31ª Bienal de São Paulo (2014) - Livro

Page 252

Por uma arte de instaurar modos de existência que “não existem” Peter Pál Pelbart

A arte de instaurar Por mais extravagante que pareça a noção de um sujeito não antropológico, sobretudo numa época ainda aferrada à primazia do sujeito humano, é preciso reconhecer que o pensamento contemporâneo tende a admitir múltiplos feixes de experiência ou de sentires (feelings, conforme o conceito de Whitehead), bem como maneiras de ser diversas, segundo uma pluralidade de mundos.1 Assim, em meio à falência do antropocentrismo a que assistimos nas últimas décadas, em domínios vários, da filosofia à ecologia, seres que antes pareciam reclusos à esfera subjetiva ganharam um outro estatuto, uma nova vida. Entes invisíveis, impossíveis, virtuais, que pertenciam ao domínio dito da imaginação, do psiquismo, da representação ou da linguagem, atravessaram alegremente a fronteira entre sujeito e objeto e reapareceram numa outra chave ontológica. Já não somos os únicos actantes do cosmos – protosubjetividades pululam por toda parte, e mesmo aquilo que parecia mero objeto de manipulação tecnocientífica, como a natureza, salta para o proscênio, reivindicando meios de expressão próprios. Que nos baste a ponderação de Peter Sloterdijk durante as conversas preparatórias para a ópera Amazônia (2010), na qual ele detecta uma “dor amazônica” diante da ameaça que pesa sobre a floresta e entende que o protagonista do experimento não poderia ser outro que não o “sujeito amazônico”.2 Na esteira desse perspectivismo, uma das questões cosmopolíticas de hoje poderia ser: qual é a dor que cada actante, humano ou não humano, carrega? Qual é a ameaça que cada um deles, e nós com eles, enfrentamos? E quais dispositivos cabe ativar, seja para dar-lhes voz, seja para dá-los a ver, seja para deixá-los se esquivarem ao nosso olhar voraz? Da Amazônia aos autistas, a questão é a mesma – a dos modos de existência. À revelia das novas formas de gestão biopolítica da vida em escala planetária, que tendem galopantemente à homogeneização, vêm à tona por toda parte modos de existência singulares, humanos e não humanos. Que tipo de existência se lhes pode atribuir, a esses seres que povoam nosso cosmos, agentes, actantes, sujeitos larvares, entidades, com suas maneiras próprias de se transformar e de nos transformar? Nem objetivos nem subjetivos, nem reais nem irreais, nem racionais nem irracionais, nem materiais nem simbólicos, seres um tanto virtuais, um tanto invisíveis, metamórficos, moventes: a 250

que categoria pertencem? E em que medida existem por si mesmos? Quanto dependem de nós? Quanto estão em nós? Enfim, qual é exatamente o seu estatuto, se é que se deva de imediato reuni-los todos num único grupo, na contramão da pluralidade existencial que anunciam? Que efeitos têm sobre nossa existência e imaginação? De acordo com Bruno Latour: Alguns deles têm o duplo traço de nos transformar em outra coisa, mas também de por sua vez se transformar em outra coisa. Que faríamos nós sem eles? Seríamos sempre, eternamente, os mesmos. Eles traçam, através do multiverso – para falar como James – caminhos de alteração ao mesmo tempo terroríficos – pois nos transformam – hesitantes – pois podemos enganá-los – e inventivos – pois podemos deixar-nos transformar por eles.3

No livro Les Différents Modes d’existence, Étienne Souriau deu forma, no final dos anos 1930 e numa linguagem por vezes empolada, a uma metafísica que visava dar acolhida justamente a esses seres dos quais não se pode dizer com precisão se existem ou não segundo os parâmetros e gabaritos de que dispomos.4 Pois, em princípio, nenhum ser tem substância em si, e, para subsistir, ele deve ser instaurado. Assim, antes mesmo de tentar um inventário dos seres segundo seus diferentes modos de existência, Souriau postula uma certa arte de existir, de instaurar a existência. Para que um ser, coisa, pessoa, obra, conquiste existência, não apenas exista, é preciso que ele seja instaurado. A instauração não é um ato solene, cerimonial, institucional, como quer a linguagem comum, mas um processo que eleva o existente a um patamar de realidade e esplendor próprios – “patuidade”, diziam os medievais. Instaurar significa menos criar pela primeira vez do que estabelecer “espiritualmente” uma coisa, garantir-lhe uma “realidade” em seu gênero próprio. Ora, a instauração não se origina de uma fonte única – a vontade, a consciência, o espírito, o corpo, o inconsciente etc. – e hoje diríamos que há múltiplos “dispositivos” de instauração. Assim, cada filosofia, mas também cada religião, ciência, arte, instaura seus seres e, com isso, inaugura um mundo singular, nunca o mesmo: pluralismo ontológico e existencial – multiverso! As


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.