31ª Bienal de São Paulo (2014) - Livro

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Xerox Action – Hudinilson Jr. Utilizar o corpo como matriz […] debruçando-me e deitandome por inteiro sobre o visor da xerox, compondo assim formas/ texturas. O xerox recria o corpo de maneira própria, destruindo detalhes e valorizando outros, resultando imagens que se aproximam da abstração, num exercício de leitura/visão. […] Entender os limites impostos pela máquina e ampliar seus recursos, dominar estes limites, invertendo assim as relações, fazendo com que a máquina seja veículo e coautora deste trabalho.¹ No ano passado, pouco depois da morte de Hudinilson Jr., encontramos uma grande quantidade de trabalhos em seu apartamento-ateliê, acondicionados em pastas plásticas repletas de colagens, arte postal, matrizes de grafite e projetos de painéis xerográficos. Em sua maioria, esses painéis foram feitos a partir de fotocópias ampliadas de uma imagem do corpo do artista, gerada na própria copiadora. As ampliações permitem a montagem de diversas folhas no formato A4 em mosaicos que chegam a ter as dimensões de um outdoor. Muitos desses painéis apresentam a visão de um detalhe do corpo masculino, ampliado seguidas vezes até o ponto em que a copiadora começa a reproduzir sua própria mancha gráfica, seu próprio padrão de impressão, criando superfícies orgânicas e abstratas da imagem original do corpo. Outras séries em xerox também foram criadas por jogos de ampliações e reduções a partir de fotos impressas do seu vasto banco de imagens. Na sala do seu ateliê foi difícil abrir a porta de um pequeno compartimento do armário que guardava muitos envelopes repletos de recortes com fotografias impressas, matérias de jornal, bilhetes, cartas endereçadas a ele, cópias xerox de seu próprio corpo. Durante anos, o corpo erotizado de Hudinilson Jr., o mesmo que se tornou conhecido pelas imagens de sua performance com uma copiadora nos anos 1980, resistiu heroicamente ao seu estilo de vida pouco comum e arrasador. Nos últimos tempos, o artista, que era urbano até no nome (Hudinilson Urbano Jr.), recolheu-se ao seu apartamento-ateliê, isolado pelo estigma daqueles que bebem. Dono de uma produção complexa, reunindo intervenções urbanas, grafites, arte xerox, performance, colagem, arte postal e livros de artista, Hudinilson Jr. foi também um catalogador e um arquivista atento à dinâmica cultural do seu tempo. Esse talento rendeu-lhe a aquisição, pelo Centro Cultural São Paulo, de uma extensa hemeroteca organizada por ele ao longo de trinta anos – um acervo documental com cerca de cinco mil itens sobre as manifestações de arte e cultura urbanas na cidade de São Paulo, colecionados desde o fim da década de 1970. Em sua cama-ateliê, Hudinilson Jr. recortava diariamente as figuras que compunham o seu olimpo homoerótico, coladas metodicamente em cadernos ao lado de outras figuras, como as de suas musas prediletas e outras figurações fálicas, como as colunas gregas, a tromba dos elefantes, os rinocerontes, os cavalos, as girafas. Essa iconografia encontra-se principalmente nas páginas dos Cadernos de referência. Esses cadernos são o espaço de ressonância de toda a sua obra, em grande parte criada em São Paulo, lugar onde ele nasceu e viveu. Muitas das imagens desses Cadernos são cópias xerográficas que se repetem criando soluções gráficas muito particulares, que nos lembram certas operações da arte pop ao justapor e sobrepor imagens desgastadas pelo próprio processo de impressão. Essas imagens recortadas de revistas, jornais, fanzines e ca278

tálogos são a matéria-prima de grande parte da produção do artista. “A foto que tiro da revista não é a foto do fotógrafo – a imagem agora é minha”. E é desse acervo que emergem também as imagens que nos lembram a morte em meio às páginas de alegria e gozo. Esses memento mori são fotografias da queda de um avião, de um homem no momento do seu suicídio, representações do Cristo crucificado e morto, homens executados, corpos em caixões, crânios empilhados, raios x do corpo humano. Por isso a questão do corpo não é algo tão evidente na sua obra quanto se nota por aí. A sua poética homoerótica é formada por um universo coletivo de corpos. Esses corpos exibem seus atributos em torsos, mamilos, axilas, pés, mãos e pelos numa escala gráfica que ele particularizava na linguagem gráfica característica da xerografia. A performance do artista nu sobre a máquina ficou impressa como imagem nas cópias em papel, que depois foram tratadas graficamente por sucessivas ampliações e reduções, sobreposições e contrastes. Ao serem traduzidas pela copiadora, as qualidades daquele corpo foram convertidas em estruturas gráficas que o artista identificava como resultado de uma coautoria da máquina, na criação de padrões reticulares muito próprios daquele meio – trata-se da performatividade do xerox, uma nova forma de produção automática da imagem nos anos 1980. As impressões desse Narciso urbano fixadas em papel são também imagens de sua perdição, da perda dos contornos de sua figura e um testemunho de seu fascínio pelo espelho. Ao mesmo tempo, atestam a vida de alguém que teve “uma existência paradoxal, que vivia da sua própria destruição” e esperava sempre que possível ser ouvido em sua constante busca de interlocutores. A força de sua obra também escondia uma certa fragilidade do homem em busca do outro. Em suas pesquisas visuais, Hudinilson Jr. alcançou uma singularidade em seu trabalho por meio de diversas experimentações. A quantidade de projetos que encontramos em seu ateliê reflete a maturidade que ele havia atingido como artista – aquele que mergulhou na práxis de uma nova forma de produção instantânea da imagem e que se apropriou do universo visual com tesoura e cola, nunca tendo alcançado o mundo digital. Grande parte dos seus projetos em xerox, até agora não vista, está impressa, as cópias numeradas e guardadas em envelopes identificados por carimbos. Nos anos em que coordenou o Centro de Xerografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo, o artista produziu uma quantidade invejável de trabalhos e projetos ainda por realizar, todos minuciosamente descritos e planejados – um tesouro para o mercado que agora desperta para a sua obra. Menos de um ano depois de sua morte, são várias as curadorias e bienais interessadas nessa figura emblemática. Cacete! Vocês não poderiam ter se adiantado ou atendido ao telefone um ano atrás?

Mario Ramiro 1 Hudinilson Jr., “O corpo sempre como princípio”, Arte em São Paulo, n. 8, jun. 1982, pp.2-4.


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