JÁ ME AQUI FALTA UMA CEREJA
Quem conheceu a Simplícia lembra decerto como ela era de pontinhos, por assim dizer, ciosa de si e do seu e algo providosa na fala, ciciando ademais os esses e assimilando por vezes o ‘z’ ao ‘j’ na pronúncia de certas palavras. Dependendo da maré... Estima tinha ela na sua cerdeira da Relva, ao fundo do campo, junto do cômoro, no ponto em que o bordeja o rego da água do Vale, descrevendo uma curva perfeita. Tanta estima, m’amigo, que arranjou um banquinho feito a modo com umas pernadas e terrões, arrimado ao tronco da fruteira de estimação, que lhe servia de encosto. E aí se sentava muita vez, regalada, gozando a sombra e a fresca, a olhar a novidade do campo, e a cerdeira do seu amorio. Para falar quanto é franco, o interesse no exame da cerdeira, algo excessivo, ligava-se à suspeita da Simplícia de que o malandro do Seraiva lhe andava a comer as cerejas, á sucapa. Raça de moço, ruim como a fome, espigado nos seus doze anos, medrado na manha assim como no corpo, com folha larga já de proezas e malfeitorias, dois olhos piscos que mal abria para não deixar escorrer toda a malícia que tinha dentro. Comia as cerejas e os próprios caroços, deixava-lhe só os canganhos, para que não se dissesse que levava tudo. Além de lhe sovar o terreno e de lhe choutar as novidades, a eito. Nessa tarde infausta, véspera de S. João, um sobressalto esperava a Simplícia (ou melhor, dois sobressaltos, qual deles o mais doloroso). Alisava ela o avental, afastando as pernas para se sentar no banquinho, encostado ao pau da cerdeira, o seu olhar focou-se num dos ramos mais baixos. E foi com um baque na alma que a boa da Simplícia pronunciou a sua desgraça, em voz alta, ao mesmo tempo que os olhos lha levavam ao mais fundo do seu coração: Zá maqui falta uma cereiza! Nem bem a Simplícia acabava de publicar a sentença da sua desgraça (onde é que já se viu, uma mulher de respeito, desfeiteada por um moncoso de má morte!), ao completar o gesto de se sentar no banquinho preposto, encostando o traseiro mimoso no assento de terrões e argalhos, foi espetar a carne fraca nas malhas da armadilha que o Seraiva montara de noite, plantando-lhe um rolo de arame farpado por baixo do assento do bendito banquinho vegetal.
22.6.2011