Vozes do nordeste

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ara esta edição, a Vozes do Nordeste pretende passear pelas nossas tradições. Buscamos causos de pessoas que poderiam, certamente, contagiar o mais desmotivado a retroceder no tempo e trazer sua infância de volta. Maracatus ritmando a valorização da nossa cultura, férias na casa dos avós e o cheiro de comida no fogão a lenha, as anedotas de pescadores e seus temidos tubarões, Canindé e a história que é contada por quem ainda tem vivências e conhecimento da fé e do povo da região, Luiz Gonzaga com suas músicas que contam a vida da gente, a moça que viaja Ceará afora e fotografa as belezas que encontra pelo meio do caminho, o cordel poetizando as notícias do sertão. É muita história para contar de tanta gente para soltar a voz! Esperamos que viaje junto com a gente, no tempo, nos lugares e nas mentes das pessoas. Navegue também pelas artes que contam momentos importantes em letras musicais. Emprestamos a poesia de alguns mestres para compor a cena. Das quatro artes presentes na revista, três possuem árvores como temática e elas ganham diferentes formas. Na primeira, percebe-se o colorido, a composição de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira dão asas a colagem. O trecho escolhido remete a esperança do povo nordestino na música que para muitos é o hino dessa região. A segunda arte remete a fé e persistência

de ser nordestino, enfrentar as situações e só abandonar o barco em último caso. Assim um trecho da composição de Venâncio, Corumba e J.Guimarâes é representada em cores mais pálidas, porém marcantes para designar a fé que não se abala perante os maus momentos da vida e que espera boas notícias para poder permanecer. A terceira arte fala de saudade. Como disse Halder Gomes, um dos nossos entrevistados, essa é a palavra que define o Nordeste. Quem vai, quer voltar e quem ama de verdade valoriza cada pedaço de chão dessa vastidão de Brasil. No meu pé de Serra é mais uma composição do mestre Lua (Luiz Gonzaga) em parceria com Humberto Teixeira, nesse momento temos um colorido mais visível, pois a Vozes do Nordeste acredita que saudade só é ruim quando não temos boas lembranças para carregar na mala. As fotografias utilizadas nas matérias aproveitam a luz natural e para valorizálas, optamos por nenhum tipo de edição já que aqui queremos mostrar a verdadeira cara do Nordeste. Então, se você tiver que voar mais longe e quiser manter o Nordeste por perto, leva a gente na mala e, se não pretende tirar os pés daqui nos leve também, adoramos sua companhia. Uma boa leitura e viva nossas lembranças, pois é delas que somos feitos.

Expediente:

Esta revista é um trabalho prático de conclusão do curso de Jornalismo idealizada pela aluna Ana de Sousa para a Devry-Brasil Fanor. A orientação é do prof. esp. Marildo Montenegro. Reportagens: Ana de Sousa Projeto gráfico: Ana de Sousa Fotos: Ana de Sousa, bancos de imagens e arquivos pessoais. Ilustrações/colagens/ desenhos: Ana de Sousa e bancos de imagens.

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O céu de Suely e outros jovens S

uely se apaixonou pelo rapaz bonito com quem andava de mãos dadas, mesmas mãos que empurravam o balanço para que ela pudesse sentir o vento no rosto. Acabou fugindo pras bandas de São Paulo, deixou Iguatu. Quando voltou, a cidade estava do mesmo jeito. Mas Suely não. Retornou com umas malas e um bebê, seu filho. O rapaz de sorriso bonito ficou na cidade grande, ninguém sabe ao certo se ele volta. Mas ela espera. Uma moça que parece fugida da música do Capital Inicial, um personagem tão real que mexe com o imaginário de qualquer um. A moça fugida voltou para Iguatu, mas não pensa em ficar. Precisa sair para conhecer o mundo. Nas festas, Suely começou a beber e procurar novas amizades. Ela ria, rodopiava e dançava enquanto pensava numa maneira de sair dali. Tinha vontade e necessidade de mundo e a vida não cabia naquele pedaço de chão. Assim como ela, uma jovem urbana, cheia de sonhos e vontades o novo cenário cearense vê surgindo uma revoada de jovens, que estudam, trabalham, e, além

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disso, frequentam shoppings , cinemas, teatros, têm cada vez mais necessidade de mundo. Um jovem sonhador saiu de São Gonçalo do Amarante para firmar moradia na capital cearense. Urbano como Suely. As fronteiras da sua realidade e as dela nadam no mesmo rio Nordeste afora. Teve que sair de casa, não fugiu com namorada, nem tem filho, mas despontou do interior e foi jogado na zona urbana que ele tanto temia. Seu nome é Wedson Mesquita, aluno de jornalismo da UFC, tem 22 anos e é amante da cultura pop. Tão parecidos e tão diferentes, ele não namoraria Suely, já ouviu muito falarem nela. Não gostou do que ouviu. Já a nossa segunda personagem não conhece Suely, elas têm personalidades tão diferentes que estariam em mundos opostos se um dia, por acaso, se encontrassem. Carol, como gosta de ser chamada, é aluna de Audiovisual na Unifor, certamente se tivesse o poder de recriar Suely lhe colocaria como afago dois dedos de juízo. Mas as diferenças entre Carol e Suely se calam e esperam o

tempo passar quando se sabe que para chegar à faculdade, a nossa mocinha real enfrenta o trânsito de uma cidade que se desenvolve a cada dia mais. Pela janela pode se observar o mundo que não tem medidas e só tende a crescer. Sâmila Braga levaria Suely para um bar, falariam da vida e dos romances que ela permite, dos sonhos e jornadas. Suely lhe diria quais são os melhores bares de São Paulo. Sâmila é jornalista, trabalha numa agência que montou com uma amiga. Considerase uma pessoa urbana tanto por morar desde criança em cidades grandes, como por optar por programações culturais dessa natureza. A grandeza de um personagem criado para ficção e a junção de personagens urbanos reais daria um filme de onze horas ao qual todos assistiriam atentamente para saber qual seria o próximo passo dos mocinhos cosmopolitas. O roteiro seria agitado, com todos os prazeres e desgostos de se morar em uma cidade recheada de informações. Para Sâmila a cidade oferece uma programação cultural noturna bem agitada. O X da questão gira em torno de quem tem acesso a essa programação, já que na maioria das vezes, as atrações/ eventos/espetáculos são caros e/ ou em locais de difícil acesso para quem não tem carro, por exemplo. Transporte público realmente é um problema. Wedson para cursar uma faculdade optou, primeiramente por ir e vir. A quilometragem se esvaía, assim como o verde, o cheiro de terra e o ar puro que logo se impregnava de fumaça, poeira da rua


e fuligem dos carros. “Vejo fortaleza se transformando em uma metrópole, através de sua arquitetura, pois o planejamento da cidade está cada vez mais favorecendo o trânsito de veículos”, afirma o estudante. Ser um jovem urbano-rural não é nada fácil. Carol frequenta poucas vezes o interior e quando vai procura praias, detesta ficar sem sinal de celular. Se ela soubesse que Suely ia para o orelhão esperar o momento certo de ligar para seu namorado de São Paulo, não iria acreditar. Lá pelas tantas, Carol afirma: “Como toda cidade, Fortaleza vem sofrendo bastante influência de outras capitais, bem como de outras culturas. Gosto bastante da minha cultura

em sua essência; é perceptível a riqueza que possui, porém há particularidades que não são do meu perfil, como algumas festas que acontecem, formas de se vestir, entre outras coisas. Por ser uma cidade com tantos habitantes, é inevitável que muita coisa nova chegue e seja adotada pela população. Eu, particularmente, sou mais reservada e não “agarro” quaisquer modas.” Suely está brava agora, se sente ofendida. Para mais, Sâmila assegura: “Se distinguir com ambientes de diferentes culturas, além das ressignificações e misturas de elementos culturais. Assim, vejo Fortaleza bem híbrida, embora ainda conservadora em alguns aspectos.” Fim da discussão. Todos trocam contatos de redes sociais porque para Wedson a conectividade é importante e ajuda a conhecer pessoas, e ainda há uma chance de tirar a má impressão que ele tem de Suely. E, quem sabe, numa rede social qualquer esses jovens urbanos não combinem de tomar um café ou assistir a uma novela em que os nordestinos tenham o mesmo sotaque mesmo vindos de lugares diferentes e, juntos riam da indelicadeza do autor.

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Laranja-emoção-sincera: O verão de 1996 O

pé de tamarindo nem de longe conseguiria, com o azedo de seu gosto, arrebatar o doce que era ver o pôr do sol na varanda da casa do meu avô. Um laranja-emoção-sincera arrastavase de uma ponta a outra do céu, revoadas de pássaros nos galhos das árvores pareciam fugir da noite que caía. Qual filtro eu poderia usar naquela foto? Em tempos em que não havia internet, nem facebook, nem watsapp, as únicas notificações que se ouvia vinham de uma coruja solitária ou de grilos em serenata que avisavam apenas da solidão melodiosa e melancólica daquela noite. Tudo era sossego. Vez por outra, o vento soprava teimosamente um galho que se dependurava na janela da sala. E assim, a vasta noite se passava. Não há tecnologia no mundo que substitua a sensação de sono bem dormido daqueles tempos. Aos primeiros raios de sol, o despertador matinal soava. “Quacks” “quacks” rebolavam com suas penas amareladas, enfileirados como o mais rigoroso dos exércitos rumo à imensidão de água no quintal. A piscina dos faceiros moradores da fazenda ficava ali, logo depois da grande árvore com raízes envergadas e de aparência envelhecida que

jogava números incontáveis de folhas secas ao chão. Avoantes, garças e outras aves passeavam livremente por toda aquela imensidão de água e terra. Era azul, azul–sonho-de-menino, a parede do lado de fora da casa do meu avô. E a janela tinha um tom azul mais escuro, como se o menino tivesse um sobressalto em seu sonho. Flores ao redor da casa indicavam a tia que cuidava muito bem do jardim de nove-horas. O vento era brando e delicado com as pétalas, talvez em respeito a tanto primor. Andar descalço e sentir as pedrinhas pontiagudas quase que perfurando o pé era como passear numa cama de brasa, mas uma leve corrida daria o prêmio maior: a grande pescaria. Era pegar um peixe e espantar o restante com gritos estridentes. O avô ameaçava nunca mais levar, mas no outro dia perguntava: “E aí, vamos pescar com o vô?” Daria uma bela foto para o instagram, mas que lástima, naquela época os filmes só possuíam 24 poses. Nada de foto de peixe!

Na grande rede de cordas toda feita à mão, que estava sempre balançando ao sabor do vento, o mais cansado serenava. As crianças apenas sentavam na calçada alta e esperavam dar o horário do rebanho passar. Medo e admiração. A poeira subia, finalmente havia algum barulho de fato assustador naquele lugar. Entretanto, logo se iam, assim como o dia que era preguiçoso, mas não domava o relógio. Rapidamente cairia a noite outra vez e o fogão à lenha já exalava um cheiro de comida de vó. Mais um dia se despedia na fazenda. Seria a hora de trocar de status: se sentindo feliz/Em: fazenda do meu avô, fechando com a tag #PartiuDormir.

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Luiz, respeita Januário! Seu primeiro amor só não ganhou uma canção porque o nosso compositor teve medo do pai bravo que a moça tinha. Era filha de um homem muito rico da região. Luiz acabou deixando a cidadezinha justamente por enfrentar o genitor furioso da donzela. Gonzaga perdeu sua grande paixão que depois acabou casando com outro. Mas, em um show em Campo Grande muito tempo depois reencontrou seu grande amor, cena de cinema que não foi reproduzida no filme gravado em sua homenagem. Mas, segundo o próprio apaixonado o encontro teve até beijo. Os produtores subtraíram uma bela cena. Enfim, egoisticamente falando, Luiz perdeu seu grande amor e nós ganhamos músicas que representam o Nordeste onde quer que possam ir. Luiz foi para as forças armadas, ganhou dinheiro e fama, mas nunca se esqueceu do seu sertão sofrido. Retratado em “Asa Branca”, aquela música que faz parte do repertório de qualquer sanfoneiro que se preze. Além do hino nordestino, Gonzaga conseguiu emplacar mais alguns sucessos como “Eu só

quero um xodó”, “ABC do Sertão”, “Numa Sala de Reboco”, “Pense N’eu”, “No Meu Pé de Serra”, entre muitas outras. Antes de partir Gonzaga fez mais um grande favor ao Nordeste: ensinou o que sabia para Dominguinhos, outro cantor, instrumentista e compositor que representou muito bem a região perante o restante do país. Infelizmente, Dominguinhos perdeu a luta contra o câncer no dia 23 de julho de 2013. Mas, este também foi mestre. Os ensinamentos deixados por Luiz Gonzaga foram repassados a Waldonys, sanfoneiro como os dois primeiros mentores. Luiz Gonzaga ou Rei do Baião, como também é conhecido, morreu em 02 de agosto de 1989. Muitos dos nossos leitores nem eram nascidos, mas sua música consegue ser atual em qualquer tempo. E quem não concorda que representar e falar do lugar de onde vem é fascinante? Luiz respeita Januário e a cultura nordestina respeita Luiz. Foto: Divulgação

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... i, ai que bom, que bom, que bom que é Uma estrada e a lua branca no sertão de canindé Automové lá nem se sabe se homi ou se é muié quem é rico anda em burrico quem é pobre anda a pé... Luiz Gonzaga cantou o sertão nordestino de Caiçara, Pernambuco para o Brasil. Saiu pelo país afora contando a história dos lugares em que esteve. Nesses caminhos, fez a composição citada acima falando sobre a estrada de Canindé em um dos momentos mais importantes da de sua história, a volta pra casa. E sua volta ao berço foi toda musicada. Uma das mais lembradas é a que conta o encontro com o pai: Luiz: - Ôi de casa! Ôi de casa! Ninguém. Me lembrei do prefixo: Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo! Januário: - Para sempre seja Deus louvado. Depois de alguns anos fora da sua cidadezinha o filho de Januário voltou, chegou de madrugada na velha casa onde morara há 16 anos. Horário impróprio para filho chegar, segundo o tocador de oito baixos, seu pai. Como Luiz Gonzaga fazia melodia com seus piores e melhores momentos, logo o instante ganhou uma música.


Utilizamos o facebook para fazer uma pergunta simples sobre cultura nordestina para os jovens usuรกrios, as melhores respostas e mais criativas mereceram um print:

Os criativos:

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Merecem nosso like:

Afinal, o que são folguedos?

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ermos relacionados à cultura popular (vejam só POPULAR) ainda são bastante desconhecidos do público como acabamos de ver na pequena pesquisa realizada em uma rede social. O folclore é composto por ritmos, danças, músicas, artesanatos, uma variedade imensa de tipos e cores. Então, para quem quer começar a entender um pouco mais sobre folguedos vamos exemplificar alguns dos mais populares. Talvez você ainda não saiba que sabe porque as definições não são difundidas.

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Segundo Oswald Barroso, estudioso da cultura popular nordestina, primeiramente os folguedos são executados por brincantes, grupos que encenam, dançam e cantam em festejos. Você já viu algum reizado, festa de boi, ou pastoril? Esses são os mais comuns e se estendem desde o Nordeste até o Norte do país. No Pará o bumba meu boi é conhecido como boibumbá, lá existe um folguedo muito famoso em que os bois se enfrentam - caprichoso e grantido - não há como não se encantar com as cores. Parintins

recebe brasileiros de todos os cantos do país para celebrar a festa da cultura popular. Já no Nordeste, o Maracatu é um dos maiores representantes das festas poulares, seja ele Nação ou Rural, os festejos são marcados por uma alegria contagiante que marca a celebração das raízes de um povo rico de cultura e memórias. Que tal acompanhar algum folguedo? Na prática é muito melhor.


Sobre homens e tubarões T

odas as cidades têm que nascer de algum modo, elas não brotam do chão, espontaneamente. Da mesma forma é com aquelas que nascem aos pés do mar e se desenvolvem sendo ninadas pelo seu braço. Instintivamente, os cílios dos seus filhos se abrem ao serem tocados pelos primeiros raios de sol e é dessa luz que se alimenta a beleza da filha do oceano. Estamos no ano de 1888, é tempo de escassez, de fuga para o acalento do sofrimento vivido nas terras rachadas. Fortaleza é trilha certa para quem quer escapar de uma das piores secas do Ceará. Eram tempos difíceis. Ter um lugar para morar e alguma comida bastava para quem fugia do calor e da seca na região. O destino de seu Antônio Marques era a capital cearense, porém na mesma caminhada estava José Sampaio, que conhecia um lugar ainda não habitado antes de Fortaleza e estava levando sua família para tentar sobrevivência na região. José sugeriu: “Tem um lugar ali na praia que tem um curral, só tem um canteiro, num tem mais nada não”. Ao proferir a frase acima, mal sabia ele que estava contribuindo para o recomeço de uma vida. Quem conta a história é José Marques, 83, bisneto de Antônio Marques. Para os que dizem que há males que vem para o bem, a “seca dos três oitos” fez com que a família Marques se estabelecesse

e ajudasse na construção da história de uma das mais belas praias turísticas do Ceará. Ao escrever sua narrativa, seu Antônio passou a edificar, também, a biografia da pequena

Foto: Ana de Sousa

Taíba, distrito de São Gonçalo do Amarante, a 59 quilômetros de distância de Fortaleza. “Criou a família dele aqui, criou os filhos, e os filhos dele tiveram filhos aqui também, eu nasci aqui... vou morrer agora no fim do mundo”, conta seu José, fazendo piada com a ideia de que o mundo acabará no final do ano (como em todos os outros, segundo profetas que aparecem em Outubro decretando um mês de vida para o planeta), seguindo a lenda maia,

inclusive, incrementada com uma onda gigante para dar mais medo aos praieiros. “Meu bisavô foi pescador, meu avô, meu pai... eu também fui, comecei a pescar com 12 anos. Fiz jangadas, já pesquei no mar, de curral”. Na pesca de curral é feita uma “armadilha” com varas e arames, os peixes entram e na vazante da maré permanecem presos. Hoje, o já aposentado pescador apenas conta seus causos, que são muitos. Se pudéssemos nos basear pelas histórias de seu José, chegaríamos à conclusão de que a vida na água é bem mais interessante que em terra firme. Se verdadeiras ou não, ele mesmo brinca quando peço que conte alguma das suas formidáveis façanhas no mar. “... e quem acredita em história de pescador?”, brinca. “Pra você ter uma ideia, quando meu bisavô veio morar aqui, só tinha a casa dele, depois apareceram mais quatro casas, eles vieram tudo da Baleia.”, afirma, olhando a rua asfaltada, os carros passando e a gringalhada que parece ter conhecido a cidade como os parentes dele. Apaixonaram-se e fizeram morada, estabeleceramse e parecem acostumados com a calmaria ainda presente. Ele volta os olhos para dentro de casa e continua: “O lugar cresceu, começou a chegar gente de fora. Tá aí essa cidade, apareceu gente

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rica.” E quando parece lembrarse de algum fato que lhe ocorreu dentro do mar, conta saudosista: “Eu só saía pra pescar com meu pai, aprendi tudo com ele. Uma vez o barco do meu tio virou e só o encontraram depois de três dias lá nas Flexeiras. Comigo nunca aconteceu, teve uma noite que fiquei com medo de levar uma virada do vento, mas graças a Deus não aconteceu nada. O que eu mais vi e que tenho medo no mar é tubarão, vi um que era maior que o paquete, tinha quase 15 metros”, contou. “Meu Deus do céu, se eu sair dessa, nunca mais piso aqui, e fui pra outros cantos, pra lá de novo não.” Outro medo pertinente na vida de pescador é navio, principalmente quando se sai sem luz para pescar à noite. O medo no mar se resume a navios grandes e tubarões. Pescadores são pessoas corajosas, conclui-se. Seu José Marques já não pesca há alguns anos, mas seu irmão João Marques dos Santos, ainda enfrenta o mar todas as noites, há 40 anos. Também nascido e criado no ambiente praieiro agradável do lugar, ele começou a pescar com 17 e segue a mesma tradição de seu Antônio, já fazendo filho pescador. É uma história do sem fim, onde o conhecimento familiar parece não ser abalado com a estrutura das mudanças causadas pelo advento da tecnologia. Assemelha-se com as dunas móveis dominantes na região, seguem seu rumo, mas não perdem a essência do que já foram. “Se eu fosse contar todas as histórias que já vivi o mundo acabava e eu não terminava de contar”, afirma com ar de quem que enfrentou muitas dificuldades na vida. “Já peguei tempestade demais no mar, nem conto quantas vezes já virei. Desvirava, mas virava de novo. Só Deus mesmo pra ajudar a desvirar, a gente era obrigado a voltar,

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molhava tudo, molhava a comida. Num podia ir sem comida porque a viagem era longa. Agora só dou duas viagens na semana porque é vento demais. E as câimbras que dá nas pernas?” Quem passa mais tempo no mar do que em casa traz na pele os sinais, parece haver uma ligação tão grande com o mar quanto com a própria família. Seu João sai de casa cedinho duas vezes na semana e só volta às 22 horas – até pouco tempo a rotina era diária. Pega seu galão como se fosse arma de combate e espera sempre voltar vitorioso com o sustento da família. “A gente só para de pescar no período do defeso, pra receber

Foto: Ana de Sousa

o seguro”, explica. E assim a vida continua, lentamente. Mas eles não precisam de pressa. Não almejam grandes cargos ou salários milionários... têm tudo que precisam à sua frente, o mar lhes dá trabalho, comida, brisa da tarde e muitas histórias para contar. Pela manhã, o sol começa a acordar os pescadores que ainda saem cedo para o mar. 5 e 30 alguns pescadores tomam seu

café, silenciosamente, olhando para o mundo de água à sua frente. Logo, os turistas começam a aparecer para o banho na praia. Os cata-ventos da energia eólica ao fundo, crianças brincando ao lado e barcos prontos para ir para a longa jornada. O dia começa lento, mas logo adiante será substituído pelos gritos de: “Água na vela!”, ou pelos braços fortes retirando as madeiras que ajudam a segurar os barcos para não irem pra o mar antes do esperado. Entre uma foto e outra seu Pedro Silva, que também é filho de pescador e nascido nas areias alvas da pacata cidade, fala das suas visões e histórias vividas dentro do mar, desde o óbvio, com suas infinidades de peixes, a histórias além, como a de um náufrago que ajudou a resgatar. “Uma noite dessas encontramos um sueco dentro do mar. A gente achava que ele estava morto. Trouxemos para a praia. O Homem começou a voltar e falava de um jeito que ninguém entendia nada. Um companheiro foi atrás de um americano que mora ali do outro lado para tentar saber o que o homem falava. Levaram para o hospital. Dizem que ele mandou uma recompensa pra agradecer, mas ela nunca chegou aqui.” Medo? O único medo que esses bravos homens têm é de tubarão, além disso, nada mais. E todos concordam que a vida no mar é muito melhor do que a que passamos com os pés firmes. Ser pescador não é tarefa árdua para quem cresceu e aprendeu tudo que sabe banhado pelo mar. “Num faz medo pescar, faz medo o caboclo mergulhar lá numa plataforma daquelas. Uma vez veio um rapaz de Fortaleza para trabalhar numa plataforma, ele ficou dormindo lá em casa umas duas noites. Perguntei se ele via muito peixe bonito, ele disse que via muito tubarão. Deus me livre!”,


Foto: Ana de Sousa

diz seu Pedro, exemplificando seu apreço pelo mar e temor pelo único inimigo dos pescadores. Eles podem sair com tempestades de raios e ventos, desde que não tenha nenhum tubarão assolando seus caminhos. A pequena Taíba, antigamente aldeia de pescadores, hoje é praia

turística visitada por pessoas do mundo todo, mas continua sendo confessionário de uma história que se repente e que parece eternamente passada de pai para filho, como uma herança do tempo, como uma história que se escreve nas areias brancas e se calcifica para as próximas gerações.

Foto: Ana de Sousa

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Galeria apresenta: TaĂ­ba, Vilarejo ou paraĂ­so? Fotos: Ana de Sousa

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Ainda há calmaria na brincadeira das crianças.

O pequeno distrito de São Gonçalo do amarante se destaca pela sua beleza natural.

“Uma banda de maçã,

Outra banda de reggae.”

Ponto de encontro dos amantes do reggae. Uma das melhores praias cearenses para a prática de esportes aquáticos.

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As jangadas são extensões da praia e dos próprios pescadores.

A liberdade de morar em um lugar calmo e paradisíaco parece ser a grande lei da pacata e encantadora taíba.

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O

sol ainda fazia brilhar o suor no corpo quando o primeiro grupo de Maracatu entrou na Domingos Olímpio. À minha frente uma senhora exibindo seu chapéu com a mais alta classe, na arquibancada uma vendedora e seus quitutes gelados prontos para deliciar os espectadores, do meu lado uma criança admirada com as cores e o batuque dos tambores. Era o Maracatu cearense que atravessava a avenida. Começaria a homenagem ao Maracatu cearense com sons de chocalhos, triângulos, bumbos, ganzás e surdos. Primeiramente, eram poucas as poucas pessoas presentes, mas logo foram se multiplicando e se transformando em espectadores vislumbrados

com a dança e a alegria presentes naquela avenida. A denominação Maracatu Nação é tem origem nas coroações dos reis serem feitas de acordo com as diferentes etnias vindas da África para o Brasil. Essas coroações eram feitas no dia de Nossa Senhora do Rosário em frente a uma igreja. A festa propriamente dita só passou a acontecer abertamente depois da permissão da coroa portuguesa que indicava um paroquio para presidir a cerimônia.

Homenagem aos Reis Negros: Pardos e brancos pintaram seus rostos de tinta preta para se assemelhar aos primeiros brincantes. Ainda que o calor de Fortaleza fizesse escorrer aquela cor, no momento todos eram negros porque não somente a tinta,

Nação


Maracatu

mas a cultura também se embrenhava por seus corpos que dançavam a tradição da África.

Os brincantes: Com lanças na mão, as crianças batiam pé no chão no ritmo marcante do bumbo. Penas nas vestes indicavam que aquela tradição vinha também de sangue indígena que se misturava muitas vezes com os pulos e meias luas dos pés dos capoeiristas. As origens indígenas ficam claras nas vestimentas, os brincantes trazem no corpo o colorido das penas que bailam ao bater de pés na marcação do ritmo. A corte vem representada com os trajes inspiradas nas vestimentas de Luis XV, toda a realeza na suavidade dos movimentos dos braços que parecem cumprimentar seus súditos e convidar para valsar ao som dos tambores. Diferentemente do Maracatu Rural ou de baque solto o Maracatu Nação ou de baque virado é urbano. A diferença dos ritmos um mais marcado

e o outro mais lento é dada pela intensidade das batidas e pelos instrumentos utilizados em cada manifestação. O maracatu de baque virado é marcado pelo bombo ou alfaias. Já o Maracatu de baque solto faz soar a poesia típica da Zona da Mata Norte de Pernambuco, regida pelo terno (uma pequena percussão). A identidade de diferenciação visual no maracatu rural fica por conta do caboclo de lança, um instrumento pontiagudo e seus chocalhos de ferro. Lá no interior de Pernambuco ou no centro urbano de Fortaleza é sempre bom ver a valorização da cultura por jovens, idosos e crianças que respeitam e intensificam a lembrança das raízes da história que temos hoje. Afinal, é preciso estimar para conservar.


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Resistência da poesia nordestina

“ -b-c-b-d-b ou a-b-c-b-d-d-b. Os versos são de sete sílabas métricas, também conhecidas como redondilha maior. Entendeu? Não? Então vamos voltar à história desde o princípio. O cordel, um dos pontos resistentes da cultura nordestina, se amplia e, ao contrário de outros focos da tradição, consegue se destacar no âmbito midiático e educacional, sendo inclusive usado como programa de aprendizagem dentro das escolas. Cordel na mídia No ano de 2012, a Rede Globo de Comunicação colocou no ar uma novela que levava no nome a marca do Nordeste, Cordel Encantado. A obra se passava numa cidade fictícia chamada Brogodó em que Açucena, uma moça simples, vivia com sua família. A novela é tida como um marco nas produções globais. Aclamada pela mídia, a narrativa tornou-se referência. Pedro Paulo Paulino é cordelista cearense e tem outra opinião sobre a novela. Para ele a produção global deixou a desejar, mas logicamente, levar o nome do cordel para a esfera nacional foi realmente importante, isso nacionalmente, porque para o Nordeste o cordel já é de interesse dos leitores há muito tempo, sendo inclusive o jornal do sertanejo. “Grandes fatos da história ganharam as páginas do cordel e dessa forma também ficaram registrados. É sob os mais diversificados aspectos que

o cordel pode contar a história de um povo: seus costumes, feitos, lendas, sofrimento ou glória, circunstâncias, tradições etc.”, atenta Pedro Paulo. Dentre os cordéis mais importantes para a história do Ceará está A Morte de Nanã de Patativa do Assaré, que conta a morte de uma criança vítimizada pela pobreza e descaso das autoridades públicas. Um relato dramático que ainda é contemporâneo aos que nunca desbravaram o sertão do estado. Cordel nas escolas Contar histórias tristes ou bonitas virou incumbência do cordel, e o número dos que estudam e praticam a arte poética vem aumentando com o passar do tempo. O apoio para que a arte cresça também é notado nos programas que levam a arte aos colégios do Ceará. Atualmente existe um projeto que procura valorizar o cordel como forma de objeto de educação, as escolas cearenses ganham um pouco da história em forma de versos, trazendo crianças para o universo lúdico e real ao mesmo tempo: “O projeto Acorda Cordel na Sala de Aula, idealizado por Arievaldo Viana, é um trabalho com finalidade paradidática que já é adotado em escolas do Ceará e

de outros estados. Uma das primeiras realizações nesse âmbito foi uma seleção de cordéis

de minha autoria e de autoria de Arievaldo, intitulada Coleção Canção de Fogo e enfeixada numa caixa com dez folhetos, a qual foi adotada pela Secretaria Municipal de Educação de Canindé em 2002. Atualmente, está em fase de confecção o segundo volume dessa série,” diz Pedro Paulo. Bonito mesmo é ver que o um meio que conta a história do nordestino de forma tão encantadora ganha destaque em diversos setores da sociedade. Seja em grandes produções ou uma na mão de uma criança tímida o cordel ainda vive e poetisa pelos sertões, cidades e Brasil afora.

Acesse: acordacordel.blospot.com.br


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É a cidade das flores ou Suíça cearense. “O melhor de lá são as cachoeiras.”

Museu Senzala do Negro Liberto. “Fazenda dos escravos é algo sufocante.”

Praia que deu nome ao filme. “As piscinas naturais entre 6:00 e 8:00 hrs da manhã, legal pra levar crianças.”

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Muito visitada por banhistas que passavam pelo rio Coreaú. “É toda linda, a ilha do amor é a parte mais fascinante.”

Uma das cidades que viveram a fase de ouro do café no Ceará. “A estação, o trenzinho, artesanato o museu local são bem interessantes..”

A Foz do Rio Cauípe dá vida a lagoa. “A lagoa e o caminho são bem bonitos. É tudo bonito.”

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uziaryda Paiva tem 27 anos e é aluna de administração. Sua primeira viagem foi aos12 anos, na ocasião pegou um ônibus sozinha e embarcou para Pentecoste, onde passou férias de julho. Depois da experiência ela nunca mais parou. Somente do Ceará ela conhece 20 municípios e pretende conhecer mais. A próxima, segundo a viajante, será jericoacoara. Fotos: Acervo Pessoal

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A

queda dos cineminhas no interior do Ceará foi contada de forma muito simpática por um filme sucesso de bilheteria. A tevê “mostrenga” aos poucos foi tomando de conta de todo o sertão do estado e transmitindo o que de mais incrível se poderia ter de outras culturas. Aos poucos os cineminhas foram fechando suas portas, vencidos pela inovação que trazia notícias de fora. Halder Gomes, diretor do filme Cine Holliúdy, nos contou seu ponto de vista sobre a urbanização e a cultura do Ceará: Vozes do Nordeste: Da cultura que você encontrou na sua cidade há alguns anos o que você acha que permanece?

não tem nada que poderia ser potencial turístico ou aprendizado para outras gerações. A história provoca vergonha, não há coragem de mexer nas feridas do passado.

Halder se refere aos campos de concentração, mais conhecidos como currais humanos do ano de 1932, quando o Ceará passou por uma grande seca e os sertanejos eram aprisionados e vigiados para que não fugissem para a capital, pois esta começava a se desenvolver a pleno vapor. O governo não aceitava o êxodo rural e construía verdadeiras fortalezas para impedir a saída. A ultima sobrevivente dos campos de concentração de Senador Pompeu, cidade em que Halder viveu sua infância, morreu aos 93 anos. Dona Lô, como era conhecida Luiza Pereira.

Halder Gomes: Aqui em Fortaleza vejo um momento de descaracterização. Não temos referencias arquitetônicas. A cidade está murada, pichada, há cercas elétricas por toda a parte, parece que estamos vivendo em campo de concentração. A cidade está feia. Vozes do Nordeste: O que mais lhe chama atenção no Nordeste do Brasil?

Halder Gomes: O Nordeste é a cara do Brasil, possui diversidade de cultura. São nações distintas e histórias sensacionais. Quando tentam nos estereotipar o baiano representa todo o nordeste, mas nem o baiano se vê daquela forma. Não há tentativa vencedora, todos que tentaram representar o nordeste falharam.

Halder Gomes: Nenhuma. Vozes do Nordeste: No filme O interior perdeu suas referências. Há uma tentativa Vozes do Nordeste: Com o passar Cine Holliúdy a televisão é desesperada de apagar o do tempo, qual a transformação mais vista como a mostrenga que bate os cineminhas, se eles passado. Senador Pompeu lhe dói enxergar?

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continuassem até hoje, qual seria a dimensão que a lcançariam no interior do Brasil?

Halder Gomes: Se os cineminhas ainda existissem passariam por uma grande transformação. O que estaria em cartaz mostraria o que se vive na cidade grande. O mercado explora o que tem mais poder comercial. Vozes do Nordeste: Se o Ceará fosse um filme, como seria o enredo principal da trama?

Halder Gomes: Depende do caminho para o qual você quer olhar. Eu acho que o cearense tem uma alma nômade, mas mesmo assim carrega o Ceará no coração. O tema principal seria saudade.

Foto: Acervo Pessoal

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“Não troco meu Oxente pelo Ok de ninguém.” A

riano Suassuna parece se apegar cada vez mais a simplicidade da cultura nordestina. Um dos maiores representantes do Nordeste não quer saber de globalização coisa nenhuma, para ele que não dá aula “show”, dá aula espetáculo e ainda afirma que show é uma interjeição que ele usa para espantar galinha, a valorização da cultura traz o conhecimento do próprio ser. “Traduziram João Grilo para John Cricket”, disse certa vez sobre o nome de um dos seus personagens mais queridos ser traduzido para o inglês. Uma tradução ao pé da letra, mas sem graça para o autor que não suporta estrangeirismos na língua portuguesa. Seu tradicionalismo muitas vezes se confunde e alguns o consideram arcaico demais. Entretanto, o escritor não dá muita atenção ao que dizem sobre ele e continua defendendo a valorização da cultura brasileira e, principalmente, da tradição nordestina. Vez por outra dispara frases como: “Não troco meu oxente pelo ok

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de ninguém”, e arranca risos de plateias sempre lotadas e ansiosas para saber o que o experiente andarilho tem a dizer. Suassuana conhece muitos lugares e é dos passeios Brasil a fora que ele faz nascer muitos de seus personagens. João Grilo e Chicó, por exemplo, são a junção de muitas características descobertas pelas andanças feitas no interior do país. O palestrante, sempre lota os auditórios de universitários que escutam atentamente o que o contador de histórias tem a dizer. Formado em Direito por “não ter talento para nada”, segundo o próprio, descobriu na literatura um berço que o acalenta até hoje e se utiliza dela para se aproximar de seu povo. A maneira de abordar assuntos remetentes a cultura de maneira solta e irônica sempre causa risos, levando sempre a discussões muito interessantes que

Foto: Divulgação

recebem constantemente uma frase que leva o público a aplausos e gargalhadas. Escolhemos algumas de suas frases mais aclamadas sobre cultura para ilustrar essa matéria. Senhoras e senhores, os pensamentos do Mestre Ariano Vilar Suassuna:



Luzes de Canindé A

cordava muito cedo, quando o dia ainda era cinza. Uma névoa encobria a estrada. Nem parecia Ceará. Tudo é maior, mais fascinante, mais cheiroso, mais apetitoso aos olhos quando se é criança. Da névoa saía um homem vestido de marrom, era uma cor triste demais para os pequenos olhos que veriam as luzes mais perturbadoras, brilhantes e mágicas que os olhos puderam alcançar. Um homem alto... a vista sombreou, o corpo tremeu de medo. Lentamente se encorajarajou a olhar. O corpo longo, pés em sandálias de couro, uma corda na cintura, um vestido de cor escura. Hoje lembro docemente dos momentos que antes me faziam tremer. Como no dia em que colocaram na sala uma réplica de uma perna talhada em madeira. Para a Ana criança aquele troço no meio da sala era de outro mundo. Mal assombrado. Para meus pais, tia e avó uma

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promessa feita a São Francisco que garantiria a cura do meu irmão. Hoje não sei se foi a perna, talvez a fé. Meu irmão curado - de não sei nem o que - está. Lembro-me de usar vestes como as de São Francisco, causava-me um calor escaldante por causa do clima da cidade. É doce a lembrança do sorvete de casquinha que refrescava o clima cáustico presente até o comecinho da noite. E que noites lindas possuía Canindé. A cidade iluminada por parques, luzes de natal, igreja. Luzes que não apagavam as estrelas do céu, tudo era muito harmônico. Os anjos cantavam, tinham asas e vozes doces. E mais luzes, da capela à basílica, tudo era totalmente iluminado nas noites de missa. O canto dos anjos parecia ecoar por toda a cidade, a impressão de se estar no céu. De dia as cores das fitas chamavam a atenção dos olhos, milhões delas. Uma de cor mais bonita que a outra. Balançavam com o vento amarradas em tábuas. Era só

escolher, e eu tinha várias, no pulso, nos calcanhares (todas com três pedidos que era o que mandava a superstição) e não poderia cortá-las, do contrário os desejos não seriam atendidos. A fé do povo era incompreensível para uma simples criança. Tantos de joelhos, outros chorando e levantando as mãos. Uma confusão de crenças e modos de orar que só eram esquecidas quando se chegava em casa e olhava as fotografias da viagem da família presas dentro de maquininhas compradas dos artesãos. Elas guardavam as luzes da noite. O olho se apertava enquanto o monóculo era direcionado ao sol. Quando a luz solar batia no pequeno aparelho os rostos nas fotos pareciam mais reais, mais vivos. E de alguma forma eu trazia comigo as luzes de Canindé.


O nascimento da fé O

“ fato é que o povo não tinha a quem recorrer a não ser ao poder divino.” Assim explica Augusto César Magalhães a fé incondicional dos habitantes da fervorosa cidade cearense de Canindé. Segundo o historiador os franciscanos pregavam aquilo para o povo sem assistência, diziam que ao invés da revolta tivessem conformação de acordo com a ideologia da igreja. A partir da fé do povo a religião tornouse a principal característica da cidade que recebe milhares de romeiros em busca de soluções para dores do corpo e da alma. Magalhães nos falou sobre curiosidades sobre a construção da igreja, um dos principais cartões postais da cidade: “Durante a construção da igreja, ocorreram dois fatos que foram classificados como milagre. Um operário de nome Antônio Maciel, estava sobre

um andaime à altura da torre quando despencou e gritou “valei-me meu São Francisco” e na descida sua camisa de mescla muito grossa teria ficado presa na ponta de uma tábua, rasgando-se por completo, mas amortecendo totalmente a queda que pela altura seria fatal.” Outro fato interessante foi o fato de Francisco Xavier de Medeiros, responsável pelas terras que abrigam a igreja matriz, ter uma de suas coxas esmagada por uma viga de madeira enquanto puxava cordas para erguê-la para os operários. Socorrido pelos próprios trabalhadores, o homem foi desacreditado, no entanto, no outro dia ele estava restabelecido e voltou às obras da igreja. Assim, os fatos foram tidos como milagres e acabaram fortificando a fé do povo da região e escaparam para além

Imagem do pequeno São Francisco.

Festa de São Francisco de 1956.

das fronteiras do município. A primeira imagem pequena de São Francisco, a quem os romeiros chamam de Francisquinho veio de Pernambuco trazida pelo próprio Xavier de Medeiros, ao contrário do que pensam muitos ela não veio de Portugal. Porém, naquela época o sertanejo se apegava à religião por não haver para onde mais recorrer, apesar da precariedade do sistema público de saúde, por exemplo, Augusto César crê que há algo muito maior para se explicar quando se fala em fé em São Francisco. “Hoje eu analiso que a dimensão da fé é muito maior e crescente. Digo isso porque a medicina avançou muito, mesmo assim busca-se em demasia a cura que a medicina não traz de maneira satisfatória, ainda que parcialmente,” afirma. Ex-votos: São réplicas de partes do

Igreja matriz finalizada.

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corpo que são depositadas na Casa de Milagres, ofertas de agradecimento, dinheiro, joias, fotos e afins. Os romeiros que acreditam na cura do corpo fazem, levam seus agradecimentos assim que alcançam a graça e oferecem a São Francisco. O que acontece antes das festividades? Os exvotos são retirados da casa de milagres e os que não possuem valor algum são incinerados, ao final das festividades o local já está completamente lotado novamente. “Quem traz os ex-votos não são falsários, nem pessoas mentirosas, nem muito menos alguém que

Fotos: Arquivo Pessoal de Augusto César Magalhães

busca promoção pessoal. Eles são depositados de maneira anônima e cada um deles reflete a fé do romeiro. O exvoto é o testemunho material de uma graça alcançada e a maioria se refere a saúde”, assegura o historiador. Augusto César Magalhães trabalhou no Banco da cidade onde eram depositadas as ofertas mais valiosas levadas ao santo. “Os agradecimentos eram em forma de dinheiro, velas, ex-votos, gado, fazendas, peças de ouro quando eu trabalhava no Banco do Brasil, recebi um saco de moedas que veio do cofre de São Francisco em que eles já tinham catado as

peças de valor e mesmo assim encontrei quase um cento de alianças, presumivelmente de ouro, que entreguei ao então vigário frei Batista (falecido recentemente),” conta. E assim Canindé se tornou uma das cidades mais religiosas do Ceará, sua fama se estende por todo o país e a igreja matriz enche a cada nova missa celebrada. Não há como explicar tamanha religiosidade a não ser pela história. O início que determinou a popularidade tão marcante para seguidores que acreditam no poder de cura concedido a quem pede ao santo protetor São Francisco das Chagas. Foto da Casa dos Milagres anos 1950.

Retirada de ex-votos da Casa dos Milagres para incineração.

Casa dos milagres nos anos 70.

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Q

uantas produções serão necessárias para que se ache o jeito verdadeiramente nordestino de ser? A Indomada, Meu Bem Querer, Cordel Encantado, Senhora do Destino, a lista é imensa, e as tentativas frustradas. As telenovelas brasileiras tentam adaptar os sotaques e torná-los unanimidade, porém o Nordeste, assim como o resto do Brasil é uma mistura frenética em que todos são um, mas um não pode ser todos. Aí está a resposta para o questionamento: você se vê na televisão? No ano em que a novela Meu Bem Querer foi gravada no Ceará e falava com uma pronúncia arranjada de Nordeste, muitos telespectadores reclamaram que o sotaque ali usado não era nada parecido com o que eles usavam em seu dia-a-dia. Diversas vezes as novelas têm como primeiro ambiente as areias nordestinas, que servem somente como pano de fundo. Então, procurando uma vida melhor os personagens principais vão para o sudeste do Brasil. O caso em Senhora do Destino mostra a ida de “Do Carmo”, (e veja bem, é muito importante que o nordestino tenha nome de santo para consagrar a crença existente na região) a mulher sofrida consegue criar os filhos na capital tendo uma vida

completamente urbana, mas resguardando dentro de casa costumes da sua terra, como por exemplo, comer tapioca no café da manhã. A novela Cordel Encantado já traz no nome aspectos da regionalidade, mas como a cidade fictícia não indica em qual região do Nordeste exatamente se passa a trama é difícil realizar uma observação acertada sobre sotaques, Brogodó se parece mais com uma cidade lúdica de sonhos, como aquelas que as águas invadiram e as deixaram imersas em que lendas urbanas creem ainda existir muitas vidas preservando a história. A novela conta a saga de uma princesa criada no nordeste, que é apaixonada por um homem humilde da terra, mas se vê na situação de ter que decidir entre o amor da família que a criou e a de seu pai biológico e do reino

que a espera. A novela A Indomada trouxe algo mais pitoresco em seu enredo, nordestinos que misturavam o “sotaque” com uma pitada de inglês, nada muito diferente do que é feito hoje com toda essa explosão de cultura americana nas grandes capitais. Não é mentira que não só no Nordeste, mas no Brasil inteiro usa-se o inglês misturado ao português e ao sotaque de qualquer região, fazendo uma salada cultural que é tipicamente brasileira. Ariano Suassuna diria: “Não troco o meu oxente pelo ok de ninguém.” E mesmo que seja disparatada a tentativa de se aproximar do Nordeste sem estudá-lo de fato, a grande verdade é que se não existissem tentativas, não haveria falhas. Além de criticar, só nos resta rir dos contorcionismos televisivos e adaptações frustradas. Mas, logicamente, aplaudir aquelas muito bem sucedidas como é o caso de Amores Roubados e O Auto da Compadecida. No mais, uma vaia cearense para todo o preconceito linguístico e cultural ainda presentes neste país.

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Um diálogo de A Indomada: SCARLET: Tomorrow lhe conto tudinho, ele é um gentleman, um must, um masterpiece, uma obra de arte! Não é wonderful, maravilhoso? PITÁGORAS: Of course que não. Chispe, go, xô, out, fora...

Meu Bem Querer Uma cópia de “A Indomada? Até o Ary Fontoura estava lá de novo, como prefeito novamente. Um casal jovem, o sotaque nordestino e tudo o que contou para o sucesso de sua antecessora.

O Auto da Compadecida produçao de sucesso: Em 2000 a minissérie virou filme e levou mais de 2 milhões de espectadores ao cinema. Um marco das produções nacionais.

Cordel Encantado, um novo jeito de produzir: Uma novela de encher os olhos gravada com câmeras digitais F35.

Senhora do Destino, homenagem? A retirante nordestina que consegue se erguer na vida indo para São Paulo.

Amores Roubados: Em “A Emparedada da Rua Nova”, Antônia acaba grávida e presa entre as paredes de sua própria casa, mas na adaptação o final foi mudado segundo o autor para condizer com o século em que estamos.



C

ambaleando lá da República Velha até dias atuais, o coronelismo ainda continua sendo o sistema dos grandes senhores de terras no Nordeste. Hoje, industrializado, tecnológico e mais desenvolvido, a região ainda sofre ações desses novos coronéis. Agora o personagem não está tão sisudo, é verdade que a personalidade continua forte, mas anda se vestindo bem. A barba ainda existe, com um bom corte, é claro. As roupas são de fina alfaiataria, há requinte na maneira de falar e mais leveza no semblante. Dois coronéis, dois mundos: Em “O Auto da Compadecida” temos um Coronel regado a costumes da República Velha. O poder, a ganância e a vastidão de terras que lhe pertencem parecem extensão de si mesmo. A Arrogância parece tecer suas carnes dos pés à cabeça para sucumbirem em sorrisos sarcásticos e dominadores. O Major Antônio Morais, poderoso e soberano que em suas apostas quer sofrimento, caso não haja dinheiro. Chicó, o personagem mentiroso e apaixonado ajudado por seu fiel escudeiro (na verdade Chicó que é escudeiro de João Grilo) João Grilo conseguem trapacear o grande senhor daquelas redondezas com truques bobos. Mas se não fosse a esperteza do amarelo mais amarelo de Taperoá, Chicó terminaria sem uma lasca de couro de suas costas. A figura do Major é tão imponente, que surge muito antes do próprio aparecer na trama. Quando a cachorra que pertence a mulher do padeiro está prestes a deixar este mundo, João Grilo arma um jeitinho de fazer o Padre enterrar o pobre animal em latim. O fato se dá quando o padre acredita

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que a cachorra é de pertence do Major. Logo após, em cima de um cavalo e filmado em plongee ângulo que demonstra superioridade o senhor das redondezas aparece e toma ciência do fato ocorrido. Um poder maior que o do povo, Estado e igreja. Assim eram representados os coronéis em “O Auto da Compadecida”. Ipads, androids, notebooks, câmeras de ultima geração, motos, carros importados, plantações irrigadas de uva. O novo sertão nordestino tecnológico e produtivo. A mocinha pratica bungee jump e fotografa as festas regadas a cachaça e forró. O “mocinho” é um conquistador de mulheres, mulheres essas que tomam a iniciativa, que dão o primeiro passo e traem. Sim, direitos iguais. Mulher “macho” sim senhor, mas com a mais fina das marcas de maquiagem! Em “Amores Roubados” quem é passado para trás é o marido coronel. A filha e a mulher apaixonadas pelo mesmo homem. Inimaginável, e se assim fosse na República Velha as senhoras guardariam tamanha paixão consigo. Em “O Auto da Compadecida” a mocinha da trama saía de casa para se confessar na igreja, ia à seresta da igreja apenas por convenção social, em “Amores Roubados” a filha do coronel bebe cachaça e provoca o “jagunço”. E fotografa. E fofoca com a amiga. E dança. E é notada. E ri alto. E parece livre. Se um dia Rosinha e Antônia se encontrassem seria um choque tão grande de culturas que talvez as moçoilas acreditassem estar em planetas diferentes.

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A

A vida passa pela Avenida

avenida recebeu um corte marcado por uma data, 13 de Maio (a coadjuvante). Tantas situações passam pelas pedras que passam pelos pés, esses se vão e depois voltam. A rua encrustada de palavras de ordem, de saberes, protestos, sonhos, ilusões, vive há tantos anos, mas continua jovem, firme e forte. Na primeira semana em que troquei olhares com a avenida, algumas feministas contrárias ao sistema vigente reclamavam em alto som: o capitalismo brochou! Um garoto de rosto pintado em branco com vestes pretas segurava uma faixa que dizia: falo por minha mulher e distribuía rosas entres os carros que rosnavam bravamente frente a faixa de pedestres. Estudantes discutiam sobre a realidade política e econômica do país. Qualquer um se sentiria um espectador de diferentes mundos. São labirintos em que facilmente se descobre a saída, não a saída do labirinto, mas a saída de uma passagem que te faz se perder logo mais adiante em um outro tubo de ideias. É um mergulho, quase um mar, essa avenida. Os pés ligeiros nem percebem o que deixam para trás, as pedrinhas insultantes que machucam persistem, incomodam como algumas ideias, mas permanecem, sabem cada passo de ida e de volta. E quantos passam, duas... quatro... oito vezes pelo mesmo caminho. A avenida da Universidade, no bairro do Benfica é o jardim de casa para muitos estudantes da Universidade Federal do Ceará. Aurenir Paiva é aluna de pedagogia da UFC, nunca contemplou a avenida, apenas passa. Passa oito vezes ao dia. Certamente a avenida já sabe

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até que número de sapatos ela usa, qual o seu preferido, se anda vagarosamente ou corre. Aurenir apenas acorda cedo, banha-se, visita pela primeira vez a avenida da Universidade, que nesse momento ainda tem asfalto frio, está acordandoainda.Aestudante vai repetir esse caminho muitas outras vezes durante o dia, vai encontrar a avenida brava, cheia de gente, de cabeça quente, cansada, mas também irá a seu encontro ao entardecer. E é quando o sol vai se pondo que a revoada de pássaros sai das arvores das casas ao longo de sua rota e sobrevoam a avenida, cortando os caminhos até a UFC. Um barulho ensurdecedor da migração curta do bando que vai dormir do outro lado da rua. E lá se vai mais um dia, sol, fumaça, buzina, apelos, protestos, pensamentos e passamentos, olhos que por ali passam sem observar que algo os observa, e o

asfalto continua... aguarda mais um dia começar para novamente debruçar-se sobre histórias. Na manhã que chegará, Aurenir passará por ali novamente, a avenida contará baixinho: uma... duas... várias vezes o percurso da menina faceira, de passos rápidos em seu sapato número 35 esnobará a avenida que tanto quer saber sobre ela. Mas a Avenida da Universidade tem tantas histórias para ouvir, cuidar, observar, que a morena Aurenir escapa aos olhos. A Avenida da Universidade promete que os passos que ali são dados sejam eles apressados, lentos, compassados ou estressados, ficam registrados. Um dia ela pretende lançar um livro em que contará os segredos da cidade, tão enxerida é esse ser, não se contenta em ser história, quer estar na história de alguém.


Cultura, yes or no?

A

cidade, os shoppings, seriados enlatados, músicas do momento, o processo de inclusão podem afetar o gosto dos jovens pela cultura local? Pegue um ônibus em que haja frequência de alunos, pare um pouco e ouça sem critérios de educação seus assuntos. Ou, caso se sinta melhor abra seu facebook e veja as postagens de seus amigos. Séries, checkins, escutando no momento. Veja as atividades. Quantos de seus amigos estão ouvindo baião, aliás, há quanto tempo alguém não lhe fala em baião? Que não seja a comida, é claro. No meio de tanta cultura pop introduzida teimosamente entre os gostos de jovens, a tradição parede caretice. O forró não fala mais do sertão, traduz a música americana que está

fazendo sucesso nas rádios. Aliás, o triângulo, importante instrumento musical,entrará para a lista de extinção brevemente. O forró estilizado não abre passagem para velharias Os jovens não são distanciados da cultura, eles se aproximam das enxurradas de informações que lhes são passadas, e, infelizmente, não há tanto espaço na mídia para se falar de tradição. Não há um distanciamento forçado, existe apenas um vácuo entre a cultura e a comunicação. Assim vamos perdendo o elo que temos com nossa própria história. Os pais têm um trabalho importante a fazer. Aproximar os filhos da tradição é também guardar a sua própria história. Levar uma criança a um museu ou contar histórias de família

(toda família tem uma tradição) seguida por todos os membros, como por exemplo, as farinhadas que são realizadas no interior do estado e que estão morrendo com o passar dos anos, ajuda a manter viva a raiz e o orgulho pelos mínimos conceitos culturais de uma região. Logicamente, é tão importante conhecer e respeitar a cultura de outros povos como fazer o mesmo com a sua. Ouvir Madona ou dizer tchau em inglês não fere a cultura local, o que destrói a construção do ser e do seu ambiente é não conhecer a sua própria história, portanto vamos valorizar o que é nosso, vivenciar o que a nossa cultura nos propicia. Respeitando a nós mesmo iremos acatar também a cultura do outro.

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Conheça os caminhos e Solte sua voz!

Até a próxima!


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