Uma espécie de guerra civil (1)

Page 1

UMA ESPÉCIE DE GUERRA CIVIL (1)

Eu estou para escrever um livro, uma obra de criação literária, não diria um romance, antes uma peça, digamos, de “ficção documental”, se é que tal género existe (mas, se não existe, passará por força a existir...). O célebre Doutor Assis, recordo, de Coimbra, imortalizado pelo inesquecível Pad’Zé (Alberto Costa, O livro do Doutor Assis, Minerva, Coimbra, 2002), ensinava, como é sabido, que o Direito Romano começou... por não existir. Como este livro, igualmente, para que venho reunindo ideias e materiais, mas que já sei, ou prevejo, como começa e também como acaba. No princípio, uma cena urbana de rua, nocturna, com o vulto de um transeunte a escavacar os vidros de uma viatura, por sinal estacionada em cima do passeio; cena observada à distância por outro cidadão, a coberto da vegetação de um jardim vizinho, mal iluminado. No fim, lampejos épicos de uma narrativa fragmentária, a dar ideia de uma guerra acesa a todo o pano do horizonte, turbas que se defrontam em meio urbano, focos de incêndio, cenas de destruição e morte, mais uma vez em tempo nocturno. Uma guerra aberta, com seu cortejo de horrores, de que a cena inicial mostra justamente a origem remota... Qual é o tema do livro? Até me custa a dizer, é ridículo, mas reflicto que o ridículo não é meu, é antes da sociedade em que decorre a acção, neste tempo e neste lugar (da narrativa, entenda-se): o tema é o trânsito, o tráfico rodoviário, o caos que invadiu pé ante pé a vida quotidiana, quase sem se dar conta, da parvalheira mais distante à urbe mais presumida, de norte a sul, do mar à fronteira de ”um velho país ineficiente” (não a Espanha de entre-guerras, de que falava Jaime Gil de Biedma num verso famoso, mas por hipótese o seu vizinho onde o sol se põe). Nesse país da ficção – cada vez mais, ultimamente, um país de ficção – intriga profundamente qualquer observador, por mais desprevenido, o silêncio que paira sobre fenómeno tão manifesto, o descaso com que se encara, não encarando, um problema tão sério e tão palpável, tão improvável também e com consequências tão perniciosas, que estão à vista de todos. Mas ninguém fala do assunto, todos passam ao lado, todos fingem, pelo menos implicitamente, que não existe problema nenhum. Não trato, no meu livro, devo dizer, a questão do trânsito em geral, interessa-me apenas um capítulo particular, o das relações entre peões, por um lado, e condutores, por outro, sem distinguir nestes últimos o tipo de viatura que utilizem, ainda que o mais comum, e de longe o mais sério, seja o caso dos veículos de quatro rodas. Vamos ver, dois condutores, entre si, como que são naturalmente compelidos a respeitar as regras, por exemplo a que obriga a circular pela direita. Se eu conduzir pela esquerda, corro um muito sério risco de colidir com outro veículo que venha em sentido contrário; e isso obriga-me automaticamente a usar de alguma cautela, sob pena de sofrer um dano na lata e na mecânica do meu calhambeque. Não assim, como é evidente, se a minha contraparte for um peão, cuja compleição, em termos de peso, de volume, de dureza e de resistência, não se compara com a de um automóvel, sejam


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
Uma espécie de guerra civil (1) by Albino Matos - Issuu