio ativado. Aquelas cenas repetidas inúmeras vezes ganham mais significados: ouvimos, finalmente, suas vozes. Nas entonações variadas, a mãe

firmemente orienta a filha sobre o tom correto dos versos para que ela não apenas domine o canto, mas compreenda seu significado mais profundo. Aquela canção transcende o entretenimento: é um gesto de preservação de uma história familiar, de resguardo da memória cultural de um povo, transmitida de geração em geração. Em sua apresentação no primeiro encontro das Invocações, Buhlungu estabeleceu um paralelo entre os processos de síntese, repetição (looping) e mudanças de entonação, relacionando-os a modos de preservação da memória e da cultura de comunidades ou de períodos históricos. Ela traça um arco narrativo que conecta som, história, política e natureza, relacionando a síntese sonora – procedimento recorrente na produção musical – a outras formas de síntese, como a biológica, a química e a sociocultural. Dessa forma, ela delineia uma relação entre os diversos processos de “sintetização”:

1. os artificiais, realizados por dispositivos eletrônicos, como os sintetizadores na produção musical;

2. aqueles realizados por organismos vivos, como a produção de mel pelas abelhas ou a fotossíntese das plantas; e

3. os festivais, cerimônias, grupos de estudo e conferências.

Sua analogia entre a síntese em um aspecto mais social, como em celebrações, e a síntese operada por técnicas de produção musical, geradas pela manipulação de ondas eletrônicas, posiciona o som, através do canto, da poesia e do ritmo, como uma ferramenta fundamental de aprendizagem e de sustentação de lastros comunais entre o passado, o contemporâneo e o futuro.

A noção de síntese está ligada a formas de sustentação da vida. Seu uso – de maneira literal, ficcional e/ou figurativa – pode funcionar como um elemento relacional entre seres humanos, aparelhos eletrônicos e outros organismos vivos, além de oferecer uma bela imagem para a articulação de um pensamento artístico ou curatorial.

II. Da estranheza ao estuário

Quando recebi o convite de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung para integrar a equipe da 36ª Bienal de São Paulo, eu ainda estava

envolvido com a preparação do 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus. 6 Focado em questões sobre transformações sociais e da matéria, escrevi que

elegemos o calor, em suas variadas formas, como gancho conceitual e direcionamos nosso imaginário para reflexões sobre como esse elemento, presente em inúmeros mitos de criação em diversas sociedades, que possibilitou novos entendimentos sobre o tempo e o espaço, foi capaz de reorganizar ciclos de vida e morte e transformar paradigmas científicos.7

Como o nome indica, o objetivo principal do Panorama é apresentar um recorte da produção artística contemporânea do território brasileiro. A escolha do calor como chave conceitual foi uma maneira de tangenciar as questões políticas que permeavam os debates da cena artística contemporânea local8 e que são mobilizadas a cada nova edição da mostra. Parecia um gesto tacanho vincular práticas artísticas a qualquer ideia de nacionalidade. Não nos interessava pensar o Estado-nação, mas sim os territórios. É inegável que há certo imaginário que salienta a noção de calor como profundamente associada ao Brasil – da pegação ao fervor religioso, o elemento intersecciona questões ecológicas, sociais e todo um conjunto de símbolos culturais e midiáticos que forjam o país. Dessa forma, a apropriação curatorial do significado desse elemento, ou seja, uma exposição interessada na transformação de energia entre diferentes corpos ou sistemas, seria um conceito capaz de guiar o projeto sem que ele fosse capturado pelas demandas do circuito. Essa digressão serviu para situar meu pensamento quando recebi o convite de Ndikung. Foi a partir da primeira versão de sua proposta que emergiu a ideia central que guiaria a construção da exposição. O projeto original, estruturado em três segmentos,9 serviu como base para um tema bastante amplo e sincero: uma reflexão sobre a humanidade como algo a ser constantemente exercitado. É importante destacar que a proposta inicial de Ndikung, assim como o desenvolvimento do que seria nosso projeto curatorial, não se baseava em uma versão obsoleta da figura humana – aquela que estabelece o Homem (branco, rico, ht) como representante da espécie –, muito menos em uma visão idílica e não contraditória da experiência humana. Não há uma exaltação ou positiva-

ção acrítica da existência humana. O projeto insiste na escuta como uma prática fundamental para a manutenção e sustentação da vida. Ele sugere que as diferentes práticas artísticas podem operar como um chamado para ponderarmos novos sentidos para a humanidade. Minha contribuição como cocurador foi um processo gradual de amadurecimento e ajustes contínuos ao longo de meses. Inicialmente, precisava qualificar com precisão como minha perspectiva dialogaria com um projeto curatorial coletivo – não se tratava apenas de agregar ideias, mas de sintetizar um olhar que complementasse suas bases conceituais.

Desenvolver uma exposição que se propõe a discutir o exercício da humanidade diante da precariedade dos tempos em que vivemos me deixou inicialmente muito ressabiado sobre a contribuição que as práticas artísticas exercem na mudança, na formação ou ao menos no fomento de imaginários políticos. Fiquei ansioso para compreender como estruturaríamos o entrelaçamento mútuo entre arte e política diante da escalada de violência e instabilidade social ao redor do mundo. De quebra, meu questionamento central residia em algumas perguntas: Como relacionar meu interesse em artistas que trabalham com processos de metabolização da matéria a processos de síntese social, política e humana? Qual é a real contribuição que uma discussão sobre humanidades pode ter no presente sem reduzi-la a ilustração? Como abordar essa discussão de maneira coesa, sem recorrer a uma unidade totalizante? Qual é o lugar do desvio em nosso projeto?

Encontrei um estímulo crucial na leitura do ensaio “Nós é que somos a função”,10 de Joshua Chambers-Letson, texto que oferece uma chave singular para repensar o papel das práticas artísticas na construção de imaginários políticos radicais. Em determinado trecho, o autor argumenta que “a investigação humanística alinhada aos pensamentos não hegemônicos e engajada com a estética pode […] desempenhar um papel irruptivo na remodelação de nossos muitos mundos interconectados e em crise”. E continua, colocando em paralelo os trabalhos de Sylvia Wynter e Kandice Chuh: 11

Voltei nossa atenção para o interesse comum de Wynter e Chuh por um humanismo herético que poderia surgir “após o Homem” à medida que tento formar uma linguagem a partir do interior de nossa mais recente crise existencial. Trata-se de uma crise não apenas para as humanidades,

mas também para a própria forma da “existência humana”, descrita por Chuh como uma “relacionalidade constitutiva”, assim como se trata de uma crise para o planeta, uma vez que o Homem nos conduziu às raias da autoaniquilação militar e ecológica.

Para o autor, “a estética e as práticas estéticas que surgem sobretudo de uma posição minoritária desempenham, mais uma vez, um papel-chave nesse movimento”.

A proposta do texto de Chambers-Letson – que ecoa e amplia as ideias de Wynter e Chuh, questionando a noção ocidental de Homem como centro universal – se somou à palestra/contação de histórias de Simnikiwe Buhlungu e me reconduziu à leitura do poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo. Essa releitura acessou um lugar que eu já havia deixado de lado. Enquanto o subtítulo desta edição da Bienal (Da humanidade como prática) explicita, com transparência positiva, as intenções da pesquisa curatorial, o título, baseado em versos de Evaristo, introduz deliberada opacidade: Nem todo viandante anda estradas. Se o subtítulo afirma, a poesia carrega mais nuances – e é nesse entremeio que oferece o que há de mais interessante. Continuando os versos de Evaristo, “os mundos submersos” e obscuros que “só o silêncio da poesia penetra” podem ser fétidos, obtusos e teimosos. Os sons dessas paisagens enigmáticas por onde circula esse viandante12 podem ser desagradáveis, podem apresentar realidades de violência, exclusão e silenciamento. Quem vive neles pode não se adequar, ser tomado por ansiedades e pelo medo do desconhecido ou daquilo que lhe é estranho.

Essa noção orientou a Invocação #4, que teve o chamado “vale da estranheza” como fio condutor. Essa reflexão foi proposta pelo engenheiro robótico Masahiro Mori, que, nos anos 1970, investigou o desconforto da sociedade japonesa diante do avanço tecnológico – em especial, a reação pública à introdução de robôs e androides em contextos cotidianos. Para analisar como essas figuras eram percebidas, Mori ilustrou em um gráfico a relação entre a humanização das máquinas e a aceitação social. Quanto mais próximas da aparência humana, maior a aceitação, até um ponto crítico em que a semelhança se tornava perturbadora. Esse fenômeno não apenas capturou as ansiedades de sua época, mas serviu de ponto de referência para nossa curadoria, que buscou explorar como a tecnologia ainda

hoje evoca fascínio e repulsa, questão cada vez mais presente com o desenvolvimento de inteligências artificiais ligadas à linguagem. Em nossa pesquisa, partimos das referências citadas por Mori – como o teatro nô e o Bunraku (teatro de marionetes tradicional do Japão) –, mas Andrew Maerkle observou que “a poesia emergiu gradualmente como um modo mais vital de expressão, que articula o passado e o presente no Japão”.13 Concordo com ele que, das formas clássicas do nô ao hip-hop contemporâneo, a poesia revelou-se um fio condutor para discutir respostas culturais à tecnologia. Se o “vale da estranheza” nos alertou para os riscos da humanização artificial, a poesia ofereceu um contraponto: uma linguagem capaz de traduzir paradoxos, em que tradição e inovação coexistem sem apagar suas tensões. Longe de ser um impasse, essa tensão se converte em ode à diferença, reconhecendo que o mundo é tecido por infraestruturas distintas – mentais, estéticas, éticas. É nesse paradoxo que se fortaleceu a metáfora do estuário: assim como rios e mar coexistem sem se fundir, a coexistência humana não exige uniformidade, apenas a necessidade de navegar em meio a contradições.14

Em retrospecto, essa imagem curatorial pôde ser construída por meio da combinação de diferentes estuários pelos quais circulamos durante as Invocações ou viagens de pesquisa: a baía de Tóquio, onde há mais de mil anos a shiohigari (colheita de moluscos) é uma das atividades preferidas de quem passeia ou vive por ali; os estuários do litoral de São Paulo, um dos locais mais contaminados por microplásticos no mundo; o estuário do rio Oiapoque, no Amapá, na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, uma região onde o crime organizado, a extração de minerais e os fluxos migratórios coexistem com a exuberância da floresta; o estuário do rio Anil, no Maranhão, onde grupos de capoeira e folguedos de bumba-meu-boi nos lembram que a vida perdura para além das mesquinharias dos donos do poder, e onde as festas de reggae15 provam que dançar agarradinho é o que há. Seria impossível não mencionar o estuário do Capibaribe, em Recife, que nos anos 1990, em meio ao caos social e ambiental, entre guitarras e alfaias, mostrou para o mundo uma nova cena cultural gestada em suas margens. Mesmo que provisoriamente, ilustrou uma nova perspectiva de coexistência mediada pela música e pela lama, pelos sonhos de futuro e pelo caos. Os estuários são ambientes aquáticos temporários, paisagens provisórias onde incontáveis espécies coexistem, e talvez

aí esteja o principal elemento que essa metáfora nos oferece: uma exposição como a Bienal de São Paulo é a construção coletiva de uma paisagem provisória, um cenário da cena artística contemporânea global. Uma dobra onde a baía de Tóquio se aproxima do rio Capibaribe, onde diferentes públicos coexistem. Assim, essa figura nos oferece um elemento curatorial, uma ferramenta que vai além do cultural e do histórico. Ela não nega a cultura nem a história das populações humanas que a rodeiam, mas nos convida a ouvir o planeta e seus sons por outros caminhos. São locais de transição, que nos convidam a pensar e criar a partir da interdependência e da coexistência entre diferentes mundos. Tendo o Brasil como ponto de partida, a 36ª Bienal de São Paulo traça uma paisagem temporária, construída a partir da proximidade e da cumplicidade, para pensar a humanidade como um exercício contínuo, uma prática violenta mas sublime, cheia de questionamentos. O principal deles é: como uma exposição de arte contemporânea pode oferecer ferramentas para exercermos a humanidade?

III. Notas sobre a arquitetura

Ao longo dos meses de preparação da exposição, a imagem dos mundos submersos, com suas formas sinuosas e paisagens ocultas, tornou-se uma presença constante em nossos diálogos. A metáfora do pavilhão-estuário sintetiza, no espaço expositivo, o pensamento curatorial. Essa imagem orientou decisões espaciais desde o início: optamos por construir o mínimo possível de paredes ou salas, priorizando a integridade das estruturas existentes e a luz natural que as banha. Focamos em trabalhar com perspectivas de interligação vertical e horizontal no Pavilhão, seja com a apresentação de trabalhos com dimensões verticalizadas, seja em construções da arquitetura.

Muitas obras de artistas participantes não são apresentadas em um único grupo ou posição, mas espacializadas em diferentes localizações do prédio, criando diversos índices. Sem dúvida, o recurso mais contundente utilizado na construção expográfica são as estruturas têxteis instaladas em todos os andares do Pavilhão. Elas criam não apenas novos trajetos dentro da exposição, com suas diferentes cores e transparências, mas também perspectivas de relacionamento com o espaço.

No pavimento inferior, predominam tons de azul; no segundo andar, os verdes; e, no terceiro, os terrosos, combinados a

tons mais quentes, como vermelho e laranja. Com a construção das salas nas laterais do prédio, sempre próximas às esquadrias de vidro, foram criadas áreas amplas no centro do segundo e do terceiro andar, de modo que o Pavilhão fique mais livre tanto para o tráfego do público quanto para o posicionamento das obras. Quem entra nas salas sente que caminha em direção à paisagem do parque.

Os painéis, sempre posicionados entre colunas, funcionam como expositores pontuais, surgindo como suporte das obras bidimensionais. Eventualmente, outros tipos de expositores foram criados para receber obras de artistas que necessitam de suportes maiores, caso das paredes que envelopam as escadas e se estendem ao longo de dois andares. Para um efeito de verticalização do Pavilhão, essas paredes, assim como as da cabeceira do prédio – tanto a que se relaciona com a rampa de acesso quanto a oposta –, foram pintadas com cores diferentes que perpassam todos os pavimentos.

1 As Invocações refletem uma linha de programas curatoriais que buscaram redefinir as possibilidades de exposições e da prática curatorial. Essa trajetória inclui iniciativas como as Platforms – lançadas por Okwui Enwezor e sua equipe para a Documenta 11 (2002) –, que expandiram o escopo discursivo e geopolítico de exposições de grande escala. Desde 2009, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e colaboradores organizaram as Invocações por meio do SAVVY Contemporary – The Laboratory of Form-Ideas em Berlim, ao mesmo tempo que incorporaram a série em contextos internacionais como Sonsbeek (Arnhem), Bamako Encounters Biennale e o Pavilhão da Finlândia na Bienal de Veneza. Em preparação para a 36ª Bienal de São Paulo, quatro edições das Invocações foram organizadas em Marrakech, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio.

2 O documentário investiga como crianças de diferentes culturas aprendem suas primeiras lições musicais com suas famílias.

3 O trecho que Buhlungu mostra famílias de jeli ou griôs do Mali em momentos de celebração, encontros casuais em que a tradição oral e musical é transmitida entre gerações.

4 “Can You Feel It”, lançada em 1986 por Larry Heard (sob o pseudônimo Mr. Fingers), é um dos pilares fundamentais da música house, também considerada um marco da cena eletrônica de Chicago e da produção cultural negra do século 20. A linha de baixo foi produzida com um sintetizador analógico Roland Juno-60.

5 Do inglês “waggle dance”; trata-se de um sistema de comunicação das abelhas que entrelaça movimento, som e bioquímica e tem como objetivo principal a sintetização do mel.

6 O 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus (2024), com curadoria de Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala, é parte da série Panorama da Arte Brasileira, iniciada em 1969 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).

7 Thiago de Paula Souza, “Mil grau”, em Germano Dushá e Thiago de Paula Souza (orgs.), 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2024, p.17. Disponível em: mam.org.br/wp-content/uploads/2025/02/ 38panorama-catalogo-digital-241212-final.pdf. Acesso em: 2025.

8 Optamos por não abordar subjetividades, orientações sexuais, raça ou etnia como um elemento central do conceito curatorial. Não pela descrença na contribuição das exposições para a reorganização de imaginários políticos, mas pela convicção de

que, naquele contexto, era imperativo que proposições expositivas tentassem escapar do debate que parecia ter sido cooptado pelo ethos neoliberal. Em A plantação cognitiva (2020), a artista e escritora Jota Mombaça faz uma bela reflexão sobre o processo de captura de práticas artistas subalternizadas.

9 Esses três segmentos foram ampliados para seis capítulos que organizam o espaco expositivo: no térreo, Capítulo 1 –Frequências de chegadas e pertencimentos; no primeiro pavimento, Capítulo 2 – Gramáticas de insurgências; no segundo pavimento, Capítulo 3 – Sobre ritmos espaciais e narrações e Capítulo 4 – Fluxos de cuidado e cosmologias plurais; no terceiro pavimento, Capítulo 5 – Cadências de transformação e Capítulo 6 – A intratável beleza do mundo.

10 O texto de Chambers-Letson foi comissionado para esta coletânea. O autor parte da leitura que faz do texto “The Ceremony Must be Found: After Humanism”, escrito em 1984 pela autora, crítica e teórica feminista negra Sylvia Wynter. Nele, Wynter discute a necessidade de superar o humanismo moderno e buscar novas formas de definir a identidade humana, por meio de práticas rituais e uma compreensão renovada da agência do indivíduo. Ela argumenta que o humanismo, como o conhecemos, é limitado e que é necessário encontrar uma nova “cerimônia” que nos permita compreender tanto as categorias ocidentais quanto as seculares. Assim, propõe uma reconfiguração do conceito de humanidade para os dois paradigmas tradicionais.

11 Ele se refere ao já mencionado ensaio “The Ceremony Must be Found: After Humanism”, de Wynter (boundary 2, v.12, n.3, primavera-outono 1984), e ao livro The Difference Aesthetics Makes: On the Humanities “After Man”, de Chuh (Durham: Duke University Press, 2019).

12 Após ler o poema pela primeira vez, me surpreendi ao descobrir que a palavra “viandante” não era um neologismo da autora, mas um termo pouco comum no português coloquial brasileiro contemporâneo. Ao longo da história, a palavra esteve associada a figuras como peregrinos em busca do sagrado, exploradores desbravando territórios desconhecidos onde o caminho físico se entrelaça a questionamentos existenciais. Em inglês, optamos por traduzir “viandante” como “traveller”, um termo que não evoca a mesma estranheza do original. Não me aprofundei no assunto, mas certamente esse aspecto da tradução é um ponto

interessante para refletir sobre como a equipe curatorial e diferentes públicos se relacionaram com o poema de Evaristo e consequentemente com a exposição, a partir do idioma em que o verso foi lido.

13 Ver Bukimi No Tani (不気味の谷): O vale da estranheza – A afetividade do humanoide, publicação educativa vol. 4.

14 Nesta proposta, o espaço físico e filosófico do estuário é usado como metáfora para espaços de encontro, negociações, trocas, convívio, sobrevivência, sustento, luta, desamparo, reparo, reabilitação, necessidades… Espaços nos quais as práticas da humanidade poderiam adquirir novos significados.

15 Ritmo afro-diaspórico e viajante que chegou em São Luís por meio da captação de ondas sonoras de rádios caribenhas, e que adquiriu um sotaque e ritmo locais.

Os mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra

Conjugando o

H-U-M-A-N-O

Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Traduzido do inglês

Este ser humano é uma casa de hóspedes. A cada manhã, uma nova chegada.

Uma alegria, uma tristeza, uma maldade, alguma consciência momentânea vem como um visitante inesperado.

Receba e entretenha todos eles! Mesmo que seja uma multidão de dores, que invade violentamente sua casa e a esvazia de todos os móveis, ainda assim, trate cada hóspede com honra. Pode ser que ele esteja te esvaziando para alguma nova alegria.

Excerto de “A casa de hóspedes”, de Rumi

Para muitos de nós, este mundo nunca foi de fato um lugar seguro. E não é culpa do mundo em si, mas de um tipo específico de ocupante que se atribuiu o direito de destruir sistematicamente seu anfitrião, sua espécie, sua vizinhança e outros: o ser humano. Entrei em um Uber hoje de manhã com Deni, um motorista checheno gentil mas tagarela, que sentiu necessidade de me repetir as notícias da noite passada. Deni me contou que o Irã tinha sido atacado durante a noite por Israel e que ele tinha certeza de que a resposta seria com uma bomba nuclear. A viagem para o aeroporto, mentalmente, se tornou muito longa e triste, mas ao mesmo tempo bastante contemplativa e informativa. O motorista falou da guerra chechena e do massacre acontecendo atualmente em Gaza, da guerra no Congo e dos milhões de pessoas mortas ao longo dos anos também no Sudão e, para minha surpresa, da guerra na Etiópia. Minha surpresa foi sufocada pela tristeza quando ele, como eu, pensou no destino de todas aquelas crianças inocentes com fome e mortas em prisões ao ar livre. Perguntei se ele já tinha ouvido falar da guerra na parte anglófila de Camarões, de onde venho. Deni disse que não, e quando contei a ele que meus pais haviam sido obrigados a se tornar refugiados aos setenta anos, pude ver e sentir as lágrimas encherem seus olhos. Então, no que soou uma mudança súbita de assunto, ele disse que amava assistir a programas sobre animais na TV. Em um dos documentários, o repórter falou a respeito de europeus e estadunidenses ricos, alguns de famílias da realeza, que

viajavam regularmente para diferentes partes do continente africano para caçar. Essas pessoas matam leões, elefantes e outros grandes animais só por prazer. Pude sentir o desgosto escorrer de cada tecido, órgão e célula do seu corpo. Ele então mencionou que, se um leão estivesse satisfeito e um veado passasse ao seu lado, o felino ignoraria sua presença, e lamentou ainda mais a tendência humana de matar só pelo prazer de matar e pelo prazer do poder.

Quando ele me deixou no aeroporto, pensei em “A casa de hóspedes”, poema de Rumi, o grande místico sufi, no qual ele diz que ser humano é essa casa que recebe bons hóspedes, como a alegria, e outros não tão bons, como a depressão e a tristeza. Rumi nos encoraja a tratar cada hóspede de forma honrada, pois mesmo os maus hóspedes podem estar “te esvaziando/ para alguma nova alegria”. Mas, pensando em todas as guerras e na fome, nos genocídios e massacres, nas crianças famintas de Gaza a Goma, de Bamenda e Saarauí até Naipidau, todos os desastres ecológicos e urgências migratórias – imigrantes tentando cruzar o mar Mediterrâneo, ou então o rio Grande e outros pontos da fronteira norte-americana, enquanto o serviço de imigração arrasa os Estados Unidos deportando imigrantes –, todos os ditadores e outros desumanizadores mundo afora hoje, todos os problemas econômicos e sociais, tive dificuldade para entender o que estava sendo esvaziado e qual nova alegria poderia ser possível aguardar adiante. Que nova alegria alguém poderia enxergar por trás da explosão de uma bomba nuclear? Que alegria? Esse é o lugar em que estou enquanto ainda ouso conjugar a humanidade, como um otimista irrecuperável nestes tempos aparentemente sombrios.

Mas não podemos nos dar ao luxo de desanimar.

A arte nos dá as possibilidades, as sensibilidades e as ferramentas para reconsiderar o mundo onde nos encontramos, mesmo em tempos em que a proverbial luz no fim do túnel parece tão distante e o túnel, tão escuro. Mesmo nestes tempos em que parece que a humanidade desistiu da fé no projeto humano. Mesmo nestes tempos em que é difícil encontrar esperança, e vendedores de esperança desesperançada desfilam pela TV, pelas redes sociais, pelo rádio e pelas ruas. Mesmo nestes tempos em que encontramos mais humanidade em certos animais do que em seres humanos. Nestes tempos, precisamos, sobretudo, de artistas e de uma arte que nos ajude a ver com clareza em meio à neblina, a ouvir em meio ao barulho, a raciocinar em meio ao bloqueio

mental e a expandir nossos imaginários sobre o que a humanidade poderia de fato ser.

E é disso que trata a 36ª Bienal de São Paulo, intitulada Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática. Esse título, tomado de empréstimo do poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, nos pede que questionemos essa estrada na qual a humanidade definiu sua jornada. Uma jornada em que ameaçamos uns aos outros com armas atômicas, uma jornada da fome como instrumento de poder e de guerra, uma jornada de maquinações políticas e econômicas que mantêm o resto do mundo faminto, enquanto temos tantos grãos estocados em silos pelo mundo, esperando que os preços subam, uma jornada de pobreza e falta de moradias projetadas em alguns dos países mais ricos do mundo e de colonialismo e escravização de outros seres humanos. Então a questão que estamos propondo é: quais outros caminhos podem ser tomados nessa nossa vida-jornada se negarmos as estradas tóxicas, de supremacia branca, patriarcais, heteronormativas e colonialistas que nos impuseram desde tempos imemoriais?

Conceição Evaristo responde à questão no verso final de seu poema, quando ela escreve que “há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra”.

Esta Bienal de São Paulo, então, convidou artistas, acadêmicos e pessoas de todos os cantos a imaginar esses mundos submersos, a nos dar pistas das poesias e de seus silêncios que são chave para tais mundos e, quem sabe por meio de fabulações, a nos oferecer receitas e cardápios para preparar os pratos para eles. Fiquei intrigado com o fato de Evaristo não ter reduzido tudo a um único mundo. Nada de universalismo ao modo renascentista, com a imposição das culturas ocidentais e de suas noções de humanidade sobre o mundo todo, numa época em que mais da metade da população mundial nem sequer era considerada humana o suficiente. Não. Ao contrário, trata-se de uma imaginação de mundos plurais, onde podemos todos exercitar de maneiras diferentes nossas humanidades comuns.

Esses caminhos que tomamos para a Bienal de São Paulo – e que não são estradas de desumanização – são pavimentados com a beleza intratável do mundo e da humanidade. Pois insistir na beleza e na alegria diante da grande feiura da desumanização que vemos pelo mundo hoje é insistir na humanidade e resistir à desumanização. Não estou falando do tipo de beleza dos reality shows que produzem seres como Donald Trump, mas daquele formulado por Ben Okri em seu “Musings on Beauty” [Reflexões sobre a beleza], quando ele escreve que:

A beleza é verdadeiramente abraçada pela alma. Está profundamente enraizada no subconsciente. Sua atração vem das profundezas, está nos arquétipos escondidos e nas formas fundamentais e nos mitos interiores que não são senão ecos das estrelas. A beleza é o nosso sentido dos mistérios do universo. A beleza é sempre misteriosa, porque sua verdadeira fonte está além da razão. Ela pertence às altas causas mais que aos efeitos. Mas é o efeito das altas origens dos mistérios da beleza que experimentamos como sua realidade. […]

A beleza das superfícies e a das profundezas. Beleza na feiura. Beleza no modo como o tempo resolve o mal. Beleza no nascimento e beleza na morte. Beleza no comum. Beleza na memória, nas coisas que desvanecem, em formas percebidas e não percebidas. Beleza em coisas estranhas, não terminadas, arruinadas, quebradas. Beleza na criação e na destruição. Beleza no tempo e no atemporal. Beleza no infinito que inclui tudo, antes do começo e além do fim.1

Em um tempo no qual as pessoas escolheram armas de destruição em massa como o único meio de marcar sua presença no mundo, escolhemos o poder descomprometido da beleza okriliana como nosso meio para asseverar a humanidade e seus futuros possíveis. Em um tempo em que o apocalipse está escrito com letras grandes e em negrito, escolhemos a vulnerabilidade de ousar conjugar a humanidade como um verbo.

Para quem cresceu nos anos 1980 e no começo dos 1990 em Bamenda, em Camarões, o rádio era o portal para o mundo. Foi por meio do rádio que ouvimos os comentários à Copa do Mundo no México, em 1986, e na Itália, em 1990. Foi no rádio que ouvimos sobre o assassinato de Thomas Sankara, e que soubemos da libertação de Nelson Mandela da prisão depois de 27 anos; foi no rádio que, de modo inédito, ouvimos música ao longo de todo o dia 6 de abril de 1984, depois do golpe de Estado fracassado contra o presidente camaronês, o que acabou sendo uma desculpa para que ele permanecesse no poder por 43 anos. E também foi no rádio que ouvimos o Ottawan cantando D-I-S-C-O2 e L-O-V-E, de Nat King Cole,3 explodindo no éter.

Foi lá que o formato que chamei de conjugação letrada me fascinou. DISCO não podia ser só disco. Para o Abba, tinha que

ser D – desejável, I – irresistível, S – super-sexy, C – complicado, O – ooooooohhh.

Essa conjugação letrada, junto com os ensaios numerados de Binyavanga Wainaina, é a inspiração para essa metodologia de elucidar e conjugar a humanidade: H – humildade, U – compreensão [understanding no original], M – multiplicidade, A – abundância, N – natureza.

Anedotas sobre o H-U-M-A-N [humano]

H – Humility [humildade]

Agito uma garrafa de vidro cheia de contas de vidro e lembro sua lição: deixar uma falha, uma conta que quebre o padrão, para libertar quem a fez. Não é um erro, mas humildade: Não somos deuses.

Excerto de “Is It Beauty That We Owe?”

[É à beleza que devemos?], de Janice N. Harrington4 Leia o poema na íntegra em

Talvez ser humano seja antes de tudo aceitar que não somos deuses. Não somos orixás. Todos os nossos esforços de terraformação, de produzir humanoides com o objetivo de substituir humanos, deter o processo de envelhecimento, eliminar a morte por meio da criogenia, colonizar a lua e muito mais são manifestações da húbris humana. À medida que o mundo é levado à beira de outra guerra mundial, com alguns países flexionando seus músculos nucleares e brincando de Deus, devemos finalmente reconhecer que para desumanizar os outros é preciso primeiro desumanizar a si próprio – e, no processo de desumanizar os outros, você se desumaniza ainda mais. Nenhum império vive para sempre. Assim como os grandes impérios do passado caíram, o atual reino do império estadunidense, com os associados que todos conhecemos, vai cair um dia também. Por falar em queda, “a soberba precede a ruína”, diz o provérbio. Então, o que mais senão a humildade? Ser humano é ser humilde diante dos poderes cósmicos que nos rodeiam e nos guiam. Ser humano é ser humilde diante da pluralidade de seres que convivem nesta terra conosco. Ser não é sinônimo de estar vivo em nosso entendimento do conceito de anima, ser é existir. Ou seja, com “ser” queremos dizer existir animada e inanimadamente. Ser humano quer dizer, portanto, coexistir sem

a urgência de criar hierarquias de poder e sem a urgência de rebaixar outros seres. Ser humilde é aceitar que a vulnerabilidade é, na verdade, força. Ser humilde é se abster do complexo de Cristóvão Colombo de querer que tudo que você encontra seja seu e que você tenha sido o primeiro a “descobrir” a coisa. Exercitar a humildade – o que quer dizer ser humano – é reconhecer que sua humanidade é contingente à minha e a minha à sua. Gostaria de chamar essa prática de humanidade de “política da humildade”. A humildade brota do chão, do solo, do húmus (terra), uma vez que “humildade” vem do substantivo latino humilitas ou do adjetivo humilis, que significa ser humilde, estar conectado à terra, aterrado. Como desnaturalizar e desaprender as violentas reivindicações de dominação sobre os outros? Como desnaturalizar e desaprender as demandas coloniais por supremacia? Como desnaturalizar e desaprender as definições de humanidade que impõem desconsideração e indecência sobre a decência, a verdade, o cuidado, a harmonia e o respeito?

U – Understanding [compreensão]

a revisora tem boas intenções a revisora quer dizer

ela só é fluente em uma língua de gestos não explico     fico triste por ela

compreensão limitada de cumprimentos  & talvez seja por isso que meus agradecimentos são tão longos;

não aprendemos isso cedo? olhar para os espaços brancos

& encontrar a cor graças a deus ó graças a deus por você                    estar aqui.

Excerto de “Ode to the Head Nod” [Ode ao aceno de cabeça], de Elizabeth Acevedo5 Leia o poema na íntegra em

Andando nas ruas de Berlim, Londres, Nova York, Salvador, São Paulo ou qualquer outro lugar, cruzo com pessoas que, sem qualquer hesitação, olham direto para minha cara, quase como se enxergassem através de mim, e, de modo não surpreendente, fazem um gesto que me soa muito familiar, mas que ainda me tira o fôlego toda vez. A postura, o olhar, o reconhecimento, a afirmação e então o aceno afirmativo (com a cabeça). Tudo isso em uma fração de segundo. Embora esse gesto seja feito por um amplo espectro de pessoas no mundo todo, ele vem especialmente de pessoas negras de diferentes cores e posições políticas. Esse aceno talvez seja o reconhecimento mais sofisticado do fato de que alguém está sendo visto. Não o ato de ver limitado à capacidade visual primitiva do olho, mas um tipo de visão que significa ouvir, sentir, cheirar, bem como reconhecer e apreciar sua presença. O aceno com a cabeça é um gesto que poderia ser decodificado como “entendo você e o que talvez esteja passando” ou “reconheço sua humanidade”. O aceno, assim, é como um gesto de compreensão mais bem entendido como overstanding, se aplicamos as filosofias de nossos parentes caribenhos do movimento rastafári, que têm o hábito de inverter tudo como uma maneira de subverter o mundo no qual nos encontramos por meio do seu Iyaric, ou Dread Talk. Por exemplo, na alteração de palavras, como overstanding [compreensão elevada] em vez de understanding [compreensão],6 downpression [pressão para baixo] ou downpressor [pressionador para baixo] em vez de oppression [opressão] ou oppressor [opressor], outvention em vez de invention [invenção],7 livication [viver-cação] em vez de dedication [dedicação] – já que a primeira sílaba de dedicação soa como death [morte] e deveria ser substituída por life [vida], como em livicate. Mas estou divagando. Meu ponto é que ser humano é ser compreensivo. A compreensão é uma forma de empatia. É ser capaz de enxergar adequadamente as feridas e alegrias uns dos outros e sentir as dores uns dos outros e celebrar as alegrias uns dos outros. Ser humano é ser capaz de compreender como suas próprias dores a dor dos pais que perderam os filhos e das esposas que perderam os maridos e vice-versa, e das crianças que perderam os pais em Bamenda, Gaza, Goma, Haifa, Kano, Cartum, Naipidau, Teerã etc. Ser humano é superar a indiferença em relação às dificuldades dos outros e ser empático e compreender suas causas. Uma das palavras mais enigmáticas do inglês falado em Camarões é ashia. Na verdade, é mais que uma palavra. É uma

filosofia. Uma Weltanschauung [concepção de mundo]. Quando alguém está sofrendo, perdeu alguém, ou está passando por alguma situação difícil, se diz ashia para ela. Quando alguém trabalha duro demais, se diz “ashia para o trabalho”. Às vezes, quando se encontra uma pessoa, especialmente se for mais velha, na rua ou em qualquer lugar, a expressão de reconhecimento e de solidariedade em relação a ela é expressa dizendo ashia. Um cumprimento, um aceno, um reconhecimento, um agradecimento, um gesto de compreensão. Expressar ashia é um ato primordial de compreensão do que significa ser humano.

M – Multiplicity [multiplicidade]

Se estamos lado a lado, a unidade deve resolver a multiplicidade da nossa fratura infinita?

Que proporção cabe a cada figura?

Quando partimos juntos, qual é a forma simples que formamos?]

Excerto de “What Draws Us Together” [O que nos une], de Harryette Mullen8 Leia o poema na íntegra em

É uma falácia pensar que unidade quer dizer mesmice, repetição ou outras noções simplistas de uma identidade comum. Um denominador comum pode ser acompanhado de uma vastidão de diferenças. Mas é esse denominador comum, a humanidade, que nos mantém indivisivelmente juntos. São nossas diferenças e multiplicidades que nos definem como humanos: as diferentes línguas que falamos, as diferentes comidas e maneiras de comer, as diferentes culturas, ciências, religiões e filosofias que cultivamos para estar em sintonia com nós mesmos neste mundo. O que de fato define nossas humanidades é esse caráter multifacetado que emerge de nossos diferentes climas e ambientes, das diferentes biosferas em que nascemos e crescemos, das diferentes ferramentas e utensílios com os quais fomos socializados, das variadas noções de educação e cuidado. Nessa pluriversalidade, a humanidade não é uma chave que se encaixa em uma fechadura, mas muitas chaves que se encaixam em muitas fechaduras que abrem a mesma porta da dignidade e do respeito, do amor e da graça. Em seu livro Aspects de la civilisation africaine9 [Aspectos da civilização

africana], Amadou Hampâté Bâ reflete sobre as noções de “pessoa” e “pessoalidade” nas cosmogonias bambara e peul quando escreve:

A tradição nos ensina que inicialmente houve Maa, a pessoa-receptáculo, depois Maaya, ou seja, os vários aspectos de Maa contidos na Maa-receptáculo. Como diz a expressão bambara: “Maa ka Maaya ka ca a yere kono” (As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa). Encontra-se a mesma noção entre os Fulani. O conceito de pessoa é, portanto, desde o início, muito complexo. Ele implica uma multiplicidade interior – planos concêntricos ou superpostos de existência (física, psicológica e espiritual em vários níveis), assim como um dinamismo constante.10

Com isso, Hampâté Bâ acrescenta à multiplicidade externa da humanidade a dimensão da multiplicidade interna, ao discutir noções de pessoalidade que revelam constantemente nossa multiplicidade de seres, mesmo que as sociedades tentem sufocar essa multiplicidade. Ser humano é abraçar nossa multiplicidade interna e externa.

A – Abundance [abundância]

Em toda parte, a boa vida escorre dos resíduos inúteis que produzimos quando criamos – nossas ruas fervilham] com jovens humanos, bandos de pombos voando sobre árvores carregadas de esquilos. Se há um propósito, talvez sejamos muitos para enxergá-lo, embora possamos, de longe, ouvir o surdo zumbido da indústria da geração, sentir sua roda carnal girar o fogo dentro de nós, empurrando] o mundo rumo à sua borda irregular, correndo como um rio inchado rumo à multidão e à desordem. Tanta abundância. Estamos empanturrados, empanzinados e empoderados.]

Excerto de “Life is Beautiful” [A vida é bela], de Dorianne Laux11 Leia o poema na íntegra em

Nossa era é caracterizada principalmente pela política da escassez e do racionamento, embora sejamos abençoados com o espírito da abundância. Para fazer com que humanos ajam pior que caranguejos num balde, é preciso lhes dar a impressão de que há muito pouco para todos nós. É preciso lhes dar a impressão de que, se imigrantes entrarem em um país e tomarem os empregos e os homens e as mulheres, e tomarem todo o dinheiro trabalhando nesses empregos ruins, não vai sobrar dinheiro para os cidadãos desse país. Para controlar e conter humanos, é preciso lhes dar a impressão de que suas terras férteis são na realidade estéreis e de que todo o leite que eles obtêm do gado não é saudável o suficiente, ou que o leite materno não é bom para suas crianças, e que por isso eles precisam comprar leite em pó quimicamente modificado de multinacionais de alimentos. Para acorrentar mentalmente as pessoas, é preciso lhes dar a impressão de que elas precisam matar umas às outras para obter grãos para fazer pão, enquanto há grãos o suficiente armazenados nos silos pelo mundo. Para submeter as pessoas, colonize toda a água sob suas terras e negue-lhes a possibilidade de obter água naturalmente, forçando-as a comprar, e torne-as dependentes disso como sua única fonte de água limpa.

As políticas de escassez e racionamento estão no cerne das políticas de desumanização. Reumanizar é fazer as pessoas entenderem que vivemos em abundância, e que “Em toda parte, a boa vida escorre dos resíduos/ inúteis que produzimos quando criamos”.

Mesmo nas ruínas e nos escombros de nossas destruições há abundância, se pensarmos na riqueza para além da noção capitalista do termo.

A questão central é como escapar das políticas de escassez e racionamento impostas ao mundo pelas constantes maquinações da empresa colonial?

N – Nature [natureza]

um sussurro por trás das árvores, e aqui, sob o céu lavado de chuva, papoulas laranjas se multiplicam.

Excerto de “Nature Knows Its Math” [A natureza conhece sua matemática], de Joan Bransfield Graham12 Leia o poema na íntegra em

A separação e o conflito entre natureza e cultura são um dos principais projetos de longo prazo das variadas formas e cores da empresa colonial. A ideia da “missão civilizatória” era trazer “cultura” para aqueles que viviam na “natureza”. Uma parte do mundo tinha a pachorra de pensar que seu modo de ser no mundo era culto e civilizado, enquanto outros estavam presos no que eles chamavam, de modo pejorativo, de natureza. Estar do lado da natureza significava, do ponto de vista do Ocidente em relação ao não Ocidente, ser selvagem. Essa narrativa construída foi a desculpa para escravizar e desumanizar pessoas, para colonizá-las, destruir seus sistemas educacionais, destruir suas religiões, desmantelar seus sentidos de história e de pertencimento por meio do assim chamado projeto de modernização. Assim, o sistema econômico das plantations, baseado na monocultura – o que, sabemos hoje, é em grande medida responsável pela destruição não só do meio ambiente, mas também das estruturas econômicas do mundo –, era considerado culto, enquanto outros ramos, voltados para a policultura, nos quais múltiplos tipos de plantas eram cultivados e se apoiavam em um crescimento recíproco, eram considerados natureza abjeta.

Minha família vivia em uma casa na cidade de Bamenda, em Camarões. Em volta da casa, meus pais haviam cultivado um pomar crioulo. Meu pai havia plantado pés de mamão e abacate, cinco tipos diferentes de manga, banana e banana-da-terra, bem como goiabeiras. Já minha mãe e minha avó plantavam milho, feijão, repolho, alho e outros vegetais de acordo com a época de cada um. Em volta desse pomar sempre havia galinhas e às vezes cabras correndo por ali. Meus pais não eram hippies nem nada do tipo. Mas, no que dizia respeito à comida, eles acreditavam que era importante saber como ela era plantada e por quem, se haviam sido usados fertilizantes e, se sim, quais exatamente etc. Isso era importante em um contexto de plantations de produção em massa com vasto uso de fertilizantes tóxicos importados. Dia a dia, podíamos vivenciar o processo de plantio, germinação, crescimento, capinação, colheita e de eventual transformação, como do milho para o fufu. O senso comum afirmaria que esse pomar crioulo que meus pais fizeram, reflexo da pluralidade dos sertões e das

florestas, é mais apropriado que uma plantation, que é a síntese do que a cultura colonial e o universalismo defendem. Para as plantations serem produzidas, florestas, sertões ou outras formas de natureza têm de ser destruídas. Diz-se que uma das razões pelas quais a covid-19 arrasou o mundo há alguns anos foi a destruição consistente, por parte dos humanos, do habitat de outros seres. Será que a imposição da cultura sobre a natureza pode ser prejudicial à existência do ser humano?

A despeito de todos os esforços humanos para tentar se posicionar acima da “natureza”, reivindicando uma certa noção de cultura que está hierarquicamente acima da natureza, os humanos são essencialmente parte da natureza. Em outras palavras, os humanos só podem prosperar se tiverem respeito por todos os outros seres que convivem naquele espaço chamado natureza. Nele, todos os seres merecem seu lugar, todos os seres estão interconectados. Como Joan Bransfield Graham aponta, “A natureza conhece sua matemática”. Parte dessa matemática é que, se os humanos provocarem uma desigualdade ou um desequilíbrio na equação da natureza, não só muitos outros seres vão sofrer ou mesmo ser exterminados, mas também a humanidade vai sofrer, talvez mais que todos.

Para manter a equação matemática da natureza em equilíbrio, a humanidade deve descer, sair de sua torre de marfim e trabalhar no sentido de existir em harmonia com a sua e com outras espécies.

Esses talvez sejam alguns dentre muitos modos de conjugar a humanidade. Humanos não são perfeitos. No entanto, ser humano não é um exercício passivo, mas, ao contrário, muito ativo. Ser humano é acordar todas as manhãs e se perguntar como conjugar a própria humanidade em relação a si mesmo e aos outros. Humanos não são perfeitos. Mas ser humano é colocar em prática uma perspectiva do altruísmo, da beleza, da compaixão, da alegria, do amor, da resiliência, da união.

Num momento em que o mundo se encontra à beira de talvez outra guerra mundial, ou talvez de um conflito nuclear, lembro da voz compassiva de Deni, o motorista checheno tagarela, que, na despedida, me olhou direto nos olhos, como se pudesse ver os fundos do meu cérebro, e disse: “Irmão, mantenha a fé. Nós não temos escolha senão levar a humanidade para um lugar melhor. Se não para nós mesmos, que seja para os filhos de nossos filhos”. E respondi: “Amééém!”.

1 Ben Okri, “Musings on Beauty”, em A Time for New Dreams. Londres: Rider, 2011.

2 Disponível em: youtu.be/O0ces1RYmVE?si=FiXiQl1ur2Gfwi0. Acesso em: 2025.

3 Disponível em: youtu.be/gZYtes1RO_w?si=LS88OrxM_ LEXP8Fh. Acesso em: 2025.

4 Disponível em: www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/ poems/160265/is-it-beauty-that-we-owe. Acesso em: 2025.

5 Disponível em: www.poetryfoundation.org/poems/ 160696/ode-to-the-head-nod. Acesso em: 2025.

6 Jogo vocabular rastafári com os prefixos over [por cima, elevado] e under [por baixo, sob] para agregar outro sentido a “compreensão” por meio da composição dessa palavra.

7 Jogo vocabular rastafári com os prefixos in [dentro] e out [fora] para agregar outro sentido a “invenção” por meio da composição dessa palavra.

8 Disponível em: www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/ poems/1615042/what-draws-us-together. Acesso em: 2025.

9 Amadou Hampâté Bâ, Aspects de la civilisation africaine. Paris: Éditions Présence Africaine, 1972.

10 Traduzido originalmente do francês por Susan B. Hunt.

11 Disponível em: www.poetryfoundation.org/poems/58278/ life-is-beautiful. Acesso em: 2025.

12 Disponível em: www.poetryfoundation.org/poems/58838/ nature-knows-its-math. Acesso em: 2025.

Fundação Bienal de São Paulo

Fundador

Francisco Matarazzo Sobrinho · 1898-1977 · presidente perpétuo

Conselho de administração

Eduardo Saron · presidente

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente

Membros vitalícios

Adolpho Leirner

Beno Suchodolski

Carlos Francisco Bandeira Lins

Cesar Giobbi

Elizabeth Machado

Jens Olesen

Julio Landmann

Marcos Arbaitman

Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa

Pedro Aranha Corrêa do Lago

Pedro Paulo de Sena Madureira

Roberto Muylaert

Rubens José Mattos Cunha Lima

Membros

Adrienne Senna Jobim

Alberto Emmanuel Whitaker

Alfredo Egydio Setubal

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires

Angelo Andrea Matarazzo

Beatriz Yunes Guarita

Camila Appel

Carlos Alberto Frederico

Carlos Augusto Calil

Carlos Jereissati

Célia Kochen Parnes

Claudio Thomaz Lobo Sonder

Daniela Montingelli Villela

Eduardo Saron

Fábio Magalhães

Felippe Crescenti

Flavia Buarque de Almeida

Flávia Cipovicci Berenguer

Flavia Regina de Souza Oliveira

Flávio Moura

Francisco Alambert

Heitor Martins

Isay Weinfeld

Jeane Mike Tsutsui

Joaquim de Arruda Falcão Neto

José Olympio da Veiga Pereira

Kelly de Amorim

Ligia Fonseca Ferreira

Lucio Gomes Machado

Luis Terepins

Luiz Galina

Maguy Etlin · licenciada [on leave]

Manoela Queiroz Bacelar

Marcelo Mattos Araujo

Mariana Teixeira de Carvalho

Miguel Setas

Miguel Wady Chaia

Neide Helena de Moraes

Nina da Hora

Octavio de Barros

Rodrigo Bresser Pereira

Rosiane Pecora

Susana Leirner Steinbruch

Tito Enrique da Silva Neto

Conselho fiscal

Edna Sousa de Holanda

Flávio Moura

Octavio Manoel Rodrigues de Barros

Conselho consultivo internacional

Frances Reynolds · presidente

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente

Andrea de Botton Dreesmann, Quinten Dreesmann

Barbara Sobel

Caterina Stewart

Catherine Petitgas

Flávia Abubakir, Frank Abubakir

Laurie Ziegler

Mélanie Berghmans

Miwa Taguchi-Sugiyama

Pamela J. Joyner

Paula Macedo Weiss, Daniel Weiss

Sandra Hegedüs

Vanessa Tubino

Diretoria

Andrea Pinheiro · presidente

Maguy Etlin · primeira vice-presidente

Luiz Lara · segundo

vice-presidente

Ana Paula Martinez

Francisco Pinheiro Guimarães

Maria Rita Drummond

Ricardo Diniz

Roberto Otero

Solange Sobral

Equipe Superintendências

Antonio Thomaz Lessa Garcia

Junior · superintendente executivo

Felipe Isola · superintendente de projetos

Joaquim Millan · superintendente de projetos

Caroline Carrion · superintendente de comunicação

Irina Cypel · superintendente de relações institucionais e parcerias

Superintendência executiva assistência

Beatriz Reiter Santos · assistência executiva

Marcella Batista · assistência administrativa

Superintendência de projetos coordenação

Bernard Lemos Tjabbes

Dorinha Santos

Marina Scaramuzza produção

Ariel Rosa Grininger

Camilla Ayla · assessoria de conservação de obras de arte

Carolina da Costa Angelo

Nuno Holanda Sá do Espírito Santo

Tatiana Oliveira de Farias Assistência

Fabiana Paulucci

Ziza Rovigatti

Superintendência de comunicação coordenação

Rafael Falasco · editorial assessoria

Adriano Campos · design

Eduardo Lirani · produção gráfica

Fernando Pereira · assessoria de imprensa

Francisco Belle Bresolin · projetos digitais e documentação

Julia Bolliger Murari · redes sociais

Luciana Araujo Marques · editorial

Nina Nunes · design assistência

Marina Fonseca · redes sociais jovem aprendiz

Victória Pracedino

Superintendência de relações institucionais e parcerias assessoria

Luciana Raele

Raquel Silva Victória Bayma

Viviane Teixeira assistência

André Massena Jefferson Faria

Laura Caldas

Educação gerência

Simone Lopes de Lira coordenação

Danilo Pera

assessoria

André Leitão

Renato Lopes

Tailicie Nascimento

assistência

Gabri Gregório Floriano

Giovanna Endrigo

Júlia Iwanaga

Leonardo Venâncio Miranda

Vinícius Massimino

jovem aprendiz

Lincon Amaral

Arquivo Bienal gerência

Leno Veras coordenação

Antonio Paulo Carretta

Marcele Souto Yakabi assistência

Ana Helena Grizotto Custódio

Anna Beatriz Corrêa Bortoletto

Gislene Sales

Gustavo Paes

Thais Ferreira Dias

jovem aprendiz

Ilana Alionço

Manoel Assis

Administrativo-financeiro

Finanças gerência

Amarildo Firmino Gomes coordenação

Edson Pereira de Carvalho assessoria

Fábio Kato assistência

Silvia Andrade Simões Branco

Gestão de materiais e patrimônio gerência

Valdomiro Rodrigues da Silva Neto coordenação

Larissa Di Ciero Ferradas · gestão de materiais e patrimônio

Vinícius Robson da Silva Araújo · compras assistência

Angélica de Oliveira Divino

Daniel Pereira

Sergio Faria Lima

Victor Senciel

Wagner Pereira de Andrade auxílio

Isabela Cardoso

jovem aprendiz

Lucas Galhardo brigada de incêndio / Alpha

Secure

Davidson Maninuc de Lima

Denier Moises Ramos

Leandro Silva Meira Corelli

Ricardo de Azevedo Santos

consultoria / Sinsmel Engenharia

Manoel Lindolfo

copa / Verzani & Sandrini

Selma Francisca de Sousa Silva

limpeza / Verzani & Sandrini

Claudia Rodrigues

Isabel Rodrigues Ferreira

Maria Eliana do Nascimento de Lisboa

Rosana Celia de Souza

Rosangela Silveira Jeronimo manutenção / Verman

Engenharia Manutenção

Alexandro Pedreira da Silva

Cleber Silva de Souza

Edilson de Carvalho Sousa

João Santana de Souza

motoboy / Brasil Express

Vanderson Costa Nery portaria / Megavig

Benedita Aparecida da Silva

Celiane Gomes Cardoso

Cicero Quelis da Silva

Cleidston de Oliveira Silva

Harrisson Crislle Lima dos Santos

Pedro Luiz Januário

recepção / Megavig

Gabriele Pires

Planejamento e operações

assessoria

Rone Amabile

Vera Lucia Kogan

Recursos humanos coordenação

Andréa Moreira · recursos humanos

Higor Tocchio · departamento pessoal assistência

Matheus Andrade Sartori

Patricia Fernandes

Tecnologia da informação

consultoria

Ricardo Bellucci

Júlio Coelho

Matheus Lourenço assistência

Jhones Alves do Nascimento

36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas  – Da humanidade como prática

Equipe conceitual

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung · curador geral

Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza · cocuradores

Keyna Eleison · cocuradora at large

Henriette Gallus · consultora de comunicação e estratégia

André Pitol, Leonardo Matsuhei · assistência de curadoria

Arquitetura e expografia

Gisele de Paula, Tiago Guimarães

Alexandra Souza, Júlia Marquez, Santiago Rid · assistência de arquitetura

Agence Clémence Farrell · consultoria inicial de arquitetura

Identidade visual

Studio Yukiko

Projetos e produção

Cenografia

Mauro Coelho · Cinestand

Adão Siqueira · Metro Cenografia

Conservação coordenação

Patrícia Guimarães dos Reis

equipe

Alice Quintella Tischer

Daniel Zuim Mussi

Fabiana Oda

Flávia Baiochi Santos

Gisele Guedes

Thalita Noce

Thaís Ramos Carvalhais

Valerie Midori Koga Takeda

Consultoria acústica

Sresnewsky Consultoria Ltda

Consultoria de audiovisual

Patrícia Mesquita – MIT Arte

Iluminação

Anna Turra Lighting Design · projeto de iluminação equipe

Anna Turra

Camila Jordão

Lucas Cavalcante

Giullia Gonçalves

Andressa Pacheco equipamentos e montagem Belight

Montagem coordenação

Alexandre Cruz

Arão Nunes

Mauro Amorim

Rodolfo Martins

equipe

Alexandre Gomes

André Cruz

Ania Sanchez Valle

Bruno Amarantes Abreu de Lima

Cristian Santander

Diego Mauricio Rossi

Edison de Freitas Rocha Filho

Eloi Salvador

Elton Hipólito

Gabriel Rosa

Geraldo Peixoto

Gustavo Lemes Salomão

Hebert Kendy Zamour

Hélio Bartsch

Ítalo Douglas

Jaider Laerdson da Silva Miranda

Juan Lucas Rossi

Luciano Jorge Macovescy

Luis Enrique Silvestre Guerra

Pedro de Castro Layus

Rafael Freire

Raphael Rodrigues de Souza

Rejane Mitiko Nagatomo

Rhaldex Junior

Rodrigo Pasarello

Thiago Strassalano

Tomas Jefferson Silva da Cruz

Vinicius de Assis

assistência

Leny Silva

Logística de transporte

Nilson Lopes · nacional

Waiver Arts · internacional

Produção da programação pública

Helena Prado

Seguro Fine Arts

Chubb Seguros Brasil S.A.

Sonia Sassi · GECO Corretora de Seguros

Comunicação e editorial

Agência de publicidade

Africa Creative

Assessoria de imprensa

Index · nacional

Sam Talbot · internacional

Conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Bruno Fernandes

Duma Hub de Inovação Criativa e Produção Artística

João Gabriel Hidalgo

Levi Fanan

Martin Zenorini

Design assistência

Aninha de Carvalho Price

Tamara Lichtenstein

Editorial

Bruno Rodrigues · assistência

editorial

Cristina Fino · coordenação editorial das publicações educativas #3 e #4

Deborah Moreira · assistência

editorial

Tatiana Allegro · edição de texto – catálogo e coletânea

Vozes Bienal

Adriana Coelho Silva

Ana Carolina Ralston

Alex Atala

Ana Hikari

Astrid Fontenelle

Bárbara Brito

Benedita Casé Zerbini

Camila Fremder

Dandara Queiroz

Djamila Ribeiro

Dione Assis

Didi Wagner

Dudu Bertholini

Fafá de Belém

Fernanda Cortez

Giovanni Bianco

Humberto Carrão

Isadora Cruz

Kevin David

Laís Franklin

Luanda Vieira

Luiza Adas

Luedji Luna

Mauricio Arruda

Maria Carolina Casati

Marina Person

Memphis Depay

Maria Ribeiro

Mel Duarte

Rachel Maia

Regina Casé

Rico Dalasam

Rita Carreira

Stefano Carta

Stephanie Ribeiro

Thai de Melo Bufrem

Taís Araújo

Txai Suruí

Zeca Camargo

Xênia França

Website

Fluxo · desenvolvimento

Laura Trigo · assistência de conteúdo

Relações institucionais e parcerias

Agência de viagens

Latitudes Viagens de Conhecimento

Arquitetura da Varanda Bienal

Denis Ferri Arquiteto

Assistência de produção

Fabiana Farias

Patrícia Rabello

Criação e gestão de conteúdos dos canais digitais

Motiv Design

Parcerias institucionais

Contemporâneo Showroom

Kimi Nii

Livraria da Travessa

Produção de eventos

Patrícia Galvão

Educação

Consultoria em acessibilidade

Mais Diferenças

Interpretação em Libras

AHU Acessibilidade Humanista

Plataforma de agendamento e check-in

Hous 360

Gestão de materiais e patrimônio

Ambulância e posto médico

Premium Serviços Médicos LTDA.

ME

Assessoria e treinamentos

Lord Assessoria em Eventos

Assessoria em projetos de segurança

Asegm Construção LTDA

Bombeiro civil

Local Serviços especializados LTDA. ME

Distribuição elétrica

AGR Elétrica LTDA

Internet Wi-Fi

ITS Online

Locação de gerador

CAM Energy Locação de Equipamentos LTDA

Limpeza e conservação

Tia Limpeza e Eventos LTDA

Operações

Denis Jordão · coordenação

Kleber Almeida Gomes · supervisão

Segurança

Megavig Segurança e Vigilância

LTDA Invocações

Marrakech – 14-15 nov. 2024

LE 18 · coorganização

Laila Hida · diretoria do espaço parceiro

Youssef Sebti · produção local

Zora El Hajji · assessoria de imprensa local

Mahacine Mokdad, Sofian Amly,

Hamza Morchid, Youssef

Boumbarek · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Embaixada do Brasil em Rabat / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações

Exteriores · apoio local

Guadalupe – 5-7 dez. 2024

Lafabri’K · coorganização

Marie-Laure Poitout · presidência do espaço parceiro

Léna Blou · diretoria do espaço parceiro

Hellen Rugard · produção local

Annik Benjamin · tradução simultânea

Cédric Marcellin, Philippe Hurgon · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Institut Français; Embaixada do Brasil em Paris / Instituto

Guimarães Rosa · Ministério das Relações Exteriores · apoio local

Zanzibar – 11-13 fev. 2025

Bernard Ntahondi · coorganização

Dhow Countries Music Academy (DCMA) · instituição parceira

Halda Alkanaan · diretoria da instituição parceira

Thureiya Saleh · produção local

Raymond Peter, Alex Marcel · engenharia de som

William Chazega Nkobi, Habibu

Ramadhani Diliwa · tradução simultânea

Aden Rajab Said, Ally Nassor, Arafat Khamis Moh’d, CarolineJamie Dandu, Gulaam Abdullah, Venance Leonard, Waleed Khamis

Mohammed · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

YAS, Fondation H, Embaixada do Brasil em Dar es Salaam / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações

Exteriores · apoio local

Tóquio – 12-14 abr. 2025

Andrew Maerkle, Kanako

Sugiyama · coorganização

The 5th Floor; Sogetsu Kaikan; The University of Tokyo (com ACUT) · espaços

Jordan A. Y. Smith · assessoria do programa de poesia

Tomoya Iwata · produção local

Yoshiko Kurata · assessoria de imprensa local

Wataru Shoji · engenharia de som

Art Translators Collective · tradução simultânea

Kenji Agata, Naoki Takehisa, Sora Shirai, Takuma Osugi, Yoshikatsu

Hirayama · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Embaixada do Brasil em Tóquio / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações

Exteriores; Art Center, The University of Tokyo (ACUT) · apoio local

Organizado por Equipe conceitual e Fundação

Bienal de São Paulo

Publicado em português e em inglês por Fundação Bienal de São Paulo

Projeto gráfico

Studio Yukiko

Coordenação editorial Fundação Bienal de São Paulo

Diagramação

Tamara Lichtenstein e Fundação Bienal de São Paulo

Assistência de edição

Deborah Moreira e Bruno Rodrigues

Edição e revisão de texto

Tatiana Allegro

Preparação e revisão

Gabriel Bogossian, Guilherme Ziggy, Igor Albuquerque, Livia Azevedo Lima, Odorico Leal

Tradução

Ana Laura Borro (espanhol para português e inglês)

Andréia Manfrin (francês para português)

Fábio Bonillo; Gabriel Bogossian (inglês para português)

Hung Duong (vietnamita para inglês)

Mariana Nacif Mendes, Philip Somervell (português para inglês)

Sergio Maciel (poemas)

Produção gráfica

Marcia Signorini e Fundação Bienal de São Paulo

Famílias tipográficas

Arizona e Camera Plain por Dinamo

Impressão Ipsis

ISBN 978-85-85298-94-4

O título da 36ª Bienal de São Paulo, Nem todo viandante anda estradas, é formado por versos da escritora Conceição Evaristo.

© Copyright da publicação:

Fundação Bienal de São Paulo. Todos os direitos reservados. Os textos reproduzidos nesta publicação foram cedidos por seus autores ou representantes legais e são protegidos por leis e contratos de direitos autorais. Todo e qualquer uso é proibido e condicionado à expressa autorização da Fundação Bienal de São Paulo, dos artistas e dos fotógrafos. Todos os esforços foram feitos para localizar os

detentores de direitos das obras reproduzidas. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas.

Todos os ensaios e poemas foram comissionados pela Fundação Bienal de São Paulo com exceção dos que tiveram outras edições mencionadas.

Este livro foi publicado em português e em inglês em agosto de 2025, como parte do projeto da 36ª Bienal de São Paulo.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

36ª Bienal de São Paulo : nem todo viandante anda estradas : da humanidade como prática : Coletânea / Fundação Bienal de São Paulo ; curadoria Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. -São Paulo : Bienal de São Paulo, 2025.

Vários autores.

ISBN 978-85-85298-94-4

1. Artes - Exposições - Catálogos

2. Arte - São Paulo (SP) - Exposições

3. Bienal de São Paulo (SP)

I. Fundação Bienal de São Paulo.

II. Ndikung, Bonaventure Soh Bejeng.

25-288504

Índices para catálogo sistemático:

1. Bienais de arte : São Paulo: Cidade 709.8161

CDD-709.8161

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

PARCERIA ESTRATÉGICA

PATROCÍNIO MASTER

PATROCÍNIO

TRANSPORTADORA OFICIAL

AGÊNCIA OFICIAL

APOIO INTERNACIONAL

PARCERIA CULTURAL
APOIO MÍDIA
REALIZAÇÃO
APOIO INSTITUCIONAL

Fundação Bienal de São Paulo

Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera

Av. Pedro Álvares Cabral – Moema

04094-050 / São Paulo – SP

bienal.org.br

Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.