Cadavais, Cadavais

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CADAVAIS, CADAVAIS

Isto não vos aquenta nem arrefenta, mas nessas encostinhas dos Cadavais – três linhas de festo paralelas, sobrepostas, a subir quase a pique, da esquerda para a direita, para quem olha da curva de São Cristóvão, agora estrada, mas nesses enquantos caminho – nessas encostinhas passei eu uma das primeiras aflições da minha vida. E só não digo a primeirinha de todas porque me lembra outra antes, com o meu pai a tirar-me da garupa do cavalo, só com a mão direita, e a depositar-me em cima de um penedo, para partir a galope atrás de um lobo, de pistola na mão. Não lhe acertou, já se sabe, mas quando tornou passado um bocado, do lado de lá do viso, estava o filho lavado em lágrimas, podemos presumir que basto aflito. Aqui também, nos Cadavais, a dona aflição passou perto, tomou-me da mão e ia sendo o cabo dos trabalhos. Nós vínhamos de cima, do plaino, de Valongo e Fragas de Areia, ao fim de umas horas atrás das perdizes, o pai com a canhota atravessada nos braços, calibre doze, de dois canos, o filho de calções curtos, infante de três ou quatro anos, numa mão a vergasta e na outra um liço a segurar as cabeças das penosas vindimadas. Não me lembra cão, mas devia havê-lo, não podia deixar de haver. Menos enquanto, ao chegar ao boqueirão, onde a vista se abre ainda hoje sobre o vale de Paus, lá no fundo, e o rio ao longe, na sombra das faldas do Marão, levanta-nos um bando que vai pousar logo adiante na encosta mais próxima, do nosso lado direito. ‘Espera aqui um bocadinho’, diz-me o caçador – ‘que eu vou lá ver se as pilho’... Eu ouvi, devo dizer, e não me agradou muito. Mas encolhi-me, cá por dentro, tu é que sabes. E também me confortou a escassez da distância, o voo curto daquele bando, pouco mais de cem metros até à crista adiante, à vista dos olhos, com um berrito de nada alcançaria o caçador. Vai lá à tua vida... Mas o diabo tece-as, chegado à primeira lomba o caçador, as perdizes levantaram-lhe antes de ele fazer o tiro. E vá de pousarem na lomba seguinte, mais duzentos metros, em jeito de desafio ou tentação de pecado. O caçador ia ficar-se, tornar para trás, pegar na mão da criança inquieta? É o ficas, nem hesitou, para a frente é que é o caminho, para o lado da Barraca, para diante e para baixo, virado a Fazamões, para o mais fundo do vale, tanto assim que deixou de se ver, logo encoberto pela quebrada. Pronto, cá estou eu sozinho, na beira do caminho de carro, não se ouve nada de nada, vou estudando o chão que piso, que dos arredores já estou ciente. O solo é de xisto, pedra solta castanha, dá para ouvir à distância o tropicar de um burro, se os ouvidos não me enganam, as patas ferradas, tepe-tepe, encosta acima, manqueli-manqueli, agora uma, depois a outra, para vencer a subida penosa. Ó diabo, penso: e agora? Vem lá o quê? Vem lá quem? E eu faço o quê? E eu fujo para onde?... A curva do caminho não me deixando ver o que lá vem, lanço os olhos mais uma vez para as bandas do caçador, Barraca em fora, mas nada, nem caçador nem perdizes, nem cão sequer, parece que a terra os tragou. Já mais de inquieto, um pouco aflito, recapitulo a situação, mas


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