REVISTA O GLOBO: TERRA DE NINGUÉM

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O GLOBO •ANO 5 •Nº 226 •23 DE NOVEMBRO DE 2008

Revlsta

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Terra de ninguém A rotina de quem vive nas ruínas de um prédio abandonado, uma realidade cada vez mais comum no Rio

Nete de Souza Frazão na sua casa delimitada por tapumes no edifício que abrigou a Bloch Editores, no Estácio


CAPA O 30 • REVISTA O GLOBO • 23 DE NOVEMBRO DE 2008 •

O dia-a-dia num dos muitos prédios desocupados do Rio que foram invadidos por sem-teto

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Cristina Mariano da Silva, com a filha Tawany: uma das quase cem famílias que ocupam o edifício 511 da Rua Frei Caneca, que já foi sede da Bloch Editores

Por Fátima Sá Fotos de André Coelho

Vivendo no

abandono


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preciso ter estômago forte para cruzar o pátio e subir os seis andares do número 511 da Rua Frei Caneca, no Estácio. Faz alguns meses, o esgoto entupiu e escorre até o corredor da entrada. O lixo acumula-se numa pilha sem fim, ao lado da escada. E a única fonte de água é uma bica no térreo, perto de um chiqueiro ocupado por dois porcos. Eles — os porcos — devem sair até o fim do ano, o dono já prometeu. O destino dos outros moradores é incerto. Atualmente, quase cem famílias vivem ali, entre o Presídio Hélio Gomes e a Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro, numa área em ruínas, que já abrigou a sede da Bloch Editores e há 11 anos foi dada como pagamento de dívidas para o Banco do Brasil. O lugar estava

É

No Rio há cinco meses, o pernambucano Alexandro da Silva enche e carrega galões de água para outros moradores, que pagam até R$ 10 pelo serviço

fechado, sem uso algum, até que um grupo de sem-teto forçou a entrada. Depois, chegou outro. E mais outro. E mais outro. Até que não houvesse espaço. Cristina Mariano da Silva, 30 anos de idade e seis de ocupação, foi para lá assim. Morava com a mãe no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, quando saiu de casa para viver com um companheiro. Sem condições de pagar aluguel, eles conseguiram uma casa para morar “de favor” no Estácio. Meses depois, a dona da casa pediu o imóvel de volta e o casal teve que sair. Cristina já estava grávida do primeiro filho. E foi aí que ouviu falar da antiga “Manchete”. — Meu marido conhecia uma pessoa que morava aqui — ela diz. Quando Cristina pisou pela primeira vez no prédio, não havia porcos, vazamento de esgoto, lixo ou barracos. Apenas uma pequena construção na entrada, o pátio e o edifício de seis andares no fundo do terreno, diante do Morro de São Carlos. Cristina tirou o entulho do caminho e se instalou no quarto piso. Teto ela já tinha. Por R$ 10 comprou as paredes — um conjunto de tapumes de obra. Por mais R$ 30 conseguiu que lhe

Com a ajuda

construíssem um portão. Puxou a luz, ganhou uma geladeira na igreja, descolou um fogão velho, catou um sofá no lixo, comprou uma TV de segunda mão e colocou cadeado na porta. Hoje, um lugar no prédio chega a custar R$ 300. Mas freqüentemente dá-se abrigo de graça a um amigo ou parente. Como Alexandro Patrício da Silva, de 22 anos, garçom desempregado há quase três anos, pernambucano de Abreu Lima, cidadezinha a 20 quilômetros de Recife. Alexandro veio para o Rio há cinco meses, atrás do primo que vive no imóvel da Frei Caneca. Depois de três dias andando, outros três pegando carona em caminhões, mais algumas horas batendo perna e duas viagens de van, ele chegou ao prédio. Foi parar no quarto andar, ao lado do primo e de Cristina. Levou um susto quando viu o estado do imóvel, mas jura que não se arrepende: — Pernambuco era bom de morar, mas muito difícil pra ganhar dinheiro. Aqui é melhor. No momento, eu estou garimpando. Trabalho na reciclagem: papel, papelão, alumínio, cobre. O bom do Rio de Janeiro é que em cada esquina tem alguma coisa. Aí dá pra ir levando. O

de tapumes de obras, quase cem famílias ergueram lares no prédio abandonado: hoje, um espaço lá chega a custar R$ 300

problema é que o preço do material baixou muito. O ferro estava a R$ 35 e foi pra R$ 10, o quilo. O papelão tava R$ 17 e foi pra R$ 14. O cobre, que tava R$ 10,60, caiu pra R$ 8. Numa semana ganhei R$ 150. Mas não sobra nada. Dependendo de quanto fatura no dia, Alexandro compra comida e álcool pra cozinhar. Às vezes um vizinho do prédio divide o que tem. E, quando sobra refeição no presídio, ele vai buscar. Como toda a água do prédio vem do pátio, ele também presta um serviço essencial lá dentro: enche e carrega galões de água para outros moradores. Como Cristina, que estoca os galões para usar na cozinha, no banho dos filhos, na arrumação da casa. E Darcy Nunes dos Santos, de 43 anos, a tia Russa, cozinheira famosa no prédio. O problema, para ele, não é carregar galões de até 20 litros escada acima por três, quatro, cinco andares. Há quem pague até R$ 10 pelo serviço. O problema é esperar o galão encher. — Quando a água está fraca, levo até uma hora pra completar cinco litros — diz Alexandro. — E, depois, tem a fila. Todo mundo usa essa bica. Variados detalhes sobre bicas, aco-

modações, lixo e esgoto, o que acontece no prédio da Frei Caneca repetese em muitos cantos da cidade. Somente na região do Estácio, Rio Comprido, Cidade Nova e Catumbi estimase que mais de 40 construções abandonadas tenham sido invadidas nos últimos anos. No Centro, o Sindicato da Construção Civil contou 60 imóveis vazios já ocupados por sem-teto. Na Zona Norte, um levantamento da Secretaria municipal de Urbanismo listou 17 fábricas desativadas e galpões ociosos na antiga zona industrial que vai de Benfica a Acari. — O Rio foi perdendo vocações ao longo de décadas — lembra o economista André Urani, conselheiro do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. — Primeiro a cidade perdeu a capital, depois as indústrias, as agências de publicidade, o setor financeiro. O ambiente de negócios deixou de ser atraente, houve uma sucessão de governos ruins, a violência aumentou. Muita gente preferiu levar suas empresas para outros cantos do Brasil. Ou quebrou. E isso foi deixando um rastro de abandono.a


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Um dia, Nete esbarrou com uma conhecida que falou sobre o prédio. — Catei madeira na rua e fiz meu barraco aqui dentro — ela conta. — Isso já tem dez anos, e só saio se ganhar casa. Não quero voltar pra rua, mas também não quero ir pra abrigo. Lá tem hora de entrar e sair, você não pode ir garimpar. Aqui, a gente tem as nossas coisas, faz a nossa comida, vai vivendo. A pensionista Maria Amélia Arruda Francisco, de 65 anos, vizinha de porta, já pensa em se render ao abrigo. Arrumou uma ferida na perna, caminha com dificuldade e não consegue se curar. Maria Amélia é viúva e foi parar ali com o filho porque não podia mais pagar aluguel. Comprou seu primeiro espaço por R$ 180, no quarto andar. Depois, mudou-se para o terceiro piso e pagou R$ 100. Agora, mora no segundo, num

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Maria Amélia Arruda Francisco no terraço, onde os moradores lavam roupas: ela se mudou para o prédio porque não conseguia mais pagar aluguel

“quarto-e-sala” que custou R$ 240. Entre as quase cem famílias que vivem ali, muitas fugiram da rua, como Nete, ou do aluguel, como Maria Amélia. Mas não é raro encontrar pessoas que têm casa própria em algum lugar distante. Fazem do prédio um dormitório durante a semana, quando correm atrás de trabalho. E, no fim de semana, voltam pra casa. Também há viciados que perderam tudo e gente que morava em alguma comunidade, mas fugiu, acuada pelo tráfico ou pelas milícias. E há várias outras histórias, claro. Darcy Nunes dos Santos, a tia Russa, foi parar ali, três anos atrás, por causa de um amor. Ela morava no Morro do Fogueteiro, no Catumbi, quando o homem por quem era apaixonada na adolescência reapareceu. Foi para o prédio atrás dele. O romance não deu certo, ela mudou de andar, mas continua lá. Aos 43 anos, com os filhos criados, Darcy faz faxina, mas gostaria mesmo de ganhar dinheiro cozinhando. Na dinâmica do prédio, ganha-se dinheiro carregando galão de água, lavando roupa para outros moradores, cuidando de criança, erguendo barraco, vendendo barraco. José Nivaldo, de 49 anos, faz mais: vende biscoito, refrigerante, fósforo e outras miudezas numa pequena barraca no pátio do prédio. Grande, como os

vizinhos o chamam, também encomenda botijões de gás e garrafões de água. — Quando a comunidade tem uma condição mais ou menos, dá pra fazer obra, cuidar do lugar. Aqui vive todo mundo na conta — ele diz. Dos inquilinos atuais, poucos conheceram o prédio em seu tempo de glória. Sede da Bloch Editores, foi ali que nasceu a revista “Manchete”, em 1952. Depois, quando a empresa se mudou para a Rua do Russel, na Glória, em 1968, o prédio chegou a abrigar uma central de produções da TV Manchete, equipada com ateliês de costura, adereços, carpintaria e moda. Pelos corredores da Frei Caneca, que ainda estavam cobertos por carpete quando os primeiros moradores chegaram, circularam modelos, atores e visitantes ilustres, como o trompetista Dizzi Gillespie, que até arriscou uns passos de samba por ali. Passados 50 anos, o destino do prédio é uma incógnita. E enquanto o Banco do Brasil estuda o que fazer, Cristina — cansada de esperar — continua juntando dinheiro pra comprar a cerveja que venderá no réveillon.l O GLOBO NA INTERNET

VÍDEO

Conheça o prédio por dentro

oglobo.com.br/rio


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Foram-se os negócios e os moradores, ficaram os esqueletos, vieram os invasores. Quantos ninguém sabe. Faltam dados sobre o assunto, e o que existe são apenas estudos isolados. — Nossa cegueira é tanta que a gente só vê as pessoas que dormem nas calçadas. Não conhecemos essa população que vive nos prédios abandonados — reconhece o secretário municipal de Assistência Social, Marcelo Garcia. — O problema é que não existe uma política de habitação popular no Brasil. Estudo da Fundação João Pinheiro, em parceria com o Ministério das Cidades, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a ONU, estima que exista um déficit de 7,9 milhões de moradias hoje no Brasil. Só na região metropolitana do

a

Darcy Nunes dos Santos, a tia Russa, é cozinheira famosa no prédio: ela costuma dividir a comida que sobra entre seus vizinhos de andar

Rio faltam 450 mil habitações. E 90% desse déficit concentra-se na faixa que ganha até cinco salários. Ainda assim, é preciso estudar a situação com cuidado, para não criar um mercado de invasões. E analisar caso a caso. Quando Cristina se mudou para o prédio da Frei Caneca, o edifício tinha uma associação de moradores e era mais organizado. Mas o último presidente morreu e ninguém quis assumir o cargo. Hoje, é cada um por si. Cristina ouviu falar que prédios públicos estão virando habitações de interesse social. Sonha em viver num lugar como a ocupação Chiquinha Gonzaga, no antigo prédio do Incra, atrás da Central do Brasil. Ocupado desde 2004 por um grupo de sem-teto, o imóvel está em processo de regularização de posse e vai receber recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social para obras. Hoje, 66 famílias moram ali, com luz, banheiro, cozinha, coleta de lixo, água e esgoto. O básico. O Instituto de Terras do Estado do Rio, junto com o Ministério das Cidades, vem negociando a transformação de 19 imóveis abandonados em moradias populares. A maioria pertence ao Governo do

O pátio, já delimitado por

Estado ou à União. Há prédios pequenos, ocupados por nove famílias apenas, e terrenos amplos, onde se instalaram 1.500 famílias. Alguns estão em fase inicial de negociação, outros já se encontram na fila para obras de adaptação. O edifício 511 da Frei Caneca nunca recebeu uma pá de cimento. As janelas estão estilhaçadas e o gesso que rebaixava o teto foi arrancado há tempos para evitar que ratos circulassem por ali. A polícia às vezes entra para observar o movimento no Morro de São Carlos. A Comlurb aparece de vez em quando para aplicar remédio contra ratos e remover parte do lixo — nunca zera a pilha. Assistentes sociais e agentes de saúde também surgem de tempos em tempos. Até a semana passada, porém, o que os moradores mais queriam era receber a visita de algum técnico da Cedae, para ajudar com o esgoto entupido. Há quatro anos, um morador do prédio anunciou que algumas famílias ganhariam, do Governo do Estado, casas no conjunto Nova Sepetiba II. Cristina se inscreveu e esperou sua vez. O filho mais velho, Igor, que nasceu de 7 meses, com 1,750 quilo, já estava crescidinho.

tapumes, vive cheio de carrinhos: a maioria dos moradores ganha a vida catando lixo reciclável pelas ruas

Quinze famílias chegaram a ser transferidas para Sepetiba. Cristina ficou. Mas muitos dos que foram acabaram voltando. Não gostaram ou não conseguiram trabalho por lá. — É preciso morar perto das oportunidades de renda. E há um segmento muito grande da população carioca que vive da viração, fazendo biscates, trabalhando como ambulante, catando material reciclável. Isso exige mobilidade. Mas, como não há um planejamento urbano que garanta transporte público de qualidade a preço baixo, as pessoas vão ficando perto de onde estão essas oportunidades — pondera o sociólogo Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, coordenador do Observatório das Metrópoles. — Sem falar que as áreas mais centrais são dotadas de mais equipamentos de saúde, educação, assistência social. Igor, o filho mais velho de Cristina, estuda numa escola municipal no Sambódromo. Tawany, a mais nova, de quase 2 anos, deve ir para a creche no ano que vem. Os dois estão com as vacinas em dia, vão sempre ao posto de saúde e, aos domingos, passam o dia brincando

com outras crianças e recreadores na vizinha igreja batista. Sabe-se lá como, nenhum dos dois teve dengue até hoje. Com água empoçada em toda parte, o prédio em que eles vivem é um criadouro de Aedes, e a cada verão contamse às dezenas os doentes por ali. Desde que o marido foi embora, há cinco meses, Cristina vive sozinha com Igor e Tawany. Vira-se vendendo cerveja e refrigerante na rua, faz faxinas quando pode e conta com uma rede de ajuda que inclui a mãe, a igreja ao lado, a médica do posto de saúde. — Na virada do ano vou pra Praia do Flamengo vender bebida. Dá pra tirar um dinheiro bom. Ano passado, arrumei R$ 450 — ela diz. — E estou tirando documento pra ver se ganho Bolsa Família. Vários moradores do prédio ganham. Com cinco filhos entre 8 meses e 16 anos, Nete de Souza Frazão, 39 anos, vive de Bolsa Família, garimpo de lixo, doações de igrejas e do trabalho do marido, que cata lixo e às vezes consegue um bico para remover entulho. A família é uma das mais antigas ali. Antes, Nete morava na rua.a


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