OLHA A BÁRBARA!
O homem parece bastante alto. Mesmo sentado, ou antes, escarranchado sobre o cepo do ofício, como se fosse um burro, com as pernas uma para cada lado da montada e ambos os pés assentes no chão, de terra batida. A mão esquerda segura o catraço de pau de amieiro, enquanto a direita empunha a enchó e desce-a lá do alto, bem acima da cabeça, ferindo a madeira com vigor, em golpes repetidos e ritmados, até a tornar parecida com a base de um futuro tamanco. Este, então, é o homem dos socos. Meio careca, resta-lhe apenas cabelo à volta da cabeça, mas os pelos do corpo são tão abundantes, para compensar, que lhe sobem pelo peito acima e rompem a gola da camisa aberta, atingindo o pescoço como seara espessa, apenas contidos pela navalha da barba diária. Olho-o através do buraco de um nó da madeira da meia-porta e miro, alternadamente, os meus socos novos, novezinhos a estrear, que ontem mesmo estariam ainda naquelas mãos. Foi Nosso Senhor, ou então foi o padroeiro, que os arrancou dessas mãos e os pôs nas mãos algo trémulas do meu pai, que mos enfiou nos pés mal o dia ainda clareava (“Toma lá, meu menino, são os teus tamancos, que te prestem no bom caminho”). Maneiras que, informado da identidade do artista e da sua morada, aí venho eu, povo acima, lá do fundo do Eirô, ligeiro como passarinho, confirmar incrédulo a origem do meu primeiro calçado. Tenho quê, três anos, quatro? E espreito. O homem tem a careca muito vermelha, assim como a cara, a bem dizer, modos firmes e decididos, bruscos mesmo, posso afirmar, olhar esquinado e gesto de força. Baixa a enchó com violência, atacando a madeira com golpes certeiros e sucessivos, e acompanha o movimento com a cantilena que inventa na hora: Olha a Bárbara, olha a Bárbara, que formou a sua orquestra, e no dia do acordo vai fazer a grande festa.
Não vê mais nada, alheio a tudo, mesmo aos gestos da tarefa que executa, mecanicamente. Está ligado apenas ao que lhe vai na alma, ao turbilhão que lhe ferve no íntimo, coisa boa não há-de ser, julgando pela raiva que lhe explode na força do braço e na lenga-lenga que vai botando para fora: Com a sua simpatia a Simplícia guia a música, para a mala dos papéis vai a ti Maria Augusta.