INCERTEZA VIVA
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FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO Francisco Matarazzo Sobrinho 1898–1977 · presidente perpétuo
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Tito Enrique da Silva Neto · presidente Alfredo Egydio Setubal · vice-presidente MEMBROS VITALÍCIOS Adolpho Leirner Alex Periscinoto Álvaro Augusto Vidigal Beno Suchodolski Carlos Bratke Carlos Francisco Bandeira Lins Cesar Giobbi Jens Olesen Julio Landmann Marcos Arbaitman Pedro Aranha Corrêa do Lago Pedro Franco Piva Pedro Paulo de Sena Madureira Roberto Muylaert Rubens José Mattos Cunha Lima MEMBROS Alberto Emmanuel Whitaker Alfredo Egydio Setubal Ana Helena Godoy de Almeida Pires Andrea Matarazzo · licenciado Antonio Bias Bueno Guillon Antonio Bonchristiano Antonio Henrique Cunha Bueno Beatriz Pimenta Camargo Cacilda Teixeira da Costa Carlos Alberto Frederico Carlos Augusto Calil Carlos Jereissati Filho Claudio Thomas Lobo Sonder Danilo Santos de Miranda Eduardo Saron Elizabeth Machado Emanoel Alves de Araújo Evelyn Ioschpe Fábio Magalhães Fersen Lamas Lambranho
Geyze Marchesi Diniz Heitor Martins Horácio Lafer Piva Jackson Schneider Jean-Marc Robert Nogueira Baptista Etlin João Carlos de Figueiredo Ferraz Joaquim de Arruda Falcão Neto José Olympio da Veiga Pereira Kelly Pinto de Amorim Lucio Gomes Machado Marcelo Araujo · licenciado Marcelo Eduardo Martins Marcelo Pereira Lopes de Medeiros Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa Marisa Moreira Salles Meyer Nigri · licenciado Miguel Wady Chaia Neide Helena de Moraes Paula Regina Depieri Paulo Sérgio Coutinho Galvão Ronaldo Cezar Coelho Sérgio Spinelli Silva Jr. Susana Leirner Steinbruch Tito Enrique da Silva Neto Tufi Duek
CONSELHO FISCAL Carlos Alberto Frederico Carlos Francisco Bandeira Lins Claudio Thomas Lobo Sonder Pedro Aranha Corrêa do Lago
Naufus Ramírez-Figueroa, Corazón del espantapájaros [Coração do espantalho], 2016. Performance realizada na 32ª Bienal.
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FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO DIRETORIA Luis Terepins · presidente Andreas Ernst Mirow Flavia Buarque de Almeida João Livi Justo Werlang Lidia Goldenstein Renata Mei Hsu Guimarães Rodrigo Bresser Pereira Salo Kibrit CONSULTOR Emilio Kalil
Alicia Barney, Valle de Alicia [Vale de Alicia], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Curadoria Jochen Volz Gabi Ngcobo Júlia Rebouças Lars Bang Larsen Sofía Olascoaga
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Ministério da Cultura, Bienal e Itaú apresentam
32ªBIENAL DE SÃO PAULO
INCERTEZA VIVA 7 set - 11 dez 2016
DIAS DE ESTUDO Pesquisas para a 32a Bienal em Santiago, Chile Acra, Gana Lamas, Peru Cuiabá São Paulo
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É por meio da arte que logramos romper a indiferença, estimular a reflexão e o espírito crítico. Com grande sensibilidade, os artistas oferecem interpretações da realidade que estimulam nosso desenvolvimento emocional e sensorial, desenhando caminhos para o nosso entendimento e engrandecimento como experiência civilizatória. Em sua 32ª edição, a Bienal de São Paulo propõe novos olhares sobre o mundo em transformação e as incertezas dela decorrentes. O público que visitar o pavilhão Ciccillo Matarazzo ao longo dos três meses de Bienal terá a oportunidade de se conectar com as nuances descobertas por artistas de 33 países. O intercâmbio de linguagem proposto pela Bienal de São Paulo reforça a diversidade de pensamento. É urgente refletir sobre a intolerância e os discursos de ódio. A dinâmica das “curtidas”, dos “emojis” e dos autorretratos impacta diretamente nos relacionamentos com o outro e com a própria forma de ler o mundo. Ao mesmo tempo em que estamos extremamente conectados, buscamos no universo analógico do livro impresso, do caderno de anotação, da própria tela de pintura e de outros suportes físicos certa segurança e alento. O risco sobre a prancheta conecta minha trajetória pessoal com a história da Fundação Bienal de São Paulo. Quando estive à frente do Comitê Rio450, li e estudei muito a respeito da importância dos símbolos gráficos e de seu papel nas comemorações. Estive debruçado sobre a obra do designer e artista gráfico pernambucano Aloísio Magalhães, idealizador da marca da comemoração do IV Centenário do Rio de Janeiro, que reunia quatro algarismos quatro rotacionados, formando um catavento. Seu traço preciso inspirou o concurso público para a seleção do símbolo dos 450 anos do Rio de Janeiro. A genialidade deste pernambucano, que foi Secretário Nacional de Cultura, está impressa em inúmeras outras marcas que fizeram e ainda fazem parte da vida de milhões de brasileiros, entre elas a da própria Fundação Bienal de São Paulo. A letra B estilizada que representa a Bienal habita a memória afetiva de todos os admiradores das artes plásticas e sintetiza o espírito vanguardista desta fundação, que, ao lado de tantas outras, compõe uma rede nacional de instituições fundamentais para o desenvolvimento da cultura e das artes no Brasil. Que todos os visitantes possam sair daqui com a certeza: a Bienal de São Paulo conta com total apoio do Ministério da Cultura, que, por meio da Lei Rouanet, patrocina esse imprescindível evento do calendário cultural brasileiro. Viva a Bienal de São Paulo para sempre! — Marcelo Calero Ministro de Estado da Cultura
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Inaugurado em 1954 como parte das comemorações do IV Centenário de São Paulo, o Parque Ibirapuera foi projetado com a intenção de reunir natureza e cultura em um mesmo espaço público. A instalação da Bienal de São Paulo em um parque com essa proposta, o mais frequentado da cidade e recentemente eleito o melhor parque urbano do mundo é, sem dúvida, uma das características singulares do evento. Desde o início dos trabalhos para a 32ª Bienal – INCERTEZA VIVA, a equipe curatorial tem se mostrado interessada em fortalecer a ligação da Bienal com o parque e seus frequentadores. Ao longo do ano de 2016, foram realizadas ações de aproximação com outras instituições sediadas no local, assim como ações voltadas para os funcionários e o público frequentador do parque, envolvendo inclusive a participação de artistas. Além disso, o curso ministrado aos mediadores que trabalham na exposição contemplou atividades de exploração do parque como forma de reconhecer seu potencial como parte do programa de visitas de escolas à Bienal. É importante enfatizar que a expografia da 32ª Bienal foi concebida tendo como inspiração um jardim, no qual o visitante é convidado a vivenciar diferentes tipos de experiência, ora de maior participação e envolvimento corporal, ora de maior contemplação, em contato com grande número de obras inéditas ou comissionadas especialmente para a exposição. Ademais, alguns projetos artísticos ocupam áreas externas ao Pavilhão da Bienal, em diálogo direto com o público do parque. Esse movimento da Bienal em direção ao seu entorno é acompanhado de uma consciência cada vez mais clara de sua história e de seu papel como instituição comprometida com o experimentalismo em diferentes níveis. Nos últimos anos, a estrutura institucional da Fundação Bienal tem se orientado para uma gestão mais horizontal, com o envolvimento de todas as equipes nos fluxos de trabalho. Além disso, temos buscado nos fortalecer também como instituição de pesquisa. Em curso desde 2015, o Projeto Acervos vem desenvolvendo ações integradas para organizar, catalogar e disponibilizar as informações sobre a documentação e os eventos realizados pela Fundação Bienal, promovendo o acesso público de qualidade às coleções e consolidando assim o papel do Arquivo Bienal como centro de referência para pesquisa da arte contemporânea no Brasil e no mundo. A realização da 32ª Bienal conta com o apoio decisivo do Ministério da Cultura e do correalizador Itaú. O Programa de Itinerâncias da Bienal, por meio da já consolidada parceria cultural com o Sesc São Paulo e de sua ampliação ao Sesc Nacional, possibilitará, uma vez mais, a difusão do conteúdo trazido pela Bienal de São Paulo a outras cidades, em 2017. Em um momento histórico regido pela incerteza nos mais diversos campos, a Bienal acredita que a arte contemporânea pode contribuir de forma inovadora na abertura de possibilidades, estratégias e modelos de diálogo para encararmos um mundo em constante mudança. — Luis Terepins Presidente da Fundação Bienal de São Paulo
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O Itaú Unibanco acredita que a cultura muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo. Por isso, investimos e apoiamos diferentes formas de manifestações artísticas. Para nós, o acesso a atividades e eventos culturais aproxima as pessoas da arte e complementa o processo educacional, contribuindo para o desenvolvimento do pensamento crítico. Isso porque o repertório cultural que construímos ao longo da vida nos ajuda a entender quem somos, quais são nossos valores e o que queremos do mundo. Cidadãos mais críticos e conscientes questionam e se tornam agentes de transformação, capazes de influenciar e mudar a sociedade em que vivem. Por isso, patrocinamos a 32ª Bienal de São Paulo, evento que a cada edição se renova, recebe novas ideias e variações de expressões artísticas que ampliam o horizonte de quem participa e visita a exposição. Investir em cultura_ #issomudaomundo Itaú. Feito para você.
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Para a CTEEP – Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista – as pessoas são o principal propulsor de transformações de uma sociedade e investir em sua formação cultural é nossa contribuição para uma humanidade mais consciente. A valorização do ser humano sempre foi o principal norteador de nossa política de patrocínios a projetos. Essa premissa fundamentou nosso apoio à 32ª Bienal de São Paulo e às suas ações educacionais, que estão alinhadas ao nosso compromisso com o desenvolvimento cultural e social do país. Assim como a energia elétrica – que percorre os seus mais de 13 mil quilômetros de linhas de transmissão – é essencial para a vida das pessoas, a CTEEP sabe o quanto é vital para a população poder ter acesso a ações que promovam o seu desenvolvimento cultural e intelectual. O trabalho empreendido pela Fundação Bienal certamente cumpre esse papel e é um exemplo de empenho e comprometimento com o enriquecimento da cultura nacional. CTEEP. Sua energia nos inspira.
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A Bloomberg Philanthropies atua em mais de 120 países ao redor do mundo para garantir maior longevidade e qualidade de vida a um grande número de pessoas. A organização concentra-se em cinco áreas-chave – artes, educação, meio ambiente, inovação governamental e saúde pública para gerar mudanças a longo prazo. A Bloomberg Philanthropies engloba todas as atividades de responsabilidade social de Michael R. Bloomberg, incluindo sua fundação e suas doações pessoais. Em 2015, a Bloomberg Philanthropies contribuiu com mais de meio bilhão de dólares para a realização de seus projetos. A Bloomberg foi fundada com uma missão principal: trazer transparência para o mercado de capitais por meio do acesso à informação. A Bloomberg tem hoje mais de 15 mil funcionários, em 192 localidades, em 73 países. A força da empresa – o fornecimento de dados, notícias e análises através de tecnologia inovadora, com rapidez e precisão – está no cerne do serviço Bloomberg Professional, que fornece informações financeiras em tempo real para mais de 325 mil assinantes no mundo. Para mais informações visite www.bloomberg.org, www.bloomberg.com/professional ou siga-nos pelo Facebook, Instagram, Snapchat: Bloombergdotorg e Twitter @BloombergDotOrg
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Para o BNDES, além de ser o conjunto de expressões de um povo, a cultura é um importante ativo a ser empregado como vetor de desenvolvimento sustentável. Com seu vasto potencial de inovação, criação e distribuição de riqueza, a economia da cultura é um setor estratégico que contribui para a valorização dos atributos simbólicos do país, para a geração de trabalho e de renda, e a redução das desigualdades sociais e regionais. Com base nessa visão, o Banco trabalha para o fortalecimento das empresas criativas e dos agentes criadores, fomentando o crescimento do mercado de bens e de serviços culturais, com sustentabilidade econômica e ganhos sociais. O BNDES oferece ao setor cultural um diversificado conjunto de instrumentos de apoio financeiro – incluindo recursos não reembolsáveis, financiamentos e capital de risco – que viabilizam projetos nos segmentos de patrimônio histórico, produção audiovisual, editorial, fonográfica e de espetáculos ao vivo. Além disso, o Banco patrocina festivais de cinema, música e literatura, a edição de livros, exposições e outros projetos voltados para a difusão e a descentralização da oferta de bens culturais. Em sua sede, no Rio de Janeiro, oferece, ainda, uma programação gratuita de espetáculos de música brasileira e exposições de artes visuais. Nesse contexto, o BNDES patrocina, mais uma vez, a Bienal de São Paulo, um dos mais importantes eventos de arte contemporânea da América Latina. Além de reunir obras significativas de artistas de vários países, a Bienal desenvolve um amplo programa educativo, que contribui para a democratização do acesso à arte e à cultura. Essa é mais uma ação que comprova que a cultura também é sinônimo de desenvolvimento, e, por isso, pode contar com o nosso apoio.
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Viver o presente tal como ele é, enfrentando as dificuldades e inseguranças que se apresentam, é um desafio permanente. Em maior ou menor medida, cada um sente a urgência da busca por novas maneiras de relação com um mundo que parece nos escapar. Dessa forma, conhecer proposições artísticas que enxergam nas contingências não limites, mas possibilidades, pode ampliar as oportunidades de leitura e ação no mundo. A partir da percepção de tal potencialidade, o Sesc e a Fundação Bienal de São Paulo iniciaram, em 2010, uma relevante parceria, fruto da compatibilidade de suas missões para a difusão e o fomento à arte contemporânea. Apostando no desenvolvimento de novos projetos artísticos, a presente edição da Bienal de São Paulo consolida essa parceria através da coprodução de obras e da previsão de itinerância de trabalhos selecionados para equipamentos do Sesc no interior do estado, assim como do desenvolvimento de ações educativas. A ação compartilhada entre o Sesc e a Fundação Bienal de São Paulo reafirma a convicção de ambas instituições na formação sensível e no estímulo à autonomia das pessoas como vetores de colaboração entre os diversos, possibilitando a transformação dos indivíduos e, por que não, apontando para as possibilidades de transformação da sociedade. — Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
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SUMÁRIO 35 A incerteza como guia Jochen Volz 47 Corpo terra – Tempo lua: Reflexões sobre o chão e a incerteza entre os Quéchua-lamas da Alta Amazônia peruana Luisa Elvira Belaunde 54 Na forma de nós mesmos Rita Ponce de León com Yaxkin Melchy, Tilsa Otta e Peter Webb 71 Povos do Xingu: O resgate da ancestralidade na reconstrução da resistência Ana Laide Soares Barbosa 78 Um pescador sem rio Élio Alves da Silva 81 Do equilíbrio com os movimentos Mauricio de la Puente 86 Sem título Nancy La Rosa 91 Desaprender, perguntar-se, escutar: Uma pedagogia da incerteza? Sofía Olascoaga 101 Ao redor do fogo Álvaro Tukano 105 A fome como professora Carolina Caycedo 123 Imaginações do Mato Júlia Rebouças 129 Monarks atravessam o Apa Joca Reiners Terron 135 Quase um prólogo: Da máquina de roubar almas à máquina de registrar memórias Naine Terena 139 Neocriacionismo revisitado: Repatriação e ontologias rapanui Jacinta Arthur 150 Esboço 1, 2, 3 Dineo Seshee Bopape 151 Me ver pobre, preso ou morto já é cultural Thiago de Paula Souza 161 Tecnologias para a organização: Engajando modos de vida e ativismo Ben Vickers, entrevista por Isabella Rjeille 169 As alianças afetivas – Entrevista com Ailton Krenak, por Pedro Cesarino 189 Cosmologias de inícios e fins (e meios também): Notas sobre Dias de Estudo – Santiago Lars Bang Larsen 197 Imaginário baraditiano: Figurações do sujeito, da história e da tecnologia na obra de Jorge Baradit Macarena Areco Morales 211 Constelacional Yann Chateigné 220 Sobre os autores 224 Participantes: Dias de estudo 227 Créditos 232 Agradecimentos 240 / cartaz Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal] Rikke Luther
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A incerteza como guia Jochen Volz
No famoso ensaio intitulado “A Voyage on the North Sea: Art in the Age of Post-Medium Condition” [Uma viagem pelo mar do Norte: arte na era da condição pós-midiática],1 Rosalind Krauss desenvolve sua tese sobre o desaparecimento da especificidade do meio na arte contemporânea e usa o trabalho do artista belga Marcel Broodthaers como exemplo para descrever a tendência geral da produção artística ao longo do século 20. Krauss afirma que “elas [as instalações de arte contemporânea] recorrerão a todo tipo de suporte material que se possa imaginar, de imagens a palavras, de vídeos a objetos readymade, até filmes […], inclusive o próprio lugar da instalação”.2 Contudo, as mudanças que Krauss analisa não afetam diretamente apenas aquilo que hoje qualificamos formalmente como arte, mas também o entendimento das estratégias e das práticas aplicadas pelos artistas contemporâneos. Muitas exposições, publicações e projetos de pesquisa das últimas décadas consideram o artista um cientista, um viajante, antropólogo, analista, educador, chef, jardineiro ou arquiteto, para mencionar apenas algumas categorias. Os avanços interdisciplinares da arte foram dominantes por várias décadas, mas, nos últimos anos, aparentemente, essas dicotomias se tornaram irrelevantes. Atualmente, não tentamos entender o que o artista está fazendo ao nos perguntar se é arte ou design, se é arte ou educação, se é arte ou terapia, ou, fundamentalmente, se é arte ou não é. Em vez disso, compartilhamos uma sensação de que essas categorias e narrativas polarizadoras chegaram à exaustão, de que já não são adequadas para descrever a complexidade dos nossos tempos e que estão longe de permitir
1 Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition. Londres: Thames & Hudson, 2000.
2 Idem, ibidem, p. 15.
Pia Lindman, Nose Ears Eyes [Nariz orelhas olhos], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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3 Denise Ferreira da Silva, “Sobre diferença sem separabilidade”, in 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza viva. Catálogo. Organizado por Jochen Volz e Júlia Rebouças. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016, p. 57.
a possibilidade de, por meio da arte, vislumbrar caminhos alternativos para ir em frente. Os últimos anos, na verdade, viram reemergir a prática transdisciplinar que muito nos lembra os movimentos das vanguardas do início do século 20, muitas vezes celebrando a capacidade universal do artista. Múltiplas disciplinas, línguas e sistemas de conhecimento vêm sendo livremente apropriados por artistas, sem hierarquias aparentes. A arte é capaz de operar fora do puro pragmatismo e, diferentemente de outros campos da vida social, aceita e abraça a ambiguidade e a contradição, aceita códigos científicos e simbólicos como complementares e não exclusivos, e se alimenta de tentativas e de erros. O artista pode fazer isso; ela ou ele naturalmente unem pensar e fazer, reflexão e ação. Hoje, portanto, é papel de uma instituição como a Bienal de São Paulo não apenas apresentar a arte feita por nossos contemporâneos em diversas partes do mundo, mas também ser uma plataforma na qual essas estratégias e práticas possam ser exercitadas e experimentadas, e, o mais importante, compartilhadas com um grande público. Uma bienal contemporânea precisa desaprender e se reinventar constantemente para que surjam outras formas de práticas artísticas. Precisa levar em conta o papel do ouvinte, abarcando diferenças e antinomias sem cair na armadilha de criar novas categorias, territórios ou códigos. Trata-se da “diferença sem separabilidade”,3 como formulou Denise Ferreira da Silva em seu ensaio para o catálogo da 32ª Bienal de São Paulo. Intitulada incerteza viva, esta edição da Bienal entende a arte como a prática que promove uma troca ativa entre as pessoas, reconhecendo as incertezas como sistemas orientadores gerativos e construtivos. Como parte da pesquisa para a 32ª Bienal de São Paulo e inaugurando suas atividades públicas, uma série de Dias de Estudo nortearam o pensamento investigativo que levou à exposição. Visando discutir o panorama temático de incerteza viva com o público e com agentes de diferentes disciplinas, os Dias de Estudo ocorreram de março a junho de 2016 e expandiram a Bienal para além de seus limites temporais e territoriais, elucidando conceitos em torno da incerteza. Cada um dos Dias de Estudo ocorreu em um local específico, que serviu como ponto de partida para um projeto desenvolvido de modo colaborativo em São Paulo: Cuiabá, a capital do estado do Mato Grosso, no centro geodésico da América do Sul e coração do cerrado, um dos biomas mais ricos e mais frágeis do mundo; a savana brasileira, como portal para a Amazônia, limitada ao sul pelo Pantanal, é uma terra de solo
Víctor Grippo, Analogía I (2da. versión) [Analogia I (2ª versão)], 1970 / 1977. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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empobrecido, de monocultura, espécies extintas e conhecimentos esquecidos, um lugar sobre o qual se pode falar de extinção e preservação, abundância e seca. Em Santiago do Chile, consideramos as cosmologias e as relações imbricadas entre arte e ciência, mito e história, numa perspectiva da atualidade. A cidade de Acra, em Gana, foi o destino de retorno para africanos e seus descendentes escravizados no Brasil, espaço de vínculos e renovações, projeções e sonhos coletivos, e foi o cenário perfeito para discutir a necessidade de múltiplas narrativas históricas. E Lamas, na Amazônia peruana, é um território que contém fortes camadas históricas, que exploramos ao aprender sobre a educação quéchua e as conexões humanas tradicionais com a natureza, abordando questões sobre o que é natural e original. Os Dias de Estudos incluíram muitas caminhadas, visitas a centros culturais, comunidades tradicionais, reservas ecológicas, ateliês de artistas e centros de referência e de pesquisa, assim como conferências abertas ao público, incluindo palestrantes convidados e profissionais locais de distintas formações e disciplinas. A proposta era de que esses encontros promovessem a troca entre os anfitriões e os agentes dos projetos de cada região e pudessem fornecer bases para um diálogo a fim de desenvolver modos de pensar e criar juntos. Cada Dia de Estudo se desenvolveu a partir do contato direto com o terreno, com o solo, as rochas e as águas de cada região, com as culturas, culinárias, línguas e imaginários locais. As descobertas foram muitas. E seria preciso mais do que uma exposição da Bienal ou um quinto seminário dos Dias de Estudo, que ocorreu em junho em São Paulo, para arrematar todos os pontos levantados. Esta publicação nada mais é que uma tentativa de realizar isso. É impossível avaliar exatamente os Dias de Estudo por seus resultados, tentando descrever o que foi aprendido, descoberto e compreendido em cada um deles. Há o forte desejo de encontrar um terreno comum entre todos. E, é claro, houve muitas semelhanças nas discussões, surgidas de questões similares, preocupações comparáveis e lutas paralelas. Mas, depois de sentir as muitas qualidades das águas dos riachos que deságuam no rio Mapocho, do leito do Osu, no rio Maya ou nas cachoeiras da Chapada dos Guimarães, essa questão da semelhança é insignificante. Depois de aprendermos diferentes sentidos para palavras como memória e tábula rasa, vida e canção, resiliência e resistência, armadilha e lua, de acordo com cada paisagem, a importância da diversificação e o que pode significar potencialmente compartilhar diferenças parecem ser questões muito mais urgentes.
Dineo Seshee Bopape, :indeed it may very well be the _ itself [:na verdade isso pode bem ser _ em si], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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A imagem mental de uma trama horizontal tornou-se recorrente em muitas conversas, fortemente tecida para suportar rupturas e outros comportamentos irregulares, mas elástica o suficiente para nos conectar a todos. Além de pesquisadores e educadores de muitas áreas, ativistas, líderes indígenas, estudantes e convidados locais, diversos artistas que também participam da exposição da Bienal em São Paulo acompanharam os Dias de Estudo. Não haviam sido convidados para produzir uma obra com base em suas experiências. Mas, olhando em retrospecto, é interessante observar a maneira como cada artista traduziu uma experiência compartilhada in situ em caminhos individuais, em muitas direções e não necessariamente apenas direcionados (no sentido de causalidade) a seus projetos para a Bienal. Pia Lindman integrou magia e micróbios em sua arte, suas curas e seu ativismo ambiental. Pilar Quinteros partiu em uma viagem aventurosa de Santiago ao coração do Mato Grosso. Vivian Caccuri associou vínculos musicais, por meio de seu trabalho TabomBass (2016), entre músicos e djs de Acra, Gana, São Paulo e Rio de Janeiro. Dineo Seshee Bopape traduziu o antigo jogo da mancala em esculturas feitas de terra. Rita Ponce de León levou a experiência quéchua de uma vida relacionada e próxima à terra, associando isso ao butô japonês para fazer sua escultura interativa En forma de nosotros [Na forma de nós mesmos] (2016). Restauro (2016), de Jorge Menna Barreto, é inspirado de muitas formas pela culinária indígena e pela tradição de expor o alimento antes de servi-lo. Carolina Caycedo já havia desenvolvido inteiramente o projeto Be Dammed [Barrado seja] (2012-em curso) sobre barragens e seus terríveis impactos em comunidades locais, mas encontrou novas dimensões nas águas da cachoeira de Jamacá, na Chapada dos Guimarães. E Bené Fonteles resgatou as energias ancestrais do centro geodésico do continente sul-americano. Se a arte é uma forma de comunicação, então ela envolve ampla série de processos de tradução e transcriação, com todas as implicações perturbadoras que a teoria da informação vem estudando há décadas, incluindo o processamento de sinais, codificação e decodificação, interpretação e previsibilidade de variáveis randômicas. Quanto mais diversificadas foram as línguas, tradições e sabedorias encontradas durante os Dias de Estudo, mais variadas foram as perspectivas para a arte produzida em torno delas. E qualquer processo de fixação de significados mediante a pura semelhança, na verdade, equivale ao enriquecimento e se aproxima daquilo que Édouard Glissant sugere, quando explica:
Vivian Caccuri, TabomBass, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Se é verdade que a cada língua que desaparece do mundo, algo do imaginário do mundo desaparece com ela, então também é verdade que a cada língua traduzida para outra, esse imaginário se enriquece, por uma odisseia de buscas e subsequentes fixações do significado. Traduzir significa transpor, e portanto 4 Édouard Glissant, Kultur und Identität. Heidelberg: Das Wunderhorn Verlag, 2005, p. 37. (Tradução do autor.)
significa uma bela renúncia.4
Na arte – repleta de poéticas contrastantes e soluções formais divergentes – e na comunicação, a tradução é entendida não como o processo linear de transferir significados de uma língua para outra, mas como uma viagem em espiral de significados expansivos a partir do interior de um sistema maior de significação, guiada pela incerteza. Este livro é composto de relatos e ensaios, fotografias e desenhos de alguns dos muitos interlocutores que acompanharam o projeto de incerteza viva ao longo de todo o caminho. Não pretende apenas retraçar os trajetos que levaram à 32ª Bienal de São Paulo e que a atravessam, mas antes abrir para novas conexões e rotas daqui em diante.
Iza Tarasewicz, TURBA, TURBO, 2015. Vista da instalação na 32ª Bienal. Página dupla seguinte: Erika Verzutti, Branco, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Corpo terra – Tempo lua: Reflexões sobre o chão e a incerteza entre os Quéchua-lamas da Alta Amazônia peruana Luisa Elvira Belaunde
A primeira vez que eu vi Ailton Krenak foi em um vídeo. Ele falava da arte indígena de caminhar pela vida sem deixar no chão rastros de nossa passagem. Nos Dias de Estudo – São Paulo, o vi pessoalmente e o escutei falar novamente sobre o chão; porém, sobre terremotos e incertezas de quando a terra treme e afunda sob nossos pés. Foi uma feliz coincidência, pois eu também havia preparado uma reflexão sobre o chão. Na apresentação que fiz nos Dias de Estudo e neste texto há algumas fotografias e comentários sobre os fazeres e a filosofia da pacha, palavra que significa tempo, espaço e mundo entre o povo Quéchua-lamas da Alta Amazônia peruana, no sopé andino. Esse foi um trabalho realizado com os membros da Waman Wasi, organização sem fins lucrativos que acompanha as comunidades da região da província peruana de Lamas, desde 2002, e que, em abril de 2016, organizou a visita dos Dias de Estudo – Lamas, Peru. Enquanto preparava as fotos para a apresentação, apareceu em minha página do Facebook uma caricatura assinada pelo pensador colombiano Enrique González Ayerbe. O desenho mostra um camponês olhando com desgosto para suas unhas, e nele está escrito: “Neste país a terra está nas mãos dos que odeiam tê-la nas unhas”. Então, decidi seguir o fio dessa ironia e começar sinalizando os nossos paradoxos. Nas comunidades quéchua-lamas que visitamos em abril, vive-se a contraexemplo desses proprietários fundiários e de nós mesmos, habitantes das cidades, que consideramos suja a proximidade com o chão e insistimos em nos distanciar dele, lavando vigorosamente as unhas, nos sentando em acima: Emilio Tapullima carrega sal da mina de Tiraco e passa por Wayrapurina a caminho da comunidade de Shucshuyaku. abaixo: Crianças da comunidade de Alto Pucalpillo Shanao fazem seus deveres escolares.
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cadeiras e comendo em mesas. Logo, proponho pensar a ideia de incerteza viva na trilha dos povos cuja terra age na intimidade do corpo a corpo. Waman Wasi significa Casa do Falcão Real e é o nome da montanha que domina a cordilheira Escalera da paisagem de Lamas. Essa geografia é também uma casa, o lugar de habitação dos ancestrais e o depositário do tempo e da memória em suas pedras e cachoeiras. A conjunção das noções de tempo e espaço no termo pacha, da filosofia da paisagem quéchua-lamas, traz por consequência a ideia de que o espaço é uma forma de guardar o tempo e, inversamente, que o tempo é uma maneira de modelar o espaço. Assim, é necessário olhar, se movimentar e trabalhar na terra para adquirir o conhecimento do passado guardado nela; principalmente o conhecimento dos eventos violentos vividos pelos ancestrais que se imortalizaram naquela região. Essa violência feita pedra e nascentes são as bases e os guardiões do chão fértil, chamado allpa, no qual, hoje, os humanos constroem suas casas e fazem roçados. Por sua vez, o barro que fica sob as unhas faz as mãos se tornarem instrumentos da fertilidade do chão. Em abril de 2016, quando visitamos as roças de Lamas, vimos que, após semear uma estaca de macaxeira, os agricultores pressionavam a terra com as mãos abertas. Desse modo, a planta era capaz de dar muitos tubérculos, eles disseram, “como os dedos das mãos”. Cultivar é a arte de devolver a fertilidade do chão ao chão por meio do trabalho das mãos e dos braços, que transferem sua forma para a estaca de macaxeira, fazendo que dela brotem dedos. As imagens que acompanham este texto são fotos do dia a dia das famílias: os trabalhos, o descanso, a aprendizagem, as festas e as comidas, em que a proximidade com o chão é sempre evidente. O chão é o outro mais familiar que existe para essas comunidades. Antes de se relacionarem com alguém ou com algo, um animal ou uma planta, as pessoas relacionam-se com o chão. Pisam no chão, se sentam no chão, aprendem no chão, deitam no chão, comem no chão. Fazem crescer plantas e filhos no chão. E as mulheres, sentadas no chão, também transformam o barro da terra em panelas e cerâmica para conter e servir comida e bebida. A arte da cerâmica, uma técnica antiga em Lamas, é um processo de transformação da terra em artefatos, que, por sua vez, transformam os produtos da roça, da floresta e do rio para torná-los comestíveis e nutrir os corpos dos parentes. A argila modelada pelas mãos se torna um ventre que cozinha e fermenta os alimentos, pois a chicha de milho, uma bebida fermentada, é o complemento diário das refeições e o ingrediente indispensável das festividades. Para cada grande festa do ciclo anual, as mulheres fazem novas panelas e louça para atender os convidados.
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Especialmente para a festa de Santa Rosa, no fim de agosto, que congrega jovens e anciões das comunidades da região para beber, comer e dançar nos largos de terra batida do bairro de Wayku, em Lamas, o coração do território quéchua-lamas. Depois da festa, a louça é usada até se quebrar e retornar ao chão. Os pedaços dessa cerâmica serão moídos em pó e misturados à argila, e reutilizados pelas mulheres para compor novas panelas e louças das festas por vir. Os movimentos das pessoas que vivem nessa intimidade com o chão estão articulados a uma postura corporal impressionante, muito diferente da nossa nas cidades, que mal nos permite ficar de cócoras ou sentados com as pernas esticadas e as costas retas por poucos minutos sem sentir dor. A postura centrada, e ao mesmo tempo flexível, é um elemento vital para compreender a maneira como os homens e as mulheres encaram as incertezas de sua existência, pois ela possibilita esse relacionamento carinhoso com o chão, essa aceitação da conexão física com a terra que sustenta a percepção sensível e intelectual das mudanças que acontecem ao redor. A horizontalidade do chão é um campo de comunicação com o outro. A postura física nos leva a prestar atenção nos pequenos detalhes. Perto do chão é possível observar os efeitos das mudanças do clima na umidade da terra, na presença de vermes, fungos e insetos, na cor das folhas caídas e nos resíduos e sementes deixadas pelas aves. Sentadas no chão, as mulheres preparam a comida e conversam. Fazendo uma leve pressão com as unhas, elas extraem o feijão verde das vagens trazidas da roça. Esse parto cotidiano das sementes é uma ação que revela os sentidos daquilo que os Quéchua-lamas chamam llullo, o terno, o que requer cuidado e paciência. Essas famílias cultivam mais de quarenta variedades de feijão herdados de seus antepassados ou coletados durante viagens. O manejo das sementes é uma tecnologia ancestral imprescindível para encarar as incertezas da existência, pois, na ternura das sementes, repousa a possibilidade dos alimentos futuros e da continuação das gerações e do tempo. A lua, que rege seu calendário agrícola, também nasce terna e delicada, como uma semente. Costuma-se dizer que llullu killa, a lua crescente, está repleta de água e chora facilmente, como um recém-nascido. Quando ela se torna minguante, seca até desaparecer, porque a lua é água e suas fases governam as enchentes e as secas da seiva das plantas e dos rios Cumbaza e Mayo, que percorrem as florestas de Lamas. A lua é, na verdade, o que realmente manda nessa região. “Para mim, só as fases da lua e as estrelas me governam”, me disse com uma piscadela um agricultor, que afirmava não se submeter às
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ordens de nenhum político, mas obedecer fielmente aos astros. Uma planta semeada ou uma árvore cortada na fase lunar errada não produz nada útil para os seres humanos. Por isso, aprender a ler as fases da lua e os ciclos de suas águas é fundamental para entender os sinais do tempo, planejar e pensar alternativas diante das incertezas e das mudanças. A incerteza, porém, não é algo novo em Lamas. “Sempre houve incertezas”, nos disseram. A questão é saber se movimentar para lidar com elas, pois a resposta à ansiedade gerada pela incerteza está justamente na possibilidade de circular e acionar as redes de parentesco que se estendem pelo território. As sementes, por exemplo, precisam se movimentar, passar de mão em mão para não estancarem. As mulheres também, elas saem de casa levando suas sementes para criar filhos e plantas em outro lugar. O casamento quéchua-lamas se baseia no que nós, antropólogos, chamamos virilocalidade, isto é, depois de se casar, a mulher vai viver na comunidade do marido. Desse modo, o matrimônio opera uma redistribuição constante das pessoas e possibilita estabelecer os laços de ajuda e de fluxos de troca que o atravessam. Como a região é montanhosa, ela abarca diversos pisos ecológicos que se situam entre os 500 e 2.500 metros de altitude. Algumas comunidades se encontram na parte baixa, na beira dos rios; outras, na ladeira; e outras, ainda, bem acima. Então, o casamento faz se articularem os diversos pisos ecológicos entre si. As mulheres que cresceram nas zonas baixas e têm conhecimento dos cultivos, dos peixes, das aves, dos animais vão viver nas alturas. Aquelas que foram criadas nas alturas, vão viver na ladeira, e assim sucessivamente. Por meio desse deslocamento das mulheres, a região torna-se um território vivo. Quando nas ladeiras não chove o suficiente e os brotos de uma variedade de feijão morrem no chão, as famílias têm outras variedades mais resistentes à seca que as salvam da fome. A diversidade é a chave para lidar com as incertezas do dia a dia. E quando a situação piora e, apesar do uso de alternativas, as plantas morrem, as famílias são salvas da fome por seus parentes que vivem em outros pisos ecológicos. Nas alturas, sempre chove mais e há reservas de alimentos para sustentar os parentes nas áreas mais baixas por algum tempo, até que o clima mude e a troca de alimentos e serviços possa continuar. Mas esses movimentos de alimentos não se limitam aos momentos da crise climática. Acontecem de maneira corriqueira. Sempre que alguém visita os parentes em outro lugar, leva para eles algo de casa e volta para casa trazendo alguma coisa de lá. Assim, as refeições são variadas e muito sofisticadas.
acima: Feijão fava habitas. abaixo: Crianças da comunidade de Alto Pucalpillo trabalham choba choba, na horta escolar.
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Além dos produtos dos roçados, macaxeiras, milhos, batatas, abóboras, feijões e bananas, o menu inclui iguarias coletadas perto das roças como escargots, cogumelos, larvas de palmeiras, rãs, camarões e caranguejos. Tudo isso é temperado com sal das montanhas da cordilheira Escalera e pimentas coloridas dos quintais. Esse extraordinário manejo da agrodiversidade faz com que, apesar das possíveis penúrias, haja comida em abundância nas casas todos os dias. Essa abundância é instrumental para manter juntas as pessoas e o território, pois é nas festas com comida farta e bebida que as redes de parentesco se tecem, quando todos dançam juntos sobre o chão de terra batida. Especialmente durante a festa de Santa Rosa, que congrega os fluxos dos alimentos e das pessoas dos três pisos ecológicos da região, jovens de localidades distantes se conhecem, se olham e se apaixonam. As festas são esforços coletivos e, da mesma forma, os esforços coletivos são festas. Para todos os grandes empreendimentos, as pessoas se juntam para trabalhar choba choba, cabelo com cabelo. Há choba choba para fazer roça, para construir casas, para pescar, para limpar os caminhos, para produzir cerâmica. Unir as cabeças e os esforços é uma festa, pois a chicha e as brincadeiras incessantes animam os trabalhos. Juntar os cabelos é também mecanismo essencial para fazer da incerteza um processo de vida, pois, quando se reúnem os parentes e vizinhos, podem-se realizar trabalhos pesados e ajudar quem precisa com facilidade, num tempo curto. A postura corporal daqueles que vivem perto do chão, atentos aos sinais da terra, da lua e das águas, se traduz, portanto, numa postura social de sintonia com o outro nas redes de troca e ajuda da comunidade e do território. Entre os casais, há também uma sintonia das forças e das diferenças. A força masculina está ligada, principalmente, aos materiais duros e aos esforços intensos, como o trabalho de carga e a construção com madeira. Então, são os homens que produzem os instrumentos de madeira e os cestos utilizados pelas mulheres para carregar e cortar, moer e ralar os alimentos. No que diz respeito à força das mulheres, ela está ligada à resistência dos laços, especialmente, dos tecidos de algodão que não se desfazem facilmente e servem para amarrar as coisas e as pessoas. Sentadas no chão, elas tecem cintos chumbes que os homens usam amarrados ao redor do estômago, em cima do umbigo. Dizem que um homem que carrega muito peso sem a proteção do chumbe coloca a saúde em risco, pois as vértebras e os órgãos internos poderiam sair do lugar. É a força da mulher, feita de suave algodão das roças, que tece os laços e os circuitos de comunicação que movimentam o tempo e mantém os corpos e o território juntos.
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Uma semente é o início do tempo, como a terna lua crescente, mas contém também todas as incertezas, pois não se sabe se ela germinará, se ela criará raízes no chão onde será semeada. Foram muitas as violências do passado que se encarnaram nas formas da paisagem de Lamas, desde a época dos relatos míticos aos séculos da colonização europeia e os subsequentes booms econômicos da seringueira, da madeira, das drogas, do petróleo e do garimpo. Apesar de tantas incertezas, indissociáveis da própria temporalidade, as mulheres e os homens quéchua-lamas lograram exorcizar as ameaças constantes em sua história graças à sua admirável sintonia com o chão e o que há ao redor. Hoje, a pior ameaça que eles enfrentam não é a mudança e a imprevisibilidade do clima, mas a imposição de uma fixidez que os condenaria a abrir mão dos fluxos de seu território. Porque a maioria das terras indígenas ainda não está oficialmente demarcada e, portanto, elas estão sendo invadidas, desmatadas, vendidas ou doadas em concessão pelo Estado peruano, que, em tese, deveria protegê-las. Porque o fomento do agronegócio na região, especialmente da palma africana, tem devorado a agrodiversidade e deixado as famílias totalmente dependentes do mercado agrícola. Os rios também são postos em concessão, e não é mais permitido pescar. As montanhas da cordilheira Escalera agora pertencem a um parque de conservação onde a caça, a pesca e a coleta de sal não estão autorizadas, e os caminhantes à procura do conhecimento e da força espiritual guardada nas pedras e nas cachoeiras da paisagem não podem mais circular livremente. As incertezas de hoje residem na imposição da certeza do confinamento: não mais fazer trocas de alimentos, nem entretecer os cabelos no choba choba, nem juntar os casais nas grandes festas para que as mulheres possam levar suas bagagens e seus conhecimentos de um piso ecológico a outro. A pacha está sendo compartimentalizada, dividida por cercas, barragens e calendários que pouco têm que ver com o governo da luna terna. A pior incerteza – aquela que não é viva, mas fixa – é a certeza de saber que, ao seguir assim, não será mais possível colocar o chão e as sementes em movimento.
— Agradeço às mulheres e aos homens quéchua-lamas e a todos os membros de Waman Wasi pelo trabalho compartilhado. Agradeço, especialmente, a Gladys Faiffer, Girvan Tuanama, Gregório Sangama, Luis Orlando Romero, Jorge Rengifo e Grimaldo Rengifo por sua hospitalidade.
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Aproximação aos rios e montanhas sem fim para Rita para Nanao
Primeiro a seiva cresceu nas pedras transparentes desprendeu como um rio as pedras da falésia rodei com elas até os mares vi em meu corpo desertos e nuvens e o ecossistema em que cresci um delta de seiva no pó os bosques e os arbustos os pássaros e os planetas então, o sol e a lua transformaram nossa mente em aldeia, povo, cidade, e então na cidade palácios para ratos entre cloacas
Rita Ponce de León, En forma de nosotros [Em forma de nós mesmos], 2016. página dupla anterior: Vista da instalação na 32ª Bienal. esta página e seguintes: Desenhos e textos integrantes da instalação. Os textos dos poetas Yaxkin Melchy e Tilsa Otta e do permacultor Peter Webb foram escritos a partir do convite da artista para pensar sobre uma semente e seu desenvolvimento na vida.
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A flor se abre e o motor das sementes avança com novas flores ano após ano aqui verás a montanha caminhando nos leitos de seiva Sou como a montanha caminhando vou subindo as escadas ou esperando o ônibus na tarde com meus pequenos rituais de cinza e plástico
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Minhas palavras são como o som forte como o som dos murmúrios como a voz tua, e a de todos incluídos os insetos e que momentaneamente se cristaliza alguns veem este cristal da voz como um palácio, ou como uma árvore ou como uma falésia transparente ou talvez como uma estrela na gráfica de um telescópio hoje a vejo como uma flor feita de montanhas e rios nasceu aqui, eu a sinto em cada respiro eu a adoro, com pequenos rituais de plástico e de cinza de barro e vidro com as cores do meu sonho os olhos, as orelhas e os dedos por exemplo: as amarelas acácias
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e sรณ o poema floresce chegado seu momento porque o verso e a montanha nรฃo competem em uma dualidade significante/significado destes rios me aproximo das amarelas acรกcias serรก isto meu que respira sem meu nome estes rios e montanhas sem fim
Yaxkin Melchy, 2016
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Estou recostada sobre seu campo visual, trocando palavras com um colibri sedutor e mágico. Só um par. Porque, pelo modo como atravessou, não teria como ser mais que isso, e na verdade não era necessário. Um par de palavras bastam em quase todas as ocasiões. Tente. O silêncio ao seu redor as fará crescer fortes. Não esqueça que um par não significa dois, podem ser três ou quatro; cinco, não. O silêncio... humilde e semental, tão praticado pela maioria dos objetos, por grande parte das memórias. Muito casualmente penso em você e me começam a crescer raízes, um indício de estabelecimento, uma sede sedentária. Raízes... tão praticadas pelas pessoas, pelos números, pelas palavras. Se cresço em você, sou seu futuro imediato. Se cresço em mim, sou todo o tempo buscando o sol com o corpo.
Tilsa Otta, 2016
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No solo escuro, uma semente pequena e compacta se enche lentamente com água e começa a pulsar. Ela rompe sua casca vermelha com uma raiz branca que rapidamente penetra na terra escura. Acima, surge um broto verde e pontudo, que fura a superfície do solo. Lentamente, abre a primeira folha; explorando o espaço, tento capturar o sol na sua superfície. Vejo-a verde, brilhante. Rapidamente uma folha depois de outra sobe espiralando a haste central. Na sua dança rítmica de expandir e contrair, o espaço em torno é tomado. De repente, em cima desta “escada” de folhas, a sua largura diminui e uma pequena bola surge na ponta da haste central.
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No sol, pétalas brancas se oferecem, esticando acima das folhas verdes. Na luz, vêm borboletas, abelhas e besouros coloridos que pousam para se deliciar de néctar e pólen. Fecundada, a flor murcha e morre mas as sementes no seu útero se expandem. As folhas envelhecem e caem em cima das sementes vermelhas no chão. inspira, expira inspira, expira A vida expandida se contrai, pronta para viver novamente.
Peter Webb, 2016
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Povos do Xingu: O resgate da ancestralidade na reconstrução da resistência Ana Laide Soares Barbosa
O Movimento Xingu Vivo Para Sempre e os povos do Xingu O Xingu, um dos rios mais importantes da Amazônia, corta o estado do Pará para desaguar no litoral norte do país. O Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS) nasceu para enfrentar a maior ameaça no período pós-ditadura a esse rio: a construção da barragem de Belo Monte, que se insere em um complexo planejamento de infraestrutura e segue em ritmo acelerado de posse dessa região. Hoje com 100% de suas obras físicas concluídas – mas sem gerar energia –, o triste legado da usina hidrelétrica é a desestruturação de diversas coletividades que habitam o rio Xingu, processo cujos malefícios se intensificaram com a ameaça de instalação de mineradoras ao longo do leito do rio e da invasão de territórios indígenas, de camponeses e de comunidades extrativistas. Nesses oito anos de luta, consolidou-se como uma certeza para o Movimento e para os moradores das margens do Xingu que o caminho para o progresso e o desenvolvimento é outro. O Movimento também ampliou sua ação e suas articulações na região apoiando o Movimento Ipereg Ayu do povo Munduruku, contrário à construção de barragens no rio Tapajós. Tem lutado ao lado dos povos indígenas em diversas ocupações, e também com pescadores, com indígenas não reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai), com camponeses e camponesas humilhados pela empresa que constrói Belo Monte. A resistência das comunidades ribeirinhas, indígenas, de pescadores e pescadoras, agricultores, moradores dos chamados baixões, oleiros, carroceiros, areeiros e garimpeiros de Altamira, no Pará, e seu entorno,
acima: Cachoeira do Jericoá, Volta Grande do Xingu, 2006. abaixo: Usina Hidrelétrica de Belo Monte, Altamira, Pará, 2016.
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enfrentou durante anos inúmeras pressões de dominação em seus territórios e em sua vida. Nos âmbitos socioeconômico e ambiental, as pressões mais recentes e devastadoras foram geradas por Belo Monte e pela mineradora canadense Belo Sun. O Movimento percebeu que uma das mais bem-sucedidas estratégias dos empreendedores do projeto Belo Monte (o governo federal e o Consórcio Norte Energia) foi separar ao máximo as comunidades e os grupos sociais organizados, utilizando para isso propagandas enganosas e compensações em forma de dinheiro e bens materiais que beneficiaram mais as lideranças e menos, ou quase nada, as comunidades e os grupos étnicos. O Plano Básico Ambiental (PBA), que seria uma medida de mitigação para a preservação das culturas indígenas, por exemplo, se transformou em um balcão de negociação, agravando a dependência dessas populações em relação ao consumismo e diminuindo de modo significativo o cultivo da terra, a coleta nas florestas, a pesca e a caça.
Aricafu Xipaya pesca na cachoeira do Jericoá, Volta Grande do Xingu, 2006.
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Com base nesse diagnóstico, a atuação do Movimento se intensificou com o objetivo de fortalecer ações coletivas, prezando pela unificação dos grupos que são vítimas de Belo Monte e da mineradora Belo Sun. Assim, o Movimento dedica-se ao trabalho de base por acreditar que somente com a inserção nas comunidades e no cotidiano desses povos, encontram-se, juntos, os caminhos a serem trilhados na resistência organizada das comunidades tradicionais na defesa de seu meio de vida e de seu território. Um dos elementos fundamentais que criou uma pedagogia do lidar com a pressão oficial do governo sobre essas comunidades foi a busca da identidade, o resgate da ancestralidade,1 da fé e da crença nos encantados, no sagrado, da recuperação dos rituais e das simbologias como forma de proteção ou de agradecimento pelas conquistas alcançadas, mesmo que insignificantes (como o simples fato de conseguir, à força, entrar na reunião fechada entre engenheiros da Norte Energia S.A. (Nesa) e algumas lideranças). Tomar consciência é despertar a memória para o fato de que o
1 Por resgate, entende-se libertar os ancestrais, os encantados, pois estamos em dívida com eles e com o Universo. A quitação dessa dívida está sendo paga com a própria vida: dos rios, das matas, dos animais, dos povos tradicionais, da Terra por inteiro.
Saudação ao rio Xingu durante o encerramento do encontro Terra Livre, que reuniu etnias de toda a Amazônia em Altamira, 2010.
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chão onde se vive hoje foi preparado pelos antepassados e nos foi deixado como herança material e imaterial de vida ainda plena e em abundância na Amazônia. Garimpar o mais profundo entre o coletivo e individual de suas experiências cotidianas à procura do mais precioso talento entre o saber, o ser, os sabores, os ritos e os símbolos dos costumes culturais proporcionou a certeza de que, além desse mundo pariwat (na língua munduruku, o não indígena), existe outro mundo do qual somos herdeiros e no qual convivem conosco os encantados: a Cobra-grande (mãe dos rios), o Jabuti (o animal mais inteligente para os Munduruku, reconhecido por suas vitórias em relação aos maiores animais da floresta), o Curupira (senhor das matas e das caças). Esse mundo está presente no simples ritual de molhar as mãos na água do igarapé, do poço, e com as mãos molhadas tocar a testa em sinal de permissão e de respeito à Mãe-d’água para utilizar sua água; está presente também quando o camponês ou o caçador deixam tabaco ou fazem uma poqueca de cipó escondendo as pontas para o senhor Curupira, pedindo proteção. Dos ancestrais, o que trazemos é sua mais significante criação, o cultivo da terra preta ou terra de índio, o sinal mais sagrado da fertilidade do solo. Nisso está a mão generosa e feminina dos antepassados, prova de que habitam o nosso meio. Apesar de serem alvo de uma tentativa sofisticada de aniquilamento por parte dos pariwat, esse contato e a vivência com o mundo cosmológico ou invisível dos ancestrais de comunidades originárias e tradicionais proporcionou sua resistência e sua ressignificação por centenas de anos de colonização e de escravidão. Esse mundo é real e se encontra nas experiências dos povos indígenas, das comunidades tradicionais e em suas práticas cotidianas. As minhas vivências Pescador rio abaixo pescador rio acima bebe um gole de cana e enfrenta a maré dá um gole pro santo e espanta o quebranto 2 Canção “Nova Aurora” que integra o cancioneiro ribeirinho, autor desconhecido.
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e sai a pescar com fé.2
Em janeiro de 2011, foi promulgada a primeira Licença de Instalação (LI) para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Nessa época, fui convidada por um grupo de entidades para articular as comunidades tradicionais na luta contra a implantação da hidrelétrica. Em minhas andanças e
em meus contatos com os movimentos em luta de Altamira, percebi um vazio; os pescadores e pescadoras configuravam esse vazio com sua ausência nos debates, nas reuniões. Isso chamou a minha atenção. Ao indagar sobre eles, encontrei duas pessoas que me levaram aos baixões (bairros onde os igarapés Altamira, Ambé e Panelas cortavam a cidade). Ali, a maioria dos moradores era de pescadores e ribeirinhos. Estabeleci os primeiros contatos, e marcamos o retorno. Ao voltar, havia mais pescadores e pescadoras, e sempre iniciávamos as conversas ouvindo casos de suas pescarias, os perigos, as vendas, o gosto pela profissão, e terminávamos com uma simbologia. É claro que, durante a reunião, discutíamos sobre a barragem e a proposta deles para os pescadores. Foi nesses encontros que descobrimos que os pescadores e pescadoras não sofreriam impacto, segundo a empresa Norte Energia S.A. Duas dessas simbologias me chamaram a atenção. A primeira delas se deu quando começamos a tecer uma rede e, durante esse trabalho, cada um falava de suas esperanças, sofrimentos e histórias dos antepassados. Isso gerava uma força tão grande que chegava a arrancar lágrimas dos presentes. Essa simples ação foi juntando uma categoria de pescadores e pescadoras que se encontrava bem desalinhada com o mundo real que os cercava. Esse ritual símbólico se repetiu com todos os grupos que conseguimos reunir em Altamira e em Porto de Moz, no Pará. A segunda simbologia foi uma bacia com água limpa, que, ao final da dinâmica, se transformava em água podre. Ali estava o atual retrato do Xingu. Essas experiências renovavam as esperanças dos pescadores, valorizando sua identidade – que estava esquecida –, resgatando sua cultura e exigindo cada vez mais sua participação nas discussões – eles compunham as reuniões das organizações de resistência a Belo Monte. Concluímos essa primeira etapa com um ato de desobediência civil: realizamos uma pescaria comunitária em pleno período de piracema (período de desova dos peixes), época em que a pesca é proibida no rio Xingu. Cerca de 250 famílias de pescadores, ribeirinhos e indígenas passaram três dias pescando, capturando aproximadamente dez toneladas de peixes, que foram colocadas na orla de Altamira para alimentar o povo. A sobra foi doada para entidades de caridade. Enquanto o povo se servia no banquete dos pescadores, eles iam emendando os pedaços de redes que chegavam, um símbolo de sua união em defesa do rio Xingu, que sempre foi seu pai e sua mãe. Os pescadores e as pescadoras, conscientes do perigo de ser presos ou condenados a pagar multas altíssimas ao infringirem a lei do período
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de defeso caso o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) os encontrasse pescando, se arriscaram. Usando os saberes tradicionais, eles não capturaram peixes ovados, espécies ameaçadas de extinção e fora do tamanho permitido por lei. Demonstraram, assim, vasto conhecimento sobre o ambiente pesqueiro, suas variedades de espécies e formas de pescar, utilizando instrumentos adequados para cada tipo de pesca e de peixe. O rio é meu professor A canoa, minha escola Meu remo é o meu lápis Com ele escrevi minhas histórias.3
O saber tradicional dessa categoria ocorre na escuta. Certa vez, na comunidade de pescadores de Quatipuru, no nordeste paraense, um pescador me disse que, para saber o rumo que um cardume de pescada amarela está tomando, ele encosta o ouvido no assoalho da canoa para ouvir o som emitido por esses peixes, guiando sua direção. Está no olfato: meu pai descobria o cardume jogando um prumo na água, depois puxava e cheirava para saber o tipo de peixe e a profundidade. Está no tato: os pescadores de mapará4 em Cametá, no Pará, com uma tala de guarumã (planta de várzea amazônica) tocam o cardume para saber o tamanho do peixe e a quantidade. Está na visão: as estrelas os guiam, assim como a lua indica a melhor maré para pegar peixe. Todas essas práticas fazem desses pescadores e pescadoras pessoas totalmente ecológicas, ambientalistas, espiritualistas. Se um boto passasse duas vezes boiando próximo da canoa, não pescavam mais naquele dia, e se uma Matinta Pereira5 assobiasse durante a noite, próximo da canoa, era sinal de agouro. Sabiam tirar o necessário sem desperdício e respeitavam o ciclo de vida das espécies, lidando com o manejo das águas. E por terem muito conhecimento das plantas de que os peixes necessitam, são guardiões das matas ciliares dos rios e dos manguezais.
3 Trecho retirado da fala de Élio Alves da Silva, pescador expulso de sua moradia pela implantação da Usina de Belo Monte.
4 Peixe nativo dos rios da Amazônia [N.E.] 5 Matinta Pereira é uma mulher que se transforma em pássaro. Segundo a história narrada pelos mais velhos da nossa comunidade, ela percorre sete cidades em cada transformação. O assovio é seu aviso; quem ouve tem que oferecer fumo ou fazer rituais – o mais comum é dormir nu –, entre outros. Caso contrário, a pessoa vê assombrações, fica perturbada, tem tremores ou outras reações ligadas ao sobrenatural.
acima: Cachoeira do Jericoá, Volta Grande do Xingu, Pará, 2006. abaixo: Reassentamento Urbano Coletivo São Joaquim, Altamira, 2016.
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Um pescador sem rio Élio Alves da Silva*
Sou um pescador sem rio
Às vezes pra desabafar
Pescador que sonha
Às vezes pra não chorar
Pescador que luta
E às vezes até pra se alimentar
Pescador que pensa um dia
Alimentar a esperança de que um dia
Realizar um sonho
esse sonho vai se realizar
Um sonho de voltar a pescar
Se realizar por quê?
Um sonho de voltar a viver
A nossa esperança
Um sonho de voltar a sorrir
É a última que morre
Porque tudo isso eu perdi
E eu continuo
Perdi pra dar lugar a um monstro
Sonhando um dia
Se chama Belo Monte
Ter de novo um rio
Coisa que apareceu do nada
Pra mim pescar
Coisa que apareceu pra destruir vidas
Pra mim se divertir
Coisa que apareceu pra matar as pessoas
E pra mim voltar a sorrir
Coisa que o governo fala que é progresso
Sorriso esse que faz tempo que eu não tenho
Pra nós, pescadores
direito de ter
Isso não é progresso
Faz tempo que eu não sorrio
Isso é destruição
Faz tempo que eu não tenho alegria
Destrói vidas
Faz três anos que a minha vida parece até que
Destrói os sonhos
acabou
Destrói tudo
Mas, pelo contrário,
Eu, como pescador,
A minha vida renovou
Estou aqui falando estas palavras
Renovou as esperanças
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Renovou a perseverança
Sonho e sonho muito
De continuar lutando
De um dia desatracar este barco
Lutando por uma coisa que um dia fez parte da
Levantar esta vela
minha vida
Ou funcionar este motor
Viajar num rio
Ou sair remando
Passar a noite no rio
Por que com o meu remo
Tirar o meu sustento
Escrevi as minhas histórias
Tirar a minha alimentação
Que eu sempre conto pras pessoas
Tirar a alegria de viver
E eu vou continuar escrevendo essa história
De tudo de um rio
A história de um pescador sem rio
Aonde que eu tive o prazer de criar a minha
Que ainda sonha um dia chegar lá
família
De uma maneira ou de outra eu estou aqui
E viver uma vida razoável
Mas eu ainda não morri
E eu estou falando estas palavras
Continuo de pé
Eu estou gravando este vídeo
Continuo de cabeça erguida
Pra me recordar
Eu continuo pensando
E deixar o meu recado
E continuo sonhando
Sou um pescador que não tem rio
As pessoas que tenho do meu lado
Sou um pescador que sonha viajar
As pessoas que vai me ouvir
Sou um pescador que sonha navegar
Se ainda não tem uma história pra contar
Um barco da esperança
Eu peço a vocês que coloque a cabeça sobre o
Que nunca do porto saiu
meu ombro
Porque ainda tá na mente
E chore junto comigo
De voltar um dia a ter um rio
Que a minha história pra vocês eu vou contar
Quero dizer pra vocês: eu sonho * Poema transcrito a partir de vídeo enviado pelo autor. [N.E.]
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Do equilíbrio com os movimentos Mauricio de la Puente
Alguns de nós nos reconhecemos nômades, migrantes, descendentes de migrantes que foram descendentes de nômades, e assim sucessivamente. Temos muitas origens, impossíveis de rastrear, assim como existem territórios sem nome. Não temos tradição em particular; tampouco somos ou sentimos que pertencemos a algum povo ou a um lugar específico, e sequer nos identificamos com algum costume. É assim, e isso não configura um problema. Depois de algum tempo, sei que aprendo a linguagem dos movimentos da natureza observando e me relacionando com seus ritmos, suas dimensões, suas formas de ser, sua escala espacial e temporal, seu centro e periferia, suas formas de se anunciar e de desaparecer, sua identidade nas mudanças e maneiras de ser. Posso reconhecer um tecido de ritmos e conceber suas interações como um conjunto de sujeitos que manifestam diversas identidades, entendidas como as distintas formas que podem estar sendo. Entendo que se aprende, se codifica e se simboliza de muitas formas. Aprende o corpo, aprendem as mãos, os ouvidos; aprende-se a partir do ritmo das dores e dos sonhos, todas as formas de aprender estão sempre presentes. Também sei que os territórios – selvas, desertos, bosques, lagoas, manguezais – são habitados por pessoas que se autonomeiam de muitas formas, que falam línguas diversas e que, no que concerne às experiências de reciprocidade com a natureza, todas as linguagens para enunciá-la são verdadeiras. Entendo que a experiência coletiva de reciprocidade com a natureza gera linguagens, ao nomearmos determinada experiência, por meio de gestos, de olhares, silêncios, daquilo que compartilhamos, daquilo que
Pierre Huyghe, De-Extinction [Des-extinção], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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entregamos. E nada mais é necessário; essas linguagens são suficientes para nos relacionarmos. Por sua vez, reconheço que em toda parte encontramos pessoas interagindo com os ritmos que as rodeiam, lendo seus movimentos, escutando, cheirando, encontrando sentido e criando linguagem da relação entre o que fazem e o que acontece. Seja onde for, também encontramos pessoas que veem a natureza por meio de uma linguagem que lhes diz que ela é composta de um conjunto de coisas que existem para que as transformemos em outras que consideramos mais valiosas. Por onde quer que caminhemos, há distintas formas pelas quais alguns lutam contra outros – alguns, para que na natureza permaneça a diversidade de seres que a habitam, outros, para que algo reste para ser aproveitado. É nesse lugar que me encontro, para pensar como a arte pode reconfigurar as relações entre a multiplicidade de conhecimentos, comunidades e ambientes naturais, gerar novas formas de relação e de linguagem para nos conhecermos, nos comunicarmos e cooperarmos na construção de outras realidades. Reconheço esferas conceituais vinculadas à arte que, combinadas, poderiam reconfigurar de modo significativo sua interação com atores com os quais se compartilham vontades e caminhos. Eu as enuncio separadamente, como antecedente para visualizar o que podem significar, apoiando-me em termos de um objetivo específico: a partir da arte, articular outras possibilidades de reciprocidade com a natureza, baseando-me na diversidade biológica e cultural. Uma esfera é o reconhecimento da variedade de epistemologias. Há, na arte, ampla tradição nesse tema. Não se aprende apenas de uma forma, aprende-se por meio do e com o corpo; por meio do e no som; na imagem, por meio dos afetos, da leitura dos espaços; entre muitas outras formas. Não estão predefinidas; são. Outra é o diálogo de aprendizagens que derivam do encontro dessa diversidade de epistemologias. Ocorrem no processo criativo; dialogam, no interior do artista, territórios com lógicas distintas, linguagens distintas, códigos e valorações distintas, que geram obras e, na interação com elas, dialogam saberes e afetos, interesses e preconceitos; dialogam com a diversidade de formas pelas quais os sujeitos tomam como suas as aprendizagens e as colocam ou não em interação com outras formas de gerar conhecimento. Outra esfera é o modo como as relações nas quais se põem em jogo uma
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infinidade de diálogos afetivos, cognitivos, emocionais, éticos, estéticos e políticos são geradoras de sujeitos e de subjetividades, e não reuniões entre entidades monolíticas que buscam acordos e desacordos; ou são as duas, ao mesmo tempo, núcleo e periferia de ecossistemas de significados tecendo relações e encontrando novos sentidos para as imagens dos outros e para as imagens de si mesmos. Também há um amplo caminho percorrido e analisado da perspectiva da performatividade, do teatro, da plástica social e outras palavras que usamos para nomeá-lo na arte. Outra é o poder dos atos criativos de descolonizar as formas de pensar, sentir, fazer e estar no mundo, particularmente com base na compreensão da colonização e descolonização como processos coletivos dos quais participam uma infinidade de sujeitos, não como narrativas de salvação ou tragédias que ocorreram em outro tempo, mas sim como algo que está acontecendo sempre e em que nossos atos estão implicados cotidianamente. Isso também reconheço como uma esfera conceitual ativa e crítica da arte. Outra é o reconhecimento de que as formas pelas quais enunciamos o mundo não são neutras, têm história e sentido. Não é o mesmo dizer natureza, entorno, pachamama, casa comum, gaia, meio ambiente, capital natural ou ecossistema. Há profundidade significativa nas formas pelas quais alguns artistas exploram e atuam nos mais distintos territórios em que entram em jogo as dimensões políticas de nomear o mundo. Se considerarmos o que foi exposto anteriormente (coexistência de epistemologias; diálogo de esferas cognitivas, afetivas, éticas e estéticas nos processos de aprendizagem; geração na reciprocidade de sujeitos e subjetividades; atenção para descolonizar o olhar e consciência das dimensões políticas da linguagem), o que muda na maneira como reconstruímos as relações de equilíbrio com a natureza em contextos de diversidade cultural e biológica? O que muda, se considerarmos tudo isso, nas imagens e nos significados que atribuímos ao que outros fazem para construir relações de equilíbrio com o movimento? Como imaginamos os significados que emergem naqueles que percorrem a selva para escutar a palavra dos espíritos que a habitam? Que sentido damos ao ato de gravar nas pedras, durante milênios, seguindo ritmos solares-lunares, as manifestações da natureza? O que podemos entender daqueles que se reúnem periodicamente para nomear, juntos, todas as estrelas, todas as nuvens, todas as pedras, as águas, os animais, as plantas, para que não desapareçam? Se levarmos a fundo o exercício de descolonizar a imagem que temos
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das culturas ancestrais, podemos nos aproximar da diversidade de expressões dessas culturas sem pensá-las como representações de crenças, mitos, ritos, cosmovisões, reis, deuses, lendas de origem e tantas outras categorias coloniais de interpretação. Se o fizermos, conseguiremos apreender e visualizar categorias da linguagem, conceitos que se referem a uma pluralidade de entidades da relação com o mundo abstrato e concreto, espaciais e temporais, diferentes escalas de organização, relações cognitivas, afetivas, emocionais, materiais, conceitos para nomear as variações da linguagem em suas manifestações, conceitos para nos referir às formas pelas quais seus movimentos se correlacionam no espaço e no tempo, nomes que falam das formas pelas quais se anunciam sua presença e ausência. A partir de um exercício profundo de descolonização do olhar podemos conceber que alguns ancestrais abraçaram uma forma de se relacionar com o mundo na qual a linguagem era apenas o espelho de um tecido de ritmos e cabia a cada tempo e a cada sujeito encontrar os referentes concretos e os significados de suas manifestações. Podemos imaginar que as linguagens que eles desenvolveram foram cartografias, códigos e partituras do movimento, uma esfera conceitual para encontrar significados, não uma ferramenta para transmiti-los. Imaginar que habitam um mundo que sempre muda, procurando e fazendo linguagem a partir das formas pelas quais as mudanças se relacionavam em suas manifestações por meio de escalas, geometrias e ritmos que também estão mudando. O que acontece se voltarmos a nomear os tempos em função dos ciclos do sol, da lua, dos planetas e das estrelas, nomear os espaços em função das unidades distinguíveis da paisagem e dos seres que os habitam, nomear identidades com base em referentes específicos que emergem da relação com o que nos rodeia, com o que está acontecendo em cada tempo e espaço? Como mudam a geração de conhecimentos, as possibilidades de comunicação, a capacidade de formar redes de colaboração, os modos de compartilhar, se reconstruímos processos geradores de linguagens em que os movimentos das manifestações do mundo sensível e os movimentos da linguagem são espelhos, nos quais o movimento da diversidade e a diversidade dos movimentos do mundo sensível e das abstrações para concebê-lo são recíprocos? O que significa, em termos de alternativas de equilíbrio com a biodiversidade, reconstruir formas de estar nas quais os significados dos tempos, dos espaços, das relações e das identidades não estejam normatizados nem padronizados? Acontecem muitas coisas.
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Desenvolvem-se processos nos quais transitamos de uma visão da natureza como matéria, que obedece a leis universais, à visão da natureza como um texto que pode ser lido, como manifestações da linguagem de sujeitos diversificados. Começamos a habitar fronteiras conceituais que dividem a sociedade e a natureza, eles e nós, humanos e não humanos. À medida que se habitam essas fronteiras, elas vão formando territórios para os ritmos da experiência de reciprocidade. O que eram fronteiras, na linguagem normatizada, “categorias para separar”, se transformam em esferas conceituais nas quais os atos coletivos de conhecer, comunicar, colaborar e compartilhar são significados. Muda a relação entre linguagem, aprendizagem e experiência. Transitamos de aprendizagens e experiências mediadas pela linguagem a linguagens que emergem das aprendizagens da experiência. Mudam também os formatos e as logísticas dos processos de encontro e de aprendizagem; quando os tempos e os espaços nos quais se realiza a relação de reciprocidade são adequados aos ciclos naturais e à geometria da relação com o território, ritualiza-se a dinâmica espaçotemporal dos processos de aprendizagem. Encontramos outros ancestrais; sujeitos, antes invisíveis, emergem; nascem outros passados e, com eles, outros presentes, outros futuros. Vamos construindo os caminhos, da linguagem do controle às linguagens dos equilíbrios. Entre muitas outras coisas.
páginas seguintes: Nancy La Rosa, Sem título, 2016. Ensaio de imagens pinhole realizado durante os Dias de Estudos – Lamas, Peru.
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ÉL SE PRESENTÓ ASÍ, YO YA SABÍA QUIEN ERA.
HAY GENTE QUE ES MONTE.
ELE SE APRESENTOU ASSIM, EU JÁ SABIA QUEM ERA.
TEM GENTE QUE É MATO.
TODO ESTÁ CULTIVADO. LA VUELTA DE LA TIERRA EN LA COSECHA.
ENLAZAR, ANUDAR, DAR LA VUELTA, PERO SE ENGANCHA. TEJIDO EN REDES.
TUDO ESTÁ CULTIVADO. A VOLTA DA TERRA NA COLHEITA.
ENLAÇAR, ATAR, DAR A VOLTA, MAS SE ENGANCHA. TECIDO EM REDES.
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Desaprender, perguntar-se, escutar: Uma pedagogia da incerteza? Sofía Olascoaga
Em meio às crises cultural, econômica, sistêmica, ambiental e aos desafios globais que essas crises impõem, surge uma questão: por que retornar – talvez tardiamente – às experiências de organização de vida comunitária provenientes de tradições culturais de alguns povos originários na América Latina? Como fazer isso partindo da experiência autocrítica, que assume a própria ignorância e também o desejo de aprendizagem dialógica, de autoquestionamento, que reconhece os tipos de saber e de conhecimento construídos para além das lógicas acadêmica e científica, reconhecidas e promovidas conforme os paradigmas da cultura ocidental? Como fazer isso sem reproduzir – ainda que com as melhores intenções de reconhecimento e horizontalidade – as lógicas extrativistas de conhecimento e de vitalidade de “o outro”, “do outro”? Em seu livro Una epistemología del Sur: La reinvención del conocimiento y la emancipación social,1 o sociólogo Boaventura de Sousa Santos fala de uma ecologia de saberes na qual estão presentes, sem distinção quanto à originalidade nem à lógica histórica, tanto o conhecimento particular como os saberes acadêmicos. O sociólogo propõe e aposta na perspectiva dialógica como possibilidade de encontro e de reconhecimento mútuo, que favorece a aprendizagem e toma como ponto de partida o esclarecimento da ignorância relativa tanto ao outro como à construção compartilhada de respostas aos desafios globais, às urgências não teóricas mas decorrentes das lutas pela vida e pelo direito à coexistência de diversos modos de vida. A proposta é, portanto, a de nos assumirmos assim, ignorantes esclarecidos.
1 Boaventura de Sousa Santos, Una epistemología del Sur: La reinvención del conocimiento y la emancipación social. Buenos Aires: Siglo XXI, Clacso, 2009.
Eduardo Navarro, Sound Mirror [Espelho de som], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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No anseio de ser posta em prática, essa ecologia de saberes abarca a exploração de diferentes modelos de conversação e das condições para que os encontros e os diálogos sejam possíveis. Ao ocorrerem, esses diálogos certamente incorporam contradições, pontos cegos, defasagens entre o desejo, a intenção e a forma de seus dispositivos. No entanto, eles podem, talvez, ampliar-se de uma perspectiva ética e partindo do conflito, “desaprendendo” e abrindo possibilidades para diálogos transformadores, das posições de onde terão partido cada um dos dialogantes envolvidos. O agrônomo e educador peruano Grimaldo Rengifo nos lembra: Considerando os desafios globais [como a necessidade de responder e sobreviver aos efeitos da mudança climática sobre os ciclos de cultivo, e a incerteza sobre o acesso aos recursos básicos e, portanto, sobre a própria sustentabilidade de diversas vidas individuais e coletivas], nenhuma tradição, isoladamente, tem as respostas e as alternativas para mitigá-los por si só. Precisamos, então, articular as ferramentas possíveis e todas as tradições. O diálogo de saberes tem como precondição a equivalência e o respeito. Resta a difícil e complicada tarefa de promover o diálogo entre cosmovisões ou a renovada imposição de um conhecimento novo à custa da perda ou do 2 Grimaldo Rengifo,
ocultamento do antigo.2
“Conocimiento previo, conocimiento otro”. Lima: Pratec, 2014. Publicado em: El retorno a la naturaleza. México: Cooperativa Editorial El Rebozo, 2015, pp. 37-49. (Série Tejiendo voces por la casa común).
Rengifo contrapõe o conhecimento ocidental e a criação que uma comunidade vivencia em seus vínculos de relação, de diálogo e de participação entre seus integrantes, e, em contraste, ressalta a questão do indivíduo e de seu desprendimento da visão comunitária – que tende à busca do bem-estar de um ser autônomo. A aprendizagem no seio de uma comunidade se dá mediante os vínculos de empatia que se estabelecem entre todos os seus membros, assim como através do caráter sensorial do saber – que não consiste em apenas conhecer por meio da abstração ou da separação em relação ao meio, mas sim por meio da participação inclusiva no mundo, do qual o camponês ou membro de uma comunidade é parte incompleta, pois o humano convive sempre com o natural e com o sagrado de forma integral. Precisamos ir além dos enunciados teóricos e das epistemes que se encontram por trás da diversidade de práticas para superar os desafios globais e para nos regenerarmos na diversidade. Não duvido que o desenvolvimento e a reflexão sobre esses temas devam ser obrigatórios, mas são insuficientes. Esse ir além se
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refere à necessária exploração do papel das emoções, das sensações e das afetividades humanas na educação intercultural e, certamente, das tradições educativas que fazem do corpo o próprio centro de aprendizagem para a vida. Devemos ir além da metáfora arraigada e predominante que faz do pensar analítico a base do desenvolvimento da pessoa. É necessário recentrar o pensar, retirá-lo de seu assento privilegiado localizado em algum lado do cérebro, para colocá-lo no caminho do coração e da vivência.3
3 Idem, ibidem.
Como estabelecer uma arena comum para que os saberes dialoguem? Como produzir ecos da aprendizagem que pode surgir do cruzamento de cosmovisões em outras esferas da vida?
Pelo direito a duvidar de nós mesmos: “De perto, ninguém é normal”4
4 Verso da canção “Vaca profana”, composta por
Se o mundo, tal como o conhecemos, se extinguir, nós também seremos extintos.
Caetano Veloso, incluída no álbum Totalmente demais, de 1986.
Uma tartaruga Muito perto dos dias em que começamos a trabalhar em conjunto como equipe curatorial para construir o espaço e tecer em diálogo o projeto agora chamado Incerteza viva, comecei a identificar a presença quase onírica de uma imagem recorrente: a tartaruga. Em uma viagem de despedida familiar antes de empreender o processo em São Paulo, nos encontramos com cerca de 4 mil tartarugas chegando para a desova em uma praia da costa de Oaxaca, no México. Vivenciei isso como um golpe imediato de quebra de sentido: nós acreditamos que conhecemos nosso tempo, que sabemos o que somos e o que fazemos, mas, de súbito, o encontro com um ser que vive a dimensão do tempo em outra lógica coloca tudo em uma nova perspectiva. As tartarugas em questão nasceram nessa praia de Oaxaca, à qual retornam a cada 7-8 anos para botar 80 a 100 ovos cada uma. Desse número, sobreviverão apenas poucos exemplares, que, por sua vez, voltarão para completar esse mesmo ciclo. Nós nos guiamos por referências e medidas da produtividade cotidiana, de acesso econômico e cultural que deveria ser proporcional à trajetória profissional, amparada por uma lógica do tempo produtivo, laboral, de progresso. No entanto, experimentamos que, no cotidiano, essa dinâmica
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poucas vezes é sustentável: Onde fica o tempo da vida? E o tempo dedicado ao intercâmbio intergeracional? E o tempo ocupado sem um aparente objetivo funcional? Sonhei com uma tartaruga caminhando pelo Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Em meio a uma exposição de arte contemporânea, uma bienal. Duas temporalidades confrontadas: a de um visitante que dá uma volta, percorre a mostra, para, repentinamente, entrar em um espaço da exposição e se confrontar com um ente vivo, que caminha num ritmo próprio. Nesse encontro, talvez ambos os tempos entrem em colapso. Para aprender, é necessário desacelerar. Sair do ritmo urbano e se colocar, com todo o corpo, à mercê de outras lógicas do tempo, dos intercâmbios pessoais e afetivos, do que ocorre como possibilidade quando um plano pré-desenhado falhar ou – afortunadamente – não se cumprir como o previsto. O tempo não produtivo. O tempo centenário. O tempo fora do calendário gregoriano. O tempo não ditado pelo trabalho humano. Manada De onde vem o profundo instinto, a necessidade, a potência transformadora e criadora do estar e do fazer com outros? Na falta de palavras menos desgastadas – por exemplo, comunidade, convivência, coletividade –, penso em manada como possível metáfora para essa questão. Estar juntos, estar com os outros tem o sentido de sobrevivência. O desprendimento de nosso cotidiano estável, coerente, plausível, procurado, criativo estraçalha as promessas de consumação de projetos de acordo com a lógica do progresso individual. Se não for com os outros, não chegaremos a lugar nenhum. Como se faz, então, para compartilhar, tanto no contexto da liberdade de criar quanto no contexto do medo? Uma arte, por vontade, coletiva. Aberta às intervenções, colaborações, transformações, de todos aqueles que pretendem participar. Permeável aos agentes não especializados nem autorizados, nem autorais. Fazer com os outros. Ser com os outros. Fazer juntos. Imaginar juntos. Fazer, aprender, desaprender. Escutar. Observar. Nas práticas. Fazer imaginar acionar ensaiar aprender afirmar escutar. Uma dimensão colaborativa de fundo e uma pergunta sobre as formas de nos relacionar com os outros. Os outros? Nós?
Ruth Ewan, Back to the Fields [Volta ao campo], 2015 / 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Outras coletividades, nas quais se incluem as não humanas, também dialogam. Outras coletividades nas quais os ritmos e os ciclos não são aqueles que predominam no imaginário do cotidiano urbano. A escuta Será que se pode subverter a inércia – algo que costuma ser tão bem aprendido – de explicar, entender, interpretar o que se vê e o que se vive, de se pronunciar e se situar diante da realidade? Será possível se colocar ou se assumir no lugar da ignorância e, consequentemente, se entregar à escuta? A escuta do que surge quando se esvazia o ruído de nossas afirmações. Território Vivos nos queremos. Corpo. Lugar de aprendizagem. Meu corpo é meu território. Direito de vida. Direito de território. Voltar à água. Fazer corpo – imagem – denúncia, afirmação de vozes vivas. Devolver a voz de uma terra tratada como recurso. A Gente Rio. Nós! VIVOS! Resistir, existir, VIDA. Perante tanta morte. 5 Essas frases se referem
Pronunciar-se coletivamente, desde as mesmas terras, para cima.5
ao trabalho de Carolina Caycedo, A Gente Rio – Be Dammed, concebido para a 32ª Bienal de São Paulo, o qual acompanhei bem de perto.
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Resgatar-recordar-re-escutar-reaprender-reobservar os saberes do corpo, os saberes comunitários, os saberes intergeracionais, os saberes não acadêmicos, os saberes de sobrevivência, os saberes da vida e do cultivo, da água e da terra, que se apagam quando um povo é apagado. Esse processo de apagamento sempre encontrará resistência e, nas formas de protesto, criam-se, talvez, outras formas de resistência a contrapelo. Lamas: regeneração de diversidade biocultural. Terra-saber-mãosgerações-vida-ciclos-tempos-sementes-diversidade-chácara-povo- -comunidade-casa-comunal-tecido-faixa-barro-prato que se quebra para voltar a ser terra-cagar-mijar-chácara-plantas-purgações-corpo-que-suaintempérie-incerteza-afirma a vida. Grimaldo: voltar à natureza. Corpo-planta-espírito-mente-liberada-animal.
Arte? Incerteza Ao falar de incerteza, que registros ecoam em nós? Os modelos, sistemas-mundo pensados como sendo sólidos, fluidos, referentes, cambaleiam em quase todos os seus pilares. A noção de mundo, de vida, de ordem de coisas e de sentidos abandona a correlação com a experiência cotidiana. A incerteza não é apenas uma mudança epistêmica; é a experiência da vida em si. A velocidade, a segurança, a transitabilidade, a possibilidade, a certeza da vida como direito inalienável se apresentam vulneráveis. O acesso a certos recursos, privilégios adquiridos ou herdados, possibilita certo distanciamento dos efeitos do colapso, mas certamente o panorama não apresenta uma via estável ou esperançosa. E sim a iminência de um colapso estrutural. No entanto, aqueles que contam com tais privilégios constituem a minoria da população, que se encontra em constante decrescimento percentual. O majoritário, em termos populacionais, é o crescimento da incapacidade de garantir o acesso básico aos recursos vitais: a água e a terra. No contexto de incertezas, o que se reconhece como arte? O processo de criação implica entregar-se a um trânsito na incerteza. No entanto, o reconhecimento de transformações epistêmicas faz com que a categoria da arte se torne incerta em si mesma. Por sorte, nesse processo outras formas, funções, agências, vínculos e formas de fazer sentido se tornam possíveis. A incerteza é também a possibilidade de diluir os limites do que se acredita ser conhecido, o reconhecimento da potência de criar e destruir. Nessa reconfiguração, os lugares de enunciação que a arte pode abrigar renegociam também sua função e seu sentido em relação à conservação da vida. De formas de vida. De sentidos que questionam o lugar social da arte.
Abrir-se a outro(s) tempo(s): colocar o corpo A rotina acelerada, eficiente e produtiva das lógicas de trabalho profissional e urbano nas quais estamos imersos, exige criatividade e maneiras novas e velozes de entender o mundo. Paradoxalmente, pensar outras temporalidades e outras formas de vida esbarra em condições que costumam ser pouco flexíveis ou pouco dispostas a modificar seus tempos e objetivos de produtividade: institucional, programática, profissional, cultural.
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Celebro e valorizo o fato de termos possibilitado a decisão de nos mover e colocar o corpo, pensar com o corpo, escutar com o corpo. De entregar nosso processo ao incerto e, para além de um projeto, ter abraçado uma experiência de vida.
— Essas reflexões integraram os processos concebidos na articulação da proposta da 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza viva – de repensar a aprendizagem, a organização da vida e as formas de conhecimento coletivo como um modo de aproximação da cosmovisão amazônica, partindo da cultura quéchua-lamas. Esta sessão imersiva ou Dia de Estudo propôs ser um ensaio para o encontro, o diálogo e a aprendizagem e desaprendizagem, que surgiram da colaboração entre Sofía Olascoaga e Grimaldo Rengifo, educador e agrônomo peruano fundador do Proyecto Andino de Tecnologías Campesinas (Pratec) e membro da organização Waman Wasi, e foi acompanhada do diálogo com Rita Ponce de León, artista participante da 32ª Bienal de São Paulo. Foi realizada de 16 a 20 de abril de 2016, em Lamas, Peru, com um grupo de participantes listados no final deste livro. Agradeço a generosidade e a flexibilidade de uma estrutura institucional (e das pessoas que a conformam neste exato momento) que chegou a converter sua história, seu lugar na memória coletiva e sua dimensão material em um lugar de grande peso cultural, quando a norma é que se torne extremamente difícil de deslocar ou transformar. A decisão e a convicção de realizar os Dias de Estudo é uma das experiências que mais prezo e valorizo, no contexto do complexo, variado e amplo processo de construir a Bienal de São Paulo nesta sua 32ª edição, em conjunto com meus colegas cocuradores. Um ato de generosidade e de privilégio esse de escolher o deslocamento do eixo físico da construção do processo curatorial, da sala de reuniões nos escritórios do Pavilhão da Bienal de São Paulo, e reposicionar o processo criativo de construção em múltiplos e diversos contextos geográficos, políticos, físicos, e em diálogo com numerosos interlocutores. Abrir o processo desse modo foi abraçar a incerteza, apostar e confiar em uma vivência compartilhada capaz de transformar o projeto apresentado inicialmente em papel e nutrir com intercâmbios reais um processo coletivo.
Sonia Andrade, Hydragrammas, 1978-1993. Detalhe da instalação na 32ª Bienal.
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Ao redor do fogo Álvaro Tukano O texto a seguir é a transcrição de uma fala de Álvaro Tukano nos Dias de Estudo – Cuiabá, 2016. Os cânticos Oração do Doéthiro e Kaapi Sohó foram transcritos e traduzidos para o português por Yepâ Su’ri.
Quando fazemos uma roda de conversa é para contar nossas histórias antigas. E, ainda hoje, continuamos conversando sobre os assuntos antigos. Quando nós não sabíamos ler nem escrever, usávamos a oralidade, e a oralidade faz parte da nossa sabedoria. Para não perder essa sabedoria, nosso povo chamava todo mundo para conversar. Então, ao ouvir alguém falar, o povo ficava mais unido. Mas agora sofremos também com a invasão da TV Globo, porque muitas pessoas não querem mais ouvir as palavras do xamã, do curandeiro e preferem assistir à novela. Essa é uma guerra muito grande nas nossas comunidades, uma guerra de poder. E a alternativa que propusemos foi fazer essa roda, já que não temos uma rádio poderosa, uma televisão poderosa. Essa rede é muito importante para nós.
Mariana Castillo Deball, Hipótese de uma árvore, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Oração do Doéthiro Hy... yá! maâ! ɨmikoho yek�ãg� Criador do Universo M��yá nih�� pâtire No vosso mundo sagrado Pũrisehé marĩrĩ pâtire Não existem doenças Õpẽkõ pâtire É o mundo sagrado de leite materno Kǎrãko pâtire É o mundo sagrado de líquidos de cerimônia B�k�, b�k� Doéthiro bayãg� O velho Doéthiro, mestre em cânticos sagrados Doéthiro kumuãg� Doéthiro, mestre curandeiro M� � yá masa kari k�h��ãg� De vossa linhagem em geração Ã�rã y�� akawererãrẽ A todos os meus irmãos M� �yé siturire Vossos bancos sagrados Bayari situri Banco sagrado para cânticos Kumuari situri Banco sagrado para cura Ẽõ y�e d�h�pó b�ro Ofereço os bancos sagrados Duhiri mas�� niîg� weap� y�á pak�ag� Vivo fazendo essas cerimônias sagradas Hy... hy... yǎ É a entoação Esse canto fala de um mundo sem dor, sem morte. Fala que todas as coisas que existem no mundo são sagradas, e que Ele nos deu e temos que saber compartilhar. É um bem público, não é um bem privado. É um bem coletivo. Também não tem custo; por isso, sendo bem público, a terra para nós jamais foi algo para ganhar dinheiro. Nunca conseguimos entender por que o homem compra terra e vende terra e vai especulando por aí. Para nós, as terras devem ser coletivas. Elas são do povo, pertencem àquela família, àquele povo. Não fosse o capitalismo, essa terra estaria preservada. Mas parece que tudo virou ao contrário ultimamente: cada um é proprietário de um pedacinho, quando não tem dinheiro, vende e vai embora para outro lugar. E não sabemos mais para onde correr, porque a terra está diminuindo. Por isso, existe muita pressão em torno das terras indígenas. Nelas, tem madeira, tem tudo. Então, eles vão lá e acabam com aquilo que Deus nos deu. Nós sempre cantamos essas músicas para sermos iguais ao Pai, para criar nossos filhos aqui na Terra. Porque nós não temos para onde ir, a não ser quando nosso espírito for embora. Então, nós vamos nos transformar de novo em peixe, vamos nos transformar em água, em terra. Cada um tem o seu destino. Essa música fala disso.
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Kaapi Sohó Kaapi niíka yá É a bebida sagrada kaapi Kaapi niíka yá Kaapi niíka Niíka yá Yá kaapi niíka yá É a bebida sagrada kaapi No maamari diwé yó kamaywê A nossa bebida sagrada tomamos Yukuú niíka yá É a bebida sagrada das plantas Yukuú niíka yá Yukuú niíka Niíka Yá Yá yukuú niíka É a bebida sagrada das plantas Niíka yá No maamari diwé yó kamaywê A nossa bebida sagrada tomamos Misĩ îpẽ Cipó que dá mirações Misĩ î Cipó Kaapi Ayahuaska Esse é o canto que entoamos no auge da miração de kaapi, o momento de cura. Brasília, 09-08-2016. Isso aí é kaapi. Quando nós temos a miração e nossa mente se ilumina, é a hora em que falamos com Deus. Quando estou na miração, sempre vejo a boca do grande Pai universal falando diretamente comigo. São pensamentos que se realizam, por isso, nosso povo sempre tomou ayahuasca. Chama-se kaapi em tukano ou então misĩîpẽ. Então, falamos da natureza, adoramos a natureza, pensando no grande Pai. Falamos de floresta, que é ayahuc, que são as florestas onde o homem vive. Sempre vamos depender dessa terra. Nunca cantamos a soja, o milho, essas coisas, não. Nós sempre cantamos o kaapi, que é uma bebida de nossos povos. Mas quem planta soja considera o índio improdutivo. Não é. É que nós temos coisas de sobra na natureza; o importante é conservá-la para a humanidade. Esse é o futuro que nós defendemos. Sempre vamos fazer isso. E nossos filhos não vão poder reclamar quando receberem essa herança deixada pra eles.
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A fome como professora Carolina Caycedo
1 O projeto hidrelétrico
“O rio Magdalena resiste ao desvio.” Comecei a pesquisar sobre o projeto hidrelétrico El Quimbo1 no rio Magdalena depois de ler essa manchete em março de 2012.2 Nesse artigo, explicava-se que, após o desvio de seu leito, o Yuma (também conhecido como rio Magdalena) havia subido, recuperando seu leito natural e erodindo o túnel de desvio, impedindo assim a realização da obra. Em maio de 2012, visitei pela primeira vez a região afetada pelo projeto hidrelétrico El Quimbo, em Huila, na Colômbia. No povoado indígena de La Jagua, conheci dona Zoila, que me explicou que o Yuma tinha subido dessa maneira justamente porque sabia que, assim, atrasaria a construção da represa. Nos conflitos ambientais que conheci de perto, os rios, as montanhas, os animais, a floresta e os minerais são entidades que participam ativamente dos processos de resistência territorial. Com dona Zoila, fui pescar com tarrafa pela primeira vez na minha vida. Fomos ao rio Cuacuá (também conhecido como Suaza), onde ela lançou a tarrafa pelo menos trinta vezes, mas pescou apenas três peixes de cinco centímetros. Quando a pesca ficou gravemente afetada pela construção da hidrelétrica, pescar em um rio onde só existem poucos peixes se torna um gesto radical. Mais do que obstinado, esse é um gesto político que encarna autonomia e sabedoria alimentar. Jogar a tarrafa faz reafirmar o rio como bem comum e como espaço público.
El Quimbo é uma barragem construída sobre o Yuma (rio Magdalena), o maior rio da Colômbia, pelo conglomerado multinacional de energia Enel-Endesa-Emgesa. Ele recebeu a licença ambiental em 2008 e começou a gerar energia em 2015. A Quimbo é a segunda de 17 barragens hidrelétricas contempladas pelo Plano Diretor de Desenvolvimento do Rio Magdalena, cujo objetivo é transformar o rio em uma rodovia fluvial dedicada à exportação de carvão, petróleo e outros minerais, e à geração de energia – sem considerar que é a artéria vital para mais de 70% da população colombiana. 2 Artigo disponível em: http://polinizaciones. blogspot.com/2012/03/ el-rio-resiste-al-desvio-riverresists.html. Acesso em: nov. 2016.
Carolina Caycedo, A Gente Xingu, A Gente Doce, A Gente Paraná, 2016. Da série A Gente Rio – Be Dammed [A Gente Rio – Barrado seja]. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Esses gestos repetitivos, como lançar a tarrafa ou garimpar ouro com bateia, são coreografias cotidianas intrínsecas à geografia que se habita, intimamente ligadas a um território ou ecossistema, que eu chamo de geocoreografias. O conhecimento acumulado por gerações e a memória muscular dos gestos geocoreográficos estão hoje ameaçados pelo desenvolvimento e seu modelo energético-minerador. As geocoreografias retomam o uso do corpo como ferramenta de resistência, para gerar grafias que nos arraigam ao território e nos relacionam com o extra-humano, produzindo um movimento que expande o corpo, individual ou coletivo, e o lugar em que nos posicionamos. A expansão do corpo se contrapõe ao medo e ao deslocamento físico e psicológico associados à economia extrativista. No verão europeu de 2013, eu estava em uma residência artística em Berlim, na qual tive a sorte de conversar com Mamo Pedro Juan, antigo líder espiritual do povo Kogui da serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia. O Coração do Mundo (assim os povos originais chamam sua serra) padeceu de uma enorme ferida com a construção da represa multifuncional de El Cercado, no rio Ranchería, iniciada em 2006 e que ainda não está funcionando.
Cecilia e Zoila, pescadoras dos rios Sogamoso e Yuma, com suas tarrafas na praia Las Peñas, no rio Yuma (Madgalena), em La Jagua, Colômbia.
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Mamo Pedro Juan não fala espanhol, e Santos, seu intérprete, me ajudou na entrevista. Escolhemos a sombra de uma árvore no Parque Gorlitzer. Preparei minha câmera, ajustei abertura, velocidade, foco e microfone. Quando estava tudo pronto, comecei a gravar e fiz minha primeira pergunta: “O que representa a represa de El Cercado para os povos da serra?” El Mamo respondeu: “A represa é como um nó nas veias. Não! Ainda pior. A represa é como um nó no ânus”. Quando Mamo começou a falar, um círculo amarelo apareceu sobre seu rosto, e, à medida que falava, o círculo pulsava com intensidade. Um halo de luz ficou grudado no diafragma da lente, acompanhando a cabeça e as palavras do ancião, e entendi que não era apenas El Mamo quem estava falando comigo, mas também o Coração do Mundo. Em abril de 2014, eu estava no deserto de Sonora, no México, atendendo ao convite da aldeia yaqui para assistir às comemorações da Semana Santa. Nesses dias, o povo Yaqui havia armado um bloqueio na rodovia federal 15 do México, exigindo a demolição do Aqueduto Independência, que leva água do rio Yaqui para a zona industrial da cidade de Hermosillo, capital do estado de Sonora, deixando as oito aldeias tradicionais dos Yaqui sem água, secando o leito e o estuário do rio. Em Vícam, conheci Anahí, uma jovem ativista e curandeira yaqui que cura com o remédio tradicional do sapito. O remédio consiste no pus seco extraído das verrugas de um
Fotogramas do vídeo da entrevista de Mamo Pedro Juan. Gorlitzer Park, Berlim, 2013. verso: Iguaçu, 2016. Da série A Gente Rio – Be Dammed [A Gente Rio – Barrado seja].
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sapo endêmico do deserto de Sonora (Bufo alvarius). Pedi uma cura a Anahí, e ela generosamente me concedeu. Por ser um remédio do deserto, deve-se ingeri-lo de dia, sob o sol. Escolhemos um lugar no leito seco do rio Yaqui, no povoado de Pótam. Ali acendemos uma fogueira e me submeti ao sapito. Durante o ritual, chorei, senti na pele o leito seco do rio Yaqui e achei triste demais. Mas quando comecei a chorar, o sapito falou comigo, disse que as lágrimas das mulheres são necessárias para devolver a água ao leito seco dos rios, e me explicou que o leito seco não é apenas o dos rios, mas também de situações e de pessoas. O sapito me reconciliou com a tristeza. Meses depois, assisti em Los Angeles a uma palestra de Olivia Chumacero, uma curandeira do povo Rarámuri, que leu um capítulo do livro que ela estava escrevendo. Os Yaqui e os Rarámuri dividem a mesma geografia do deserto do norte do México. Durante a leitura, Olivia contou uma história sobre sua avó. Com menos de vinte anos de idade, Olivia deixou a família para se juntar à United Farm Workers [União dos Fazendeiros], sob a liderança dos ativistas César Chaves e Dolores Huertas. Ao se despedir da família, Olivia tentou ser forte e conteve o choro. Então sua avó a
Anahí acendendo o fogo para o ritual do sapito, no leito seco do rio Yaqui em Pótam. Sonora, 2014.
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abraçou e disse: “Chora, passarinha, que para nós, Rarámuri, as lágrimas fazem parte do ciclo hídrico e são necessárias para gerar vida”. O sapito havia voltado a falar comigo. Em abril de 2016, visitei os quilombos de Ivaporunduva e de Sapatu, no vale do rio Ribeira, sul do estado de São Paulo, no Brasil. O rio Ribeira é o único de tamanho médio que não foi represado em São Paulo, embora exista a ameaça de construção de quatro represas hidrelétricas para suprir a indústria do alumínio. O vale do Ribeira é reconhecido como patrimônio natural da humanidade pela Unesco, e seus quilombos são alguns dos mais antigos do Brasil. Em Sapatu, conversei com dona Esperança, uma avó quilombola. Ela me explicou que, no século 16, seus ancestrais escaparam dos traficantes de escravos subindo o rio e formaram as comunidades que existem até hoje. Para os quilombolas, o Ribeira é a rota da liberdade e, por isso, continuam organizados na resistência para mantê-lo livre e sem represas, em honra a seus ancestrais e pelo bem-estar de suas filhas e netas. Indígenas, caiçaras e quilombolas do vale do Ribeira vivem da pesca artesanal, da agricultura em
Nilce Souza, a Nicinha, com sua pesca.
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pequena escala e do artesanato. Nesse vale, estão todas as verdadeiras soluções para as mudanças climáticas e para a crise ambiental. Em 21 de junho de 2016, completei 38 anos, porém, mais do que festiva, estava cabisbaixa, porque nesse dia foi encontrado o corpo de Nilce Souza de Magalhães, a Nicinha, uma pescadora e líder do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Nicinha foi despejada pela hidrelétrica de Jirau no rio Madeira, em Rondônia, no Brasil, e era conhecida na região por denunciar violações aos direitos humanos e ambientais pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR), responsável pela Usina Hidrelétrica de Jirau. Nicinha desaparecera em 7 de janeiro de 2016, e seu corpo foi encontrado amarrado a pedras na represa de Jirau. Nos últimos dois anos, mais de 350 ambientalistas foram assassinados no mundo – o Brasil é o país onde ocorreram mais mortes (55, em 2015), seguido por Filipinas (33, em 2015) e Colômbia (26, em 2015). Os ambientalistas se tornaram o grande inimigo da economia de extração. Todos os defensores da água, da floresta e da terra, assim como os removidos e refugiados climáticos, são os escudos humanos de todos nós, conduzindo a batalha na primeira fileira contra a injustiça e contra o racismo ambiental. No dia 22 de junho de 2016, viajei a Altamira, no Pará, cidade afetada pela represa da hidrelétrica de Belo Monte, em construção
Carolina Caycedo e as netas de dona Esperança no quintal de sua em casa em Sapatu, 2016.
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no rio Xingu. Convivi com muitas pessoas lindas na resistência que haviam sido removidas pela represa da Norte Energia. A pescadora Raymunda ficou especialmente guardada na minha memória, por sua alegria e por seu otimismo, apesar de toda a adversidade. Raymunda esclareceu que não foi despejada, mas expulsa do Xingu pela Belo Monte. Quando perguntei quem lhe havia ensinado a pescar, respondeu: “A fome me ensinou a pescar”. Durante os dias de estudo em São Paulo, da 32ª Bienal, participei de um debate com Ailton Krenak, ambientalista e líder indígena brasileiro. Após o debate, fomos jantar com as companheiras e os companheiros que participaram do evento, e então comentei com Ailton que tinha interesse em realizar um trabalho de campo no vale do rio Doce. Os Krenak são o único povo tradicional que habita as margens do rio Doce em Minas Gerais. Em 5 de novembro de 2015, rompeu a represa do Fundão, que continha dejetos de mineração da empresa Samarco, produzindo uma avalanche de lama tóxica que contaminou parte dos rios Gualaxo do Norte e do Carmo, e todos os rios do vale do rio Doce; a lama chegou ao oceano Atlântico. Esse é o crime ambiental mais nefasto da história brasileira e atingiu cerca de 4 milhões de pessoas ao longo do vale, aniquilando a biodiversidade do rio e afetando a vida marinha na foz. O rompimento da represa do Fundão causou profundo impacto ao povo Krenak, pois sua história de vida se confunde com a do rio Doce. Ailton me contou que os de seu povo chamam o rio Doce de Watu, que significa avô. Durante séculos, esse povo vem sofrendo violência sistemática, lenta, a conta-gotas, perpetuada por séculos da presença da indústria mineradora na região. Essa violência é distribuída pelos solos, riachos, mineriodutos, e partículas de ferro, manganês, enxofre e outros minerais pesados são respirados e ingeridos diariamente e, aos poucos, penetram o corpo da população. A contaminação do Watu é a parte mais visível do racismo ambiental implicado no desenvolvimento e que ameaça os povos tradicionais brasileiros e das Américas. Ailton comentou que os velhos Krenak dizem que Watu não morreu, como garantem cientistas e especialistas; eles afirmam que Watu é mais inteligente que a lama e que, ao pressentir sua chegada, enfiou-se embaixo da terra. Assim, Watu está sob do leito do rio, como um vulcão adormecido, como um raio latente, sonhando com o dia em que possa emergir e voltar a abraçar suas netas e seus netos.
verso: Carolina Caycedo, Watu, 2016. Da série A Gente Rio – Be Dammed [A Gente Rio – Barrado seja].
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Raymunda com o seu remo, feito por ela, em sua casa em Altamira, Parรก, 2016.
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Imaginações do Mato Júlia Rebouças
Prestes a ler seus escritos,1 o escritor, com o livro na mão, conta que quando criança sofreu um acidente numa brincadeira entusiasmada. Foi então obrigado a uma rotina de medicamentos que comprometeram sua memória. Da infância lhe remanesceram as histórias que criou para si, de resto, tal como todos nós, que embaralhamos o que é lembrança e invenção. No entanto, para ele, a natureza ficcional de suas recordações atua quase como uma contingência fundadora, uma vez que se tornou escritor. O escritor que não se recorda e, por isso, cria o que vai lembrar, seria alguém ao avesso de Funes, o Memorioso, que tem em sua memória todos os detalhes como que se tivessem acabado de acontecer. Funes, no entanto, não é capaz de elaborar nada; ele não cria. “Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer”,2 diz uma passagem famosa de Jorge Luis Borges, que repetimos quase de cor. Pensamento e criação, criação e movimento, movimento e mundo, mundo e pensamento. Para aquele encontro na cidade de Cuiabá, levamos de antemão o entendimento de que estamos no limite. Há muitas formas de perceber as histórias que nos trouxeram até aqui, diferentes maneiras de nomear os ciclos que nos geram. Seja lá qual for o meio, assentimos estar diante de um fim. No ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, soja e gado são o denominador comum de políticas de desenvolvimento que têm na expoliação sua metodologia. Justamente ali, onde resistem povos originários, sobrevivem seres de um cerrado outrora abundante em área e persistente em diversidade, lugar de onde escorre a água doce que irriga o continente.
1 Joca Reiners Terron lê trecho de seu livro, Curva de rio sujo (São Paulo: Planeta, 2003), na abertura do Encontro Performativo, parte dos Dias de Estudo – Cuiabá.
2 Jorge Luiz Borges, “Funes el memorioso”, in Ficciones (1944). Ed. bras.: Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
Cristiano Lenhardt, Trair a espécie, 2014-2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Saímos em busca do que ainda é possível imaginar, forjar, especular, criar, sobre esses solos exauridos, a despeito das reincidentes ameaças de extinção. Ali éramos mulheres e homens, artistas, antropólogos, ativistas, curadores, filósofos, biólogos, pesquisadores, xamãs. Diante do saber do pajé Álvaro Tukano e da experiência da liderança indígena Naine Terena, no abismo das formações rochosas e no jato vigoroso de água das cachoeiras, tendo como ponto de partida as sementes e os troncos retorcidos, e o voo em flecha das andorinhas, fomos juntos caminhar. A arte não se parece com nada disso e, no entanto, não há nada que a torne diferente de todos esses acometimentos que são da ordem do corpo, do sensível e do perceptível, que são da ordem da natureza criadora. Fazer arte não nos redime das incongruências sociais, políticas e culturais, inclusive porque os lances conclusivos da história, aqueles que querem explicar, corrigir ou encerrar uma questão não existem para a arte. Ela constitui e é constituída de real. Um sopro de fora para dentro, que entra pelas narinas e percorre os olhos, ouvidos, boca; é deglutido garganta abaixo, processado como alimento; é irrigado cérebro acima, espalhando-se pelas sinapses. Fechar os olhos quando não for possível mantê-los abertos. Em tudo isso se encontra nosso pensar criador. Na cidade de Cuiabá e nos arredores, propusemos um encontro performativo em que esse pensar criador, essa ideia-arte fosse também uma ação. Tendo a linguagem como território – a palavra que nomeia e inventa –, a performatividade diz respeito ao pensar e fazer juntos, numa prática que é múltipla não somente pelos distintos agentes que a compartilham, mas também pela diversidade de camadas que atravessam e constituem simultaneamente o aqui e o agora, o eu e o outro, o que é real e o que é invenção, o que chamamos de natureza e o que entendemos por cultura, ou tudo aquilo que cabe na humanidade quando a contrapomos ao meio ambiente. A individuação e a supremacia do Homem (masculino com letra maiúscula) têm sido diligentemente ensinadas por séculos. Por isso, da incapacidade de nos compreendermos partes de um todo, decidimos performar as diferenças, sermos outro, na tentativa de forjar um novo modo de existir. Avançando no tempo, bichos de cará3 irrompem o espaço expositivo. São vários e estão vivos, feitos de matéria orgânica. São seres, são coisas e são situações. Desafiam o reino dos vegetais porque antropomorfizados, animalizados ou porque afeitos aos minerais. Brotam, ainda que vivam sobre o cimento aculturado do pavilhão de exposições na cidade de
3 Trair a espécie, obra de Cristiano Lenhardt, 2014-2016.
A Pakë. Më’ro puhutiri se’rerõ [aplicador de rapé para proteção contra doenças].
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São Paulo. Em contato conosco, fazem caducar aqueles que acreditam na verdade e que têm certeza dela. Estamos cansados da humanidade – essa espécie que se considerou a joia da criação, que se considerou no direito de tudo pilhar, pois tudo lhe pertencia. “Colocar o humano no centro” era o projeto ocidental. Levou ao que sabemos. Chegou o momento de abandonar o barco, de trair a espécie. Não há nenhuma grande família humana que existiria separadamente de cada um dos mundos, de cada um dos universos familiares, de cada uma das formas de vida espalhadas pela Terra. Não há humanidade, há apenas os terráqueos e seus inimigos – os ocidentais, qualquer que seja sua cor de pele. Nós, revolucionários, com o nosso humanismo atávico, faríamos bem em prestar atenção aos ininterruptos levantes dos povos indígenas da América Central e da América do Sul, nesses últimos vinte anos. Suas palavras de ordem poderiam ser: “colocar a Terra no centro”. 4 Comitê invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições, 2016, pp. 38-39.
5 Trecho da canção “Ibiporã”, de Arrigo Barnabé, interpretada por Tetê Espíndola em seu álbum Pássaros na garganta, de 1982.
É uma declaração de guerra contra o Homem.4
De volta ao Mato, a cantora, munida de craviola e entoando um sibilar melodioso, ensina a coaxar como se fôssemos rãs e sapos – diafragma aos pulos: “[...] Depois da fonte do rio Tibagi / Ali perto de Ibiporã / Existe uma rã que salta e que ri / De noite até de manhã / Ibiporã / E a rã ri [...].”5 Coisa de criança, no sentido generoso e potente do vir a ser. Coisa de bicho, pela condição inequívoca do presente, que convoca para o aqui e agora que, naquele momento, era o coração da América do Sul, a bater em um sábado de maio de 2016. Coisa de uma experiência de afeto, que pode ser a arte, ou essa capacidade de pensar com a imaginação. Então o escritor, antes de ler seus escritos, fecha o livro.
U’karo. Cocar feito com penas de gavião.
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Monarks atravessam o Apa Joca Reiners Terron
Meu coração jaz no piso úmido do barracão num terreno baldio às margens do Apa, sepultado por Basano La Tatuada, líder da gangue paraguaya de Bella Vista Nuerte Norte. Isto aconteceu no dia da batalha do Ñandipá, enquanto mosquetões e espadas floresciam à superfície do chão adubado por sangue brasileiro – aquela foi nossa mais fragorosa derrota. Porém, no solo propício alimentado pelas águas vermelhas do rio, o meu coração ainda pulsa. Quando enfiei o chinesinho na lama empoçada atrás da cerca coberta por unha-de-gato, pude ver El Pan e Nemecek me aguardando. Haviam trazido os bodoques e os alforjes de caraguatá embolotados, cheios de mamonas. Suas pelancas de cachorros velhos expunham à claridade do dia séculos de perseguições de bandidos e corsários – de carrocinhas a toda sorte de ameaças – e eles exibiam um ar cansado. O pequeno Nemecek tiritava de frio, apesar dos espelhos deixados pela chuva ricochetearem o ensolarado do Chaco de volta ao sol. — Não disse que nos veríamos de novo? — falou El Pan. — Você sempre acerta, mi viejo. — eu disse. E Nemecek, num balbucio trêmulo: — Agora só falta ele. — Ele virá, não se preocupem. Poucos momentos após El Pan dizer isto, Huck surgia pros lados da delegacia velha, sua silhueta recortada contra o final da manhã, o mangueiral
Ana Mazzei, Espetáculo, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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detrás do casarão carcomido por heras sumindo aos poucos, até se desfazer em luz. — !Los Perros Perdidos atácan de nuevo! — berrou Huck, nos abraçando. E deu uma olhada zombeteira em mim. — Pelo visto apenas seu coração deve permanecer conservado, não? — É o meu corpo. Está morrendo sem ele — falei. — E enquanto isto o Apa fica mais caudaloso… Mas não se preocupe, amigo – nós o recuperaremos desta vez. Na cidade decorada por bandeirolas e fanfarras tocando polcas, novamente esgueirávamos nossas bicicletas de aro circular pintadas de negro por entre as pernas dos tocadores de tuba, atrás do inimigo invisível. Sob o cinza esfumaçado da chipá esvaziando as chaminés, em meio às canelas-de-cutia, no porão do coreto da pracinha, dentro da cartola do tomáraho bêbado na estação de trens, em lojas repletas de harpias doentes e peles de jaguar mofando nas paredes, o procurávamos. E também em Forte Apache y Puerto Esperanza, onde jogamos escorpiões às piranhas, constelações cadentes refletidas na água, uma noite em fuga do shu deich, a derrota do sol. Mas não havia coisa alguma ali, nem mesmo no covil onde canoeros-piratas Payaguás cheiravam cocaína, no cemitério sagrado dos soldados brasileños em Fuerte Olimpo ou em qualquer lugar. Depois de tudo vasculharmos na busca daquelas lontras fantasmas, apoiamos os traseiros nos bancos das Monarks, pernas num rabo-de-arraia contra o céu e, como se de súbito atinássemos por seu paradeiro, arremetemos contra a fronteira, El Pan à frente, com sua cauda a nos orientar, enquanto Huck cobria a retaguarda, protegendo-a dos ataques dos bugres – que nunca vinham. Como sempre, ao atingirmos metade da travessia da ponte, as bicicletas perdiam o controle e a vertigem da velocidade ardia rumo ao outro lado; o zunido das rodas crescente, igual ao canto do guacamayo vermelho, e olhávamos os aros uns dos outros desaparecendo em giros hipnóticos cada vez mais rápidos, até podermos vê-lo na outra margem: o inimigo nos esperando. No entanto havia olhos em mim apenas para Basano La Tatuada, e então meu coração estremecia sob a terra banhada pelo Apa, o meu coração pulsava na margem do rio, pois eu afinal podia vê-la do outro lado, com seu diadema de penas de avestruz, me desafiando com seu olhar ishir-chamacoco (como sempre), minha mão no buraco vazio deste peito arfante e depois tudo nos contornava de forma muito avassaladora, assim como um temporal. Até todos sumirem.
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Eu chapinhava minhas patas imundas na superfície do Apa. Mais uma vez era o primeiro a aparecer. Dos lados do cipoal escuro acima da outra margem, entre cantos de jaó, queixadas e onças-pretas, pude ouvir os ganidos de Nemecek. Nunca entendi como ele podia ser sempre o primeiro a chegar, o menorzinho entre nós! El Pan novamente me olhou com sua cara triste de pato de pernas tortas. Na ocasião estávamos ainda mais decrépitos. — Será que nunca recuperarei meu coração, Pan? Ele sorriu um sorriso quase irreconhecível, de tão tristonho, e chutou um caramujo-da-terra pra água. — Nem vou responder, cara. Quero preservar meus bons índices de acerto. Logo depois Huck chegou, carregando seu atraso eterno nas costas peludas com tufos brancos. — Por que tenho a impressão de já ter visto esta cena? — disse, dando risada. Ele notou como eu estava triste, e o seu sorriso se desfez entre os caninos. Então El Pan apontou sua unha curva pra ferida em meu peito. — Que enrascada, hein, amigo? Mas desta vez não tem erro, não mesmo! — e, aproveitando a brasa de meu cachimbo, pôs fogo num baseado. — Experimente deste aqui. Coisa boa assim só na Terra do Nunca! Algumas baforadas e nosso otimismo foi restabelecido, os esqueletos de novo chacoalhados pelas Monarks, prontos para singrar dali à Bahía Negra e de lá ao infinito, em busca do adversário heiwo. Como usual, os chassis enferrujados rangiam, implorando por asilo nos fundos dum ferro-velho de bicicletas qualquer, onde pudessem descansar, em paz junto a outros fantasmas da infância. Isto se estendeu até o crepúsculo, quando o estardalhaço dos quatis em bando misturava-se ao ruído das garças encarapitadas no cimo das árvores, muito acima do brilho dos olhos dos jacarés ocultos na lama escura do Apa, à espera de algum deslize, dum implodir de penas, de um dente-de-leão desfeito pelos sopros dos caimáns. E de novo o rumor trepidante dos aros em direção ao centro da ponte, na tentativa de completar a travessia até conseguirmos enxergá-los no meio da mata, os olhos rasgados dos tobich nos amaldiçoando, o assovio negro e feminino de onça de Basano La Tatuada, com seus exi vibrando os bicos duros sob as plumas como querendo alçar voo, seu contorno mais esguio do que nunca, a forma corporificada da beleza, dois pássaros querendo fugir, exi tógöle chuté, e então meu coração de novo falhava embaixo da
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terra banhada pelo Apa, feito motor de balsa indo a pique, meu coração batia enfiado na margem do rio, pois eu mais uma vez a via do outro lado, com sua tiara de presas de jaguatirica, me destruindo (para sempre), hipnotizando-me com seu olhar öshiro-zamcúc, minha mão no oco de meu peito ofegante, o chacoalhar altíssimo das maracas, cada vez mais alto, ensurdecedor, e depois tudo nos emaranhou de maneira inesquecível, assim como a tempestade ou como se fôssemos engolidos pela constelação acima da serra da Estrela. Até todos desaparecerem por completo. As gotas de luz estourando no couro negro do rio me obrigavam a fechar os olhos. E de novo Nemecek nos antecipava. Desta vez estava sentado no barranco mais alto, logo acima da prainha. Atrás dele, a tempestade armava seu bote. Um vento saído de não sei onde, talvez das curvas enoveladas do Apa ou dos lados da Bodoquena, arrancou palmas dos buritis. E com a ventania vieram El Pan e Huck, precedendo a trovoada. — Outra vez? — disse Huck. — Isto não vai acabar nunca? — perguntou Pan, com ar desanimado. Me envergonhei de tê-los colocado naquela fria. Nemecek esfregou seu focinho no meu pescoço, numa tentativa frustrada de consolo. Estávamos perdidos. Com o rabo entre as pernas, arrastamos as bicicletas pela única avenida de Bella Vista Norte, suportando calados as chacotas dos tarrachís com seus pés enfiados na lama vermelha, uns bugres miseráveis sonhando com o dia em que ganhariam coturnos, arremedos de soldados rasos em uniformes incompletos. Meu corpo estava cada vez mais fraco, e Huck me levava, apoiado em suas largas espáduas. Eu tivera de deixar no caminho a minha bike negra, o meu Rocinante com rodas. Eu estava morrendo. Os olhares zombeteiros dos comerciantes paraguaios eram iluminados pelas cores dos néons das marquises, e suas caras bexiguentas de índios zumbis sem alma ficavam cada vez mais escuras e amedrontadoras. Eu só podia ver seus dentes enormes, meu reflexo no brilho das obturações de ouro querendo nos engolir. Daí fechei os olhos e Huck ganiu em meu ouvido — Nós temos de recuperar seu coração, e tem de ser agora! — Então um pé de colonião começou a despontar no buraco do meu peito. Em pouco tempo nasceriam outras ervas daninhas. Tomamos o rumo da ponte para novamente atravessarmos o rio. El Pan e Nemecek pedalavam com fúria as bicicletas, deixando o ar azul à sua passagem, e eu vacilava, sentado na barra-forte da Monark de
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Huckleberry Finn, enquanto uma chuva fina começou a cair. As gotas explodindo no asfalto da ponte eram pequenos sóis morrendo junto comigo e o final da tarde então parecia apenas o fim de tudo e não mais o monstro ensolarado e infinito de outras vezes. Quando o inimigo deu as caras à nossa espera, do outro lado, nossas bicicletas já levitavam a alguns centímetros do chão. Eu olhei para a superfície do Apa e disse a Huck: — Isto aqui é o meu Mississípi, estes quintais de Bella Vista são os quarteirões de Budapeste para mim, mi viejo! Ele gargalhou e pedalou com mais vigor ainda e então pude vê-la, Basano La Tatuada, com seu chocalho de cascavel vibrando altíssimo, tão alto quanto meu coração trepidava sob as areias da margem do rio, e do buraco em meu peito saíam avencas e samambaias e o som de águas barrentas, cascatas nas pedras, os pintados e sucuris jorrando com o manancial de dentro do lugar antes ocupado pelo meu coração e então mais uma vez desaparecíamos, eu e meus amigos em nossas bicicletas, presos àquele momento repetindo-se eternamente, arrancados deste instante sem saída assim como meu coração me foi tirado sem piedade alguma no dia de nossa mais retumbante derrota, quando ainda vestíamos orgulhosos nossos uniformes azuis e a lâmina das espadas refletia o inimigo paraguaio em nosso encalço, para sempre vítimas de sumirmos por inteiro bem às vésperas de uma remota chance de vitória ou de felicidade, meu coração movendo a correnteza do rio e do tempo rumo ao infinito. E ainda hoje, toda vez que lembro esta história, Basano La Tatuada sobrevoa o topo do obelisco de Ñandipá, entre relâmpagos luzindo nas nuvens, farta de nobreza e lenda viva, eternidade afora os ecos das palavras nunca e sempre em minha memória, “hacia la costa del mar y el centro de la tierra”, o Mato Grosso adiante, sempre e nunca, Basano La Tatuada, “mí primero amor”, até o Apa desembocar no Paraná Paraguai, depois no oceano, as escarpas do Mato Grosso para trás, e Basano La Tatuada, nunca. Para sempre. Publicado originalmente no livro Curva de Rio Sujo, Planeta, São Paulo, 2003.
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Quase um prólogo: Da máquina de roubar almas à máquina de registrar memórias Naine Terena
Numa referência ao trabalho do fotógrafo Guido Boggiani (1861-1902) em terras do povo Kadiwéu, Pavel Frič e Yvonna Fričova1 comentam sobre as desconfianças desse povo indígena para com a máquina fotográfica e o medo de perder “sua alma” ao serem fotografados (1997).2 O acesso a dispositivos de produção de imagens tornou-se algo tão comum a todos, que nós produzimos imagens diariamente. E, por consequência, muitas delas se perdem em nossas próprias memórias (as eletrônicas e as que armazenamos em nossa cabeça). Se, na década de 1930, os Kadiwéu temiam a captura da alma pelas câmeras, hoje esse temor deu espaço para que cada povo indígena manipule seu equipamento e faça sua representação. É a autonomia tecnológica. Diante disso, penso que talvez o temor dos Kadiwéu não fosse pela máquina roubar suas almas, mas sim de não poderem escolher quais partes de suas almas gostariam que fossem resguardadas. É sobre esse tema que este conjunto de textos e imagens trata: memórias, almas e incertezas. Você está guardando suas memórias?3
1 Pavel Frič e Yvonna Fričova (eds.). Guido Boggiani fotógrafo. Praga: Nakladatelstvi Titanic, 1997. 2 Observação retirada do livro de Rosane de Andrade, Fotografia e antropologia – olhares fora-dentro. São Paulo: Educ, 2002. 3 As imagens presentes neste ensaio são de meu arquivo pessoal. São fotos que produzi e armazenei em meus HD s. A primeira, o mosaico, reúne fotos da minha família, na casa onde a memória afetiva se guarda até hoje. A segunda traz os doutores Terena, verdadeiros mestres da memória desse povo; a terceira faz alusão àqueles que se foram em conflitos indígenas, mas também traz um pano de fundo que vai além do que a própria memória poderia armazenar.
Incertezas da afetividade de Cuiabá antiga No piso de uma casa cuiabana, estão cravadas as imagens produzidas pela família durante décadas. Os antigos casarões de Cuiabá estão dando espaço para outras edificações da cidade contemporânea. Quem resguarda a memória afetiva desses locais? 135
Doutores em “ser” Terena – quem chorará por nós? Doutor é o mais elevado grau acadêmico dos sistemas de ensino superior e comprova a capacidade de desenvolver investigação num determinado campo da ciência. Memória: faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado a eles. Incertezas: falta de certeza; dúvida, hesitação, indecisão, imprecisão.
Quem roubou essas memórias? Quem roubou essas almas? Em 1500, existiam cerca de 5 milhões de indígenas no Brasil. Hoje, eles não passam de 850 mil (IBGE, 2014). Em 2014, 138 índios foram assassinados e 135 cometeram suicídio (CIMI, 2014).
Neocriacionismo revisitado: Repatriação e ontologias rapanui Jacinta Arthur
No dia em que tupuna voltar,
1 Comunicado pessoal,
nesse dia o sol voltará a nascer
2013. Sorobabel Fati foi
Sorobabel Fati Teao1
membro fundador do Programa de Repatriação Rapanui e de seu Conselho
Historicamente, algumas leis têm proibido escavações e exumações em cemitérios brancos. Também historicamente, as leis têm permitido escavações e exumações em cemitérios indígenas. Enquanto perturbar o descanso dos mortos brancos se considera violação dos direitos humanos, a pilhagem de sepulturas indígenas é celebrada como contribuição ao desenvolvimento da ciência e do conhecimento universal. Diante de tal injustiça histórica, a repatriação dos restos mortais de ancestrais não é um mero direito indígena, mas um direito humano. Os Rapanui exigem a devolução de seus ancestrais a fim de recuperar seu mana2 coletivo como povo. No entanto, aqueles que estudam esses resquícios ancestrais se opõem enfaticamente a essas exigências, em nome da ciência, do desenvolvimento e da liberdade acadêmica. Analisando alguns conceitos fundamentais dos Rapanui, este ensaio fornece a base para compreender as implicações ontológicas da repatriação como movimento de direitos humanos. O problema central abordado neste texto surge do reconhecimento de que aquilo que os Rapanui entendem como ivi tupuna3 entra em extremo conflito com entendimentos não indígenas adotados por cientistas e muitos outros. O povo Rapanui possui sua própria ontologia, segundo a qual percebem o ser e os seres no mundo de maneira muito diferente do modo ocidental. Eles entendem que os ancestrais coexistem como pessoas, e que
Consultivo. 2 Os Rapanui, assim como diversos estudiosos, notam que não há equivalente em línguas ocidentais para este termo ontológico do Pacífico. Uma manifestação de ação poderosa, mana é a força condutora das visões de mundo dos Rapanui. No contexto deste trabalho, mana refere-se, por exemplo, ao poder dos antepassados de se relacionarem com seus descendentes, para protegê-los e investi-los de poder. 3 Ivi quer dizer osso, e tupuna, antepassado, ancestral, portanto, ivi tupuna refere-se aos “restos humanos ancestrais” na língua falada pelos Rapanui.
Moai no Museu do Louvre, Paris, França, 2014.
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podem compartilhar seus distintos conhecimentos, habilidades e seu mana com outros seres, inclusive os humanos. Para os Rapanui, ivi tupuna tem um status ontológico. São os ancestrais com os quais se relacionam por haka ara, ou genealogia. Essa relação genealógica conecta os vivos e os mortos com sua história, sua terra e seus conhecimentos. De modo diverso, os povos não indígenas geralmente consideram ivi tupuna meros objetos, cuja importância é exclusivamente simbólica. Para muitos, eles são valiosos para compreender os mistérios do passado; para outros, são resíduos arqueológicos, “monumentos” que alimentam uma ganância nacionalista. Para os não indígenas, ivi tupuna não têm nenhum valor intrínseco: não têm nenhuma relação com os atuais Rapanui nem qualquer significado ontológico para suas vidas hoje. Assim pensam os adversários da repatriação. Pela tradição oral, nós sabemos, não precisamos da ciência. Já sabemos de tudo o que aconteceu e estamos aplicando esse conhecimento hoje. Nesse sentido, e com todo respeito pela ciência, eu não preciso dela. 4 Comunicado pessoal,
Pelayo Tuki Make4
2013. Pelayo Tuki Make é membro fundador do Programa de Repatriação Rapanui e presidente do seu Conselho Consultivo.
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Esse conflito no modo como os Rapanui e os opositores da repatriação entendem o status ontológico dos ivi tupuna constitui um grave problema, impregnado de valores históricos e coloniais imorais, e que causa impacto no tempo presente cultural e legal da nação rapanui. De formas diversas, os adversários da repatriação representam os interesses da ciência ocidental e dos poderes coloniais. Ao se opor, eles continuam afirmando a longa história ocidental de se apropriar de ancestrais alheios, de materiais vivos e conhecimentos dos povos indígenas, sobre os quais eles exerceram violência e dominação durante séculos. Os ativistas pela repatriação atuam nessa história. Para os Rapanui, o repatriamento é a reivindicação de seu mana coletivo como povo. Com o intuito de começar a lançar luz nas profundezas dessa demanda ontológica, apresento um breve panorama de ontologias rapanui associadas aos ancestrais com base em uma perspectiva intersubjetiva, que examina as visões de mundo dos Rapanui como epistemologia relacional, na qual o povo e os tupuna – os ancestrais – se tornam agentes inseparáveis e participantes de um cosmo unificado. Nesse caso, o prefixo inter enfatiza uma zona de contato – a intersubjetividade reconhece que tanto a identidade humana quanto o
conhecimento são socialmente construídos. Uma abordagem intersubjetiva para entender como os Rapanui pensam e se relacionam com seus ancestrais envolve não apenas reconsiderar a produção acadêmica objetivista anterior, mas também contribuir para inquietar o debate acadêmico em torno da repatriação de patrimônio indígena. Que isso fique bem claro: Para nós, vocês estão mais vivos depois que morrem do que quando estão vivendo. Javier Tuki Pakomio5
5 Comunicação pessoal, 2013. Javier Tuki Pakomio
O debate acerca da repatriação é muito afetado pela tradição acadêmica, que, muitas vezes, espiritualiza, despersonaliza e dicotomiza realidades sociais e epistemologias indígenas mediante a imposição de seus pressupostos ontológicos modernos. Os opositores da repatriação muitas vezes consideram essas reivindicações indígenas animistas, distanciando ainda mais a realidade das ontologias indígenas da sedutora voz racional da ciência. Perigosamente associado ao primitivismo, o animismo é um conceito carregado de ressonâncias racistas das tendências do pensamento antropológico do fim do século 19 e início do século 20. O conceito de animismo foi definido por Edward Burnett Tylor em seu livro Primitive Culture [Cultura primitiva] como a crença dogmática em almas ou espíritos “diretamente derivados do intelecto das raças inferiores”.6 Tylor empregou o termo animismo como sinônimo de religião e o aplicou aos povos primitivos que atribuíam vida e personalidade também a animais, vegetais e minerais. A grosso modo, Tylor apresentava o animismo, fundamentalmente, como sendo a antítese da ciência. As crenças animistas eram, de acordo com esse autor, errôneas e resultantes de confusão mental. Embora amplamente rejeitadas, essas ideias continuam a permear o debate sobre repatriação sempre que a relação de um povo com seus ancestrais se apresenta como crença animista. Uma revisão inovadora das teorias animistas anteriores é a que Irving Hallowell oferece em seu estudo da ontologia anishinaabe.7 Desafiando a dicotomia animado/inanimado, ele enfatiza de modo acertado que não devemos nos perguntar se seres inanimados fazem coisas por vontade própria, mas se eles estabelecem relações. Hallowell afirma que a autoidentificação e as noções culturalmente construídas da natureza do eu “são essenciais para o funcionamento de todas as sociedades humanas e que um corolário funcional é a orientação cognitiva do eu para um mundo
pertence à cultura rapanui e é conselheiro no Programa de Repatriação Rapanui.
6 Edward B. Tylor, Primitive Culture. Nova York: Henry Holt and Company, 1877, p. 109.
7 Grupo assim autodescrito, que reúne povos indígenas relacionados cultural e linguisticamente e que habitam o Canadá e o norte dos Estados Unidos. [n.e.]
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8 Irving Hallowell, “Ojibwa Ontology, Behavior, and World View”, in Dennis Tedlock; Barbara Tedlock (orgs.), Teachings from the American Earth. Indian Religion and Philosophy. Nova York: Liveright, 1975, p. 142.
9 Lee Irwin, The Dream Seekers. Native American Visionary Traditions of the Great Plains. Norman: University of Oklahoma Press, 1994, p. 72.
10 Nurit Bird-David et al., “‘Animism’ Revisited: Personhood, Environment, and Relational Epistemology (and Comments and Reply)”. Current Anthropology, Chicago, n. 40, 1999, p. S72. (Suplemento edição especial: Culture: A Second Chance?).
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de objetos outros que não o eu”.8 Ao examinar essa orientação cognitiva, ele explica a coexistência, no pensamento anishinaabe, de tipos diferentes de seres animados da classe pessoas, identificando-os em duas categorias principais: pessoas humanas e pessoas além-do-humano. Essas duas categorias, explica Hallowell, compartilham um atributo principal: todas estabelecem relacionamentos. E embora possam ter ou não formas diferentes, o que distingue as pessoas humanas das outras, para-além-do-humano, é o grau de poder que elas detêm. Em sua abordagem da episteme visionária dos indígenas das planícies norte-americanas, Lee Irwin revisa a teoria de Hallowell sobre as pessoas além-do-humano (other-than-human) para reformular o conceito de uma perspectiva que favorece a superioridade acima da mera diferença. Embora Irwin concorde com a distinção de Hallowell baseada em graus de poder, ele esclarece que, entre os indígenas das grandes planícies, essas pessoas além-do-humano são “categoricamente ‘mais que humanas’”.9 Da revisão do conceito de Hallowell por Irwin, retiro a sugestão de uma categoria ontológica que enfatiza o poder como aquilo que diferencia mais-que-humanos e humanos. No entanto, ao fornecer a terminologia que só funciona se comparada com a categoria ontológica das pessoas humanas, o vocabulário de Hallowell e de Irwin se vale do entendimento binário dos diferentes tipos de pessoas, ao dividi-los em apenas duas possibilidades: humanos e não humanos. Em sua revisão das teorias animistas, Nurit Bird-David também privilegia o poder como atributo distintivo das categorias de pessoas, renomeando as pessoas além-do-humano de Hallowell como superpessoas. Problematizando a linguagem espiritualizada que deriva das teorias animistas, Bird-David observa que o termo espíritos reproduz o dualismo corpo/espírito da concepção moderna de pessoa, ao passo que seres sobrenaturais espelha a ideia ocidental de natureza. A alternativa de Hallowell, pessoas além-do-humano, escapa dessas noções tendenciosas, mas concordo com Bird-David que “ainda conserva a preocupação essencialmente objetivista com as classificações (humano e além-do-humano)”.10 Essa categorização de orientação objetivista se baseia na compreensão dicotômica dos seres animados que não reflete a maneira como os Rapanui se relacionam com seus ancestrais. Embora eu celebre as teorias de Hallowell e de Irwin pelas novas abordagens das chamadas crenças animistas como realidades social e cognitivamente construídas, as teses do além-do/mais-que-humano não são
inteiramente efetivas para entender as relações dos Rapanui com seus ancestrais. Para eles, as relações entre os vivos e os mortos não estão sujeitas a limites absolutos que diferenciem humanos e pessoas além-do-humano. Os ancestrais continuam na terra e se relacionam com seus descendentes tanto na vida cotidiana quanto na vida ritual. Eles se comunicam com os vivos, fazem as refeições com eles e concedem suas habilidades visionárias aos descendentes. E, como povo de mana, eles podem fazer isso seja na forma humana, seja na forma além-do-humano ou em ambas. Os tupuna permanecem na terra e podem continuar se relacionando com os vivos como pedra, como alguma entidade protetora ou má, como um traço da paisagem, um fenômeno natural ou todas essas alternativas. Olhe, aqui somos todos da família. Nós, aqueles ali, os moai, todo mundo. Até as pedras. As pedras são minhas primas. Pua A Tiveka Tuki Hey11
11 Comunicado pessoal, 2016. Rapanui de 13 anos
Bird-David supera parcialmente os atalhos tomados por definições anteriores de pessoas não humanas, de orientação modernista ou objetivista, reconfigurando esses seres como superpessoas. O termo que ela usa efetivamente rompe com a tradição de definir diferentes categorias de pessoas valendo-se da noção moderna de personalidade (isto é, espíritos) ou da ideia ocidental de natureza (isto é, seres sobrenaturais). As superpessoas de Bird-David também conseguem evitar as definições que se baseiam na oposição binária de humano/não humano (isto é, pessoas além-do-humano; pessoas mais-que-humanas) – tal oposição não funciona no caso dos Rapanui, pois nenhum limite categórico separa humanos de outros seres animados com os quais compartilham a mesma terra e a mesma história. Embora bem-sucedido ao romper com algumas tradições, o conceito de Bird-David corre o risco de ecoar o imaginário pós-moderno dos super-heróis, uma associação que imediatamente dispõe essas superpessoas em um mundo fantástico que existe apenas na mente humana. Mesmo reconhecendo o trabalho inovador desses estudiosos ao questionar e revisar acertadamente as teorias animistas no estudo das ontologias indígenas, ainda considero suas terminologias limitadas ao refletir o aspecto central que define a constituição de todas as categorias de pessoas: a capacidade de se relacionar. Considerando que a análise desse envolvimento em relações foi o que levou à revisão das teorias animistas,
de idade, Pua A Tiveka Tuki Hey deu esta declaração ontológica para explicar o modo como as relações são entendidas entre os Rapanui.
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é necessário um conceito que reflita não apenas os graus de poder diferentes que cada categoria de pessoas detém, mas, o mais importante: os diversos modos como elas se relacionam. Isto é, um conceito que enfatize ideias holísticas de interação, mais do que meras diferenças. Em minha pesquisa sobre esse termo, cheguei a omnipessoas. Originária do latim omnis (tudo, todos), a palavra omnipessoa se refere a alguém que tem poder ilimitado, uma pessoa onipotente. Ao definir os ancestrais como omnipessoas, quero enfatizar os atributos que os Rapanui lhes conferem de pessoas oniscientes e onipresentes. Eles consideram os tupuna detentores de um conhecimento total e ilimitado, detentores de consciência e sensibilidade ou compreensão, atributos que lhes possibilitam perceber todas as coisas. Além dessa onisciência, os tupuna têm o poder de estar em toda parte. Isso se deve à mobilidade dos ancestrais, que engendra possibilidades ilimitadas em virtude de sua capacidade de se metamorfosear, ou kuhane hane [metamorfose, em rapanui]. Expandindo esse último atributo, os tupuna também podem se mover de um mundo para o outro. Eles vêm e vão, e depois voltam definitivamente para Hiva, a terra natal. No entanto, eles também vivem em Rapa Nui, coexistindo e interagindo com os humanos. Eles vivem no passado, no presente e no futuro, e podem habitar esses mundos como humano, animal, rocha, um elemento da paisagem ou um fenômeno natural. Essa capacidade dos tupuna de habitar mundos diferentes de modos distintos faz do universo dos ancestrais um omniverso, um conjunto conceitual de todos os universos possíveis, com todas as possíveis leis da física. Como habitantes de um omniverso, os tupuna são omnidirecionais – existem em todas as direções – e omnifuncionais – termo que tomo emprestado dos estudos da informação, nos quais plataformas de software omnifuncionais são ambientes que oferecem todas as funcionalidades que os usuários necessitam, tornando-as disponíveis não em grandes grupos de aplicativos, mas em uma única interface. Eles sabem como usar os dois mundos. Porque eles podem viajar entre as duas dimensões, a dos vivos e a dos mortos, eles sabem. Eles sabem como viver nos dois mundos. Mihaera Pate Haoa12
12 Comunicado pessoal, 2012. Mihaera Pate Haoa
O eu dos Rapanui é cognitivamente orientado para um mundo de sujeitos diferentes do eu que constituem uma totalidade implícita e indivisível de
é integrante da cultura rapanui e colaborador próximo da autora.
Moai com vulcão Rano Raraku ao fundo, Rapa Nui, 2011.
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13 Marilyn Strathern, “Anthropological Strategies”, in The Gender of the Gift. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1988, pp. 3-22.
relações interativas entre diferentes seres, tanto humanos quanto omnipessoas. A construção rapanui da personalidade – como qualidade ou condição de pessoa – resulta, portanto, de uma ontologia relacional que configura as pessoas como divíduos (dividuals). Marilyn Strathern cunhou esse termo com base em seu estudo da sociedade melanésia, em que ela observou que a irredutibilidade do indivíduo é uma noção modernista, pois não se encontra em toda parte o indivíduo como entidade única. Como Strathern explica, a pessoa melanésia é um composto de relações, um microcosmo homólogo da sociedade em geral.13 Essa autora chama a pessoa de divíduo em oposição ao conceito ocidental de indivíduo. Adoto de Strathern a ideia de divíduo porque os Rapanui se constituem a partir de suas relações – uma pessoa, humana ou não, existe na ontologia rapanui na medida em que é relacionável (relating) e relacionada (related). Nurit Bird-David deriva do substantivo divíduo de Strathern o verbo dividualizar. Pensando a partir dos argumentos da autora, Bird-David explica que dividualizar difere de individualizar no seguinte aspecto: quando individualizamos um ser humano, nos tornamos conscientes daquele ser em si como entidade única e separada. Ao dividualizarmos uma pessoa, somos conscientes do modo como essa pessoa se relaciona com nosso eu. O termo dividualizar de Bird-David é essencial para entender as ideias rapanui sobre mana, uma força ontológica relacional que é transmitida, concedida e obtida por meio de relações dividuais entre as pessoas, os ancestrais e o meio ambiente. Então o que significa reativar o mana? Que é preciso falar sobre a história, ir aos lugares, acender o fogo, cozinhar. E, muito importante, falar. Para se viver com os ancestrais, é preciso falar também. Conversar com eles. Você fala com os tupuna também.
14 Comunicado pessoal,
Joaquín Tuki Tepano14
2013. Joaquín Tuki Tepano é membro fundador do Programa de Repatriação Rapanui e de seu Conselho Consultivo.
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Os argumentos de Bird-David sobre os conceitos de divíduo e de dividualizar levaram essa autora a revisar o chamado animismo primitivo, que ela reconfigura como uma epistemologia relacional, revisão que acompanhei para revisitar o mana como ponto central da epistemologia relacional dos Rapanui – e também central para sua reivindicação de repatriamento. Ao definir a noção de epistemologia relacional, Bird-David contrasta as epistemologias moderna e animista. Enquanto o conhecimento na epistemologia moderna emerge da introjeção de representações de coisas no mundo,
o conhecimento na epistemologia relacional consiste em desenvolver as capacidades do ser no mundo com os outros. Valendo-se desses sistemas de pensamento contrastantes, Bird-David reconfigura o animismo primitivo como uma epistemologia relacional por meio da qual a agência atribuída a objetos aparentemente inanimados ou animais comuns é engendrada por capacidades cognitivas humanas socialmente condicionadas. Muitas vezes, os acadêmicos ignoram essa ontologia distintiva, promovendo uma tradição interpretativa que objetifica os sistemas rapanui de conhecer e se relacionar. Ao fazer isso, eles desumanizam as relações entre os povos e sua herança cultural. Essa objetificação permeou profundamente o debate sobre repatriação, mediante a imposição de um pensamento espiritualizado e supostamente animista que reifica construções antropológicas racistas, segundo as quais as visões de mundo indígenas são errôneas e irracionais – o que atende convenientemente aos argumentos contrários à repatriação. De modo preciso, Clayton Dumont identifica essa linguagem derivada do animismo com o objetivo político dos opositores da repatriação, que procuram propagar os modos de conhecimento indígena como religiosos, ao contrário de racionais. É uma estratégia política eficaz, que se vale de imaginários e contextos que fazem os ativistas a favor da repatriação parecerem criacionistas irracionais. Como explica Dumont, os povos indígenas devem ser associados à religião irracional, de modo a abrir caminho para que a ciência possa assumir a voz culturalmente familiar e sedutora da razão. Então eles vão à escola para aprender o quê? Como desrespeitar outras culturas? Como impor leis que os favorecem mas que funcionam contra nós? Se eles quiserem estudar este lugar, primeiro devolvam tudo. Depois venham estudar de verdade. Nós lhes ensinaremos nossa história. Te Pou Huki15
15 Comunicado pessoal, 2013. Artista e integrante
Mas, ao contrário da imagem que os adversários construíram, o ativismo a favor da repatriação não constitui fundamentalismo irracional e anticientífico. Antes, ele se baseia em sistemas epistemológicos altamente complexos. E, saibam seus opositores, a repatriação envolve pesquisas rigorosas, que, crítica e efetivamente, engajaram, reconstruíram e conclamaram a ciência para funcionar a favor dos interesses dos povos indígenas. No cerne dessa abordagem descolonizada da ciência, encontra-se a defesa de uma pesquisa intervencionista, transformadora e emancipatória. As alegações feitas pelos
da cultura rapanui, Te Pou Huki é membro fundador do Programa de Repatriação Rapanui e de seu Conselho Consultivo.
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adversários da repatriação, de que as reivindicações e pesquisas indígenas são anticientíficas e irracionais, revelam fortemente uma tentativa desesperada de preservar privilégios dos quais eles desfrutaram longamente por meio de teorias e leis racistas. Assim, eles se apressaram em caracterizar as reivindicações de repatriação como neocriacionismo oportunista. A verdade é que essas reivindicações se fundamentam em uma epistemologia profundamente complexa de tradição milenar, que nada tem que ver com o criacionismo e que definitivamente não é nova.
—
16 A todos vocês, o meu maior respeito e mais sincero agradecimento. [Frase em maori traduzida ao inglês pela autora].
As teorias que apresento neste ensaio são resultado de anos de trabalho atento com a comunidade rapanui, em um esforço genuíno para começar a entender suas ontologias. Essa longa jornada só foi possível graças à imensa generosidade de meus colaboradores rapanui, que pacientemente me guiaram nessa viagem. Quero agradecer especialmente a Te Pou Huke, Niso Tuki Tepano, Pelayo Tuki Make, Sorobabel Fati e a cada um dos integrantes do Programa de Repatriação Rapa Nui. Também quero agradecer ao professor David Shorter, da University of California Los Angeles, que foi essencial para o desenvolvimento de minha abordagem intersubjetiva do estudo das ontologias indígenas, e a Cyndy García-Weyandt, por fornecer comentários cuidadosos sobre este ensaio. Kia korua ta’a to’a o te haka ma’a mai, maharo nui.16
Pipi Horeko, marcadores de terra rapanui, 2013.
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Me ver pobre, preso ou morto já é cultural Thiago de Paula Souza
Após ser baleada durante uma troca de tiros entre policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro e traficantes do Morro da Congonha, em Madureira, em 2014, Cláudia Silva Ferreira, de 38 anos, mulher negra moradora dessa comunidade, foi colocada por policiais militares no porta-malas de uma viatura para ser transportada a um hospital, onde chegou sem vida. Nesse trajeto, o porta-malas abriu, e o corpo de Claudia caiu, mas ficou preso por suas roupas ao automóvel. Seu corpo foi arrastado pelo veículo em movimento por cerca de 350 metros e dilacerado no asfalto. Rafael Braga Vieira, 28 anos, foi o único condenado pelos protestos de junho de 2013 no Rio de Janeiro. Ele foi preso por portar, de acordo com os policiais que o detiveram, um artefato de coquetel molotov (supostamente, uma garrafa de desinfetante cheia de álcool e um tecido amarrado ao gargalo). Rafael é também negro. Carlos Eduardo, 16 anos, Cleiton, 18, Roberto, 16, Wesley, 25, e Wilton, 20, todos jovens negros. O carro em que estavam foi alvejado por 111 tiros disparados por policiais militares do Rio de Janeiro. Segundo os familiares, eles voltavam da comemoração do primeiro salário de Roberto, quando foram surpreendidos pela Polícia Militar. Elza Soares canta com sua voz rouca: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.1 Seu grito fala dos fantasmas que rondam não apenas Claudia, Rafael e os cinco jovens negros exterminados, e de inúmeras gerações de crianças, mulheres e homens, negras e negros, que temem diariamente por seus corpos. São os mesmos fantasmas a que Débora Maria da Silva, uma das fundadoras do movimento Mães de Maio,2 se
1 Composição de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette, “A carne”, incluída no álbum Do cóccix até o pescoço, de Elza Soares, de 2002. O título do presente texto, “Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”, é um trecho da música “Negro drama”, dos Racionais mc’s, 2002. 2 Disponível em: https://pt-br.facebook. com/maes.demaio/ posts/524781720990866. Acesso em: set. 2016.
pp. 150, 154-155, 158-159: Dineo Seshee Bopape, Sketch 1, 2, 3 [Esboço 1, 2, 3], 2016. Ensaio de imagens realizados após os Dias de Estudo – Acra.
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3 Trecho retirado do filme Apelo, de Clara Ianni e Débora Maria da Silva. Brasil [em 2’57” e 3’09”]: Massa Real, 2014. Disponível em: https:// youtu.be/UNEF6G8x0Os. Acesso em: set. 2016. 4 Fonte: website da Anistia Internacional, “Campanha Jovem negro vivo”. Disponível em: https://anistia.org. br/imprensa/na-midia/ violencia-brasil-mata-82jovens-por-dia. Acesso em: 2016. 5 Fonte: website da Anistia Internacional, “Campanha Jovem negro vivo”. Disponível em: https://anistia. org.br/campanhas/ jovemnegrovivo. Acesso em: 2016. 6 Fonte: Indicadores IBGE: Principais destaques da evolução do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas abrangidas pela pesquisa 2013–2015, tabela 140, p. 296. Disponível em: http:// www.ibge.gov.br/home/ estatistica/indicadores/ trabalhoerendimento/ pme_nova/ retrospectiva2003_2015. pdf. Acesso em: 2016.
7 A partir de conversas com a pesquisadora Amanda Carneiro, 2014.
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refere quando diz: “Levaram nossos filhos, nossos irmãos, nossos pais, nossos avós, bisavós e tataravós, todos mortos no mesmo dia, esse dia longo que persiste em não acabar”.3 Sabemos que, mundialmente, o Brasil detém o maior número de mortes decorrentes de violência; essa marca ultrapassa as de zonas de guerra.4 De acordo com a Anistia Internacional, 56 mil pessoas foram assassinadas no país em 2012. Desse número, 30 mil eram jovens entre 15 a 29 anos; e, desse total, 77% eram negros.5 Esses números são assustadores, e o silêncio da maior parte da sociedade diante desse genocídio não é menos perturbador. Apesar de toda a luta dos movimentos negros, por que o assassinato de milhares de jovens negros e periféricos não provoca mobilizações que paralisem o país? Ou, como indaga Denise Ferreira da Silva, professora e diretora do Instituto de Justiça Social da University of British Columbia, Canadá: por que a morte de negros e negras por policiais não leva a população a realizar uma crítica ética? Por que se aceita passivamente esse fato? Qual é o papel das categorias raciais nesse silêncio? Atualmente, a maioria da população negra ainda ocupa a base da pirâmide social do país. Em termos de violência policial, expectativa de vida, acesso a serviços básicos, renda e taxa de desemprego a diferença entre brancos e negros é evidente. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que os rendimentos de trabalhadores negros e negras mal ultrapassam a metade dos ganhos de um trabalhador branco.6 Séculos de escravidão levaram a uma cultura de violência e de racismo no país, marginalizando e, consequentemente, exterminando a população negra. Ao longo de toda a história oficial brasileira, raras referências positivas foram difundidas sobre a negritude ou a herança africana. A vinculação da população negra a situações de subserviência e de tortura, as imagens degradantes comuns em livros didáticos, em novelas ou em programas televisivos policiais diários e a ausência de pessoas negras em espaços de poder contribuíram para criar uma imagem complexa e negativa da negritude no Brasil. Quando não é assim, elabora-se toda uma identidade afro-brasileira com ares de exotismo, desumanizada. Ou seja, ora se associa a comunidade negra à escravidão e à pobreza, ora a um contexto exotizante, que ignora os conflitos e a violência que permeiam a presença negra no país.7 Há muito, o jornalista e escritor Ta-Nehisi Coates tem denunciado os abusos a que é submetida a comunidade negra dos Estados Unidos da
América. Nas palavras de Coates, “ser negro na Baltimore da minha juventude era estar nu diante de todos os elementos do mundo, ante todas as armas de fogo [...]. A nudez é o resultado correto e intencional da política, o desfecho previsível para pessoas que foram forçadas durante séculos a viver com medo”.8 Claro que há enormes diferenças entre as questões étnico-raciais brasileiras e as estadunidenses, mas o medo de que seu corpo se torne alvo e da vulnerabilidade de suas vidas são fantasmas que assolam essas comunidades nesses dois países. Que não sejam esquecidos os assassinatos de Eric Garner, em Nova York,9 e Michael Brown, em Ferguson,10 e de todos os outros casos recentes de violência policial que têm provocado ondas de manifestações, passeatas e protestos no Brasil e nos Estados Unidos. O passado escravocrata contribuiu para a construção de uma estrutura racista que violenta a população negra. Tanto lá como aqui, é tarefa árdua e cotidiana separar a incerteza do medo e utilizá-la como potencial criativo. Novamente, no mundo como o conhecemos, não há uma ideia positiva corrente sobre a negritude. As construções não racistas (e/ou não exotizantes) configuram exceções na narrativa oficial. Como afirma o filósofo Achile Mbembe, “Ninguém – nem aqueles que o inventaram nem os que foram englobados neste nome – desejaria ser um negro ou, na prática, ser tratado como tal”.11 Quando não é objetificado, o negro é visto como ameaça a ser combatida; as vidas dos negros e negras valem menos, nossos corpos são constantemente tidos como alvos. As discriminações que muitos jovens negros enfrentam diariamente fortalecem a baixa autoestima e criam barreiras para o desenvolvimento de identidades negras. As referências negativas acerca da negritude e o delírio de que a identidade branca constitui norma e padrão fomentam as dificuldades para que os jovens desenvolvam uma identificação positiva em relação à sua negritude. O racismo está presente tanto em nosso sistema educacional quanto em diversos aspectos de nossa cultura – de fato, aprende-se a ser racista. Logo, o protagonismo é negro, mas a luta antirracista não é responsabilidade apenas dessa parte da população. O silêncio e a conivência das pessoas (socialmente) brancas diante de situações racistas pressupõe que elas não fazem parte do problema, quando, na verdade, estão diretamente envolvidas nessa ferida. São necessários o esforço e a adoção de novas práticas que propiciem a reconfiguração do pensamento que, ainda hoje, presume a superioridade branca.
8 Ta-Nehisi Coates, Entre o mundo e eu. Tradução de Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 46.
9 Após ser abordado por um policial, Eric Garner faleceu em 17 de julho de 2014 por estrangulamento, ao ser preso sob a alegação de que vendia cigarros ilegalmente. [N.E.]
10 Michael Brown, jovem negro de 18 anos, foi morto em 9 de agosto de 2014 na cidade de Ferguson, na periferia de St. Louis, alvejado por um policial. Ele não estava armado e não tinha nenhum antecedente criminal. [N.E.] 11 Achile Mbembe, Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014, p. 11.
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12 Ver Djamila Ribeiro, “Falar em racismo reverso é como acreditar em unicórnios”, 2014. Disponível em http:// www.cartacapital.com. br/blogs/escritoriofeminista/racismoreverso-e-a-existenciade-unicornios-205.htm. Acesso em: 2016.
13 Lia Vainer Schucman, “Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana”. Psicologia & Sociedade, v. 26, n. 1, pp.83-94. Disponível em: www. ufrgs.br/seerpsicsoc/ojs2/ index.php/seerpsicsoc/ article/view/3700 /. Acesso em: 2016. Leia também entrevista de Lia Vainer Schucman a José Tadeu Arantes: “Racismo e ‘branquitude’ na sociedade brasileira”. Agência Fapesp. Disponível em: agencia.fapesp.br/ racismo_e_branquitude_ na_sociedade_ brasileira/20628/. Acesso em: 2016.
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Quando uma pessoa socialmente branca teme por seu corpo, pelo fato de ser branca? Após séculos de tentativas do silenciamento de vozes e de invisibilidade da presença negra no país, recentes manifestações antirracistas e antissupremacia (socialmente) branca têm colocado em xeque os já moribundos mitos da cordialidade e da democracia racial brasileira. Há anos, negras e negros denunciam os abusos e a estrutura racista brasileira, mas bastou algumas vozes terem se destacado, especialmente em virtude dos ainda tímidos acesso e protagonismo negros, para que muitos não negros tenham denunciado essas críticas como sendo um racismo reverso. São inegáveis a hegemonia branca criada pelo racismo e todos os privilégios sociais destinados a um grupo em detrimento de outro. O racismo se configura num sistema de opressão institucional, portanto, é necessária a existência de relações de poder e, como sabemos, os negros não detêm poder institucional para ser racistas. A postura crítica de pessoas negras diante da violência também não configura racismo e pode ser considerada um questionamento do status quo, conhecido como branquitude.12 Não defendo a segregação racial, mas como negro e brasileiro sei bem que as raças estão bem definidas há muito tempo. Apesar da insistência de boa parte da sociedade brasileira em não discutir o assunto, há mais de um século a branquitude constitui o ideal desse país. Por isso, penso ser urgente encarar o estabelecido e pouco discutido saber-se branco. Muitas pessoas não se sentem à vontade para se declararem negras, por causa da discutida negatividade acerca da negritude. Mas eu diria que ninguém tem ou teve nenhuma dificuldade para se declarar branco – os indivíduos socialmente brancos jamais precisaram responder por seu fenótipo. O reconhecimento da branquitude e dos privilégios a ela assegurados são o passo inicial no entendimento de que as identidades raciais são aprendidas e resultam de práticas sociais.13 Como mencionado anteriormente, falar de racismo no Brasil sempre foi e ainda é um tabu e, mesmo indiretamente, a população socialmente branca se beneficia de sua posição privilegiada. O entendimento desses privilégios pode contribuir para a luta antirracista, e assim construir ferramentas para combater toda a violência física e simbólica que o racismo ainda produz no Brasil. Isso – além da luta para permanecermos vivos – leva à busca de novas maneiras de organizar o mundo que não tentem trocar determinada supremacia por outra. É certo que a luta para nós, negros, não é por supremacia. Ao mesmo tempo em que lutamos para permanecer vivos, escapar da sina e do trauma
para não ser mais um preto fodido, nos encontramos também diante de um complexo obstáculo, um negro drama.14 Em 2003, foi implementada a lei 10.639,15 que prevê o ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas. Esse fato leva ao reconhecimento e à valorização do protagonismo negro e das influências do saber-fazer e das tecnologias africanas na formação da sociedade brasileira, propondo modos de pensar menos colonizados e reflexões sobre nossas conexões com o continente africano. Nos últimos dez anos, provavelmente mais negros ingressaram nas universidades que em toda a história do país.16 Esses acontecimentos certamente contribuem para que discussões étnico-raciais não sejam mais ignoradas e possibilitem aos negros se sentirem mais bem representados e inspirados. Buscamos equidade, que nossas vidas sejam respeitadas e que também sejamos beneficiados pelos poucos direitos sociais conquistados. Não tenho dúvidas de que a representatividade em espaços de poder é fundamental para a alteração da dramática situação da população negra no Brasil, mas quais seriam os limites e as ferramentas para a criação de futuros em um mundo cuja supremacia é branca? Certamente, as instituições de ensino podem contribuir para o combate à violência e às desigualdades, mas essas instituições fazem parte do mesmo Estado responsável pelo massacre. Então, como desenvolver ferramentas de luta anti-hegemônicas que ajudem a criar novos modos de viver que possibilitem fugir das artimanhas do capitalismo contemporâneo? Na construção de novos imaginários e de outros saberes, para onde devemos direcionar nosso olhar e nossa imaginação a fim de combater essas forças que têm colonizado o mundo e, consequentemente, nossos corpos? Imagino que a invenção de futuros permeie o esforço de encarar os fantasmas coloniais, com a ferida da escravidão que ainda nos assombra, reorganizando a narrativa de nosso passado e recuperando as memórias da resistência histórica e das vozes de tantos homens e mulheres negros aniquilados ao longo dos séculos. A voz de Débora Maria da Silva me vem mais uma vez à mente: “Não esqueçamos dos nossos mortos!”.
14 Composição de Mano Brown e Eddy Rock, “Negro drama”. Do álbum Nada como um dia após o outro, dos Racionais MC’s, 2002.
15 Em 2008, houve o acréscimo da Lei n. 11.645/08, que inclui o ensino de história e cultura indígena. 16 Ver Robson Sales, “IBGE: “Acesso de negros à universidade cresce; maioria ainda é branca”, 2015. Disponível em: http://www.valor.com. br/brasil/4342534/ ibge-acesso-de-negrosuniversidade-crescemaioria-ainda-e-branca. Acesso em: 2016.
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Tecnologias para a organização: Engajando modos de vida e ativismo Entrevista com Ben Vickers, por Isabella Rjeille
O modo como somos organizados nas cidades não é apenas uma fonte de reivindicações para diversos grupos de ativistas urbanos. Inventar novas formas de habitar a cidade e de viver em comunidade é também uma das ferramentas de atuação e de resistência desse ativismo.1 Recriar a maneira como utilizamos o espaço, como aprendemos ou como difundimos conhecimento, assim como preparamos e cultivamos os alimentos, se refere à criatividade necessária para suprir demandas urgentes e implantar outras possibilidades de sociedade. Um dos projetos que você apresentou nos Dias de Estudo — São Paulo foi o unMonastery, que consiste na utilização de princípios monásticos para criação de um espaço de convívio, experimentação em tecnologia e hackerativismo. Como a reinvenção de um modelo de comunidade, ainda que em pequena escala (o projeto foi realizado na cidade de Matera, na Itália, em 2014) e readaptado de outro modelo e época (no caso, o monastério), pode contribuir para a reelaboração do que se entende hoje por tecnologia, ativismo, coletividade e cidade?
1 Refiro-me aos movimentos como o Organismo Parque Augusta, em São Paulo, e aos grupos que ocuparam o Cais José Estelita, em Recife. Ambos voltaram-se para locais ameaçados pela especulação imobiliária, propondo outras possibilidades de habitar a cidade por meio da retomada daquele espaço como público.
A longevidade média de um monastério é de 463 anos, o que, para os padrões atuais, é um ciclo de vida que supera em muito o das empresas, da maioria dos países e de todas as comunidades seculares atualmente existentes. Nós não sabíamos disso quando demos início ao unMonastery. Na verdade, éramos muito inocentes em relação àquilo que aprenderíamos com o monasticismo e de como esse caminho seria complexo. Em vez disso, começamos por um conjunto de questões e um modelo básico, que acreditamos que seria replicado sem problemas de escala em um contexto político, ou seja, pelos Estados nacionais, pelos governos regionais e por associações civis. O modelo básico voltava-se para um conjunto de crises sistêmicas que emergiam no contexto urbano e rural europeu: 1) grande número de propriedades vazias ou sem uso (mais de 11 milhões de propriedades desocupadas na Europa); 2) austeridade: política econômica que viu o retrocesso da provisão de serviços do Estado; 3) alto índice de
Pope.L, Baile, 2016. Documentação de performance realizada na 32ª Bienal.
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2 O unMonastery Basic Input / Output System [sistema básico de entrada / saída] é nosso kit de ferramentas tanto para insuflar vida nos novos unMonasteries como para avaliar projetos no decorrer de seu desenvolvimento. Projetado com base no princípio de que o conhecimento gerado pelo unMonastery deve ser aberto a todos, facilmente acessível e aplicável a outras iniciativas, o unMonastery BIOS é composto de quatro livros, um baralho, um dispositivo USB com arquivos de documentos e uma pedra.
3 CNC é um tipo de impressão tridimensional realizada a partir de códigos de computador. O processo de fabricação da peça pela impressora se dá pela extração de matéria, como uma “escultura”. [N.E.]
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desemprego em toda a Europa, particularmente entre indivíduos jovens e altamente capacitados; 4) ausência de estruturas e de infraestruturas sociais resilientes nos movimentos civis emergentes. Ao combinar essas questões, tentamos desenvolver o que acreditávamos ser um modelo conciso: convidar os indivíduos para assumir e revitalizar edifícios desocupados e, em troca, desempenhar um papel de apoio à comunidade local na realização de serviços (geralmente tecnológicos) que faziam sentido para aquela região e para aquela cultura específicas. E foi esse o modelo que tentamos adotar em regime de experiência por sete meses na cidade de Matera, na Itália, em 2014. Porém, se pelos padrões de qualquer iniciativa urbana de “setor cultural” o unMonastery de Matera obteve grande sucesso, em relação aos objetivos coletivos manifestos pelo grupo envolvido ficou significativamente aquém de nossas intenções de longo prazo. Desde então, passamos literalmente anos desmontando e remontando o modelo, como se pode ver no unMonastery BIOS.2 No contexto maior, o unMonastery é uma iniciativa open source, de código aberto, alinhada aos valores da cultura aberta, com uma linha do tempo de desenvolvimento de duzentos anos, que surgiu no rastro do movimento Occupy, do colapso dos movimentos de ocupação urbana conhecidos como squatting (Amsterdã, Reino Unido, entre outros) e relacionada ao que, na época, era um forte movimento hacker global que estava surgindo. Em seu cerne, configurava uma resposta profundamente pragmática a essas condições e com a observação fundamental de que, ao longo da última década, com o lançamento das impressões 3D e CNC,3 e outras inovações industriais, o movimento open source começava a ir além do software e passava para o hardware. De repente, casas, máquinas, computadores e móveis se tornavam gratuitos para ser baixados e reproduzidos. Ao criar o unMonastery, procuramos agir antecipadamente, com o objetivo de aplicar esse mesmo pensamento e esse mesmo método de compartilhamento a estruturas organizacionais, aos modos de convivência, e à reprodução de ambientes espaciais produzidos pelo homem. Mas como o nome pode sugerir, há um modelo e um modo de vida fundamentais existentes ao longo do tempo – que configuram o monasticismo –, nos quais esse trabalho se inspira diretamente, embora reúna também tendências e aparatos mais contemporâneos. Basta dizer que, por meio de muitos erros e experimentos desde Matera, reconhecemos que a transformação da sociedade só pode ser realizada pela transformação do indivíduo, e apenas como resultado de um caminho, uma prática ou uma
jornada compartilhada em que haja estrutura e comprometimento, em direção a uma forma de vida realizada em comunidade – como são, há séculos, as práticas monásticas. A construção de bases sólidas e cooperativas entre Ao longo dos séculos, os Estados nacionais da as pessoas passa por um processo de descentralização de Europa desenvolveram ou adquiriram controle poder, e o modelo de rede é uma das ferramentas utilizadas de todos os tipos de bens ou ativos. Embora por diversos grupos de ativistas. Desse modo, como uma a natureza e a função desses bens variem, a atuação hacker pode fornecer essas ferramentas? lógica geral por trás de seu desenvolvimento e de sua aquisição costuma ser a de permitir o fornecimento de serviços públicos. Nas últimas décadas, esse modelo se esgarçou: os países se viram lutando para encontrar fundos necessários para manter esses recursos sob controle, de modo que determinados serviços continuassem a ser providos. E então o Estado teve que se retirar de muitos serviços não essenciais. Consequentemente, muitos desses bens ficaram sem uso e alguns deles estão começando a se deteriorar. São de natureza extremamente variada: muitos são edifícios, jardins, parques. Outros são ferramentas (redes) ou até mesmo recursos digitais (dados). Em um esforço de corrigir essa situação, alguns bens públicos foram transferidos ao setor privado e às corporações. Essa mudança obteve resultados contraditórios, para dizer o mínimo: enquanto algumas vantagens financeiras para os países foram de fato concretizadas, ao menos no curto prazo, muitos programas de privatização sofreram consequências indesejadas – como a criação, em pouquíssimo tempo, de uma poderosa casta oligárquica na Rússia. Ao longo das últimas décadas, houve um crescimento substancial na consciência da sociedade civil a respeito dos commons [bens públicos comuns]; sobre aquilo que é mantido, cuidado e promovido mediante a propriedade comum – esse conceito se alinha diretamente com as intenções do unMonastery. A abordagem de como chegamos lá – a transferência em larga escala de recursos para a propriedade cooperativa não fixada – difere drasticamente entre grupos, ativistas e pensadores. O unMonastery foi fundado com base no pensamento de que a descentralização é uma teoria crítica da mudança, além de ser uma metodologia técnica prática (descentralizada) para realizar a transição rumo a uma economia, ou um mundo, que se baseie nesses bens públicos comuns. Especificamente aqui, o unMonastery desenvolve a estrutura SCIM (Simple Critical Infrastructure Mapping) [Mapeamento de infraestrutura crítica simples], que fundamentalmente se preocupa com prestar socorro em casos de desastres ou panes totais da administração pública. Mas, considerado
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um bloco de construção fundamental para pensar sobre infraestrutura descentralizada, ele funciona como uma ferramenta excepcional para mapear a infraestrutura existente da qual dependemos diariamente – água, lixo, aquecimento, saúde etc. –, e imaginar situações pragmáticas para reduzir essa infraestrutura a um nível local. O objetivo de longo prazo é alcançar uma cultura e uma arquitetura de dependência e confiança mútuas no nível local para sua comunidade, seja isso um unMonastery ou qualquer outro ambiente de convívio compartilhado. 4 Ivan Illich, Tools for Um dos pilares dos movimentos hacker, do software livre e da cultura de Conviviality. Londres: código aberto é a descentralização em todas as esferas da vida, começando Marion Boyars, 1975. fundamentalmente pela informação. Seja o acesso à informação, seja a destruição dos segredos de Estado (wikileaks), seja o poder ou o acesso livre a softwares transformadores – para todos. Nosso interesse e contribuição 5 Hakim Bey, nesse campo foi observar o modo como isso pode ser estendido para convi“Immediatism”, in ver com infraestrutura de base, inicialmente com a estruturação física e a Immediatism – Essays by otimização do espaço, passando pelo dispêndio de recursos, e agora visando Hakim Bey. Edimburgo; San Francisco: AK Press, a conexão e a estruturação de formas organizacionais em sua relação com a 1994. descentralização. Historicamente, os monastérios têm sido autônomos e na maioria das vezes autossuficientes, além de servirem, de fato, como centros de inovação em diversos campos tecnológicos. Nosso interesse está no modo como se lê e se reanima essa história hoje, ao entrarmos numa era em que o custo, a eficiência e a retenção de energia solar serão muito mais abrangentes que os da decadente indústria do petróleo, e o que isso poderia significar para a descentralização infraestrutural, na qual é possível obter a satisfação das necessidades sem intervenção governamental ou supranacional. A tecnologia parece ocupar um lugar O trabalho e os escritos de Ivan Illich compõem uma práxis ambíguo: ao mesmo tempo em que está na fundamental para o modo como o unMonastery pensa o ponta de lança das sociedades de controle, tecnológico – especialmente seu livro Tools for Conviviality pode ser também uma ferramenta de [Ferramentas para o convívio]4 –, assim como a leitura feita auto-organização, cujo papel foi essencial por Hakim Bey acerca da alienação do tecnológico, na nas recentes manifestações políticas medida em que é apropriado e neutralizado, em seu texto mundiais e nos diversos movimentos “Immediatism” [Imediatismo].5 Nesse caso, a definição Occupy. Com base nisso, como você vê expandida de Illich do que vem a ser uma ferramenta e, essa ambiguidade e como o unMonastery portanto, o que pode constituir o tecnológico, são pontos pensa o tecnológico? fundamentais para nosso entendimento de como as diversas facções, com diferentes intenções, muitas vezes tentam moldar a realidade através do emprego de tecnologias “neutras”. É essencial, em qualquer
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discussão sobre o tecnológico, especialmente contemporâneo, que a ideia de “neutralidade” seja rejeitada de antemão. E, com as devidas diferenças de abordagem, simpatizamos de modo enfático com a afirmação de Illich: “Ferramentas exageradamente eficientes corrompem o ambiente”.6 É aqui que buscamos uma relação diferente, um movimento lento semelhante ao movimento slow food; não lento no sentido de ineficiente, mas no sentido do convívio. Isto está longe de constituir uma utopia, mas será um pré-requisito para não se destruir completamente o planeta no futuro. A esse respeito, é interessante notar que nossa abordagem do tecnológico – embora na ocasião (2011–2012) fosse muito mais alinhada ao potencial revolucionário exortado pela interconectividade, observada globalmente nas lutas – mudou drasticamente nos últimos anos, particularmente vislumbrando-se a escala da tarefa que ainda temos pela frente. Agora esse envolvimento é formado essencialmente pelo fetiche e pelo reconhecimento de que lidar com o problema levará à necessidade de uma relação íntima e clara do campo acelerado das tecnologias emergentes (realidade virtual, Blockchain,7 inteligência artificial, drones etc.) e como seu conjunto de instruções e os parâmetros que seus criadores estabelecem como parte de sua produção definirão o próximo século. Mas esperamos – na verdade, desejamos – que, mediante a recuperação dos padrões latentes na prática monástica, nosso entendimento da regra tecnológica acompanhe a aplicação, ou melhor, uma interpretação da Regra de São Bento, não como dogma patriarcal estrito, mas pelo potencial de uma “regra flexível”, como em sua raiz, o latim regula – uma linha de orientação. Com isso, esperamos uma ambiguidade contínua e um desconhecimento profundamente incontrolável em nossa crescente adaptação ao tecnológico.
6 Idem, ibidem.
7 Blockchain é um livro‑razão público, disponível on-line, que apresenta todas as transações bitcoin realizadas. Disponível em: https://blockchain.info. Acesso em: out. 2016. [N.E.]
página dupla seguinte: Carla Filipe, Migração, exclusão e resistência, 2016. Vistas da instalação na 32ª Bienal.
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As alianças afetivas Entrevista com Ailton Krenak, por Pedro Cesarino1
Ailton, você é um dos grandes Uma questão é determinante para essa visão das possíveis criadores da resistência indígena alianças: o tempo histórico que eu e minha família no Brasil. Gostaria de saber como experimentamos ali na virada dos anos 1950, 1960, um tempo é que você pensa a aliança. O que relacionado ao modo como o Estado brasileiro tratava uma é fazer aliança para você? Qual é o parte dessa população, desses povos que ficaram pelas beiradas fundamento de uma aliança? do processo de integração, de colonização. No caso dos povos
1 Em 21 de agosto de 2016.
indígenas, havia uma clara orientação das políticas de Estado para fazer desaparecerem o pensamento, as formas de sociabilidade, de comunidade, as formas de vida que esses povos conheciam. Isso resultava uma violência muito grande para um conjunto difuso da população da sociedade brasileira, na zona rural principalmente, e também nos centros urbanos, por conta da negação, a esses sujeitos, de alguma potência, alguma expectativa de futuro. Então, para um menino que nascia em um meio desses, olhar o processo de organização da nossa sociedade era um desafio enorme, porque ele, na verdade, enxergava uma muralha de ignorância à sua frente, uma muralha de negação da sua possibilidade como sujeito. E a pedra sobre a qual uma pessoa dessas podia se apoiar para olhar o mundo era limitadíssima; era uma pedra dura, estreita, que no arranjo político, na coisa fundiária, na política do Estado, reduzia aquele lugar da aldeia indígena, da reserva indígena, a alguns cantos que sobraram para que essas famílias tivessem uma economia de subsistência. É um processo de confinamento mesmo. Olhando desse lugar, você podia ficar prostrado, se deprimir, se suicidar, virar alcoólatra, pirar ou se agarrar a uma resistência ditada pelas histórias, pelas narrativas, e ficar reproduzindo os recursos que
Bené Fonteles, Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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você tinha, as técnicas de mexer na roça, de manter aquela economia de subsistência, sentindo essa pressão externa incômoda. Ou então podia tentar abrir alguma brecha nessa muralha de ignorância, de negação. E essa brecha a ser aberta apareceu para mim como uma invenção. Uma invenção mesmo, pois não era uma prática que eu conhecia, era uma invenção de novas relações. O vizinho mais próximo que tínhamos era o cara que mais negava a nossa existência. Você estava ali disputando a água, disputando os recursos mínimos que a gente tinha, transformando floresta em pasto, disputando a água dos nossos córregos para fazer agricultura. E a indústria que estava chegando nos ameaçava também de uma maneira muito mais intensa e muito mais impactante. Isso vai esboçando uma escala de riscos, de ameaças no entorno do nosso mundo. O desafio de enxergar além dessas fronteiras sociais, de abrir relação com esse mundo daqui de fora, com a igreja, a missão, a religião, a política, o trabalho... era uma quase impossibilidade total. Eu olhava essa muralha toda e ficava tentando dimensionar o outro lado. Pensava em quem é que estava nesses lugares, quem estava saindo da cidade para vir em nossa direção, e o que a gente ia receber, como é que a gente podia responder a essas pressões todas. E entre fugas e tentativas de contato, tentativas de troca, de aproximação, fui construindo algumas ideias sobre alianças. A marca fundamental dessa relação é o conflito. O tempo inteiro uma pegada pesada do mundo exterior, com pouca colaboração, com pouca aceitação e muita revolta também, muito sentimento de injustiça, de perda. E olhar o mundo dessa perspectiva não oferece muitas aberturas, não apresenta muitas rotas para caminhar. Eu me neguei muito cedo a ficar observando as janelas só como se fossem rotas de fuga. Eu não queria tomá-las desse modo, mas queria eleger algumas dessas saídas como uma possibilidade criativa de interação com o que viesse pela frente. Em vez de o mundo ser só fechadura e impossibilidade, em vez de ele ser cheio de trancas, ele passa a ser cheio de janelas. Essas janelas todas vão ganhando um sinal positivo, de possibilidade de troca. Então, aliança na verdade é um outro termo para troca. Eu andei um pouco nessa experimentação até que consegui avançar para uma ideia de alianças afetivas – em que a troca não supõe só interesses imediatos. Supõe continuar com a possibilidade de trânsito no meio das outras comunidades culturais ou políticas, nas quais você pode oferecer algo seu que tenha valor de troca. E esse valor de troca supõe continuidade de relações. É a construção de uma ideia de que seu vizinho é para sempre.
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Você acha que existe uma diferença entre a Eu percebi muito cedo que esse mundo que a maneira como os brancos e os ameríndios veem essa gente chama de mundo dos brancos, que pode ideia da relação, da continuidade da relação? Como ser o Ocidente, imprime marcas no mundo, abre você sentiu essa diferença ao longo da sua vida? rotas, e essas rotas são movidas por um interesse
de saquear o roteiro. É um roteiro que vai saqueando o caminho. Ele não semeia no caminho, ele só colhe. Ele saqueia o caminho. Percebi isso muito cedo. Há trinta, quarenta anos, eu já tinha esse entendimento sensível, as relações que eram estabelecidas nesse caminho, nesse trajeto, não tinham investimento para que durassem. Eram todos casamentos temporários, casamentos de circunstância. Passado aquele primeiro movimento, as relações pessoais passam a supor que as pessoas sejam descartáveis. Você descarta certas pessoas e vai buscar outras, e nesse mote vai acessando recursos. As pessoas são só uma passagem para alcançar algum outro lugar, algum outro acesso. Elas não contam em si, não dão tempo, não possibilitam a construção ou a formação de ideias, o estabelecimento de afetos que não busquem um objetivo imediato, que possam prosperar e constituir um ambiente criativo, de invenção, de criação no sentido mais prazeroso, em que os afetos são espontâneos. Em que o tempo, a ideia do tempo seja determinante para o espaço, uma espécie de dilatação do tempo. Dilatar esse tempo ordinário das nossas relações e possibilitar a criação de vazios para as visões, para os sentimentos das pessoas, para as elaborações que um coletivo pode ter sobre aquilo que é o sonho. Aquilo que é sonho. E realmente continuo observando que o pensamento do branco, como diz o meu querido Davi Kopenawa Yanomami, é cheio de esquecimento. Esse esquecimento é percebido na pouca duração das relações que tal pensamento consegue sustentar. Como ele não consegue sustentar relações por tempo indeterminado, num tempo aberto, você acaba demarcando o tempo das relações. Quando você tem uma experiência de dilatação do tempo, começa a pensar em períodos muito mais abertos. É quando o meu pensamento consegue tocar uma ideia que vai além da percepção de um sítio, de um território, de determinado lugar na geografia, e começo a pensar nesse ambiente que nós compartilhamos, que é a Terra, que é um planeta. Quando seu espírito alcança essa compreensão, como uma criança que está começando a conhecer o alfabeto, a conhecer os primeiros exercícios, ele também começa a expandir a percepção e a capacidade de universalizar o seu discurso, de alcançar outras galáxias. Isso, para mim, é o que eu poderia experimentar como uma ideia de cosmovisão. Não é uma visão total, ela é uma visão aberta. Sei que algumas pessoas consideram que cosmologias são visões fechadas. Já ouvi
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inclusive amigos nossos dizendo que “são sociedades que têm uma visão total, uma visão totalizante da realidade”. Essas sociedades conseguem perceber o mundo que se justifica para sua vida, para sua existência. Mas não conseguem atinar com os outros mundos além desse, por causa da sua natureza essencial, mesmo. Vão ficar pensando naquela biosfera deles, na complexidade dos seus mundos, mas não vão perceber as outras conexões. O desafio que eu tive que encarar foi o de admitir a existência de inumeráveis mundos que circundam, que se articulam e que se comunicam com o mundo em que eu transito. As possibilidades de aliança não se dão só no plano das relações sociopolíticas, no plano das ideias, no que é possível estabelecer de colaboração entre uma nação e outra, entre uma sociedade e outra. Quando eu vou a um riacho, a uma fonte, a uma nascente e sinto beleza e fico comovido com a água que está naquela fonte, naquela nascente, eu estabeleço uma relação com ela, converso com ela, eu me lavo nela, bebo aquela água e crio uma comunicação com aquela entidade água que, para mim, é uma dádiva maravilhosa, que me conecta com outras possibilidades de relação com as pedras, com as montanhas, com as florestas. Eu estou desenhando, pintando duas colunas e fiquei durante semanas pensando o 2 Ailton Krenak se refere que eu queria desenhar naquelas colunas.2 Descobri que eu queria desenhar à sua participação na obra um relâmpago, porque nós temos um canto de pedir chuva, um canto que Ágora: OcaTaperaTerreiro, invoca o poder do trovão e do relâmpago para fazer chover. E como eu já do artista Bené Fonteles, elaborada para a 32ª ganhei o acesso a esse trono, a esse poder do trovão, do relâmpago, eu canto Bienal de São Paulo. o canto dele, e ele vem, eu tenho uma visão dele. Então me deu vontade de desenhar o relâmpago. Quando você vê essas colunas, vai ver que tem um relâmpago ali. As relações não são percebidas como potência que ocorre só entre pessoas, no sentido comum em que nós entendemos as pessoas, as relações humanas, as relações sociais. Elas são alianças com muitas outras potências que estão dadas, que são possíveis. O raio, a chuva, o vento, o sol, a brisa, as paisagens. Aliança é troca com todas as possibilidades, sem nenhuma limitação. Essa atividade de estabelecer relações, de criar alianças, Não há uma diferença fundamental. O que é uma das grandes características da atividade dos pajés pode parecer diferente talvez seja a ou xamãs. Qual é a diferença entre o trabalho de um xamã circulação desses negociadores. Eu me em uma aldeia, de um xamã como o Lourival, sogro do Davi surpreendi com o Lourival. O Davi disse, Kopenawa Yanomami, por exemplo, e a sua atividade? quando retornou uma vez de uma viagem, que tinha ficado com uma impressão terrível do estrago que as tecnologias dos brancos e o desenvolvimento das grandes cidades na Europa, na
Bené Fonteles, Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016. Vista da instalação na 32a Bienal.
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América, estavam fazendo na face da Terra. Então o mestre dele, o iniciador, que é o sogro dele, disse: “É isso mesmo que você está dizendo. Olha aqui, isso que você está dizendo está relacionado com isso, isso e isso”, e mostrou todos os outros circuitos queimados que estavam acontecendo pela Terra toda, nos oceanos, na atmosfera, nas paisagens que você pode perceber como montanhas, como geleiras. Ele disse: “O xapiri3 já me mostrou isso”. Então, aquele pajé que fica lá na aldeia já foi em todos os lugares possíveis. Já tem acesso aos mundos É, a todos esses possíveis lugares que eu poderia acessar, ele já foi. inumeráveis. Ele pode me dar instrução sobre todos esses lugares, porque ele se dedica o tempo inteiro a isso. E ele disse, inclusive, que quando está acordado ele vê esses eventos acontecerem, e quando ele está dormindo, também. Então, quando está dormindo e quando está acordado, ele acessa esses mundos o tempo todo. E não é nenhuma experiência separada do cotidiano. No cotidiano, eles estão fazendo o que eu faço, só que eu faço me movendo entre esses ambientes, entre esses lugares, essas culturas, pegando um avião, descendo em Lisboa ou indo para a França ou para o Japão ou para os Estados Unidos ou para o Canadá. Ele não precisa pegar um carro, um avião para ir a esses lugares. E ele vai antes de mim, porque quando vou relatar para ele uma experiência, ele me diz: “Sim, sim, eu vi isso”. Se bem que os xapiri também É, eles têm veículos, a gente não consegue nem atinar com a têm alguns veículos até mais ágeis complexidade deles e sua capacidade de movimentação. É como se do que os aviões, não é? pudessem ser simultâneos, estar aqui e em qualquer outro lugar. Eu não consigo, claro. A minha experiência nunca me possibilitou acessar essa multiplicidade de contatos. Eu mencionei que há trinta, quarenta anos tinha percebido essa ruptura, essa coisa que a turma do Boaventura de Sousa Santos chama de “abismo”, essa coisa abissal que é a separação do pensamento do Ocidente. Esse pensamento pegou uma escola e foi fundo 3 Xapiri, de acordo com nela, essa escola da negação da possibilidade da água, de uma montanha ou Davi Kopenawa, é aquilo de uma pedra estabelecer qualquer tipo de comunicação com o humano, a que os brancos, em suas línguas, costumam chamar ponto de criar uma distinção entre humano e não humano. Uma distinção de espíritos. In Davi tão radical que sugere que humanos somos nós, que podemos imprimir a Yanomami Kopenawa e nossa marca sobre tudo o que nós achamos que não é humano, os oceanos e Bruce Albert, A queda do céu – Palavras de um xamã todos os seus trilhões de vidas, as paisagens todas da Terra, que nós Yanomami. Tradução de pensamos poder derrubar, cortar, podar, plainar. Nós podemos fazer Beatriz-Perrone Moisés. paisagens, desmontar paisagens, tirar uma montanha daqui, levar para lá. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Ora, essa técnica, essa eleição da técnica como um deus do pensamento do branco, foi tão radical que está imprimindo neste lugar que nós
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compartilhamos, a Terra, uma marca tão profunda que pode inviabilizar a nossa experiência de continuar vivendo aqui, pelo menos da forma que os antigos humanos a conheceram... essa coisa de a Terra nos acolher, embalar os nossos sonhos, suprir as nossas necessidades de alimentação, de ter ar para respirar, de ter paisagens que comovem, entendeu? Vamos passar a ver uma única paisagem. Ora, se virar única, então não é paisagem. A natureza da paisagem é a pluralidade, a diversidade, é a sucessão. As paisagens se sucedem, ou então não são paisagens. Quando a gente acaba com todas as paisagens da Terra, nós entramos em coma. Então, aquela ideia de dilatar o tempo... dilatar o tempo é não deixar isso acontecer. Cantar e dançar para suspender o céu, que é uma experiência comum a muitos povos no planeta inteiro, é dilatar o tempo. Quando você canta e dança e suspende o céu, você está dilatando o tempo. E então as alianças É quando se dilata o tempo, porque se não acontecer essa dilatação do acontecem. tempo, só haverá relações de usuários. Nós estamos aqui para usar o mundo, e as nossas relações interpessoais são relações utilitárias. Aí, você fala assim: “Ah, mas eu não tenho nada para trocar com ele. Você já foi a tal lugar do mundo? Não, porque eu não tenho nada para trocar com ele”. Como não tem nada pra trocar? Talvez seja por isso que existe aquele provérbio, que diz que “ninguém é tão pobre que não tenha nada pra dar”, assim como é impossível que exista alguém tão rico que não precise de mais nada. Isso significa que o mundo das trocas, das colaborações, é aberto. Ele não tem limite. O mundo não faz esse movimento por você. Lá atrás, no começo da minha formação, dessa minha formação quase autodidata, de tatear o mundo, lá, tateando o mundo, quando percebi o mundo como uma muralha de negatividade, fiz um movimento de transformar essa muralha em trilhões de janelas de aliança, de troca, de possibilidades. É mudar o sinal. Você muda o sinal da negatividade para a possibilidade, você passa a considerar isso comunicações potentes. Como é que se produz um pensamento, Ailton, em um Eu imagino que o leito por onde esse pensacontexto de destruição das próprias condições de produção mento pode seguir ou prosperar é um leito do pensamento? Você fala de um tempo em que cada vez marginal à via do pensamento do Ocidente. mais as alianças e os vínculos ficam comprometidos pela A literatura dos séculos 19 e 20 enunciava inexistência progressiva de uma paisagem. Como é que se uma revolução no mundo, dizia que o mundo produz pensamento em um contexto adverso? iria experimentar essa mudança. Era uma mudança que iria alcançar um termo que seria a humanidade. Chegamos até a projetar a ideia de uma humanidade comum, uma humanidade espalhada por aí, por todos os continentes. Então, lembramos do Millôr
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Fernandes, que dizia que “nós somos todos humanos, só que alguns são mais humanos que os outros”. Então, se teve um momento em que conseguimos pensar que éramos uma humanidade, rapidamente descobrimos uma camada sobreposta a essa ideia de humanidade, que sugere que nem todos são tão humanos assim. E aí começamos a separar em lotes o planeta, onde há direitos que são para todos, que são humanos, depois há direitos para os mais ou menos humanos, e, finalmente, há lugares em que não cabem nem os direitos humanos, porque aquela gente não vive em estado de humanidade. Mas quem foi que decretou que existe um estado de humanidade? De onde veio essa ordem divina que disse: “Tem um grau aí que é de humanidade. Lá tem direitos humanos. Tem outro grau, ou degrau, onde estão os sub-humanos”. Então, é uma seleção que não é natural, é uma seleção arbitrária das desigualdades humanas, das desigualdades entre os povos, entre todos nós. E, nessa escala de desigualdades, essa gente que ficou com o apelido de os índios – seja aqui nas Américas, seja na África ou no norte da Europa –, sofrem a segregação cotidiana do seu pensamento, da sua visão, das suas ideias sobre o mundo e são constrangidos a ficar nos seus guetos, a professar suas visões de mundo nos seus guetos. Eles podem fazer até a sua literatura, eles podem fazer até seu cinema, eles podem ser selecionados para uma mostra internacional, alguns podem até mesmo ir para uma feira de literatura em Berlim, em Nova York, mas eles vão com a chave de que são étnicos. Eles são um quadradinho, uma gaveta dessa humanidade. Eles não têm acesso ao fluxo que as outras humanidades experimentam. A preponderância da política sobre esse pensamento e o domínio da economia sobre essas mentalidades justifica a violência que é impressa nesses povos estigmatizados por terem um pensamento acerca do tempo, acerca da propriedade, acerca do acesso ao que seria o comum. O comum é a Terra. A Terra é comum, o planeta é comum. A margem esquerda do rio Doce foi posta em coma por duas ou três corporações que atuam na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos, no Brasil, que têm escritórios na Europa. Quando reúnem seu conselho de acionistas, escolhem um lugar como Londres, bem longe daquela gente que eles podem afetar com suas práticas, para que essa gente não vá lá atrapalhar a conversa deles. Essas ações, essas intervenções, acontecem no campo do saque daquilo que costumamos chamar de recursos naturais – a floresta, os rios, as montanhas. Eles estão exaurindo o campo das alianças. É como se você retirasse o oxigênio do planeta. É por isso que não dá para pensar que as alianças sejam possíveis entre todos esses diferentes
Bené Fonteles, Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016. Vista da instalação na 32a Bienal.
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mundos, essas humanidades e sub-humanidades, porque foram postas em diferentes mundos. Se outros mundos são possíveis, então precisamos continuar a perguntar sobre qual é a possibilidade de aliança entre esses mundos, porque, se não, eles serão sempre mundos divorciados. Precisamos pensar na possibilidade de mundos que sejam intercambiáveis, que possam se alternar em diferentes espaços e lugares, se não as fronteiras vão continuar sendo a marca mais brutal, mais anti-humana. Precisamos vazar essas fronteiras, feito uma peneira, para podermos transitar entre esses mundos. Nos Dias de Estudo – São Paulo, Essa passagem do tempo em que não havia angústia organizados pela 32ª Bienal, você fez uma da certeza deve se referir ao instante imediatamente crítica do mito e disse que, se, no entanto, anterior à linha que divide os povos que têm história e fosse possível pensar sobre como era esse os que passariam a ter mito. O Olimpo, por exemplo, tempo antigo, ele seria um tempo no qual não aquele monte Olimpo que fica ali em torno de Atenas, existia a angústia da certeza. Em nenhuma que sobe e encosta lá no mar Egeu e sai se espalhando língua ameríndia se traduz mito por um por ali, aquele monte que hoje é ocupado por oliveiras, equivalente com mesmo sentido que essa noção que é uma colina cheia de pedras, deixou de ser o lugar passou a ter no Ocidente. O que essa palavra de deuses, deixou o seu lugar de trânsito de divindades e esconde? O que ela obscurece? foi simplificado como uma paisagem que pode ser alterada. Ele deixa de ser um lugar sagrado, um lugar com essa potência criadora e transformadora que foi percebida antes como o Olimpo, o lugar onde os seres de poder transitavam entre humanos, a ponto de estabelecer relações com os humanos, de ter filhos, de ter consanguinidade com os humanos. Acaba essa possibilidade e aquela gente empobrece a sua visão. Eu vou usar uma expressão que pode não ser a melhor agora, mas eles perdem a sua visão, a sua cosmovisão, eles abandonam uma cosmovisão e passam a perseguir agora uma ideia. Uma ideia de pólis, de cidade, de sociedade, uma ideia de civilização que começa a viver a angústia de ter certeza de alguma coisa. De ter certeza de que vão poder controlar aquele lugar onde estão vivendo, aquela paisagem, que vão conseguir através do conhecimento, da ciência, da experimentação, controlar a passagem do tempo, as mudanças dos ciclos do plantio e da colheita, até chegar a esse extremo que nós experimentamos hoje, no qual não dependemos mais do humor da Terra para a nossa produção, tanto da nossa produção material quanto da nossa produção de ideias. Os humanos seguem produzindo em algum sentido independentemente do humor desse imenso Olimpo que é o planeta onde vivemos. Nós compartilhamos uma grande canoa – eu insisto nessa imagem –, na qual a qualidade do ambiente não é mais uma preocupação da maioria da tripulação, porque
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os artifícios que foram acessados, as técnicas, a ciência, os recursos, a tecnologia, isso que nós chamamos de tecnologia, que foi acessada pelos humanos, rompe aquela relação de lugar sagrado da Terra, que o Olimpo teve um dia e que outros lugares continuaram a ter mais tarde. Seus habitantes romperam com a ideia de que aqueles lugares eram sagrados e passaram também a tratar aqueles lugares como recurso. Recurso disponível para o humano moldar, manipular. E essa compreensão crescente de que o mito é uma categoria de conhecimento de povos que não têm história, que não têm pólis, que não têm política, que não pensam a complexidade das relações no mundo que nós compartilhamos, é uma grave herança segregacionista daquele pensamento que teve origem lá nos gregos. Eu fui com o Davi Yanomami a Atenas. E o Consulado do Brasil em Atenas pôs uma pessoa para nos acompanhar em visita à Acrópole, ao Arco de Adriano, ao Templo de Zeus. Fomos visitar esses lugares. Quando chegamos lá perto do mar Egeu, numa ruína, com aquelas colunas quebradas, com pedra caída para todo lado, restos de antigos templos tombados no chão e um mar lindo à nossa vista, em um dia de luz bonita e sol, paramos ali e a nossa acompanhante do consulado brasileiro ficou junto com a gente contemplando a paisagem. Então ela perguntou para mim e para o Davi: “O que vocês acharam deste lugar? Vocês gostaram do passeio?”. Eu fiquei num vazio, assim, pensando no que eu ia responder. O Davi me antecipou um pouquinho e disse: “Eu gostei de vir aqui, porque agora eu sei de onde saíram os garimpeiros que vão destruir a minha floresta, fuçar a minha floresta como se ela fosse pó. O pensamento deles está aqui. Eles fizeram isso aqui, e foram fazer o mesmo lá onde eu vivo. Eles reviram a terra, eles quebram tudo”. Essa imagem, essa tradução que o pajé yanomami fez da nossa visita àquele lugar de ruínas na Grécia, é de uma completa compreensão daquele tempo mítico em que os antigos gregos viveram, quando o Olimpo era um lugar de trânsito de seres divinos, bem como da passagem daquele lugar para um lugar histórico, onde você faz monumentos, constrói templos e constrói cidades e faz guerras. É a transição do tempo do mito – tempo em que é possível tudo, em que é possível que os mundos se intercambiem – para um mundo chapado, com uma história linear. Não tem uma régua dessas para você contar o tempo nas narrativas cósmicas ou cosmogônicas que os nossos ancestrais experimentaram e que alguns de nós herdaram deles por boa audição, porque, se fôssemos surdos, também estaríamos com uma régua contando tempo.
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Mas essas narrativas continuam a ser contadas pelos Yanomami e por vários outros povos, de modo que esse tempo no qual não existia a angústia da certeza, como você diz, não deixou de existir.
Ele é uma janela. Como é o pensamento nesse A literatura que nós compartilhamos em várias línguas, em tempo no qual não existe a diferentes lugares, ela costuma se referir a esse pensamento como angústia da certeza? pensamento mágico. Eu gostaria de ter um outro termo, uma outra A possibilidade do pensamento? palavra, uma outra imagem para ajudar nessa compreensão, mas vamos considerar que seja o pensamento mágico. Você acha que as palavras disponíveis em Eu tenho limitações enormes para alcançar uma outra português não são suficientes para dar conta? expressão em qualquer idioma para falar dessa experiência de um pensamento potente, que se comunica em diferentes direções com transmundos, que transita e que tem o poder de criar reações em cadeia nos ambientes nos quais esses pensamentos são emitidos, nos quais eles são exprimidos. Eu me lembro de estar cerca de dez, onze horas da noite, numa cabeceira de rio, no alto rio Jordão, sob uma lua e ao redor de uma fogueira, numa cerimônia que os parentes estavam fazendo para os visitantes. Alguns desses visitantes tinham subido o rio arrastando canoa, porque não havia água no rio, e então, às onze horas, meia-noite, aqueles visitantes estavam preocupados porque no dia seguinte teriam que começar uma viagem de volta, descendo o rio, e iam descer o rio arrastando canoa de novo – já estavam calculando o tempo que iam precisar até chegar à foz, ao lugar do embarque. Então, uma pessoa maravilhosa, dessas que vivem o pensamento mágico a que nós estamos nos referindo, calmamente disse: “Por que vocês estão deixando de experimentar esse momento? De viver esse momento em que estamos todos juntos aqui, agora, e se preocupando com o que vai acontecer amanhã cedo?”. Então, as pessoas que estavam preocupadas com o embarque nas canoas disseram: “O rio está vazio, e nós vamos ter que baixar arrastando canoa. Se a gente subiu e demorou quase um dia e meio arrastando canoa, é bem capaz que a gente demore mais de um dia agora para baixar”. Ele falou assim: “Não se preocupem, não. Nós vamos pedir uma chuva”. Olha o pensamento mágico: “Nós vamos pedir uma chuva para vocês baixarem”. Alguns ficaram pensando: “Você está brincando com a gente, olha o céu, olha a lua...” Lá pela uma e meia, duas horas da madrugada, estavam todos nas redes, se recolhendo porque iam ter que se levantar naquela manhã. Algum tempo depois, com alguns de nós já cochilando, chegou uma chuva maravilhosa e potente sobre a floresta, chacoalhando a floresta, choveu tanto na cabeceira daquele rio, que você não acredita. As nossas canoas, que estavam amarradas, estavam todas flutuando sobre
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um volume de água que devia chegar, assim, a quase dois, três metros. A mata, a vegetação da beira do rio estava coberta de água. Nós descemos às quatro e meia da manhã para apanhar as canoas, e ele perguntava para nós: “Vocês vão poder descer surfando agora. Está bom assim?”. Então, é como se fosse um pensamento dos vínculos, não é? É. O que esse pensamento quer? Ele quer Sim. E que a humanidade possa compartilhar produzir relações, garantir a possibilidade experiências. É uma fartura, uma riqueza, porque de que possa existir humanidade? imagina um amigo seu poder oferecer a você uma chuva? Tem coisa mais maravilhosa do que essa? “Não se preocupe, eu vou chamar uma chuva.” Aqui nós somos tão medíocres, o máximo que conseguimos chamar é um táxi. O seu amigo está querendo ir embora de madrugada? “Não se preocupe, vou chamar um táxi.” A tranquilidade com que ele podia dizer que ia pedir uma chuva é a tranquilidade de quem está interagindo com muitos mundos, inclusive com o mundo daquela floresta que produz chuva, com a profunda conexão com aquele lugar em que ele está presente e com todos os outros seres que compartilham e que trocam com ele, porque não foi ele quem fez chover. Ele negociou, mediou com todos os outros, buscou negociar com todos os seus afetos aquele presente. Deu um presente para a gente, uma chuva. Como é que se negocia O tempo todo nós estamos negociando com as nossas relações, com com os afetos? esses afetos. E às vezes negociamos de maneira quase subliminar. Já que estamos procurando uma compreensão de como esse pensamento vai acontecer, vamos imaginar que essa subliminaridade aconteça nesse lugar de pensamento. Ele não se torna uma prática, um exercício visível de mover aquele objeto para cá ou jogar essa água ali ou acender uma vela ou fazer uma procissão, mas acontece no plano desse pensamento. No plano desse pensamento, no lugar desse pensamento, admitimos que ele continue criando janelas de comunicação entre esses mundos, nesse lugar em que as negociações acontecem o tempo todo. Seria talvez como alguma norma de reconhecimento. Um reconhecimento. É um sentido de gratidão, de pertencimento, de ser daquela família, daquele mundo. Se você pode pedir alguma coisa para a água, é porque você tem relações com o mundo da água. Se você pode estabelecer trocas, se pode se comunicar com a água e estabelecer troca com a água, significa que você pode pedir e dar coisas para ela. Tem um trânsito. Se você pode pedir uma chuva, é porque todos os parentes da água vão admitir seu parentesco, vão admitir seu pertencimento. Se você não tiver pertencimento naquele mundo, você tem pouco trânsito com aquele mundo, mas se você já está em pertencimento com ele,
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você aceitou o trânsito e estabeleceu com aquele mundo a possibilidade de pedir, dar e receber, de trocar. E como você concebe a possibilidade de uma O meu amigo Bené Fonteles escolheu uma frase ou arte a partir disso, Ailton? A arte precisa ser um trecho do A queda do céu,4 do Kopenawa sempre mediada pelas coisas? Yanomami, para afixar numa das colunas, em que o Kopenawa abre a fala dizendo: “Omama também é artista. Omama é artista”. E aí ele estende uma fala sobre como Omama tem o exercício da 4 Davi Yanomami arte. O exercício da arte de Omama é criar o mundo. É uma arte. Ele cria o Kopenawa e Bruce Albert, mundo como artista. Então, ele vai descrevendo as criações, as belezas que op. cit. vai criando, as dádivas que ele vai trazendo e termina convocando os artistas contemporâneos para criar esse vínculo com Omama. Já que Omama é artista, que esses artistas entendam isso e que deem curso para o povo de Omama, deem passagem para Omama, entendeu? Deem trânsito para ele. Trânsito das ideias, trânsito do pensamento. O que é Omama? Parece que é esse exercício vital, é a vida, é essa possibilidade de estar vivo, de ser potente, criar e interagir com o cosmo, de estar no Universo de maneira ativa. Ser criativo, ser ativo, criar. É arte. A separação entre viver e fazer arte, eu não percebo essa separação em nenhuma das matrizes de pensamento de povos originários que conheci. Todo mundo que eu conheço dança, canta, pinta, desenha, esculpe, faz tudo isso que o Ocidente atribui a uma categoria de gente, que são os artistas. Só que em alguns casos são chamados de artesãos e suas obras são chamadas de artesanato, mas, de novo, são categorias que discriminam o que é arte, o que é artesanato, o que é um artista, o que é um artesão. Porque a história da arte é a história da arte do Ocidente. Quando Picasso foi à África e se contagiou com a visão de arte que os povos da África traziam, ele transpôs para sua obra, para a sua criação, muitas daquelas visões, e todo mundo admite e aceita isso. E ele não viu ali, naquela criação, nada menor do que a arte dele. A arte dele por excelência não é o que tem de mais bacana no Ocidente? Agora, os cretinos, que querem demarcar fronteiras entre mundos, esses acham que os povos indígenas produzem artefatos, e que um artista ou alguém que ganhou esse título produz arte. Por que os Krenak, por Falo sobre isso em um livro meu, O lugar onde a terra descansa.5 exemplo, pintam os corpos? Certa vez, alguns visitantes estavam fotografando os encontros que a gente fazia lá na serra do Cipó, em Minas Gerais. Era o Tarú Andek, 5 Ailton Krenak, O lugar festival de danças tradicionais. Os parentes tinham um biombo, um cercado onde a terra descansa. Rio onde iam para se despir dessa casca, dessa roupa, e se pintar com urucum, de Janeiro: Eco Rio, 2000. com jenipapo, com terra, com pigmentos. E os parentes Maxacali se
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apropriavam de todas aquelas outras coisas, inclusive dos sacos plásticos, de tudo, e faziam máscaras, faziam arranjos e botavam na cabeça, na cintura, no braço. Aí, chegou alguém e me perguntou: “Por que vocês têm essa coisa de pintar, de fazer essas coisas?”. E eu comentei com essa pessoa: “Olha, nós somos caçadores de beleza. A gente caça beleza no mundo, na paisagem, em tudo quanto é lugar. E quando nós pintamos o nosso corpo, estamos trazendo para essa base, para esse suporte que é o nosso corpo, os espectros da criação. Isso que vocês chamam de espíritos, de potência que tem na natureza, nós estamos imprimindo esses espectros da natureza nesse suporte que é o nosso corpo. Nós queremos ser reconhecidos por eles. Estamos imitando a beleza, imitando a beleza deles. Nós somos espelhos da criação”. Então é algo contrário à lógica da beleza que emana do Ele caça, captura a beleza. É um caçador indivíduo. A beleza não emana do indivíduo; ele é que, de mesmo. Ele vai caçar a pintura da alguma maneira, vai ao encontro da beleza. jaguatirica, da borboleta, do besourinho, ele vai caçar a pintura desses seres. Para produzir um vínculo. Imprimir no corpo e, a partir daquela impressão, da adoção daquela imagem que está no seu corpo, você passa a ter trânsito com todos eles. Você pode andar no meio deles, cantar junto com eles, dançar com eles, chamar para vir dançar junto com você, porque eles vão se reconhecer. Você é espelho. Eles estão te vendo. “Ah, então, eu posso chamar o macaco pra vir dançar comigo? A família dele toda?” Eu posso chamar. Quem eu quero chamar da família dos peixes para vir dançar comigo? Ah, então você vai poder chamar a família deles, porque estão olhando e vendo a pintura da família deles em você. Como é um mundo no qual os corpos não são É o mundo dos mortos. Os mortos não se pintam. paramentados? Existe a possibilidade de um mundo Os espíritos dos mortos não são pintados, eles não no qual as pessoas não se pintam? têm pintura. Eles não têm mais a capacidade de buscar essa comunicação com a natureza, com a potência que existe na natureza, nas águas, na floresta, nas montanhas, nos rios, que existe em todos os lugares. Então, eles não têm uma pintura. Os vivos têm pintura. E os brancos? Estão mortos? Os brancos, em algum tempo, tiveram suas insígnias. Eles se pintavam. Em algum tempo, todo mundo se pintou, mas essa ruptura que aconteceu entre o pensamento dos brancos e esse pensamento mágico levou ao afastamento da natureza, ao distanciamento dessa ideia de caçar a beleza para uma outra construção, digamos assim, da ideia de beleza, na qual ela passa a ser alguma coisa que você projeta, não que você captura. Que você irradia como uma ilusão de que existe em caráter permanente. Alimentando
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a ilusão de que você tem duração. E o pensamento mágico, se nós decidirmos que podemos falar assim, esse pensamento acha que não temos nenhuma certeza se estaremos vivos daqui a pouco ou até amanhã. Essa falta de garantia, essa falta de certeza, libera a pessoa de construir uma projeção para o mundo. Não precisa ficar criando uma projeção, porque você não tem certeza nenhuma se aquilo vai para algum lugar. Isso tem que ver com aquele pensamento, com a primeira conversa nossa sobre certeza, sobre um tempo sem a angústia da certeza. Se nós estamos lidando agora circunstancialmente com essa ideia da incerteza viva, então estamos tentando fazer algum contato com um tempo em que a humanidade, no sentido mais amplo, experimentou essa incerteza, quando os brancos se pintavam. E isso agora é absolutamente necessário. Eu penso que é a janela da arte. A janela da arte, em diferentes lugares e contextos do mundo, é uma espécie de surto dessa consciência da certeza, essa que vive a angústia da certeza. Eu acho que ela tem um surto de vez em quando, e ela corre para o mundo da criação, o mundo da invenção, o mundo da arte, que é quando ela não tem certeza. É quando ela está surtada. Porque quando ela está organizada, quando está sóbria, quando está produzindo, ela não se permite essa licença. Tanto é que o mundo do trabalho é claramente demarcado do mundo da criação. O mundo do trabalho está cada vez mais consolidado como o lugar da reprodução, da repetição. O mundo do trabalho é você fazer milhões de peças iguais, milhões de prédios de janelas iguais. Toda a tralha tecnológica que a gente compartilha no mundo hoje é produzida em escala. Não é para ser criada, é para ser reproduzida. A criação se dá em saltos. Tem uma criação aqui, depois tem uma criação em algum outro tempo. O mundo do trabalho é mortificante. É possível parar de trabalhar? Trabalho alienante é tortura.
Bené Fonteles, Ágora: OcaTaperaTerreiro, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal. próxima página dupla: José Bento, Chão, 2004 / 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Cosmologias de inícios e fins (e meios também) Notas sobre Dias de Estudo – Santiago Lars Bang Larsen
Para o artista Matt Mullican, a cosmologia não é o que está na vida, mas sim o que se encontra ao redor da vida. Essa definição pode servir como resumo dos Dias de Estudo – Santiago, realizados no Chile, em março de 2016. Fundamento dos relatos de como se dão o início e o fim dos mundos, as cosmologias são compartilhadas por ciência e religião, e por outros sistemas de conhecimento e estruturas semióticas que procuram abranger ou dramatizar a totalidade daquilo que sabemos existir. No tocante à religião, o conceito é notável por aquilo que não exclui, a saber, as religiões indígenas não monoteístas. Assim, ao abrir perspectivas por meio de visões de mundo, de sujeitos históricos e de domínios do ser, as cosmologias permitem uma visão crítica de como a vida humana e a vida mais que humana foram divididas em compartimentos da mente moderna ocidental, estabelecida em categorias como natureza e cultura, religião, ciência, arte e etnografia. Àqueles que não questionam essas divisões ou que não consideram o modo como determinam mutuamente as cartografias daquilo que existe, a cosmologia pode soar politicamente inofensiva. No entanto, um ponto de vista que a considere uma representação de algo subdesenvolvido, que não progrediu, ou mesmo ocultista, não apenas ignora seus potenciais racionalistas e críticos, mas também se esquece do fato de que esse foi o julgamento que levou aos processos de colonização e também ao extermínio dos sistemas de crenças indígenas. Essa incompreensão também assombra o debate político, no qual análises científicas da evolução, do aquecimento global e de outros temas são contestadas ou simplesmente negadas por modelos teológicos de explicação.
Sandra Kranich, R. Relief 8 [R. relevo 8], 2016; R. Relief 9 [R. relevo 9], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal (ativação da obra na abertura para convidados).
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1 Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2014, p. 26.
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Para a filósofa Déborah Danowski e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a realidade terrificante ou a-terra-dora do desastre ambiental e do colapso espaçotemporal contribui decisivamente para o desequilíbrio de conceitos de conhecimento e para o “desmoronamento da distinção fundamental da episteme moderna – a distinção entre as ordens cosmológica e antropológica, separadas desde ‘sempre’ (quer dizer, desde pelo menos o século 17) por uma dupla descontinuidade, de essência e de escala”.1 Esse colapso que ocorre entre a ordem cosmológica e a antropológica traz mudanças e imperativos: a perda da história para todas as narrativas antropocêntricas, um conjunto de dissonâncias e deslocamentos cognitivos e perceptivos, e a necessidade de rearranjar radicalmente o conhecimento e seu objeto. Afinal, como fica o mundo quando não se pode mais abordá-lo como tal – isto é, como entidade coesa, dominada pelo ser humano –, mas sim aceitar que os limites do hábitat se dissolvem no cosmo? Se a cosmologia é aquilo que envolve a vida, mas não constitui a vida em si, seria possível argumentar que a vida se configura de um ponto de vista cosmológico. Talvez seja possível falar de cosmologias que não se anunciam como tal – são as cosmologias tácitas que existem naquilo tomado como certo acerca do mundo tal como o conhecemos. As concepções prévias também são produtivas e apresentam propriedades de criação de mundos, por mais passivas e por mais negativas que sejam em suas consequências. Assim, os mundos têm início e terminam não apenas no começo e no final dos tempos, mas nesse meio-tempo também. Os Dias de Estudo – Santiago foram organizados em três dias de encontros informais e um dia de seminários públicos no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos. Nesse período, os artistas participantes da 32ª Bienal – Pilar Quinteros, Pia Lindman e Pierre Huyghe – discorreram a respeito de seus trabalhos, ao lado da pesquisadora de literatura Macarena Areco Morales, da etnógrafa Jacinta Arthur e do historiador da arte Yann Chateigné, cujas contribuições para o seminário estão incluídas neste livro. Do ponto de vista curatorial, os Dias de Estudo possibilitaram levar nossas hipóteses e discussões para a estrada e confrontá-las com especialistas promovendo discussões públicas para além de São Paulo. Ao encorajar o pensamento coletivo de um grupo de participantes da 32ª Bienal fora do escopo da exposição propriamente dita, diferentes metodologias e formas de pensar definiram nossa abordagem dos Dias de Estudo como evento preparatório desta Bienal.
A motivação para viajar para Santiago, no Chile, surgiu do imaginário de uma cidade al fin del mundo, como afirma Jorge Baradit em seu romance Synco (2008). Além dessa razão circunstancial, pensadores como Humberto Maturana e Francisco Varela, escritores como Baradit, ONGs como a Wildlife Conservation Society e as ativistas Barbara Saavedra e Giuliana Furci já haviam participado de nossas discussões curatoriais. Irmos a Santiago proporcionou a oportunidade de encontrá-los e envolvê-los na pesquisa para a exposição. Por ser difícil fixá-la e posicioná-la no espectro do conhecimento, a cosmologia configura a estrutura para que ocorram as interações entre arte e ciência, em que a arte não é desconsiderada pelas autoridades culturais da ciência e da política. Assim, um encontro altamente inspirador foi com Jorge Baradit, que se autodeclara um escritor cyberthrash. Em Synco, o autor criou uma visão distópica de um Chile que poderia ter existido, caso o golpe militar de Augusto Pinochet tivesse sido impedido pelo supercomputador de Salvador Allende que intitula a obra. Synco seria um computador projetado como extensão cibernética do socialismo chileno de Allende, uma criação absolutamente diferente da internet que conhecemos na atualidade (ao menos, em termos ideológicos). Baradit discorreu sobre como as distorções e a loucura da ficção científica e do cyberpunk encontram uma cultura mestiça chilena, na qual temporalidades desiguais, mitos conflitantes e uma variedade de subjetividades e etnicidades coexistem no mesmo plano da história, sem perspectiva de integração ou de superação dessa simultaneidade. “Talvez Synco seja um escritor que enlouqueceu, ou um menino assustado com poderes monstruosos”, Baradit escreve em Synco, e continua: Algumas pessoas começaram a duvidar da própria existência da América do Sul. Talvez seja o delírio de um espanhol. Talvez a América seja um homem num barco no meio do oceano de onde a terra deveria se erguer. Esse homem está dormindo ou escrevendo a história inventada de todo um povo e sua tristeza. Ele recebe correspondências endereçadas à Colômbia ou à Bolívia. Alucina, grita e rascunha constituições.2
Uma visita nossa ao Museo de la Solidaridad Salvador Allende, que fica em Santiago, apresentou um correlato histórico à ficção de Baradit. Fundado no início dos anos 1970 como ferramenta para despertar simpatia internacional pelo governo Allende, e contando com doações de obras de artistas de todo o mundo, durante a ditadura esse museu sobreviveu no exílio como
2 Jorge Baradit, Synco. Santiago, Ediciones B, 2008.
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uma rede transnacional, e hoje é uma obra em processo de arquivos e criações de mundos políticos. Barbara Saavedra é a diretora chilena da ONG Wildlife Conservation Society, que promove a proteção da biodiversidade e do meio ambiente, especialmente na Terra do Fogo. Em nossa conversa, ela comentou: Não falo muito em ecologias; para mim, o desafio está no espaço das interações. Se quisermos combater a extinção, se quisermos combater desequilíbrios sociais e ambientais, conexões devem ser feitas, devem ser reveladas, articuladas em muitos níveis ao mesmo tempo; devemos articular todo um tecido de interações, expandir os problemas científicos para universos inteiros, ir além naquilo que 3 Em conversa com Barbara Saavedra, em Santiago, Chile, em 11 de março de 2016.
podemos aprender e saber e sentir.3
Esse ir além define a perspectiva simbiótico-poiética, isto é, em certo sentido, contrasta com a definição de Humberto Maturana e Francisco Varela de autopoiésis como sendo a contínua produção de si mesmo, uma visão do entrelaçamento fundamental e da interdependência das espécies, das ecologias e das culturas cívicas. Essa perspectiva também foi enfatizada por Giuliana Furci, fundadora e diretora da Fundación Fungi, quando a acompanhamos em uma coleta de cogumelos nas encostas da reserva de Altos de Cantillana, que se localiza fora de Santiago. Estranhamente, sem ao menos levar em conta seu importante papel na colaboração entre espécies, durante muito tempo os cogumelos e fungos tiveram a autonomia de sua espécie negada e, de muitos aspectos, ainda são relativamente pouco estudados. Furci relatou sua campanha pela garantia do reconhecimento científico e constitucional dos fungos como um terceiro reino biológico ao lado da flora e da fauna. Por fim, em um almoço com o mago Juan Varela – sobrinho de Francisco Varela –, penetramos o domínio da magia – uma teoria e uma prática aparentemente não relacionadas com o tema da cosmologia. A magia, contudo, tem efeito na epistemologia. Desse modo, é propensa a trabalhar na fronteira que separa conhecimento e ignorância, e a transformar um no outro, alinhando-se à maneira como os artistas abordam e modificam as formas de conhecer, sentir e se relacionar. As cosmologias são visões abrangentes de não autonomia. Uma vez que estão localizadas no limite do que existe, quem sabe as cosmologias não sejam o mais próximo que se possa chegar além daquilo que sabemos e somos no presente?
Charlotte Johannesson, Chile eko i skallen [Chile ecoa em meu crânio], 1973 / 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal. próxima página dupla: Rachel Rose, Everything and More [Tudo e mais um pouco], 2015. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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Imaginário baraditiano: Figurações do sujeito, da história e da tecnologia na obra de Jorge Baradit Macarena Areco Morales
A narrativa de Jorge Baradit é uma expressão híbrida, na qual se apresenta a justaposição complexa de diversas intertextualidades e gêneros discursivos. Sua obra é composta dos romances Ygdrasil, Synco, Kalfukura: el corazón de la tierra e Lluscuma, da novela Trinidad e do romance gráfico Policía del Karma, além dos relatos dispersos em diferentes antologias e, finalmente, das bem-sucedidas Historia secreta de Chile I e II.1 Entre esses gêneros, destacam-se a ficção científica em algumas de suas subvariedades, o romance gráfico e a divulgação histórica. Além disso, nessas modalidades se observam diversas figurações imaginárias, por exemplo, aquelas referentes ao sujeito, à tecnologia e à história, assim como algumas intertextualidades textuais (com o perdão da redundância) e outras audiovisuais – ou intervisualidades ou ainda intermidialidades.
1 Obras de Jorge Baradit: Ygdrasil. Buenos Aires: Ediciones B, 2005; Synco. Santiago: Ediciones B, 2008; Kalfukura: el corazón de la tierra. Santiago: Ediciones B, 2009; Lluscuma. Santiago: Ediciones B, 2013; Policía del Karma. In: Marcelo Novoa, Años Luz. Mapa
Sobre a ficção científica e algumas de suas modalidades Em particular Ygdrasil, o primeiro romance de Jorge Baradit, consiste à primeira vista numa obra de ficção científica, considerando uma definição geral que reformula os termos propostos por Darko Suvin e contempla dois elementos: o estranhamento temático, especialmente relacionado à tecnologia (o que Suvin chama de o novum) e uma espécie de realismo ou, se preferirmos, de transparência na representação, que refrata não somente o futuro, mas também o passado e a política. Ou seja, por meio dos artefatos tecnológicos futurísticos, o que a ficção científica costuma discutir é a história e a política de nosso aqui e agora.2 Em Ygdrasil, esse mundo latino-americano, ambientado em um futuro
estelar de la ciencia ficción en Chile. Valparaíso: Puerto de Escape, 2006; Trinidad. Barcelona: Ediciones B, 2007; Historia secreta de Chile I y II. Santiago: Penguin Random House, 2015 e 2016.
2 Cf. Darko Suvin, Metamorfosis de la cienciaficción. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.
Jorge Baradit, Tangata Manu, 2004. Desenho a lápis digitalizado, parte do processo criativo da escrita do romance.
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3 Criação incessante, indeterminada e coletiva de imagens (figuras, formas) que produz realidade (Cornelius Castoriadis, La institución imaginaria de la sociedad. Barcelona: Tusquets Editores, 1975). “Ao longo de toda a história as sociedades se entregam a um trabalho permanente de invenção de suas próprias representações globais como ideias-imagens por meio das quais se atribuem uma identidade, percebem suas divisões, legitimam seu poder, elaboram modelos formativos para seus membros.” (Bronislaw Baczko, Los imaginarios sociales: memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Nueva Vision SAIC, 1991). 4 Termo cunhado em 1986 por David Schow, splatterpunk constitui um tipo de relato que inclui agressividade explícita, torturas, violações, desmembramentos, derramamentos de órgãos e fluidos etc.
5 Roger Lockhurst, Science Fiction. Cambridge-Malden: Polity Press, 2005, pp. 196-213. 6 Jorge Baradit, Ygdrasil, op. cit., p. 210. 7 Idem, ibidem, p. 120.
8 Ibidem.
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indeterminado no qual a polícia e os ministérios são assessorados por médiuns e telepatas, não está tão distante da realidade. Assim, utilizando um modo de representação realista e de estranhamento tecnológico, esse romance repercute certas questões do presente, ou, precisamente, do imaginário social da atualidade.3 Para tanto, Baradit recorre a duas submodalidades da ficção científica de fins do século 20: o cyberpunk e o splatterpunk.4 A primeira, cunhada nos anos 1980 com base em relatos do escritor William Gibson, tem como cenário central o ciberespaço e combina elementos do romance policial e da ficção científica. O protagonista, um “cowboy de console”, marginal e degradado ao modo de um detetive de série noire, conecta-se a redes informáticas por meio de todo tipo de prótese e implante e tenta interferir no poder global. A ordem mundial que Baradit descreve é a da mundialização do capitalismo, liderado por grandes corporações globais e saturado pela tecnologia e seus dejetos. O cyberpunk mescla a tecnologia e o cyber com a marginalidade, a anarquia e o punk.5 Em Ygdrasil, o cyberpunk opera uma engrenagem com o splatterpunk. Sujeito, tecnologia e história Mas qual é o imaginário que esses formatos exprimem? Um referente múltiplo, que em Baradit beira o pesadelo. O sujeito fragmentado e escravizado pela tecnologia; a degradação tecnológica, seja por sua utilização, seja por seu desgaste; a reescrita da história e da ficcionalização da política. Esses são os elementos relevantes na obra de Jorge Baradit. Em Ygdrasil, três são os exemplos que figuram o sujeito fragmentado. Os pensantes, situados no córtex do Ygdrasil, são “fetos poltergeist trasladados a úteros de éguas, onde têm espaço para crescer durante sua vida útil de três anos. As éguas têm as patas amputadas e pendem dos tetos de hangares enormes em fileiras intermináveis”;6 a subpasta Protótipos “Estava repleta de mecanismos e aparatos que incluíam humanos vivos inseridos em suas formas, os quais compartilhavam suas funções neurobiológicas e eram penetrados por organismos eletrônicos através de olhos, ouvidos e coluna vertebral. Crianças e mulheres prenhas engastadas em máquinas [...] para extrair seus princípios astrais ou estimular a emissão de energia em forma de medo ou dor”;7 e o trasladado: “uma malformação difícil de explicar. Um homem agônico com sua alma deslocada. Sua existência se encontra solapada entre seu próprio corpo, um cacto, uma rocha e uma ratazana”.8
Dessas citações, depreende-se que esses são seres cindidos, fragmen‑ tados, cujas partes integram, como peças de um maquinário, engrenagens superiores, que se mobilizam por objetivos ulteriores às motivações individuais. Observe-se que essa segmentação abrange inclusive o espírito, conforme expressa a figura do trasladado – um protótipo de prova em uma investigação sobre a possibilidade de transferir a alma aos computadores. Esses são também sujeitos violados, atemorizados e doentes, resultado da produção da violência exercida no corpo e no pensamento. Em síntese, por meio da tecnologia, o que se apresenta é uma humanidade partida e escravizada às máquinas e a objetivos desconhecidos.9 Outro tema recorrente é a degradação da tecnologia: o giro antitecnológico (ou do brilhantismo à baixa definição). Há anos, o cinema e a narrativa que representam o porvir têm mostrado a desvalorização da tecnologia, a qual, ainda que no presente da enunciação sequer tenha sido criada, vista da perspectiva do futuro, aparece como obsoleta e desgastada. No filme Solaris, de Andrei Tarkóvski (1972), os fios cortados provocam o curto-circuito; as naves espaciais e os hologramas envolvidos em uma política regressiva, que remetem ao fim da esperança revolucionária na França de meados do século 20 e à clausura da república romana na animação A guerra das galáxias (1982); a dinastia de ares medievais e nome grego, que se mobiliza ao redor de uma droga chamada a especiaria, em Duna, de David Lynch (1984). Todas elas configuram imaginações que dizem de uma sociedade e de uma política nas quais os artefatos tecnológicos tornam-se objetos obsoletos, desprovidos dos seus atributos de novidade e de glamour. As obras Ygdrasil, Synco e Lluscuma abordam de modo substancial essa degradação tecnológica, esse giro antitecnológico. Dos construtos triunfantes da dor a serviço da conspiração universal em Ygdrasil às gravações em Lluscuma, passando pelo projeto informático em Synco, que oculta um sistema de produção quase escravagista, na imaginação distópica de Jorge Baradit a tecnologia progressivamente abandona sua aura, na medida em que se inscreve num passado no qual somente obtinha sentido como instrumento de dominação. Sobre a reescrita da história e a ficcionalização da política, um ótimo exemplo é Synco, romance que transcorre no Chile de 1978, onde, com a continuidade do governo da Unidade Popular, o país se converteu em um suposto exemplo mundial de socialismo cibernético. Há outro exemplo no volume que Baradit compilou com Álvaro Bisama, Francisco Ortega e Mike Wilson, CHIL3: Relación del Reyno,10 que constitui uma ucronia na
9 Essas ideias são desenvolvidas detalhadamente em: Macarena Areco, “Más allá del sujeto fragmentado: las desventuras de la identidad en Ygdrasil de Jorge Baradit”. Revista Iberoamericana, vol. LXXVI, n. 232-233, jul./dez. 2010.
10 Jorge Baradit; Francisco Ortega; Álvaro Bisama; Mike Wilson, CHIL3: Relación del Reyno. Santiago: Ediciones B, 2010.
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qual se imaginam histórias alternativas, e por meio delas se reformula a história do país.
11 Carlos Gamerro, Ficciones barrocas. Una lectura de Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Cortázar, Onetti y Felisberto Hernández. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010.
12 Jorge Baradit, Ygdrasil, op. cit., pp. 296 e 197, respectivamente.
13 Esses temas são aprofundados em: Macarena Areco, “Ygdrasil, de Jorge Baradit. Imaginarios de sujeto en la narrativa chilena de 2000: apropiaciones y desplazamientos del mito del imbunche”, in Helena Usandizaga e Beatriz Ferrús (org.), Fragmentos de un nuevo pasado. Inventarios de mitos prehispánicos en la literatura hispanoamericana actual. Berna: Peter Lang, 2015, pp. 205-222. Desse ensaio tomo também a análise que se apresenta aqui sobre o imbunche.
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Intertextualidades e intervisualidades De modo similar ao que ocorria com o corpo e a alma dos sujeitos, na obra baraditiana aglutinam-se diversos fragmentos de textos e de imagens. A primeira questão a se destacar é que a ideação se dá à maneira das ficções barrocas, às quais se referiu Carlos Gamerro11 com relação à obra, entre outros, de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, sobretudo no que concerne à proliferação de mundos possíveis. O romance em que isso se expressa sobremaneira é Ygdrasil, no qual vamos de Puebla, o espaço inicial em que se encontra Mariana, assassina de aluguel viciada em milho, ao Banco do México, na capital asteca, onde um grupo de executivos a submete a um ritual de desmembramento. Daí prossegue-se ao estado soberano da Chrysler, criado sobre as águas do Atlântico, negócio que opera a transmissão de dados pelo ciberespaço, e, nele, a Seção Catorze, do sindicato de navegantes ciborgues, comandado pelo psicopata Imbunche. Em Trinidad, no contexto do Plano de Soberania para o Ciberespaço, presente no levantamento das mentes dos voluntários à Rede, surgem personagens muito diversos: a mencionada Mariana, sicária contratada para cometer um assassinato on-line; Angélica, uma Inteligência Artificial perseguida por Rogelio Canelo, um dormente, isto é, um não nascido cultivado dentro de uma anaconda, que foi despertado aos 33 anos para realizar diferentes tipos de trabalho, entre eles, o de agente; e Magdalena, uma oficial da Policía del Karma, que investiga o desaparecimento de milhares de crianças órfãs e o descobrimento de mais de cinco mil cadáveres abandonados no deserto do Atacama, cuja coluna vertebral foi retirada; ela acabará por revelar o tráfico de medula óssea humana. Entre as intertextualidades textuais, em Ygdrasil há várias menções explícitas, por exemplo, a Flavio Josefo, a Carl Gustav Jung e Jorge Luis Borges.12 Há também alusões aos mitos nórdicos, como a árvore mágica que nomeia o romance e diversos fragmentos de religiões e lendas orientais, germânicas e celtas, reutilizados como sobras. Por outro lado, destacam-se as muitas mitologias latino-americanas referidas, que são empregadas de modo deslocado – o importante é o nome e não necessariamente suas propriedades ou seu significado. Como exemplo temos o Tangata Manu (homem-pássaro da Ilha de Páscoa) e, principalmente, o mencionado Imbunche, representação na qual nos aprofundaremos adiante.13
Por sua vez, as figuras das mitologias do México pré-hispânico inspiram os desenhos que por vezes acompanham os romances. O muralismo mexicano também é uma presença importante na obra de Baradit, uma espécie de substrato visual que informa suas imaginações, assim como ocorre, por exemplo, com as representações de corpos feridos e fragmentados. Finalmente, certa vanguarda ou pós-vanguarda da segunda metade do século 20 constrói parte do imaginário intertextual baraditiano. Assim, há traços do acionismo vienense no desmembramento dos corpos e, como veremos, as performances do artista cipriota-australiano Stelarc foram a inspiração direta para a figura do imbunche. Especificamente a obra Nahrungmitteltest [Prova de alimentos], 1966, de Otto Mühl, é evocada na cena de Ygdrasil na qual os executivos desmembram Mariana: “Então a crucificação à mesa. Arrancaram-lhe dentes e algumas unhas. Extraíram-lhe costelas e dedos. Alinharam tudo cuidadosamente ao redor dela como uma grande mandala de restos humanos”.14 E como, então, tudo isso se combina? Para se referir à mistura de substratos culturais que integra sua obra, Baradit aborda a mestiçagem, o mestiço. Eu prefiro pensar na hibridez (no sentido das culturas híbridas de Néstor García Canclini).15 A mestiçagem é mistura, homogeneidade; a hibridez é justaposição, heterogeneidade.16 Sem perder de vista o que foi mencionado anteriormente, há uma figura de especial interesse para o autor que abordaremos a seguir: o imbunche.
14 Jorge Baradit, Ygdrasil, op. cit., p. 32. 15 “Os países latino-americanos são, atualmente, resultado da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamericana e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas, educativas e comunicacionais modernas. Apesar das tentativas de dar à cultura de elite um perfil moderno, confinando o indígena e o colonial a setores populares, uma mestiçagem interclassista gerou formações híbridas em todos os estratos sociais.” (Cf. Néstor García Canclini, Culturas híbridas. México: Grijalbo, 1989, p. 71.) 16 Como discute Homi Bhabha em El lugar de la cultura (Buenos Aires:
Apropriações e deslocamentos do mito do imbunche Em seu dicionário de mitos do Chile, a antropóloga Sonia Montecino assinala que imbunche é uma palavra mapuche, cujo significado é quadrúpede pequeno, anão ou monstro. No imaginário mapuche e chilote, a palavra é empregada para se referir ao menino raptado por bruxos para resguardar suas covas, que
Manantial, 2002) em relação a identidades surgidas da diferença cultural, “As hibridizações unidas com roteiros destacam os elementos incomensuráveis (os pedaços obstinados) como base das identificações culturais” (p. 264). Neste
sofre deformações e torturas que o convertem em uma mistura de humano e
âmbito, “as diferenças
animal. Em primeiro lugar, os bruxos quebram sua perna esquerda e a unem às
não podem ser negadas
costas [...], e por isso ele caminha dando saltos; em seguida, torcem sua cabeça
de maneira superadora ou totalizadas” (p. 217), como
até dar a volta completa [...] para despistar os intrusos [...] Também se sabe que
ocorre na dialética.
obstruem todos os orifícios do seu corpo, exceto a boca.17
17 Sonia Montecino, Mitos de Chile. Diccionario de
Na tradição literária chilena, o imbunche tem lugar proeminente. A menção mais antiga de que se tem notícia se encontra no livro Don Guillermo, de
seres, magias y encantos. Santiago: Sudamericana, 2003, p. 245.
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José Victorino Lastarria. Nela, o inglês Guillermo Livingston, protagonista da obra de Lastarria, é capturado por um monstro portenho, El Chivato, diante da sua cova em Valparaíso; depois disso submerge em uma república infernal chamada Espelunco (anagrama de pelucones, nome dados aos conservadores no século 19), de onde ele escapa antes de ser submetido ao imbunchismo. Assim o relata Lastarria: A população inteira de Valparaíso sabe que, na época à qual nos referimos, dera à cova seu nome e muita celebridade certo bode monstruoso que, durante a noite, saía para capturar quem quer que passasse por ali. É sabido que ninguém podia resistir às forças hercúleas daquele animal feroz, e que todos os que caíam em seus chifres eram lançados nos antros da cova, onde os transformava em imbunches, se não quisessem correr certos riscos para chegar a desencantar uma 18 José Victorino Lastarria,
dama que o bode havia encantado no lugar mais isolado de sua morada.18
Don Guillermo (1860). Santiago: Nascimento, 1972, p. 41. 19 Joaquín Edwards Bello, Mitopolis. Santiago: Nascimento, 1973, p. 39. 20 Outro modo de grafar o termo imbunche. [n.t.]
21 Joaquín Edwards Bello, op. cit.
Outra referência significativa é encontrada em Mitópolis (1959), de Joaquín Edwards Bello. Em uma de suas crônicas se lê que o imbunchismo, procedimento atribuído pelo escritor a bruxos mapuches, consiste em “roubar meninos bonitos e bem conformados para deformá-los monstruosamente”.19 Bello entende o imbunchismo como uma chave de leitura da identidade nacional que se projeta para o presente: “O invunche20 sobrevive em forma de deformações morais, em tergiversações de feitos referentes a pessoas e no ato de degenerar ou de viciar as leis e os costumes europeus pouco tempo depois de tê-las adaptado ao nosso modo de viver”.21 Mais conhecida que todos os anteriores é a exposição do mito naquele que talvez seja o romance mais ambicioso de José Donoso, O obsceno pássaro da noite, no qual o narrador, o Mudito, sofre imbunchismo: Me enfiam dentro do saco. As quatro se ajoelham ao meu redor e costuram o saco. Não vejo. Sou cego. E outras se aproximam com outro saco e voltam a costurá-lo...
22 José Donoso,
e sinto que se levanta ao meu redor outro envoltório de escuridão, outra capa de
El obsceno pájaro de la
silêncio que atenua as vozes que mal distingo, surdo, cego, mudo, pacotinho sem
noche. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1990, pp.
sexo, todo costurado e atado com tiras e barbantes, sacos e mais sacos [...] aqui
374-375.
dentro está quente, não há necessidade de mover-se, não necessito nada.22
23 Carlos Franz, La muralla enterrada. Bogotá: Planeta, 2001, p. 19.
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Em seu ensaio La muralla enterrada, Carlos Franz considera esta “a forma nacional favorita”.23 De acordo com Franz, os quebra-mares do rio Mapocho, construídos nos últimos anos da Colônia, enterrados durante grande
parte do século 20 e que foram aparecendo no verão de 1975 durante as obras de construção do metrô, seriam o “sintoma e símbolo de nossa identidade imbunchada: “Torvo, tolhido, desmembrado, ainda escorrendo o sangue seco de suas mutilações, o muro me pareceu agora a imagem maiúscula de um desses imbunches de nossa mitologia”.24 Para Franz, a muralha expressa nossas “senhas de identidade”, que se resumem no esquecimento da história, nas barreiras que se escondem e em “nossa fatal tendência ao imbunche”, isto é, “a inclinação a cortar as asas do que se eleva [...], [a] mutilar o que sobressai”.25 O escritor Jorge Baradit explica da seguinte forma seu conhecimento dessa figura:
24 Idem, ibidem, p. 18.
25 Ibidem, p. 19.
O mito do Imbunche chegou a mim por fontes que já não identifico. Vejo vagamente uma ilustração a respeito em um exemplar de Mampato, alguma referência em Icarito e em livros de textos escolares. Nenhuma formal. Todas em tenra infância associadas ao terror, uma espécie de homem-aranha do qual o que me aterrorizava não eram suas extremidades contrafeitas, e sim seus olhos desorbitados. Havia algo com o temor à loucura e à velocidade, mais que com a deformidade e a tortura. Depois o livro de Sonia Montecino, que veio a ser comparado com o borrão inexato que era em minha enciclopédia, sempre cheia de entradas contaminadas. Minha formação é disforme.26
26 Trecho enviado por Baradit por e-mail à
Em Ygdrasil há muitos imbunches, mas, ao menos à primeira vista, um imbunche não é o perverso líder sindical que no romance tem esse nome. Num primeiro nível, o Imbunche funciona em Ygdrasil como uma marca, uma etiqueta que oferece um significante, inicialmente carente de conteúdo referencial. Observamos então a característica essencial do modo de utilização dos mitos por Baradit: seu deslocamento. Mas há muitos imbunches verdadeiros, que não levam esse nome: as cachorras, o Círculo Doutrinário, a Horda Odínica, os lautaros, os tontos, os navegantes da Chrysler e, finalmente, a protagonista Mariana, que sofre imbunchismo no desfecho do romance.
autora.
O procedimento é bem simples. Sequestram mulheres, extraem suas cordas vocais, as córneas, a medula espinhal, o rim e tudo que é aproveitável para o mercado de órgãos. Depois fritam seu cérebro mediante um processo muito lento e doloroso: induzem pavor limite através de punções diretas na massa encefálica, inundam o córtex com pulsos elétricos, provocam o suicídio químico do eu [...].
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É um processo barato. E, para barateá-lo ainda mais, diminuem os custos de armazenamento e transporte amputando braços e pernas [...] Em seguida as penduram em sacos a uns trilhos de frigoríficos que mantêm seus metabolismos 27 Jorge Baradit, Ygdrasil,
funcionando no mínimo, alimentando-as com soro diretamente na veia.27
pp. 43-44.
28 Idem, ibidem, p. 80.
29 Ibidem, p. 75. 30 Ibidem, p. 180.
31 Ibidem, pp. 231-232.
32 Ibidem, p. 231.
Por outro lado, o Círculo Doutrinário configura o construto simbiótico formado por crianças, mulheres e anciãos que foram fragmentados, deformados e cegados: “Todos tiveram seus olhos arrancados e, em seu lugar, havia bolas de aço com correntes soldadas a elas que os uniam entre si em uma roda monstruosa. As mãos das crianças estavam costuradas a seu peito, e todas andavam nuas”.28 Enquanto a presença da corrente levanta o tema da escravidão, algo central nesse romance, o fato de os sujeitos serem atados com ela pelos olhos evidencia a importância da visualidade no processo de escravização. Podemos pensar, por exemplo, na sociedade do espetáculo, mas em Ygdrasil, fundamentalmente, isso remete à questão da conexão em rede. Na Horda Odínica – “elite guerreira”29 e “guarda do templo”30 da Seção Catorze –, o cegamento se apresenta em termos de conexão informática e ciborguização. A Horda controla de modo telepático os tontos, destinados ao combate, representados como ciborgues (eles levam nas costas, por exemplo, uma espada de cartilagem cuja capa é uma coluna vertebral).31 A preparação da horda é um imbunchismo, digamos, tecnológico: “costuravam todos os orifícios de seu corpo. Os olhos eram esvaziados e os ocos alojavam hardware que sobressaía das órbitas como chifres sensoriais, conectados ao sistema neurovegetativo através dos nervos óticos”.32 O último imbunche da história é Mariana, a joia do Ygdrasil. Ali, suspensa, arrancaram suas pernas e braços, a cauterizaram com ferros em brasa e a incrustaram com ganchos de aço ao mecanismo que pendia no centro do útero. Incrustada como uma joia. A joia do Ygdrasil. Depois extraíram seus
33 Ibidem, p. 265.
olhos e fundiram terminais de dados em seus nervos óticos.33
E, finalmente, o imbunche como artista vanguardista, cuja inspiração, segundo Baradit, é Stelarc: O Imbunche é um fã de Stelarc. De fato, há uma citação no livro: quando descrevo a forma em que o Imbunche medita, pendendo de ganchos equilibrados
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por pedras, estou citando uma performance de Stelarc em Tóquio nos anos 1970”.34
34 Enviado por Baradit por e-mail à autora.
Paul Virilio propõe, em El arte del motor [A arte do motor], que existe uma nova forma de dominação, por meio da qual as tecnologias informáticas e o biocontrole produzem a endocolonização, o corpo desprotegido, que se converte em matéria-prima. “Projeto”, diz Virilio, “do qual nosso australiano não é, evidentemente, o instigador, e sim a vítima, uma vítima que consente, como o faz, com tanta frequência, o ser pervertido por seu amo”.35 As variadas intertextualidades e intervisualidades baraditianas, que se justapõem como sobras, implicam o fato de que o autor utiliza um patrimônio simbólico, amplo e diverso, que inclui mitos nórdicos e pré-colombianos, textos literários e psicológicos, imagens latino-americanas e europeias, entre muitos outros fragmentos de imaginários. Pode-se entender o emprego deslocado e segmentado dessas peças como o modo de abarcar, em sua ruptura e em sua alienação, as subjetividades partidas e escravizadas pelo capitalismo informático global através da violência, da tecnologia e da conexão às redes.
35 Paul Virilio, El arte del motor: aceleración y realidad virtual. Buenos Aires: Manantial, 2003.
Versão editada da conferência apresentada nos Dias de Estudo – Santiago, em Santiago do Chile, em 12 de março de 2016.
próximas páginas duplas: Nomeda e Gediminas Urbonas, Psychotropic House: Zooetics Pavilion of Ballardian Technologies [Pavilhão zooético de tecnologias ballardianas], 2015-2016 e Susan Jacobs, Trough the Mouth of the Mantle [Através da boca do manto], 2016. Vistas das instalações na 32ª Bienal.
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Constelacional Yann Chateigné
Descobertas arqueológicas recentes em El Arenal, na província de Arauco, no Chile, tendem a reforçar a incerteza sobre o conhecimento científico das técnicas de navegação efetivamente utilizadas por antigos povos polinésios. Orientado pelo antropólogo Terry L. Jones, professor na California Polytechnic State University, um estudo recente publicado em 2011 considera a hipótese de que os polinésios já atravessavam os oceanos por volta do ano 1300, chegando a diversos lugares das Américas.1 Evidências encontradas em ossos de galinha, animais que podem ter sido importados da Polinésia, parecem provar que embarcações percorreram a distância de cerca de 8 mil quilômetros, ida e volta, e chegaram às Américas antes do italiano Cristóvão Colombo. Esse estudo tende a contradizer os especialistas que defendiam a ocorrência apenas de desembarques “acidentais” de polinésios ao longo do oceano Pacífico, graças a um conhecimento geográfico isolado que os cientistas concordam em atribuir aos navegadores. Os antropólogos Georges e Geneviève Boulinier, que no início dos anos 1970 escreveram sobre a navegação realizada por polinésios baseando-se em astros, mostraram que, embora houvesse pouca informação disponível sobre suas condições técnicas de observação das correntes marítimas, do trajeto do sol e da posição das estrelas, o conhecimento astronômico parece ser uma condição sine qua non para as viagens de longa distância. Eles podem ter empregado uma estimativa de latitude, técnica que se baseava na observação das estrelas que passavam no zênite da ilha.2 Após uma temporada no Taiti, o escritor e explorador francês Victor Segalen expôs em seu romance Les Immémoriaux [Os imemoriais], publicado em
1 Terry L. Jones (org.), Polynesians in America: Pre-Columbian Contacts with the New World. Plymouth: AltaMira Press, 2011.
2 Georges Boulinier; Geneviève Boulinier, “Les Polynésiens et la navigation astronomique”. Journal de la Société des Océanistes. n. 36, t. 28, pp. 275-284, 1972.
Anawana Haloba, Close-Up [Aproximação], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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3 Victor Segalen, Les Immémoriaux. Paris: Plon, 1956. 4 Muriel Pic; Emmanuel, Alloa, “Lesbarkeit / Lisibilité”. Trivium – Revue FrancoAllemande de Sciences Humaines et Sociales, n. 10, 2012. 5 Walter Benjamin, A origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 6 Idem, Fragments. Tradução de Christophe Jouanlanne e JeanFrançois Poirier. Paris: PUF; La Librairie du Collège International de Philosophie, 2001, p. 33. 7 Idem, Passagens. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 8 Theodor W. Adorno, Die Aktualität der Philosophie, Gesammelte Schriften [=GS], tomo 1. Philosophische Frühschriften. Frankfurt: Rolf Tiedemann, 1990, p. 335. 9 Patrick Boucheron, prefácio para Walter Benjamin, Sur le Concept d’histoire. Paris: Payot, 2013 (Coleção Rivage).
10 Theodor W. Adorno, op. cit. 11 Patrick Boucheron, op. cit.
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1907, que a cultura da viagem entre os polinésios incorporou essa ciência perdida da orientação, associando a navegação celeste e a linguagem, imbricando de maneira singular astronomia e poesia.3 O crítico Walter Benjamin considerava que existem formas não textuais de leitura. Se a percepção fragmentada do espaço urbano moderno foi transformada por tecnologias, e os sinais do domínio público, desprovidos de hierarquia, foram contaminados pela comercialização, estar à deriva em um ambiente instável, sem um lado de fora, tende a funcionar como alegoria de uma nova abordagem do tempo e da história. A nova materialidade urbana é uma superfície descontínua a ser lida, assim como a história constitui uma paisagem repleta de escombros a serem recolhidos e expostos. Em um contexto de superindustrialização, de caos econômico e de instabilidade política, Walter Benjamin observou as formas de interpretação astronômica pré-modernas para construir um novo tipo de pensamento que se valia do conceito de lesbarkeit (legibilidade).4 Esse novo tipo de pensamento consiste na tentativa de encontrar um modo de “processar extremos distantes”,5 “baseado em configurações que permitam uma conexão absoluta”.6 Em um fragmento do Projeto das Arcadas [Passagens], Benjamin descreve essa forma de passeio, de metodologia do acaso, como um modo de produzir vínculos inesperados e de desenhar trajetos desapercebidos7 – para formar, nas palavras de Theodor Adorno, “constelações variáveis”.8 Como o historiador francês Patrick Boucheron lembra, Adorno escreveu de modo cético a Benjamin para expressar sua desaprovação de uma metodologia que ele não considerava dialética o suficiente.9 O “fraco poder”10 de elucidação que se baseava na montagem silenciosa e no uso do sonho, da elipse e da livre associação, pode ter sido considerado por Adorno um escapismo de Benjamin. Mas, ao contrário, Boucheron interpreta esse fato como – segundo Jean-Christophe Bailly – um modo de formação mediante a constelação, uma voz desapercebida, a fundação metodológica de um pensar poeticamente.11 A teórica de literatura Muriel Pic leva adiante essa ideia em sua leitura do escritor alemão Winfried Georg Sebald. No final de Anéis de saturno (1993), livro construído pela montagem de fragmentos, formando um espelho multifacetado, uma arqueologia do des-astre, o narrador, enquanto observa as estrelas, medita em retrospectiva sobre como o livro foi feito: na forma de uma constelação. O romance de Sebald conecta as estrelas – que estão anos-luz umas das outras em um plano imaginário, uma superfície na qual a
legibilidade possa ocorrer. Muriel Pic dá um nome a essa metodologia que viaja através do tempo, de Benjamin até nós: asterocronia. A constelação se encontra entre tempos. A luz das estrelas chega até nós de um passado desconhecido, e torna as constelações históricas per se. Porém, Benjamin recorda que as formas dos animais, ou as figuras mitológicas que eles formam, também eram usadas na antiga técnica divinatória chamada mântica. Por sua vez, em seu ensaio sobre cinema, Gilles Deleuze utiliza a cena de abertura do filme Cidadão Kane (1941), do diretor Orson Welles, em que o protagonista, interpretado pelo diretor, convida o espectador ao filme quando um globo de neve escorrega de suas mãos, se estilhaça no chão e a neve “vem em nossa direção para nos inocular com as cenas que estamos prestes a descobrir”.12 O globo instável e escorregadio, equilibrado entre passado e futuro, torna-se, na análise de Deleuze, a imagem da visão em si: uma bola de cristal. O cinema é uma tecnologia, e os filmes consistem em cristais de tempo, apresentando diversos estágios geológicos: podem ser perfeitos e completos, infinitos, conter dois lados ou serem parcialmente opacos, em decomposição… “O visionário, o vidente, é aquele que vê no cristal, e aquilo que ele vê é o fluxo do tempo se dividindo em dois, como se rachasse ao meio”, escreve Deleuze.13 Na abordagem de Benjamin, as constelações eram a celebração de conexões numa superfície. Os cristais dão forma às constelações em três dimensões. Suas faces – como sequências de um filme, faixas, linhas do tempo – formam um arcabouço em torno da qual podemos nos mover, observar sua estrutura e seus arranjos cambiantes; e é possível olhar para um cristal mas também ver através dele, como algo que revela e difrata coisas ao mesmo tempo. Para Deleuze, a imagem-cristal é formada, é autoformada ao se configurar de maneira reticular: é uma rede de conexões, não uma sucessão de imagens; opera através de divisões e multiplicações. O que se vê no cristal é o tempo: “um pouco de tempo no estado mais puro, ou ainda mais [...] a perpétua fundação do tempo, o tempo não cronológico”.14 Os cristais têm papel importante no trabalho dos artistas dos anos 1960, especialmente no de Robert Smithson. Uma obra como Mirror Vortex [Vórtice de espelho], de 1964, condensa muitos de seus pensamentos acerca do tempo. Composta de uma estrutura que, ao longe, lembra uma base minimalista, se apresenta como um caleidoscópio de espelhos interiormente. Fragmentando a imagem do observador, a obra é pensada
12 Gilles Deleuze, L’Image-temps. Cinéma 2. Paris: Minuit, 1985. p.100 (Coleção Critique).
13 Idem, ibidem, p. 100.
14 Idem, ibidem, p.109.
213
15 Entrevista de Paul Cummings com Robert Smithson para Archives of American Art/Smithsonian Institute, 1972. Disponível em: http://www.aaa.si.edu/ collections/interviews/ oral-history-interviewrobert-smithson-12013. O adjetivo borgiano está grafado vorhazian no site – segundo o historiador francês Jean-Pierre Criqui, aparentemente por
como um artefato de não visão – uma ferramenta construída contra o visualismo moderno. Recriando algo como a visão composta dos insetos, que interessava a Robert Smithson, esse trabalho multiplica e expande olhares enquanto os sincroniza no tempo. Em 1961, Smithson passou três meses em Roma. Então, com apenas 23 anos, ele visitou igrejas e antigas ruínas enquanto lia O almoço nu, de William S. Burroughs. Lá, o artista vê e associa a arqueologia à distopia, numa experiência do tempo que descreve como um encontro com o inconsciente da história, com a história europeia como pesadelo. Em uma entrevista com Paul Cummings, ele conta como essa montagem interna o levou à composição de um de seus principais trabalhos de 1967: Sei que existe uma frase no Monumentos de Passaic, em que eu disse: “Afinal,
engano da transcrição
Passaic não substituiu Roma como Cidade Eterna?”. De modo que existe essa
da entrevista. Cf. Jean-
espécie de sentido borgiano do tempo e da confusão labiríntica que tem certo
Pierre Criqui, “Ruines à
tipo de ordem. E eu acho que estava buscando essa ordem, uma espécie de ordem
l’envers”, in Un trou dans la vie. Paris: Desclée de
irracional que aparentemente se desenvolve sem nenhum tipo de programa ou
Brouwer, 2002, p. 83.
projeto.15
16 George Kubler, The Shape of Time. New Haven: Yale University Press, 1962.
17 Idem, ibidem, p. 19.
18 Cf. Robert J. Horvitz, “Towards a Synthetic Overview: A Talk with George Kubler”, 7 jul. 1973, transcrição não editada de entrevista, mais tarde publicada na revista Artforum, out. 1973, GAKA box #2, Folder “Conversation with G. A. Kubler”.
214
“Conhecer o passado é uma experiência tão espantosa quanto conhecer as estrelas”, escreveu George Kubler em The Shape of Time [A forma do tempo].16 “Os astrônomos olham apenas para uma luz antiga. Não existe nenhuma outra luz para eles olharem. Essa luz antiga de estrelas mortas ou distantes foi emitida muito tempo atrás e chega até nós só agora no presente.” Subintitulado Observações sobre a história das coisas, esse livro de Kubler, publicado em 1962, parece ter sido lido com muita atenção por diversos artistas norte-americanos, inclusive por Smithson, que se preocupava com a sedimentação do tempo e com uma crítica do evolucionismo por meio de imagens do futuro. Muito cético quando à metáfora biológica – que poderia ter sido usada por Smithson, entre outros –, Kubler descreve a história como um corpo orgânico, atingido pela doença do progresso histórico, para especular a respeito de histórias naturais e cronologias caóticas.17 De acordo com Kubler, como leitor de Nobert Wiener, o modo de representar os movimentos na história poderia ser compreendido mais precisamente por meio de imagens tecnológicas: “relés”, “sinais” e “rotinas”.18 Para o historiador familiarizado com teorias de cibernética e de sistemas, é pertinente utilizar o campo da eletrodinâmica para compreender como o programa da história é regido:
as estrelas acesas e apagadas19 no tempo representam os pontos a serem conectados para a circulação da informação e da energia no contexto das reviravoltas e da retroalimentações da história. O trabalho Of Spirits and Empty Places [Dos espíritos e lugares vazios] (2012), do artista dinamarquês Joachim Koester configura um dos melhores exemplos do método constelacional na prática artística contemporânea. Essa peça de poeira animada se baseia no processo de filmar a escuridão mediante uma abordagem da matéria do filme de 16 mm, captando seus incidentes, incorporando as luzes na continuidade solene do monocromático. Centelhas reluzentes, a única fonte de luz na superfície totalmente preta do filme, evocam o deslocamento em um espaço desconhecido, uma viagem espaçotemporal. Um texto aparece, simultaneamente, na base da imagem, descrevendo a história, durante o século 19 nos Estados Unidos, de uma comunidade espiritualista que tentara reinventar a máquina de costura por meio de um ritual de possessão. Conduzidos pelo líder John Murray Spear, eles pretendiam, agitando os corpos em transe, transformar-se em aparelhos receptores, que encarnassem os órgãos dessa máquina desejada. “Existe um modo de ver que não se vale dos olhos. Surge no estado entre a vigília e o sonho, quando padrões e sombras lampejam atrás das pálpebras, ou como as visões, e o transe induzido ao contemplar uma bola de cristal ou um espelho negro [...]”. Assim escreve Koester em um texto que acompanha seu trabalho sobre John Dee, cientista e filósofo ocultista da Renascença elisabetana que se comunicava com espíritos pela contemplação de um cristal.20 O inacabado Atlas Mnemosyne, do historiador de arte alemão Aby Warburg, constela imagens de arquivo, mapas em movimento agindo como “mesas de orientação”21 feitas de imagens associadas reproduzidas e expostas em superfícies negras. As composições sempre se transformam, constantemente reconfiguram relações, fazendo-as flutuar em um intervalo tão importante quanto as imagens. Elas encarnam pontos luminosos a serem seguidos na noite histórica – uma noite específica que se lançaria sobre a Europa no fim dos anos 1920. Em um mundo à beira da ruptura, na fase crepuscular do surgimento dos movimentos nacionais alimentados pela instabilidade econômica, Warburg considerava a si mesmo, os historiadores e talvez os artistas como “receptores de ondas mnemônicas, [...] sismógrafos muito sensíveis cujas fundações são abaladas quando captam a onda para depois transmiti-la”.22 Na prática de Warburg, as
19 Pamela M. Lee, Chronophobia on Time in the Art of the 1960s. Cambridge, Mass.: M IT Press, 2004.
20 Joachim Koester, The Magic Mirror of John Dee, 2006. (Inédito.)
21 Georges Didi-Huberman, “Science avec patience”, Images Re-vues [on-line], hors-série 4, 2013, p. 8. Disponível em: http://imagesrevues.revues. org/3024. Acesso em: 15 dez. 2014.
22 Aby Warburg. 1927. “Texte de clôture du séminaire sur Burckhardt”. Tradução de D. Meur. Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne, n. 68, pp. 21-23, 1999, apud Georges DidiHuberman, op. cit.
215
23 Giorgio Agamben, “Aby Warburg e a ciência sem nome”, in A potência do pensamento – ensaios e conferências. Tradução de Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. 24 Idem, “Tempo e história crítica do instante e do contínuo”, in Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 109.
constelações de Benjamin e os cristais de tempo de Deleuze se dissolvem em muitas dimensões para representar a força invisível que anima os movimentos da história. É interessante notar que também foi em Roma, quatro décadas antes de Robert Smithson, que Warburg abriu, em 1922, o último capítulo de sua pesquisa de toda uma vida dedicada à sobrevivência da Antiguidade no Renascimento italiano. Ele defendia a ideia de que o conhecimento astronômico dos artistas e intelectuais do período podia ser a chave de entrada em um novo mundo de conexões com mitos menos conhecidos e figuras diminutas que viajavam na sombra ao longo da história. Sua descoberta do trabalho do filósofo, astrônomo e ocultista italiano Giordano Bruno, um acadêmico sem academia, subversivo, que morreu na fogueira em Roma, em 1600, depois de condenado pela Inquisição católica por negar que a Terra fosse o centro do Universo e por afirmar que o Universo era infinito, ocuparia Warburg até o fim de sua vida. Espelhando sua metodologia, o Atlas em processo representava também o laboratório experimental de um pensador que, de modo heurístico, elaborara os princípios daquilo que Giorgio Agamben chamaria de uma “ciência sem nome”.23 Ali, ele se conectaria com a revolução descontínua iniciada séculos antes, tradição cujo objetivo era, segundo o filósofo italiano, como o de toda revolução genuína não “apenas ‘mudar o mundo’, mas também – e acima de tudo – ‘mudar o tempo’”.24 Efetivamente, as principais mudanças não surgem de uma modificação das cronologias, mas da transformação da qualidade do tempo em si. É assim que podemos nos orientar no tempo e nos apropriar verdadeiramente da história. Estamos em um momento, como sugere Agamben, em que é necessário refutar a concepção da história baseada no tempo como processo linear e contínuo e nos tornarmos “alquimistas”, os quais detêm a capacidade de suspender o tempo e operar a “mutação” que reativará a “paisagem petrificada” da história.
Gilvan Samico, Via Láctea – Constelação da Serpente II, 2008. próxima página dupla: Mariana Castillo Deball, Hipótese de uma árvore, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
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SOBRE OS AUTORES ailton krenak
(1953, Médio Rio Doce, Minas
ben vickers
(1986, Brighton, Reino Unido) é
Gerais) é líder indígena, ambientalista e escritor,
curador, escritor, explorador, tecnologista e adepto
pertencente à etnia indígena Krenak. Em 1985,
do luddismo. Atualmente, é curador digital da
fundou a organização não governamental
Serpentine Galleries (Londres, Reino Unido),
Núcleo de Cultura Indígena, cujo propósito é
parceiro do estúdio de artes Near Now (Londres),
promover a cultura indígena na região da serra
e facilitador do open-source development para o
do Cipó, em Minas Gerais. Krenak participou da
unMonastery – um novo espaço social de engaja-
Assembleia Nacional Constituinte, da fundação
mento civil, com base em princípios monásticos.
da União das Nações Indígenas e da Aliança dos
Vive em Londres.
Povos da Floresta. Hoje se dedica ao Núcleo (1978, Londres, Reino Unido)
de Cultura Indígena. Vive na serra do Cipó, em
carolina caycedo
Minas Gerais.
trabalha transcendendo espaços institucionais para atuar no campo social. Participa de movimentos
álvaro tukano
(1953, São Gabriel da Cachoeira,
de solidariedade econômica e resistência territorial.
Amazonas) tem Doéthiro como nome de cerimônia
Além disso, Caycedo desenvolve projetos de
tukano. Há 45 anos, Tukano milita no movimento
engajamento público na Colômbia, no Brasil,
indígena. Atualmente, é diretor do Memorial
Canadá, Estados Unidos, Espanha e Costa Rica.
dos Povos Indígenas da secretaria de cultura do
Recebeu o apoio de instituições como DAAD
governo do Distrito Federal. Trabalha em defesa
Berlin (Alemanha), Prince Claus Fund (Holanda),
da tradição de 305 povos indígenas, falantes de
Art Matters (Estados Unidos), Creative Capital
271 línguas, disseminados pelas terras indígenas
(Estados Unidos) e Harpo Foundation (Estados
brasileiras. Vive em Brasília.
Unidos). Vive em La Jagua, Colômbia, e em Los Angeles, Estados Unidos.
ana laide barbosa
(1969, Santo Antônio do Tauá, (1981, Polokwane, África
Pará) cresceu em uma comunidade de pescadores
dineo seshee bopape
e agricultores de sua cidade de origem. Formou-se
do Sul) graduou-se na Durban University of
em educação religiosa pela Arquidiocese de Belém
Technology, África do Sul, e é mestre pela Columbia
e é graduanda no curso de etnodesenvolvimento
University de Nova York (2010). Expôs em insti-
pela Universidade Federal do Pará. De 1990
tuições de vários países, incluindo New Museum,
a 2007, trabalhou no Conselho Pastoral dos
em Nova York (Estados Unidos), Institute of
Pescadores; participou também dos movimentos
Contemporary Art, na Filadélfia (Estados Unidos),
das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia
Mart House Gallery, em Amsterdã (Holanda), 12ª
da Libertação, e do Movimento dos Pequenos
Bienal de Lyon (França) e 32ª Bienal de São Paulo,
Agricultores. Atualmente, é educadora popular de
em 2016. Vive em Joanesburgo, África do Sul.
pescadores e pescadoras, agricultores e indígenas (1955, Almenaria, Minas
moradores do estado do Pará. Além disso, trabalha
élio alves da silva
com os movimentos Xingu Vivo Para Sempre e
Gerais) é pescador há 37 anos e já trabalhou como
Iperegayu dos Munduruku. Vive em Belém.
roceiro e agricultor. Migrou para a região da
220
Transamazônica em 1976 e, em 1981, fundou a
associada da Pontificia Universidad Católica
Vila Santo Antônio – onde passou a residir –, a
de Chile, onde leciona e realiza pesquisas de
primeira comunidade removida pela barragem
antropologia museológica. Atualmente, é coor-
de Belo Monte, a 50 quilômetros da rodovia
denadora do Programa de Repatriação Rapanui.
Transamazônica, em Vitória do Xingu. Em 2010,
Vive em Santiago.
apesar da resistência de sua comunidade, foi (1968, Cuiabá, Mato
expropriado de seu território de pesca e moradia e
joca reiners terron
obrigado a mudar de atividade e residência, e vive
Grosso) é escritor, editor e tradutor. Foi responsável
agora a 73 quilômetros do Rio Xingu.
pela curadoria da coleção de literatura hispano-americana Otra Língua, da editora Rocco.
gabi ngcobo
(1974, Durban, África do Sul)
Seu mais recente livro publicado é o romance
é artista e curadora independente. Em 2010,
A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
foi cofundadora do Center for Historical
(2013), obra também publicada no México e
Reenactments (2010-2014), projeto independente
na Itália. Vive em São Paulo.
que funcionou com base em Joanesburgo (África (1971, Braunschweig, Alemanha)
do Sul), do qual foi curadora das exposições PASS-
jochen volz
AGES: references & footnotes e Xenoglossia, the
é curador e crítico de arte. Foi diretor de
Exhibition, entre outras. Foi uma das fundadoras
programação da Serpentine Galleries (Londres,
e é diretora do espaço de arte NGO – Nothing Gets
Reino Unido), diretor artístico do Instituto
Organized (Joanesburgo). Ngboco foi cocuradora
Inhotim (Minas Gerais) e curador do Portikus
da 32ª Bienal de São Paulo – incerteza viva
(Frankfurt, Alemanha). Além disso, Volz foi
(2016). Atualmente, Nbcobo é professora da facul-
cocurador da mostra internacional da 53ª Bienal
dade de artes da Wits University, em Joanesburgo,
de Veneza (Itália), em 2009, e da 1ª Aichi Triennial
onde vive.
(Nagoya, Japão), em 2010; curador convidado da 27ª Bienal de São Paulo – Como viver junto
isabella rjeille
(1990, Belo Horizonte, Minas
Gerais) é autora, curadora e editora. É assistente
(2006) e curador da 32ª Bienal de São Paulo – INCERTEZA VIVA (2016). Vive em São Paulo.
curatorial da 32ª Bienal de São Paulo – INCERTEZA (1984, Aracaju, Sergipe) é
VIVA (2016) e coeditora do jornal Nossa Voz / Casa
júlia rebouças
do Povo desde 2015. Foi curadora das exposições
curadora, pesquisadora e crítica de arte, mestra
TOTEMONUMENTO (2016), na Galeria Leme; O que
e doutoranda em artes visuais pela Universidade
caminha ao lado (2015), no Sesc Vila Mariana;
Federal de Minas Gerais. Foi curadora do
cocuradora do projeto Frente à Euforia / Frente
Instituto Inhotim, entre 2007-2015 e integrou
a la Euforia (2015) realizado com “Prêmio para
a comissão curatorial do 18º e do 19º Festivais
curador estrangeiro” da Fundação Gilberto Alzate
Internacionais Sesc_Videobrasil, entre 2012-2015.
Avendaño (Bogotá), na Oficina Cultural Oswald de
Rebouças foi curadora adjunta da 9ª Mercosul –
Andrade (São Paulo). Vive em São Paulo.
Porto Alegre, em 2013, e cocuradora da 32ª Bienal de São Paulo – INCERTEZA VIVA (2016). Vive entre
jacinta arthur
(1984, Santiago, Chile) obteve
São Paulo e Belo Horizonte.
seu Ph.D. pela University of California – Los Angeles (Estados Unidos). É professora adjunta
221
lars bang larsen
(1972, Silkeborg, Dinamarca)
naine terena
(1980, Cuiabá, Mato Grosso) é
é autor, curador e historiador da arte. Foi
doutora em educação e produtora cultural pela
cocurador de exposições como Reflections from
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Damaged Life, na galeria Raven Row (Londres,
Atualmente é bolsista pós-doutoral no Laboratório
Reino Unido), em 2013, Georgiana Houghton:
Educação e Imagem na Universidade do Estado de
Spirit Drawings, na Courtauld Gallery (Londres),
Mato Grosso. Terena trabalha como midialivrista
em 2016, e da 32a Bienal de São Paulo – INCERTEZA
e atua na Oráculo – Comunicação, Educação e
VIVA (2016). É autor das publicações The Model.
Cultura (Cuiabá), na qual desenvolve projetos
A Model for a Qualitative Society 1968 (2010),
de pesquisas culturais, eventos, assessorias e
Networks (2014) e Arte y norma (2016), entre
consultorias em âmbito regional e nacional. Vive
outras. Vive em Copenhague, Dinamarca.
em Cuiabá.
luisa elvira belaunde
(1961, Peru) é
nancy la rosa
(1980, Lima, Peru) é artista visual
cientista social, graduada em filosofia pela
e obteve a graduação em técnica de impressão pela
Université Catholique de Louvain (Bélgica), com
Pontificia Universidad Católica del Perú, onde é
mestrado em sociologia pela Université Catholique
mestranda em antropologia visual. Trabalha com
de Louvain e doutorado em antropologia (Ph.D.)
diversas mídias – desenho, impressão, fotografia,
na London School of Economics (Reino Unido).
vídeo e instalação – e apresentou seus trabalhos
Atualmente, é professora adjunta no programa
em espaços de arte do Peru, dos Estados Unidos
de pós-graduação em antropologia social do
e da América Latina. Realizou três exposições
Museu Nacional da Universidade Federal do
individuais: Trampa ante ojo, na galeria ARCO
Rio de Janeiro. Participou dos Dias de Estudo da
(Madri, Espanha) em 2014; Manifestaciones de
32ª Bienal de São Paulo – Lamas, na Amazônia
una lejanía, na 80m2 galeria Lívia Benavides, em
peruana. Vive no Rio de Janeiro.
Lima, em 2012; e Datos Insuficientes, Galería 80m2 arte&debates, em Lima, em 2009. Participou de
macarena areco morales
(1967, Viña del Mar,
Chile) é jornalista, com pós-graduação, mestrado e
várias residências artísticas e projetos site-specific. Atualmente, é artista residente em Lima.
doutorado em literatura pela Pontificia Universidad (1977, São Paulo) é professor de
Católica de Chile, onde atualmente é professora
pedro cesarino
associada. Sua pesquisa tem enfoque na ficção
antropologia da Faculdade de Letras e Ciências
chilena e hispanoamericana do século 20. Morales
Humanas da Universidade de São Paulo. É autor
é autora do livro Cartografía de la novela chilena
de livros e artigos, entre eles, Oniska: Poética
reciente (2015). Vive em Santiago.
do xamanismo na Amazônia (2011) e Quando a Terra deixou de falar: Cantos da mitologia
mauricio de la puente
(1967, Cidade do México,
marubo (2013), além da ficção Rio acima (2016).
México) é pesquisador independente. Viveu
Cesarino participou dos Dias de Estudo da
por trinta anos em selvas, florestas e desertos
32ª Bienal – Cuiabá. Vive em São Paulo.
do México, em comunidades de origens Maia, (1954, Melbourne, Austrália) estudou
Náhuatl, Ngiwa e Ñuu Savi. Atualmente estuda as
peter webb
relações entre linguagem, economia e ecologia em
ciência horticultural e permacultura na Austrália,
comunidades indígenas. Vive na Cidade do México.
e foi responsável pelo Banco de Sementes do
222
Jardim Botânico de Melbourne por três anos. Em
tilsa otta
1980, iniciou seu trabalho de cirurgia em árvores e
artista. Publicou três livros de poesia:
(1982, Lima, Peru) é escritora e video-
formou-se em Agricultura Biodinâmica na Emerson
Mi niña veneno en el jardin de las baladas (2004),
College, em Londres (Reino Unido). No Brasil
Indivisible (2007) e Antimateria (2014) e uma
desde 1984, ensina os princípios da permacultura
coleção de contos intitulada Un ejemplar extraño
e recuperação ambiental, assim como ecologia e
(2012). Otta produziu vários vídeos e curtas-
ecopsicologia. Vive atualmente em São Paulo.
-metragens premiados e exibidos em festivais de filmes e exposições coletivas. Vive em Lima.
rita ponce de león
(1982, Lima, Peru) estudou (1977, Dax, França) é
artes visuais em Lima e em seguida na Cidade do
yann chateigné
México. Expôs em lugares como o Museo de Arte
historiador da arte, crítico e curador. É reitor do
Moderno, Cidade do México, o New Museum,
departamento de artes visuais da Haute École
Nova York, e a Fundació Miró, Barcelona. Em
d’Art et de Design (Genebra, Suíça) e foi
2014, realizou a mostra individual Endless
diretor de programação do CAPC – Musée d’Art
Openness Produces Circles, no Kunsthalle Basel,
Contemporain (Bordeaux, França). Chateigné
Basileia. Vive na Cidade do México.
foi curador e cocurador de diversos espaços e exposições, entre eles: Biennale of Moving
sofía olascoaga
(1980, Cidade do México,
Images, realizada no Centre d’Art Contemporain
México) trabalha na intersecção da arte com a
Genève, na Suíça, em 2014; The Mirage of
educação. Foi diretora educativa dos programas
History – Kaleidoscope Project Space, Milão,
públicos do Museu de Arte Carrillo Gil (Cidade
em 2010; Whitechapel Gallery, Londres; Pacific
do México) e curadora acadêmica do Museu
Cinematheque, Vancouver, Canadá, em 2010-2011;
Universitário Arte Contemporânea da Cidade do
Fun Palace – Centre Georges Pompidou, Paris, em
México, onde coordenou o programa acadêmico
2010; IΔO. Explorations in French Psychedelia,
Campus Expandido. Colabora com laboratórios
CAPC – Musée d’Art Contemporain, Bordeaux, em
internacionais de programas públicos ao redor do
2008-2009; A Theater without Theater, Museu
mundo. Olascoaga foi cocuradora da 32ª Bienal
d’Art Contemporani de Barcelona (MACBA), na
de São Paulo – INCERTEZA VIVA (2016). Vive na
Espanha, em 2007-2008; e Museu Berardo, em
Cidade do México e em São Paulo.
Lisboa, em 2007-2008. Vive em Genebra.
thiago de paula souza
(1985, São Paulo) se
yaxkin melchy ramos
(1985, Cidade do México,
interessa pelos encontros entre arte e educação.
México) é poeta, escritor e editor de livros artesa-
Desenvolve estudos sobre a representação da arte
nais na 20.20. Editorial. Publicou El Nuevo Mundo
de alguns países africanos e do Brasil na Alemanha,
(2008), livro de poemas em permanente escritura.
além de práticas curatoriais que proponham uma
Algumas versões foram publicadas no México e
descolonização dos espaços expositivos. Atualmente
em países da América Latina. Melchy estuda no El
é mestrando do programa de pós-graduação de
Colegio de Mexico (COLMEX), pesquisando poesia,
história da arte não europeia da Universidade
ecologia e a tradição itinerante de poetas japoneses
Estadual de Campinas. Vive em São Paulo.
como Nanao Sakaki. www.flordeamaneceres. blogspot.com. Vive na Cidade do México.
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PARTICIPANTES: DIAS DE ESTUDO SANTIAGO, CHILE 9 a 12 de março de 2016 organizado por Lars Bang Larsen e Jochen Volz barbara saavedra, bióloga e diretora do Wildlife Conservation Society. Vive em Santiago daniela berger, curadora do Museo de la Solidaridad Salvador Allende. Vive em Santiago florencia loewenthal, diretora da Galería Gabriela Mistral. Vive em Santiago giuliana furci, fundadora da Fundación Fungi. Vive em Santiago jacinta arthur, doutora em estudos culturais pela Universidade da Califórnia (ucla) e professora adjunta associada na Pontificia Universidad Católica de Chile. Vive em Santiago javiera peón-veiga petric, codiretora artística do NAVE Centro de Creación y Residencia. Vive em Santiago jorge baradit, escritor. Vive em Santiago juan varela, mágico. Vive em Santiago macarena areco morales, doutora em literatura e professora assistente na Pontificia Universidade Católica de Chile. Vive em Santiago maría vial solar, codiretora artística do NAVE Centro de Creación y Residencia. Vive em Santiago pia lindmann, artista. Vive na Finlândia pierre huyghe,
artista. Vive em Santiago e em Nova York, Estados Unidos pilar quinteros, artista. Vive em Santiago sergio parra, diretor de Metales Pesados Livraria e Visual. Vive em Santiago smiljan radić, arquiteto. Vive em Santiago yann chateigné, historiador da arte e reitor do departamento de artes visuais da Haute École d’Art et de Design de Genebra. Vive em Genebra, Suíça
ACRA, GANA 7 a 10 de abril de 2016 organizado por Gabi Ngcobo e Jochen Volz dineo seshee bopape,
África do Sul 224
artista. Vive em Joanesburgo,
kwasi ohene-ayeh, artista e curador. Vive em Kumasi, Gana mantse aryeequaye, cofundador e codiretor do ACCRA[dot]ALT. Vive em Acra mavis tatteh-ocloo, artista. Vive em Acra nana oforiatta-ayim, curadora, historiadora da arte e filmmaker. Vive em Acra nat amarteifio,
historiador de arquitetura, escritor e ex-prefeito de Acra serge attukwei clottey, artista. Vive em Acra thiago de paula souza, curador e educador. Vive em São Paulo vivian caccuri, artista. Vive no Rio de Janeiro zohra opoku, artista. Vive em Acra
LAMAS, PERU 17 a 20 de abril de 2016 organizado por Sofía Olascoaga, Grimaldo Rengifo e Jochen Volz alejandro cevallos, educador comunitário membro da rede Another Roadmap. Vive no Equador antonio paucar, artista. Vive no Peru e na Alemanha eliana otta, artista. Vive no Peru girvan tuanama, equipe da associação civil Waman Wasi. Vive em Lamas gladys faiffer, coordenadora da associação civil Waman Wasi. Vive em Lamas gregorio sangama, equipe da associação civil Waman Wasi. Vive em Lamas grimaldo rengifo, educador e cofundador da associação civil Waman Wasi e da organização PRATEC – Proyecto Andino de Tecnologías Campesinas. Vive em Lima, Peru jaime faiffer, equipe da Associação civil Waman Wasi. Vive em Lamas jorge menna barreto, artista e professor no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive no Rio de Janeiro luis romero rengifo, equipe da associação civil Waman Wasi. Vive em Lamas luisa elvira belaunde, antropóloga e professora no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive no Rio de Janeiro
mauricio de la puente,
biotecnólogo e pesquisador.
Vive no México michelle marxuach, curadora e cofundadora do projeto Beta-Local. Vive em San Juan, Porto Rico, e nos Estados Unidos nancy la rosa, artista. Vive no Peru óscar gonzález,
membro da Cooperativa Editorial El Rebozo / Unitierra. Vive em Chiapas, México raúl matta, pesquisador na Universidad Goettingen. Vive na Alemanha e no Peru rita ponce de león, artista. Vive no Peru e no México rodrigo bueno, artista. Vive no Brasil valeria galarza, educadora comunitária e membro da rede Another Roadmap. Vive no Equador yessica hernandez, mestranda em história da arte na Universidade de São Paulo. Vive no Brasil e no Peru zadith coral, equipe da associação civil Waman Wasi. Vive em Lamas
CUIABÁ, BRASIL 19 a 21 de maio de 2016 organizado por Júlia Rebouças e Jochen Volz alexandre sampaio,
engenheiro florestal. Vive em
Brasília álvaro tukano, liderança indígena e diretor do Museu Memorial dos Povos Indígenas da Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Vive em Brasília bené fonteles, artista. Vive em Brasília carolina caycedo, artista. Vive em La Jagua, Colômbia, e em Los Angeles, Estados Unidos gabi ngcobo
curadora. Vive em São Paulo escritor. Vive em São Paulo larissa silva freire, pedagoga e pesquisadora. Vive em Cuiabá
Labtec da Universidade Federal do Mato Grosso. Vive em Cuiabá pedro cesarino, antropólogo. Vive em São Paulo rodrigo nunes, filósofo e professor da puc-rj. Vive no Rio de Janeiro sofía olascoaga tetê espíndola,
cantora e compositora. Vive em
São Paulo
SÃO PAULO, BRASIL 10 e 11 de junho de 2016 organizado por Jochen Volz e equipes da Bienal ailton krenak, liderança indígena, ambientalista e escritor. Vive na serra do Cipó, Minas Gerais alvaro puntoni, arquiteto, doutor em arquitetura e urbanismo e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Vive em São Paulo amilcar packer, artista. Vive em São Paulo ana laide barbosa, educadora, trabalha com os movimentos Xingu Vivo Para Sempre e Iperegayu dos Munduruku. Vive em Belém, Pará andré mesquita, historiador e crítico de arte. Vive em São Paulo áurea carolina, cientista política, ativista de movimentos feministas, negros e juvenis, e educadora popular. Vive em Belo Horizonte, Minas Gerais bárbara wagner, fotógrafa. Vive em Recife, Pernambuco ben vickers, curador. Vive em Londres, Reino Unido benjamin de burca, artista. Vive em Berlim, Alemanha
isabella rjeille,
carolina caycedo
joca reiners terron,
guilherme boulos,
lars bang larsen ludmila brandão,
professora do Programa de pós-graduação em estudos de Cultura Contemporânea / UFMT. Vive em Cuiabá mario friedlander, fotógrafo. Vive na Chapada dos Guimarães, Mato Grosso naine terena, liderança indígena e professora no
ativista, professor e líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, São Paulo. Vive em São Paulo joe addo, arquiteto. Vive em Acra lais myrrha, artista. Vive em São Paulo ligia nobre, arquiteta. Vive em São Paulo luisa elvira belaunde
naine terena pedro cesarino vivian caccuri
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226
32ª Bienal de São Paulo FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO EQUIPE PERMANENTE SUPERINTENDÊNCIA Luciana Guimarães COORDENADORIA GERAL DE PROJETOS Dora Silveira Corrêa · coordenadora Comunicação Felipe Taboada · gerente Adriano Campos Ana Elisa de Carvalho Price Diana Dobránszky Eduardo Lirani Gabriela Longman Julia Bolliger Murari Pedro Ivo Trasferetti von Ah Victor Bergmann
Arquivo Bienal Ana Luiza de Oliveira Mattos · gerente Ana Paula Andrade Marques Fernanda Curi Giselle Rocha Melânie Vargas de Araujo
Projetos especiais Eduardo Sena Paula Signorelli
Pesquisa e conteúdo Thiago Gil
Relações institucionais e captação Emilia Ramos · gerente Flávia Abbud Gláucia Ribeiro Marina Dias Teixeira Raquel Silva Secretaria geral Maria Rita Marinho Carlos Roberto Rodrigues Rosa Josefa Gomes
Editorial Cristina Fino
Produção Felipe Isola · gerente de planejamento e logística Joaquim Millan · gerente de produção de obras e expografia Adelaide D’Esposito Gabriela Lopes Graziela Carbonari Sylvia Monasterios Veridiana Simons Vivian Bernfeld Viviane Teixeira Waleria Dias Programa educativo Laura Barboza · gerente Bianca Casemiro Claudia Vendramini Helenira Paulino Mariana Serri Francoio Regiane Ishii
COORDENADORIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Paulo Rodrigues · coordenador Assessoria jurídica Ana Carolina Marossi Batista Finanças Amarildo Firmino Gomes · gerente Fábio Kato Gestão predial e manutenção Valdomiro Rodrigues da Silva · gerente Angélica de Oliveira Divino Larissa Di Ciero Ferradas Vinícius Robson da Silva Araújo Wagner Pereira de Andrade Projetos incentivados Eva Laurenti Danilo Alexandre Machado de Souza Rone Amabile Recursos humanos Albert Cabral dos Santos Tecnologia da informação Leandro Takegami · gerente Jefferson Pedro Serviços terceirizados Bombeiros Empresa Atual Serviços Especializados Limpeza Empresa Tejofran Saneamento e Serviços Portaria Empresa Plansevig Tercerização de Serviços Eireli
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32ª Bienal de São Paulo FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO EQUIPE PROJETO CURADORIA Curador Jochen Volz Cocuradores Gabi Ngcobo Júlia Rebouças Lars Bang Larsen Sofía Olascoaga Assistentes Catarina Duncan Isabella Rjeille Sofia Ralston Arquitetura Alvaro Razuk Equipe Daniel Winnik Isa Gebara Juliana Prado Godoy Paula Franchi Ricardo Amado Silvana Silva COLABORADORES COMUNICAÇÃO Assessoria de imprensa nacional Pool de Comunicação Assessoria de imprensa internacional Rhiannon Pickles PR Campo Sonoro (audioguia) Matheus Leston Design Roman Iar Atamanczuk Publicidade CP+B Registro e conteúdo audiovisual Carolina Barres, Fernanda Bernardino, F For Felix Registro fotográfico Leo Eloy, Ilana Bar, Tiago Baccarin
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COLABORADORES COORDENADORIA DE PROJETOS Editorial Rafael Falasco Produção Dorinha Santos Tarsila Riso Clarissa Ximenes Felipe Melo Franco Audiovisual MAXI Áudio, Luz, Imagem Cenotécnica Metro Cenografia Conservação Ana Carolina Laraya Glueck Bernadette Baptista Ferreira Cristina Lara Corrêa Tatiana Santori Iluminação Samuel Betts Montagem Gala Elastica Seguro Axa-Art Programa Educativo Mediação Maria Eugênia Salcedo · consultora Supervisores Anita Limulja Juliana da Silva Sardinha Pinto Paula Nogueira Ramos Silvio Ariente Valéria Peixoto de Alencar Mediadores Affonso Prado Valladares Abrahão Alexandre Queiroz Alonzo Fernandez Zarzosa
Ana Carolina Porto da Silva Ana Lívia Rodrigues de Castro Ananda Andrade do Nascimento Santos André Luiz de Jesus Leitão Ariel Ferreira Costa Barbara Martins Sampaio da Conceição Bianca Leite Ferreira Bruno Coltro Ferrari Bruno Elias Gomes de Oliveira Bruno Vital Alcantara dos Santos Carina Nascimento Bessa Carlos Eduardo Gonçalves da Silva Carmen Cardoso Garcia Carolina Rocha Pradella Cláudia Ferreira Daiana Ferreira de Lima Danielle Sallatti Danielle Sleiman Danilo Pêra Pereira Diane Ferreira Diran Carlos de Castro Santos Divina Prado Eduardo Palhano de Barros Eloisa Torrão Modestino Erica da Costa Santos Felipe Rocha Bittencourt Flávia de Paiva Coelho Flávio Aquistapace Martins Ian da Rocha Cichetto Janaina Maria Machado Jorge Henrique Brazílio dos Santos José Adilson Rodriguês dos Santos Jr Julia Cavazzini Cunha Juliana Biscalquin Karina da Silva Costa Karina Gonçalves de Adorno Leonardo Masaro Letícia Ribeiro de Escobar Ferraz Lia Cazumi Yokoyama Emi Ligia Marthos Lívia Costa Monteiro Luara Alves de Carvalho
Lucas Francisco Delfino Garcia da Silva Lucas Itacarambi Lucia Abreu Machado Luciana Moreira Buitron Lucimara Amorim Santos Ludmila Costa Cayres Luiz Augusto Citrangulo Assis Manoela Meyer S de Freitas Manuela Henrique Nogueira Marcia Falsetti Viviani Silveira Marco Antonio Alonso Ferreira Jr María del Rocío Lobo Machín Maria Fernanda B Rosalem Maria Filippa C. Jorge Marília Souza Dessordi Marina Baffini Marina Colhado Cabral Mateus Souza Lobo Guzzo Nei Franclin Pereira Pacheco Nina Clarice Montoto Paula Vaz Guimarães de Araújo Pedro Félix Ermel Pedro Wakamatsu Ogata Renato Ferreira Lopes Roberta Maringelli Campi Rogério Luiz Pereira Rômulo dos Santos Paulino Thiago da Silva Pinheiro Thiago Franco Tiago Rodrigo Marin Tiago Souza Martins Vinícius Fernandes Silva Agendamento Diverte Logística Cultural Difusão Elaine Fontana · consultora Valquíria Prates · consultora material educativo Articuladores Ana Luísa Nossar Célia Barros Celina Gusmão Gabriela Leirias Maurício Perussi
Curadores convidados (Wlademir Dias-Pino) Leandro Nerefuh & Tobi Maier Cocuradora (Öyvind Fahlström) Sharon Avery-Fahlström COLABORADORES COORDENADORIA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Ambulância Premium Serviços Médicos Administração Lays de Souza Santos Silvia Andrade Simões Branco Bombeiros Local Serviços Especializados Compras Daniel Pereira Nazareth Leandro Cândido de Oliveira Jurídico Olivieri Sociedade de Advogados Limpeza MF Serviços de Limpeza e Conservação Segurança Atual Serviços Especializados
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CRÉDITOS DAS IMAGENS Carolina Caycedo pp. 104, 106, 111-114, 120 Dineo Seshee Bopape pp. 150, 154, 159 Gilvan Samico p. 217 Ilana Bar / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo pp. 18, 34 Jacinta Arthur pp. 138, 144, 149 Jorge Baradit p. 196 Leo Eloy / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo pp. 2, 4, 20, 22, 24, 26, 28, 30, 37, 38, 44, 54, 80, 90, 94, 100, 128, 173, 176, 185, 186, 188, 210, 218, 107-110, 115-118 Mario Friedlander pp. 124, 127 Naine Terena pp. 134, 136, 137 Nancy La Rosa pp. 86-88 Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo pp. 43, 99, 122, 166, 168, 193, 194, 206, 208 Rikke Luther p. 240, cartaz Rita Ponce de León pp. 57, 59, 61, 63, 65, 67, 69 Tiago Baccarin / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo cartaz (verso), pp. 32, 41, 160 Todd Southgate pp. 70, 76 Verena Glass pp. 70, 72, 73, 76 Waman Wasi pp. 46, 50
p. 18: Vista do térreo da 32ª Bienal, com obras de Rosa Barba, Tracey Rose, Ruth Ewan, Sandra Kranich, Felipe Mujica e Frans Krajcberg. pp. 20-21: Vista do térreo da 32ª Bienal, com obras de OPAVIVARÁ!, Felipe Mujica, Bené Fonteles e Frans Krajcberg. pp. 22-23: Frans Krajcberg, Sem título (Coqueiros), s.d. e Sem título (Bailarinas), s.d. Vista da instalação na 32ª Bienal. pp. 24-25: Lais Myrrha, Dois pesos, duas medidas, 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal. pp. 26-27: Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die [Inferno sim nós foda morrer], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal. pp. 28-29: Vista do 2º andar da 32ª Bienal, com obras de Wlademir Dias-Pino, Öyvind Fahlström e Iza Tarasewicz. pp. 30-31: Vista do 3º andar da 32ª Bienal, com obras de José Antonio Suárez Londoño, Francys Alÿs, Güneş Terkol e Erika Verzutti. pp. 32-33: Koo Jeong A, ARROGATION [Arrogação], 2016. Vista da instalação na 32ª Bienal.
230
CRÉDITOS DA PUBLICAÇÃO ORGANIZADORES Jochen Volz Isabella Rjeille COORDENAÇÃO EDITORIAL Cristina Fino Diana Dobránszky PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Adriano Campos Ana Elisa de Carvalho Price ASSISTENTE DE EDIÇÃO Rafael Falasco TRADUÇÃO Alexandre Barbosa de Souza Roxo Forte PREPARAÇÃO E REVISÃO Sandra Brazil TRANSCRIÇÃO Débora Donadel GERENCIAMENTO DE IMAGENS Pedro Ivo Trasferetti von Ah PRODUÇÃO GRÁFICA Signorini Produção Gráfica Eduardo Lirani
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AGRADECIMENTOS INDIVÍDUOS Acácio Piedade, Adriano Pedrosa, Agustín Pérez Rubio, Ailton Krenak, Alberto Tsuyoshi Ikeda, Alejandro Cevallos, Alexandre Sacchi Di Pietro, Alexandre Sampaio, Alexandre Viana, Alexia Tala, Alexie Glass-Kantor, Allan Alves, Cel. Alvaro Camilo, Alvaro Puntoni, Álvaro Tukano, Amer Huneidi, Ana Garzón Sabogal, Ana Laíde Barbosa, Ana Maria Maia, Andre Bergamin, André Mesquita, Andrea Pacheco, Annick Kleizen, Annika Leimann, Antonio Paucar, Arline Salazar Montoya, Arnaldo Antunes, Áurea Carolina, Barbara Saavedra, Ben Vickers, Benjamin Seroussi, Burkhard Riemschneider, Caio Bourg de Mello, Camila Marambio, Camila Rocha, Carlos Moura-Carvalho, Carolina Dal Ben Padua, Carolyn Alexander, Catalina Casas, Catherine Münger, Célida Peregrino, Cesar Gyrão, Charles Green, Chen Tamir, Christopher Cozier, Cildo Meireles, Claudinéia Baroni, Craig Higginson, Cuauhtémoc Medina, Daniel Birnbaum, Daniela Berger, Daniela Castro, Davi Perez, Deborah Anzinger, Diego Matos, Dimitrina Sevova, Dominique Gonzalez-Foerster, Dorota Kwinta, Dulcídio Caldeira, Edison de Souza, Eduardo de Jesus, Eliana Otta, Elke aus dem Moore, Emiliano Valdés, Enock Pessoa, Eungie Joo, Fábio Bolota, Fabio de Alencar Iorio, Fabio Pugliese, Fábio Zuker, Família Geld, Fátima Faria Gomes, Felipe Chaimovich, Felipe Villada, Felippe Crescenti, Fernanda Brenner, Fernanda Nogueira, Filipa Oliveira, Flávio Motta, Florencia Loewenthal, Frederico Morais, Fredrik Liew, Fulvio Giannella Junior, Gabriel Lemos, George Awde, George Rotatori, Gladys Faiffer, Glaucia Barros Xavier, Grimaldo Rengifo, Guilherme Boulos, Guiliana Furci, Gustavo Esteva, Hans Ulrich Obrist, Heraldo Guiaro, Heron Werner Jr., Hilton Haw, Ibis Hernandez, Inês Grosso, Iracema Schoenlein Crusius, Irene Ragazzini, Isabel Diegues, Ivo Mesquita, Jacinta Arthur, Jair Batista da Silva, James Rondeau, Jared McCormick, Jimena Lara, Joana Fins Faria, João Campos, João Ribas, Joca Reiners Teron, Joe Osae-Addo, Jorge Baradit, Jorge Fernandez, José Roberto Sadek, Juan Pablo Vergara Undurraga, Juan Varela, Julia Peyton-Jones, Juliana Manso Sayão, Julie Lomax, Jürgen Bock, Karen Cunha, Katharina von Ruckteschell-Katte, Kiki Mazzucchelli, Kwasi Ohene Ayeh, Laise de Holanda Cavalcanti Andrade, Larissa Silva Freire, Lena Malm, Leo Karim González, Libia Posada, Ligia Nobre, Lisette Lagnado, Ludmila Brandão, Luisa Elvira Belaunde, Luiz Eduardo Anelli, Luiz Marchetti, Macarena Areco Morales, Mamede Jarouche, Mantse Aryeequaye, Manuel Silveira Corrêa, Marcello Nietsche, Marcio Harum, Marcos Moraes, Margarita González, Maria Angelica Melendi, Maria Cristina Donadelli Pinto, Maria del Carmen, Maria do Carmo Pontes, Maria Lafayette Aureliano Hirszman, Mario Friedlander, Martin Bach, Mauricio de la Puente, Mavis Tetteh-Ocloo, Melissa Rocha, Merve Caglar, Michelle Marxuach, Miguel Lopez, Moacir dos Anjos, Mohammed Hafiz, Morgana Rissinger, Nadia Somekh, Naine Terena, Nana Oforiatta-Ayim, Nancy La Rosa Saba, Nat Amartefeio, Nathalie Morhange, Óscar Gonzalez, Övül Ö. Durmusoglu, Pablo Lafuente, Paula Zasnicoff, Paulina del Valle Vera, Paulo Bogorni, Paulo Pires do Vale, Pedro de Niemeyer Cesarino, Pedro Montes, Raduan Nassar, Rafael Ortega, Ralph Rugoff, Rana Sadik, Raúl Matta, Rebecca Coates, Regina Pouchain, Renato Corch, Ricardo Ohtake, Richard Fletcher, Rivane Neuenschwander, Rodolfo Walder Viana, Rodrigo Bueno, Rodrigo Moura, Rodrigo Nunes, Rodrigo Pimentel Pinto Ravena, Rodrigo Tavares, Samer Younis, Senam Okudzeto, Serge Attukwei Clottey, Sergio Ide, Sergio Parra, Shrook Al Ghanim, Silvan Kaelin, Silvia Ambrogi, Sinethemba Twalo, Smiljan Radic, Solange Farkas, Stefan Benchoam, Suely Rolnik, Suzanne Cotter, Tali Cherizli, Tatiana Oliveira, Tatiane Kaiowa, Testinha, Tetê Espíndola, Thiago de Paula Souza, Thyago Nogueira, Tim Neuger, Tiyoko Tomikawa, Tonico Benites Guarani, Valeria Galarza, Valéria Rossi Domingos, Veerle Poupeye, Victor Friedlander, Virginija Januskeviciute, Vivian Ziherl, Wilson Díaz, Yale Reinhard, Yann Chateigne, Yavuz Parlar, Yessica Hernandez, Ziad Mikati, Zohra Opoku, Zoraida Maria Lobato Viotti.
232
INSTITUIÇÕES Acción Cultural Española, accra [dot] alt, AC/E, Administração do Parque do Ibirapuera, Al-Kamel Verlag, Alta Excelência Diagnóstica, ANO, Another Road Map School, Arquivo Multimeios – Centro Cultural São Paulo, Artis Grant Program, Arts Council Korea (ARKO), Artspace – Auckland, Associação Quilombola de Piracanjuba, Auditório Ibirapuera, Australia Council, Australia Council for the Arts, Bisagra, Blank Projects, Bug Agentes Biológicos, Bull Produtora Digital, Câmara Municipal do Porto, CECI Jaraguá, Cemitério da Consolação, Centro Cultural Dannemann, Centro de Ciências Biológicas – UFPE, Cinemateca Brasileira, Clube de Atletismo BM&F BOVESPA, Coleção MoraesBarbosa, Companhia das Letras, Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET), Conpresp, Conselho Gestor do Parque Ibirapuera, Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), Consulado Geral do México em São Paulo, Contemporary Art Centre (CAC), Cooperativa de Catadores da Baixada do Glicério, CP+B, Creative New Zealand, Dan Gunn Gallery, Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), Educativo do MAM-SP, Escola Municipal de Astronomia e Astrofísica – UMAPAZ, Etxepare, Everard Read Gallery – JHB, Faculdade de Artes Plásticas – FAAP, Faculdade de Comunicação – FAAP, Fazenda da Toca, Fortaleza de San Carlos de La Cabaña, Frame Visual Art Finland, Fundação Armando Alvares Penteado, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundación Funghi, Galeria Fortes Vilaça, Galeria Pilar, Galeria Sé, Galerie Imane Farès, Gallery 1957, GCM – Parque do Ibirapuera, Goethe-Institut Salvador-Bahia, Grupo Ecolyzer, iASPIS, Institute of Modern Art – Brisbane, Instituto Biológico de São Paulo, Instituto de Botânica de São Paulo, Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, Instituto de Linguagens – Universidade Federal do Mato Grosso, Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Identidade Brasil, Instituto Nacional de Bellas Artes de México, Instituto Tomie Othake, Itaú Cultural, Kempinski Hotel, KONE, Lugar a Dudas, Más Arte Más Acción, Melbourne University, Ministério da Cultura, Ministério da Cultura da República Argentina, Museo de la Memoria Santiago de Chile, Museo de la Solidaridad Salvador Allende, Museo Universitario Arte Contemporáneo MUACUNAM, Museu Afro Brasil, Museu da Cidade de São Paulo, Museu da Imigração do Estado de São Paulo / Governo do Estado de São Paulo, Museu de Anatomia Veterinária da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia – USP, Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu Valdemar Lefèvre (MUGEO), Nubuke Foundation, Obrera Centro, ONG Social Skate, Peter Kilchmann Galerie, Polícia Militar do Estado de São Paulo, Programa Andino de Tecnologías Campesinas (pratec), Prefeitura de Lisboa, Pro-Helvetia, Procolombia, Programa de Aventura Ambiental – UMAPAZ, Rhiannon Pickles PR, SAHA, Scape Public Art, Secretaria Estadual da Cultura – São Paulo, Secretaria Estadual da Educação – São Paulo, Secretaria Estadual de Logística e Transportes – São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura – São Paulo, Secretaria Municipal de Educação – São Paulo, Secretaria Municipal de Transportes – São Paulo, São Paulo Transporte S.A. – SPTrans, Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente– São Paulo, Serviço Funerário do Município de São Paulo, Sesc São Paulo, Sesc – Serviço Social do Comércio – Administração Regional no Estado de São Paulo, Sol Henaro, SP-Trans, Subprefeitura Sé, The Henry Moore Foundation, The Office for Contemporary Art Norway (OCA), Trelleborg Wheel Systems, Unitierra Oaxaca, Universidad de las Artes – ISA, Cuba, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal da Grande Dourados, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal do Acre, Universidade Federal do Reconcavo Bahiano, Waman Wasi, Wits School of Arts – JHB.
233
CORREALIZAÇÃO
PATROCÍNIO MASTER
PATROCÍNIO
PARCERIA CULTURAL
APOIO
APOIO MÍDIA
APOIO COMUNICAÇÃO
APOIO INTERNACIONAL
Embajada de Colombia en Brasil
APOIO INSTITUCIONAL
Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Programa de Ação Cultural 2016
REALIZAÇÃO
MINISTÉRIO DA CULTURA
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proxíma página: Rikke Luther, Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal], 2016. Texto integrante da instalação na 32ª Bienal. cartaz: Rikke Luther, Outerspace [Espaço sideral], 2016. Parte da instalação Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal], 2016, apresentada na 32ª Bienal.
Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal], 2016, apresentada na 32ª Bienal. no verso Rikke Lutter, Outerspace [Espaço sideral], 2016. Parte da instalação Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal], 2016, apresentada na 32ª Bienal.
Ministério da Cultura, Bienal de São Paulo e Itaú e apresentam
32ª BIENAL DE SÃO PAULO Este livro contém ensaios visuais, entrevistas e textos produzidos a partir do programa Dias de Estudo que aconteceu em Santiago, Chile; Acra, Gana; Lamas, Peru; Cuiabá e São Paulo e contou com a participação de artistas, ativistas, historiadores, educadores, pescadores, poetas, lideranças indígenas, escritores, curadores e antropólogos. Os participantes dos Dias de Estudo integraram o processo de pesquisa para a 32ª Bienal de São Paulo, tornando-se importantes interlocutores do projeto. As contribuições produzidas para esta publicação percorrem os caminhos que levaram à exposição, desdobrando questões suscitadas por ela e estabelecendo outras cartografias possíveis. Participam desta publicação: Ailton Krenak Álvaro Tukano Ana Laide Soares Barbosa Ben Vickers Carolina Caycedo Dineo Seshee Bopape Élio Alves da Silva Gabi Ngcobo Isabella Rjeille Jacinta Arthur Joca Reiners Terron Jochen Volz Júlia Rebouças Lars Bang Larsen Luisa Elvira Belaunde Macarena Areco Morales Mauricio de la Puente Naine Terena Nancy La Rosa Pedro Cesarino Peter Webb Rita Ponce de León Sofía Olascoaga Thiago de Paula Souza Tilsa Otta Yann Chateigné Yaxkin Melchy Colaboração especial da artista Rikke Luther, com um cartaz da obra Outer Space [Espaço sideral], da instalação Overspill: Universal Map [Transbordamento: Mapa universal], 2016.
978-85-85298-56-2