COMO SE ABORTA UMA CARREIRA DE CRONISTA

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COMO SE ABORTA UMA CARREIRA DE CRONISTA

- O que me apetece, ao iniciar com este escrito uma colaboração jornalística que espero tenha sequência, é recordar a última vez em que me vi nestes assados, há coisa de bem mais de trinta anos. Era no século passado, não muitos anos depois do 25-Abril, um jornal duma vila do nosso interior, cujo director me conhecia ainda do tempo da outra senhora, convidou-me para escrever (sobre) o que (e como) quisesse, dando-me carta branca para o efeito, iludido certamente com a prudência e os méritos que putativamente me atribuía. Acedi, desvanecido pela insistência. E fiz mal...

- Estava ao tempo em voga, ou começava a estar, a novela televisiva, um fenómeno novo da época que não pode ser avaliado com olhos de hoje, afeitos a dezenas de novelas, em dezenas de canais, simultâneamente, novelas a que ninguém liga, por isso mesmo, salvo o lumpen das periferias urbanas; sim, porque os velhinhos dos lares da terceira idade não entram neste cômputo... Naquele então, só com um canal de televisão, beneficiando por isso da atenção universal, dos pobres e dos ricos, dos cultos e dos não cultos, dos campos e das cidades, do litoral e do interior, assim como do norte e do sul, a telenovela constituía um fenómeno de popularidade, já que todos a viam, todos se interessavam por ela, dedicavam-lhe a sua atenção, a ponto de a discutir e em certo sentido a viver. Da memória histórica do tempo ficou, por exemplo, certo dia em que o parlamento interrompeu os seus trabalhos à pressa para que os deputados não perdessem certo episódio da “Gabriela”, primeira novela entre nós, brasileira como todas, baseada no clássico de Jorge Amado, “Gabriela, Cravo e Canela” (cheiro de cravo, cor de canela, sabe quem o leu...). E também, embora a história o não tenha registado, um certo aspirante a cronista conheço eu, que regressava do Algarve, no termo das férias, com a família completa, além do gato e da sogra, e a banheira, juro, dos filhos pequenos no tejadilho da viatura, acelerando a imbatível 4-L pelas rectas de Grândola e Alcácer, a ver se chegava a Lisboa a tempo do mesmo episódio. Daí que eu escolhesse a palavra, então nova, então entrada a circular – telenovela – para a designação da minha coluna, que eu contava inaugurasse a nova era, por assim dizer contemporânea, da crónica da imprensa local. Mas a ideia, devo esclarecer, não era aproveitar apenas a palavra; a minha intenção era forragear no próprio tema, beneficiando da sua popularidade na sociedade e no país, explorar não tanto o assunto novela como os assuntos da novela, que eu presumia familiares aos meus supostos leitores. O fito era, precisamente, partir dos casos e do enredo da novela corrente (única, relembro, do único canal existente) e falar, com tal enquadramento, de tudo quanto me interessasse. Por outras palavras, a novela servia-me apenas como ponto de partida, um engodo para atrair a atenção do leitor, desviando-lhe em


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COMO SE ABORTA UMA CARREIRA DE CRONISTA by Albino Matos - Issuu