REVISTA O GLOBO: HISTÓRIAS DE PESCADOR

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Revlsta O GLOBO •ANO 4 •Nº 185 •10 DE FEVEREIRO DE 2008

Histórias de pescador

Como é o dia-a-dia nas colônias do Rio, o terceiro maior produtor de peixes e frutos do mar do país


CAPA O 24 • REVISTA O GLOBO • 10 DE FEVEREIRO DE 2008 •

Um passeio pelas colônias de pescadores do Rio, onde 60 mil pessoas ainda vivem dessa prática artesanal, fornecendo 70 mil toneladas por ano

peixe Por Fellipe Awi

Fotos de André Coelho

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nosso de cada dia

Pedra de Guaratiba A comunidade de pescadores, com

em ali em frente à Praça do Porre Certo, garrafas de cachaça repousam vazias de um lado e, do outro, homens de pele queimada aproveitam a única sombra desenhada na praia. Ainda não são oito horas da manhã, mas nem eles nem o mar estão de ressaca. Eles estão acabando de remendar as redes para começar o dia que só terminará na manhã seguinte. Ou de madrugada, ou dali a duas noites, ou, quem sabe, cinco horas depois. Talvez eles nem voltem. Vai depender do mar.

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Quem for conversar com esses homens verá que essa é apenas uma das incertezas da sua rotina. Mas como é isso mesmo, rotina, eles contam seus problemas rindo. As tempestades, as noites de redes vazias, as mulheres que os aguardam apreensivas em terra. Só quando falam da poluição da água começam a se diferenciar dos habitantes dos romances de Jorge Amado. No século XXI, vivem numa das últimas comunidades de pescadores do Rio. Tem ruas de paralelepípedo, casas sobre a areia e uma capelinha que dá

nome à praia de onde os homens saem para o mar. O cenário simplório, com jeito de cidadezinha do litoral nordestino, não dá muito a noção da importância dos chamados pescadores artesanais no fornecimento de pescados do Estado do Rio. — Aqui todo mundo é filho e pai de pescador, nascido e criado num barco de pesca. E quase todo mundo é parente — diz seu Antônio Sérgio Oliveira, de 56 anos, um dos pescadores da Praia da Capelinha, em Pedra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio.a

ruas de paralelepípedos e casas sobre a areia, lembra uma cidadezinha do litoral nordestino, embora a lama já tenha tomado conta do mar nas áreas rasas. À esquerda, pescadores se preparam para partir, ao lado da esposa de um deles. À direita, Alcides Lopes, de 82 anos, um dos profissionais mais antigos da colônia. Também à direita, no meio, a venda diária de pescados fresquinhos


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Sepetiba Numa área isolada da Zona Oeste onde há poucas opções de trabalho, o conjunto habitacional vem recebendo um inchaço de novos pescadores, a maioria sem carteira de profissional ou barco registrado. Acima, o presidente da associação, Adilson Alves, na porta da sede, onde também funciona uma filial dos Alcoólicos Anônimos a As gargalhadas em volta parecem irritá-lo, mas logo ele está rindo também. O que o aborrece, de verdade, são as dificuldades da vida no mar. Seus três filhos também são pescadores, mas Sílvio pede a Deus que os netos pulem fora do barco. O pior, para ele, é o lixo. Nem tudo o que cai em suas redes é peixe: às vezes é pneu, plástico, gigoga. Já apareceu até defunto. Logo o coro engrossa e a impressão é de que os movimentos ambientalistas encontrariam ali militantes aguerridos. Quase sempre, o grande vilão é a Petrobras, que, além de encher a baía com grandes embarcações, é considerada por eles a grande poluidora do mar carioca. Ninguém esquece o derramamento de óleo cru na Baía de Guanabara há oito anos, cujos efeitos são sentidos até hoje. Enéas Serrado, de 52 anos, reclama que há dez anos foi atropelado por uma lancha da empresa. — Perdi meu barco, quase morri, entrei na Justiça até

agora estou no prejuízo. Não vale mais a pena ser pescador. Por causa da poluição, estão caindo a qualidade e a quantidade do pescado — diz ele, que saiu de casa às 17h do dia anterior e só voltou com 400 gramas de camarão e cinco quilos de pescadinha. No mar, a convivência com embarcações maiores também causa prejuízos. Na comunidade pesqueira de Jurujuba, em Niterói, as marolas provocadas pelo aerobarco que há três anos sai de Charitas para o Rio atrapalham o cultivo do mexilhão e fazem os barcos menores estacionados se baterem. Outros reclamam do não-pagamento do seguro do defeso por parte do governo federal. Até 24 de fevereiro, para proteger a espécie, está proibida a pesca de sardinha, por ser este o principal período da sua desova. — A sardinha é o peixe mais importante para os pescadores do Rio. Passamos a noite no mar e só voltamos com manjubas e savelhas.

Com isso, não dá para sustentar ninguém — reclama Adilson Costa, de 59 anos. Enquanto o mar não está para peixe, na terra Adilson ainda encontra motivos para sorrir. Morador de Jurujuba, nascido em família de pescadores, ele se orgulha da tranqüilidade que impera em sua comunidade. Para ser perfeito, a água só poderia ter a transparência da época de sua infância. Mais novo, o pescador Roberto Fontes, de 32 anos, vai ao mar mesmo nos dias de folga. Pega a mulher e os filhos, põe um lanche no seu barco e vai curtir de dentro d’água a beleza do Pão de Açúcar ou da Ponte Rio-Niterói: — A vida em comunidade aqui é muito boa, somos como uma grande família. Em Sepetiba, onde uma estátua de Iemanjá saúda os homens que saem para trabalhar, a família de pescadores recebeu um inchaço desproporcional nos últimos anos. Por falta de opção de

trabalho numa área isolada da Zona Oeste do Rio, moradores do Conjunto Habitacional Nova Sepetiba, criado pelo governo de Anthony Garotinho, tornaram-se pescadores da noite para o dia. A grande maioria não tem carteira profissional ou barco registrado. A concorrência diminuiu a pesca per capita e se juntou a outros problemas comuns a outras localidades, como poluição e assoreamento. Os botequins e quiosques cheios na orla, ainda de manhã, revelam outro mal característico de comunidades de pescadores, vide a primeira frase deste texto: o alcoolismo. Em Sepetiba, para tornar as coisas mais práticas, o Alcoólicos Anônimos funciona dentro da sede da colônia de pescadores. — Sabe como é, com o frio que faz de madrugada no mar o pescador se aquece com uma garrafa de pinga e, quando chega em terra, continua a beber — diz o presidente da colônia, Adilson Alves. Naquele dia, havia rumores de que uma tempestade chegaria à noite. Em frente ao quiosque do seu Erasmo, ponto de encontro dos pescadores de Sepetiba, a notícia não assustou Mauro Ferreira, de 30 anos. Ele continuou preparando o gelo para botar em seu barco, que zarparia dali a pouco. Pescador desde os 10 anos, não seria a primeira nem a última tempestade a encontrá-lo no mar: — Quem escolhe essa vida tem que deixar o porto preparado para tudo.l


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ratiba. Na manhã em que encontrou a equipe da Revista O GLOBO, no cais principal do bairro, ele estava prestes a zarpar mas não sabia o dia de sua volta à terra firme. — A gente às vezes passa um sufoco no mar, com tempestade e andando no meio de navio grande. Mas eu gosto dessa vida. Só tem um problema: como passam a maior parte dos dias longe, 70% dos pescadores daqui são cornos — brinca Marco Antônio, sem especificar a fonte de sua estatística tão precisa. Não é à toa que o humor e a verve desenvolvidos fazem parte do estereótipo do homem do mar. A conversa esticada, dizem eles, é a melhor maneira de fazer o tempo passar mais rápido enquanto o peixe não cai na rede. Por isso, uma visita à comunidade pesqueira do Gradim, em São Gonçalo, é mais do que uma oportunidade de comprar pescado fresco. Ponto de desembarque de boa parte dos barcos que trabalham na Baía

Gradim A comunidade pesqueira de São Gonçalo, uma das mais comerciais do estado, recebe seis toneladas de pescados toda manhã. À direita, o intelectualizado José Mesquita, um dos líderes da associação, que pesa o material trazido pelos colegas e vive citando Hemingway, Victor Hugo, Lord Byron, Adam Smith,

de Guanabara, o lugar recebe todas as manhãs seis toneladas de pescados e personagens de todas as espécies. Às seis da manhã, os pescadores chegam do mar molhados, vestidos com os gorros que os ajudaram a suportar o frio e com a aparência exausta. Ali mesmo trocam as experiências vividas durante a noite, as vitórias e as derrotas para a natureza. — A pesca não tem nada de romântica, como quis mostrar Hemingway no seu livro “O velho e o mar”. O que tem de romântico em passar a noite acordado, com chuva, vento e trabalho duro, às vezes só encontrando lixo pela frente? — pergunta José Mesquita, um cearense com cara de japonês que se tornou um dos líderes da associação dos pescadores do Gradim. A declaração escrita perde o que ela tem de bem-humorada, mas diz muito sobre José Mesquita. Os anos de pesca que começaram numa jangada cearense, ainda com

o pai, lhe deram uma dolorida hérnia de disco. Por isso, este pescador de 45 anos desempenha uma função cada vez mais burocrática. Em frente a uma balança enferrujada, ele pesa o pescado trazido por seus colegas. Cabe a ele conferir a taxa da associação, que ainda é paga em peixes, segundo Mesquita, como se faz no Brasil desde os tempos das capitanias hereditárias. O resto da pesca é vendido em sistema de leilão. Os compradores chegam lá e quem der o melhor lance leva a caixa. São, em geral, atravessadores que revendem o produto até pelo dobro do preço. A constatação faz o pescador intelectual completar o raciocínio que começou com a crítica a Hemingway: — Quem estava certo era aquele francês, o Victor Hugo, que escreveu “Os trabalhadores do mar”. Foi ele quem disse que existem três tipos de homens: os vivos, os mortos e os que vão para o mar. Em meia hora de conversa,

Mesquita cita ainda o poeta inglês Lord Byron, o economista escocês Adam Smith e, é claro, o brasileiríssimo Jorge Amado. Mas é com uma citação do ex-chanceler alemão Otto Von Bismarck que ele apresenta o colega Sílvio Soares: “Nunca se mente tanto quanto durante uma caçada, uma pescaria e uma campanha política.” Aos 70 anos, Sílvio sempre é convocado quando alguém quer ouvir as famosas histórias de pescadores, em geral quase um sinônimo de mentira. Não que ele seja um grande mentiroso, alertam, mas é quem acumulou mais tempo ouvindo os relatos dos outros. O velho pescador faz charme, diz que não gosta de contar histórias porque sempre pensam que é mentira, mas no fim deixa escapar duas: — Eu já peguei uma tainha de 70 quilos. Pior foi meu irmão, que viu um cavalomarinho com a cabeça do tamanho da cabeça de um cavalo da terra.a

Otto Von Bismarck e Jorge Amado

a É na frente da casa de seu Antônio que os pescadores estão reunidos naquela manhã. Sua esposa, Sônia, é uma das poucas testemunhas da cena. Há 23 anos ela é a figura clássica da mulher que espera seu homem voltar do mar. Fica preocupada sempre que bate o vento sudoeste. Certa vez, quando o marido já estava dois dias atrasado, chamou o filho pequeno para rezar ao seu lado. Sempre ouviu falar que Deus ouve as preces das crianças mais rápido. Foi o menino terminar de rezar para o pai ancorar o pequeno barco na frente de casa. Se o mar ajudar, este simpático casal tem vida longa pela frente. — Aqui as pessoas duram quase 100 anos — garante dona Sônia. Ela diz isso porque a rotina numa comunidade de pescadores guarda hábitos saudáveis que, pouco a pouco, vão

se tornando raros entre os vizinhos urbanóides. A noite de porta aberta, sem medo de assaltantes, a ausência da pressa no caminhar dos moradores, o silêncio natural de um lugar em que o barco — e não o carro — é o principal meio de transporte. Na casa de dona Sônia, come-se peixe todo santo dia, no almoço e no jantar. O colesterol do casal não passa de 80, ela garante. Mas, infelizmente, eles não vivem numa ilha. Os pescadores mais antigos se lembram da época em que era possível pegar camarão com as mãos na beira da Baía de Sepetiba. Hoje, graças ao assoreamento dos canais que desembocam ali, a lama toma conta das áreas rasas, fazendo com que os pescadores tenham de caminhar pelo lodo poluído antes de chegar às suas embarcações. Por isso, costuma-se dizer em Pedra de Guaratiba que o pescador é

reconhecido pelas unhas e pelos pés escuros. — Isso aqui não era para dar mais nada, mas a gente ainda acha peixe bom — afirma Alcides Lopes, de 82 anos, um dos pescadores mais antigos de Pedra de Guaratiba. A resistência da natureza permite a sobrevivência de trabalhadores do mar como os de Pedra de Guaratiba, que, ao contrário dos grandes barcos da pesca industrial, não podem se afastar muito da costa. Segundo a Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (Fiperj), 60 mil pessoas ainda vivem da pesca artesanal no Estado do Rio. São 6.078 embarcações registradas, 1.160 só na capital. Embora não existam dados oficiais, esses pescadores têm participação fundamental nas quase 70 mil toneladas de pescados que o estado fornece por ano, algo em torno de 13% da produção na-

cional. Com 635km de costa, é o terceiro maior produtor do Brasil, atrás apenas do Pará e de Santa Catarina. — Muitas vezes a população não tem idéia da importância desses pequenos pescadores para a nossa economia. O Rio consome peixes como um país de primeiro mundo, algo em torno de 20 quilos por habitante/ano, enquanto a média mundial é de 15,6 quilos — afirma o presidente da Fiperj, Benito Igreja Jr. Em três dias de pesca, Marco Antônio da Silva, de 31 anos, contribui, em média, com 90 quilos de camarão para as estatísticas do Rio. Numa semana boa, consegue levar para casa R$ 350, já descontados os gastos com gelo e óleo diesel. Foi isso o que fez largar seu emprego de frentista para tardiamente, aos 23 anos, seguir a profissão da maioria de seus amigos de infância, em Pedra de Gua-

Jurujuba A colônia de Niterói sofre com as marolas provocadas pelo aerobarco que há três anos sai de Charitas para o Rio e reclama da proibição temporária da pesca de sardinha, mas, ainda assim, movimento no mar e na terra é o que não falta por lá. À esquerda, o pescador Roberto Fontes: “A vida em comunidade aqui é muito boa, somos como uma grande família”


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