NOVA em Folha | Outubro-Novembro 2023

Page 1

Jornal

Outubro/Novembro

2023

NOVA em Folha

juventude(s) O QUE É SER JOVEM NO SÉC. XXI ? O QUE ESTÁ A ACONTECER NO MÉDIO ORIENTE? O QUE NOS DIZ DIOGO MENDES, FUNDADOR DA U.DREAM. ? O QUE NOS DIZEM OS FILMES SOBRE A JUVENTUDE ? NESTA EDIÇÃO, TENS A RESPOSTA A ESTA QUESTÕES, CRÓNICAS, POEMAS, AGENDA CULTURAL, SUDOKUS, E MUITO MAIS! UM JORNAL D@S ESTUDANTES PARA @S ESTUDANTES!

GRATUITO 0.00€


Foto da capa

SUBSCREVE A NOSSA NEWSLETTER E não percas os textos, a arte e as novidades em que se inspiram @s estudantes da FCSH Para isso, basta enviares o teu e-mail por Direct ou Messenger

Imagem: Canva

As Tuas Propostas

Consulta a versão online do Jornal a cores! Dispnível no link da BIO do nosso instagram @novaemfolha.aefcsh

Todas as edições, aceitamos propostas de textos, poemas, críticas, receitas, crónicas, bitaites, artigos desportivos, notícias e destaques, reportagens, peças humorísticas,... de qualquer alun@ ou docente da FCSH, os quais são posteriormente revistos pela nossa equipa editorial. Aceitamos ainda propostas de fotografias, ilustrações, montagens,... não só para serem incluídas na nossa edição e na newsletter, mas também para se habilitarem a ser incluídas na capa desse mês! Basta enviares para o seguinte e-mail: novaemfolha@fcsh.unl.pt Qualquer dúvida ou sugestão não hesites em contactar-nos! Ficamos à tua espera! :)

notas A ado(p)ção do acordo ortográfico em vigor é uma decisão individual d@s membr@s da equipa de reda(c)ção e colaborador@s. Após a revisão completa do material recolhido pela equipa editorial, o seu conteúdo e versão final são da responsabilidade e exprimem somente o ponto de vista d@s respectiv@s autor@s.

Este jornal é impresso em papel 100% reciclado.


Out/Nov. 2023 Direção

Beatriz Gomes Martins Clara Figueiredo Guilherme Machado

Redação

Beatriz Batista Carolina Ramos Constança Pereira Diogo D'alessandro Emmanuel Walcher Guilherme Machado Hefesto de Oliveira Inês Fonseca Inês Moreira Jéssica Marques

Revisão

Beatriz Gomes Martins Clara Figueiredo Leonor Moreira Madalena Andaluz Maria Mendes Pedro Taveira Raffaella Tomaiuolo Sofia Fernandes

Edição Gráfica

Joana Martins João Strecht Lara Duarte Laura Abreu Leonor Moreira Lucas Berenguer Madalena Andaluz Manuel Gorjão Maria Mendes Mariana Aleixo

Colaboradores

Madalena Teles Yelyzaveta Basysta

Pedro Lázaro Pedro Taveira Pietra Blasi Raffaella Tomaiuolo Rúben Ribeiro de Sousa Sofia António Sofia Fernandes Tália Moniz Tiago Inácio Tomás Vila Nova

AEFCSH Danichi Marques Gürkh Inês de Castro Perdigão Laura Abreu Raquel Francisco Rita Senizando Rodrigo Ferreira

Ficha Técnica 02


Índice 04

AE em Folha

29 Ser jovem é fácil, dizem eles...

05

A Crise da Juventude é não saber quando começa e quando acaba

30 Equidistância da inexistência

07

A juventude

31 A vida

08

Ser jovem já nem rima

32 Metadisrformia

09

Uma verdadeira sexta-feira 13 para o Nobel da Literatura, e não só.

33 Nova Vaga/ Novi Val/ New Wave

10

Sangue Novo: Os Herdeiros da moda de autor

11

Ser Jovem Na Faixa de Gaza

12

Na juventude a força do Futuro

13

Entrevista: Diogo Mendes

15

A inconstitucionalidade da “boiada”

16

O Desporto Universitário

38 Franny and Zooey and the comfort of having an existential crisis

17

Vejo o futuro por um canudo

39 Coragem

18

Pequeno-almoço

40 O que ler num dia de outono

19

Aquela cena que o Tocha Humana diz antes de voar

41 Sete-Sóis

20

A sociedade do cansaço

42 A Somewhat Ode to Autumn

21

Para onde nos leva a Arte nos dias de hoje?

43 Melodias de Dezembro

22

Mais vale dois pássaros a voar do que um na boca do gato

23

Crónica de um sítio que foi

24

Agenda cultural

novaemfolha.ae@fcsh.unl.pt

03

34 Cinema que inspira e expira juventude 35 Sessenta Verdes Anos 36 Crescer com a Greta Gerwig 37 Uma ode às party girls que tornam um pouco mais tolerável a nossa juventude

III 44 Amor e tentação Ínclita geração 47 Para passares o tempo...

@novaemfolha.ae

@novaemfolha.aefcsh


Jornal AE

Outubro/Novembro

AE EM FOLHA

24.10.2023

As primeiras semanas de ano lectivo foram, também, as primeiras semanas de actividade visível da AEFCSH, após várias semanas durante o verão em que foi desenvolvido o trabalho que permitiu que tivéssemos arrancado o ano lectivo dessa mesma forma. Assim se explica que nestas primeiras semanas de aulas a AEFCSH tenha dinamizado um intenso contacto com os estudantes que acabaram de entrar no Ensino Superior, ouvindo os problemas e dificuldades que enfrentam nesta jornada. Estão bem identificados esses problemas - a propina, as taxas e emolumentos, as brutais insuficiências no financiamento público do Ensino Superior e da acção social escolar, seja nas cantinas, residências, bolsas bem como nos serviços de psicologia de cada Instituição de Ensino Superior, o actual Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), o Regime Fundacional, o processo de Bolonha, entre muitos outros. Todos esses problemas têm expressão na vida dos estudantes portugueses, em particular dos estudantes da FCSH, que encontram na sua Associação de Estudantes um meio de organização e de luta, um espaço de liberdade e discussão, uma Associação que não se cala nem se conforma, em defesa de um Ensino Superior Público, Gratuito, Democrático e de Qualidade. As primeiras semanas foram semanas de grande actividade. Realizámos um convívio com DJ set no primeiro dia de aulas para receber em grande os novos estudantes. Em setembro dinamizámos a Feira dos Núcleos, espaço em que os Núcleos da nossa faculdade puderam divulgar a sua actividade junto de todos os estudantes. Ainda em setembro iniciou-se a Semana da Arte, que se estendeu até outubro, semana de grande afirmação da defesa do direito à cultura e à democratização do seu acesso e em que se realizou um Concurso de Poesia, cujo poema vencedor é nesta edição do Nova em Folha destacado, uma Quizz Night com convívio a seguir, com a colaboração do Nhart na elaboração de um quiz, e uma actuação da Real Tuna NeOlisipo, a tuna da nossa Faculdade! A AEFCSH passou também a disponibilizar chá e café gratuitamente a todos os estudantes e já possui nova merch, nomeadamente canetas e tote bags. Nas próximas semanas realizam-se mais semanas temáticas - nomeadamente a semana dos jogos e a semana da igualdade - e o Grande Churrasco da AEFCSH, que à altura da publicação desta edição já terá acontecido, precedido de um momento de luta e reivindicação por um Ensino Superior sem barreiras no seu acesso e frequência. Em toda a actividade que virá nas próximas semanas e meses, o fio condutor será o mesmo de sempre - a defesa de um Ensino Superior Justo, em toda a linha, na defesa do direito à faculdade, ao lazer, à recreação, à cultura, a uma educação plena e íntegra. Da parte da AEFCSH queremos deixar ainda votos de muito sucesso às novas direcção e equipa do Nova em Folha, cujo trabalho desenvolvido muito promete e augura e em quem se depositam as esperanças de dar continuidade ao desenvolvimento deste jornal que é o jornal da AEFCSH e, por conseguinte, dos estudantes da FCSH!

3

04


A Crise da Juventude é não saber quando começa e quando acaba Out/Nov.

Guilherme Machado

Editorial

Ser Jovem parece ser o mais bem-sucedido esquema de iniciação que o século XX inventou A verdade é que durante séculos não havia juventude. Ou pelo menos não a havia

-se a água que flui da nascente antes de ficar turva ou o pensamento mais puro que

cada. Afinal, todo o adulto trabalhador e chefe de família foi em tempos um maoísta,

como a concebemos agora: uma força, um movimento, uma filosofia. A Juventude era na verdade uma possível expressão de várias

existe antes da corrupção da palavra, a Juventude parecia ser uma projeção de quem, sem conhecê-la, idealizava-a sem

certo? A ideia de Juventude que começou a cristalizar-se no pós-guerra foca-se muito neste conceito de “rito de passagem” pelos

virtudes e defeitos da Humanidade. Do Belo a Juventude fazia brotar os laudos enigmáticos do sublime, do intocado. Do sexo, a Juventude era a volúpia imanente de tardes lânguidas e o êxtase luxurioso de

concebê-la como ser vivo e animado e autónomo. Mas a Juventude renasceu. Ou pelo menos apropriou-se dos quesitos da sua problematização e começou a conceber-se

erros e crenças simplesmente erradas e absurdas dos anos em que cremos “conseguir mudar o mundo” - a Juventude é um troço do caminho que nos leva das trevas da infância à clarividência de uma

noites dionisíacas. Da criatividade esmiuçava os traços abjetos da ingenuidade e do amor conseguia traçar as linhas da inveja e da

a si mesma. Tomou conta das palavras que ora por escárnio, ora por apreço, a colocavam

velhice bem comportada, passando pelos tumultos da “revolução”. Mas esta vontade de explicar, porque

paixão mortal. Na literatura conhecemos as representações, através da Juventude, das formas mais puras e intensas das emoções.

como mero corredor entre a infância inconsciente e a cínica velhice. É importante que nos foquemos nesta ideia

razão atiraram os ianques as suas medalhas para o outro lado do muro da Casa Branca ou como é que foram capazes os jovens

Seja a primeira paixão do jovem Voldemar ou os amores desregrados de Eduard e Charlotte, as nossas imagens de juventude antes da sociedade contemporânea parecem indicar, antes da existência da Juventude como grupo, a sua existência como uma simples ideia, uma intensidade. Por mais que possamos associar certos anacronismos à Juventude - irrequieta, enérgica, passional, irresponsável, insensata - parece que durante uma boa parte da história da humanidade a Juventude era o mero signo para o que estava ainda por amadurecer. Sem mais rodeios do que ser-

de apropriação. Há quem diga que a nossa ideia atual de Juventude surgiu nas frestas das sociedades de consumo ocidentais do pós-guerra. Que a Juventude começou a ser Juventude quando começaram a comprar roupa e a ouvir rock, que começou a ser Jovem quando canalizou o seu espírito ingénuo para a Revolução inconsequente e para os pequenos atos de rebeldia e sedição. Mas esta história higiénica da Juventude, tal como os nossos antepassados, parece querer, antes de compreender a Juventude, idealizá-la e tentar inseri-la numa sociedade bem- edu-

guineenses de literalmente criar novas sociedades no vácuo do colonialismo português é a consequência desta vontade de minimizar o que realmente foi a considerada “emancipação da Juventude”. Porque é muito fácil associar os jovens aos mods de Londres ou aos cinéfilos parisienses e deles fazer troça, sabendo bem que esses jovens insuportáveis são agora pacatos adultos. Mas essa abordagem esquece propositadamente a natureza da “invenção” da Juventude - que, tal como a emancipa -

05


Out/Nov.

Guilherme Machado

Editorial

ção feminina ou a libertação dos povos colonizados, não foi “inventada” mas sim conquistada. Reside aí o antagonismo conceptual entre o “Jovem” e o “não-Jovem”. Isto porque quem creia que as causas e a efervescência da Juventude são momentos de passagem e aclimatização à sociedade bemcomportada, não é verdadeiramente Jovem. Mas apenas um “fellow traveller” do nosso movimento que não teve início, que surgiu de surpresa e que parece nem sequer ter uma designação correta. A Juventude é o resultado do momento de apropriação das estruturas linguísticas e mentais que significavam a sua opressão e apagamento para construir os verbos que sinalizam a sua liberdade. E este processo não decorreu paralelamente ao mesmo que às diversas instâncias de emancipação - mas sim, dentro delas. Não haveria “Juventude” sem a emancipação sexual e a libertação dos povos colonizados. Isto porque estas lutas, na sua origem, são ruturas e exigem qualidades que apenas a nossa Juventude foi capaz de fornecer - a capacidade de inventar, de sonhar, de ser ingénua e de lutar desalmadamente. “Ser Jovem é um estado de espírito”. Parece ser uma expressão batida, mas faz cada vez mais sentido quando percebemos que há mais juventude na contestação do que na aceitação. E que, se tivermos realmente dificuldades em definir o que é Juventude, a melhor forma seria designá-la como o ”renascer depois da crise”. Porque no fundo, essa é a única realidade permanente da “Juventude”. De pequenos grupos e cantinas comunitárias em 2023 à massa de jovens que fizeram as fileiras dos movimentos revolucionários e políticos eminentemente jovens do século XX, a Juventude acaba por ser este tumulto que cobre aqueles que vivem na fresta da crise, à qual reage tenacidade de ser jovem, um ato corajoso e fatigante, que tanto nos consome de imediato em pátios da escola como nos cospe aos trinta, cansados e exaustos. Não querendo concordar com a crítica que fiz ao conceito de Juventude como “transição”, talvez arriscar-me-ia em afirmar que, apesar da solidez da ideia de que a Juventude acaba quando se nos acaba o tempo, esta falha em acreditar que todos temos o mesmo tempo em todo o lado e a toda a hora. A Juventude não vai dos dezoito aos trinta anos. Assim como não vai do primeiro cigarro à primeira gravidez. Mas é, sim, uma existência que é definida pela crise - a crise moral de procurar o certo e o errado, a crise política de saber para onde ir mas não saber como e a crise emocional de saber amar mas não saber sentir dor. E a verdade é que, todos nós, tenhamos quinze, vinte ou cinquenta anos, somos possíveis vítimas da crise. Somos possíveis companheiros neste “corredor”. Porque no fundo, a crise e a vontade e capacidade de transformar, de ser ingénuo e apaixonado, de ser raivoso e infantil, de ter estamina ou cansaço, e de ser um eterno contestatário, assalta-nos a todos, e se calhar, várias vezes ao longo de uma vida. Seria até possível falarmos de “várias juventudes” em vez de apenas uma - a juventude africana e indiana, a juventude da nossa gente que quer casas para viver, a juventude dos nossos pais que querem ir ao psicólogo, a juventude de quem está esperançoso e a juventude de quem está farto. No fundo, as diferentes crises, as diferentes soluções e a única inquietação que resta: a de não sabermos porque somos Jovens, sem ser pelo facto de não sermos velhos.

Qualidades que apenas a nossa Juventude foi capaz de fornecer - a capacidade de inventar, de sonhar, de ser ingénua e de lutar desalmadamente.

06


Out/Nov.

Manuel Gorjão

Crónica

A juventude A juventude está perdida. A juventude é como Alfama, tem má fama. A juventude só sabe fumar cigarro. A juventude calada era poeta. A juventude está preocupada com o mundo. A juventude é jovem. A juventude uma vez até foi ao teatro. A juventude sabe mexer no telemóvel. A juventude tem boas maneiras. A juventude quer roupa nova. A juventude está gasta. A juventude vai acabar. A juventude ganhava em envelhecer. A juventude vê novelas. A juventude vai à escola. A juventude tira fotografias. A juventude não tem memórias. A juventude não tem memória. A juventude diz que viveu. A juventude ganhava mais em viver. A juventude e mais três. A juventude tem de abandonar às cinco. A juventude tem um canudo. A juventude aponta para um quadro e sai. A juventude vota à esquerda. A juventude atira a primeira pedra. A juventude diz não. A juventude diz que sim. A juventude era o verbo. A juventude acha isso belo e ama-o. A juventude sabe línguas. A juventude sabe música. A juventude é eterna. A juventude vai de vela. A juventude quer mudança. A juventude só quer a arte de plantar batatas. A juventude cheira mal da boca. A juventude tem opiniões. A juventude vai salvar o mundo. A juventude é que vai reconquistar Olivença. A juventude é fixe. A juventude tem os dias contados. A juventude não sabe nadar, yo. A juventude leu Saramago. A juventude vai à bola. A juventude é cosmopolita. A juventude é a melhor juventude de sempre. A juventude levou com o pós-modernismo nas trombas. A juventude é digital. A juventude é o meio onde está a virtude. A juventude é inteligente. A juventude é mais bolos. A juventude tem de se alimentar bem. A juventude passou à clandestinidade. A juventude é muito viajada. A juventude vai à praia bronzear. A juventude vai andando. A juventude e o diabo a sete. A juventude percebe de tudo. A juventude arranja a televisão dos avós. A juventude quer muito ver o filme que vai estrear. A juventude é mais papista que o papa. A juventude vai ao ginásio. A juventude quer a paz no mundo. A juventude vai às manifestações. A juventude gosta de gostar. A juventude usa cravo ao peito. A juventude não pesca nada disto. A juventude sabe a fórmula resolvente. A juventude vive um dia de cada vez. A juventude dá dois beijinhos. A juventude merece tudo. A juventude não ri de tudo. A juventude vai com as outras. A juventude não aprende. A juventude faz voluntariado. A juventude come a sopa toda. A juventude sabe o que dizem os seus olhos. A juventude sabe o que diz. A juventude diz o que sabe. A juventude faz tatuagens no braço. A juventude não vai em cantigas. A juventude dorme pouco. A juventude adora feriados. A juventude não tem idade. A juventude perde as chaves de casa. A juventude faz bem à saúde. A juventude tem juventude em quantidades industriais. A juventude vai salvar-nos do fascismo. A juventude anda às aranhas. A juventude é capaz de dar a volta ao mundo em quarenta dias. A juventude anda a pé. A juventude tem sete vidas. A juventude fala, fala, fala e ninguém a vê a fazer nada. A juventude tem dinheiro a mais na carteira. A juventude é coisa séria. A juventude só voa se for de passarola. A juventude diz que leu os clássicos. A juventude não tem cura. A juventude é a juventude.

07

A Fonte da Juventude, 1546, Lucas Cranach The Elder


Out/Nov.

Leonor Moreira

Ser jovem já nem rima

«Quero ser jovem e poder rimar Mais do que versos acabados em “ar” Mais do que palavras a divagar Mais do que ambições a esperar Que este país se faça acordar»

Olho à volta e canso-me

O que vemos é o que há

É um cansaço de incerteza

Para nós não será a folia

Não sei o que ver quando olho O que sentir quando toco O que escutar quando ouço Um dia dou conta que sou jovem

Poemas

Resta uma simples alegoria Do que nos falta e faltará Condenados à falta de tudo o que há Se há casas, não é para os jovens

Outro dia jovem numa cidade

Se há esperança, para os jovens não será

O dia a seguir jovem num país

Se há sorte, por onde andará

Um país onde nada rima Tudo esmorece, que sina a minha

Se há sonhos, nenhuma geração os tem Se há rima, só numa canção refém

Quero ser jovem e poder rimar

Não há tempo para querer

Mais do que versos acabados em “ar”

Não há espaço para viver

Mais do que palavras a divagar

Olho à volta e canso-me

Mais do que ambições a esperar

Espero não ter que esperar mais

Que este país se faça acordar

Por um país. Tarde demais.

08


Out/Nov.

Rodrigo Ferreira

Notícia Cultural

Uma verdadeira

SEXTA-FEIRA 13 para o Nobel da Literatura, e não só. Influenciada por Shakespeare, a mitologia grecolatina e T.S. Eliot, escritor vencedor do Nobel em 1948, Louise Gluck, incontornável poeta norte-americana,

A grande mística da poesia é conseguir chegar e

despediu-se de nós numa fatídica sexta-feira 13. Quer

tocar a toda a gente, principalmente se as

dizer, não chamaria bem a isto uma despedida; seria

temáticas forem tratadas com talento e minúcia

mais o cortar do fio pelas moiras da mitologia grega.

titânicas. A de Gluck era assim, tocante e

Além das imensas alusões aos gregos e latinos, Gluck

desconcertante.

presenteou-nos com temáticas transversais a todos

Despojada de formalismo, com uma linguagem

nós, como desilusões amorosas e familiares, as

bastante clara e precisa, Gluck apresenta ao leitor um

memórias de infância e, principalmente, a nossa

tipo de leitura muito fluida e natural. Deve ser por estas

existência enquanto seres mundanos que carregam o

características que aprecio tanto da escrita da poeta. A

peso do seu corpo pela solitude da vida até o fio se

literatura, assim como todas as artes, devia ser e estar

romper.

ao alcance de todos, de modo que a possam ver,

Como escreveu uma vez, “a vantagem da poesia

absorver e perceber.

sobre a vida é que a poesia, se for suficientemente

Gluck deixou a sua marca na literatura e,

incisiva, talvez perdure”. Não sei se perdurar é o

principalmente, nos leitores que, ao lerem os seus

termo certo para descrever a poesia, principalmente a

versos, se reviram nestes. Quem ainda não teve o

de Gluck. Perdurar dá-me a sensação de que um dia se

prazer de o fazer, deixo aqui quatro versos de um

esquecerá, como acontecerá com todos nós. A poesia

poema, que são segundo a história da literatura (a

é imortal, muito mais que o papel de fotografia que

minha história, uma vez que não é possível traçar uma

carregará o nosso rosto até, certo dia, não ser

história da mesma), os melhores da escritora vencedora

reconhecido por mais ninguém. Esse sim perdura.

do Nobel em 2020.

“crucial to know whether or not such happiness is built on illusion: it has its own reality. And in either case, it will end.”

09

Louise Gluck- “Earthly Love”


Out/Nov.

S ANGUE Novo

Laura Duarte

Moda

Os Herdeiros da Moda de autor

“Sangue Novo” é um concurso criado pela Associação ModaLisboa com o intuito de apoiar e exibir os novos talentos portugueses, competindo por um prémio de valor superior a 20.000€. A semifinal da mais recente edição decorreu no passado dia 6 de outubro, onde 10 criadores mostraram as suas coleções, passando 6 à próxima fase. Nos últimos anos, instituiu-se o costume do

ainda estudante no mestrado de Design de Moda na Faculdade de Arquitetura da UL e licenciado em escultura na Faculdade de Belas Artes da UL, apresentou uma coleção inspirada pelo mundo onírico da sua infância, que através da sua manipulação têxtil faz de cada peça uma escultura repleta de cor, textura e movimento; Gabriel Bandeira,

Sangue Novo estrear a passerelle da Lisboa Fashion Week, focando os holofotes nos jovens e iniciando o maior evento de moda de

um designer brasileiro que escolheu Portugal para estudar Design de Moda, na Escola Superior de Artes e Design no

autor em Portugal através do futuro da mesma. Os jovens designers, entre 18 e 35 anos, são previamente selecionados e

Porto, trabalhando, para além de Designer de Moda, também como modelo e diretor criativo, apresenta no

acompanhados pelos mentores (e jurados) do concurso, vindos de vários polos da indústria da moda portuguesa: Miguel Flor, Joana

Sangue Novo uma coleção de workwear moderno e jovem; Isza, recém-formada em Design de Moda pela Modatex no

Jorge, João Magalhães e Adriano Batista. Nesta primeira fase, os mentores juntaram-se à CEO da RDD Textiles, Ana Tavares, e à Coordenadora e Diretora Criativa da IED

Porto, apresentou uma coleção assente no casamento da tecnologia de inovação têxtil com a desconstrução da estrutura das peças como as esperanças; Maria do

Moda Milano, Olivia Spinelli, para escolher 6 dos 10 semifinalistas que apresentaram as suas coleções para passar à final que decorre na edição de março da Lisboa Fashion Week e, assim, também 1000€ para desenvolver a nova coleção, mentoria do júri e assessoria e mostra no showroom da Showpress. Nesta edição foram escolhidos excecionalmente 6 finalistas, em vez dos habituais 5, com estilos e métodos de abordagem distintos, priorizando sempre a sustentabilidade e futuro da indústria, mostrando que a moda portuguesa tem herdeiros à altura, sendo eles: Bárbara Atanásio, uma recém-formada em Design de Moda pela Modatex em Lisboa, identifica o seu trabalho como uma expressão humorística aliada ao upcycling e desconstrução notável na sua coleção que nos mostra uma exploração têxtil e camadas desconstruídas em movimento; Çal Pfungst, formado em Design de Moda pela Modatex no Porto e com uma licenciatura em teatro na ESMAE, também no Porto, alia estas duas paixões explorando a teatralidade da moda e as suas volumetrias e formas; Diogo Mestre,

Carmo, formada em Design de Moda de Womenswear na Central Saint Martins, em Londres, explora nas suas criações a feminilidade, sensualidade e fluidez através do upcycling, tornando assim a sustentabilidade não só uma promessa, como também parte do conceito da sua marca. Resta-nos esperar pela final do Sangue Novo, onde estes 6 finalistas competem por 2 prémios: um mestrado em Fashion Brand Management no IED Florença, no valor de 24.000€, juntamente com uma bolsa de 4.000€ e mentoria da ModaLisboa e um Estágio de 3 meses na RDD Textiles, com alojamento, onde poderá explorar técnicas para projetos pessoais, incluindo uma coleção para apresentar na plataforma Workstation da ModaLisboa, uma bolsa de 1.750€ e mentoria da ModaLisboa.

10


Out/Nov.

Ser Jovem Na Faixa De Gaza Nas nossas sociedades ocidentais, ser jovem carrega consigo uma conotação dupla e contraditória: o jovem é visto como o futuro e a esperança da sociedade, ao mesmo tempo que lhe negam quaisquer caminhos viáveis para ter influência real no seu futuro, protegendo-o como uma criança. O jovem é, portanto, portador da potencialidade de avançar a sociedade, na medida em que se torne adulto para o fazer, negando a sua condição atual como um “interregno” entre ser criança inocente e adulto responsável. Abordando uma realidade como a palestiniana, no entanto, torna-se evidente que esta contradição é um privilégio ocidental, pois a juventude aqui não só não pode transformar a sua realidade, como também lhe é negado o papel de ser apenas uma criança inocente. Assim, e face ao desenvolver da tragédia que hoje ocorre na faixa de Gaza, onde a idade média são 18 anos e mais de

11

Pedro Taveira

um terço da população (39,75%, segundo o governo dos EUA) tem até 14 anos, podemos observar esta hipocrisia no seu estado mais descarado. Os jovens de Gaza, há muito excluídos do resto do mundo pelas pesadas restrições de circulação que aqui vigoram há décadas, são esquecidos e desumanizados pelo regime de apartheid israelita. A ideia de castigo coletivo em Gaza pelas ações do Hamas é ao mesmo tempo um atentado à paz precária que sucessivos governos israelitas forçaram nas populações palestinas, como ainda faz de bode expiatório a maioria da população que aqui reside: crianças e jovens que nunca tiveram influência nestes processos, e que, agora, são mortos aos milhares pelos sucessivos bombardeamentos do exército israelita. A frieza desumana que acompanha estas decisões de Israel é suportada pela sua propaganda, em conjunto com a conivência hipócrita do espaço mediático nas nossas sociedades liberais: uma criança morrer é uma tragédia incompreensível, enquanto que o massacre sistemático de populações jovens indefesas é justificado pelo trauma do terrorismo. É claro que isto mostra as dimensões hierárquicas que o poder político implica: afinal de contas, Israel é um aliado, enquanto que a Palestina nem sequer um estado formal pode ostentar para defender a sua população.

Política

O fim da tragédia na faixa de Gaza terá que começar pelo cessar-fogo, mas nem assim o seu futuro está assegurado. É urgente e necessário empoderar a juventude que aqui vive, a maioria da população, para que possam olhar o seu futuro e tomar o seu destino pelas suas próprias mãos. As condições em Gaza para os jovens são apavorantes, fruto do bárbaro bloqueio israelita que condiciona a entrada e saída de pessoas e bens, provocando uma realidade indigna para um jovem: segundo as estatísticas da ICRC, uma ONG de assistência humanitária, 5 em cada 10 jovens entre os 18 e os 29 anos vive com ansiedade ou depressão; 7 em 10 são desempregados, o mesmo número que diz não acreditar alguma vez vir a passar um dia inteiro sem cortes na eletricidade (controlada por Israel), nem vir a ver o fim das hostilidades e bombardeamentos na sua vida. É importante, hoje como sempre, reconhecer que a paz não pode ser um privilégio de uns, e olhá-la como prérequisito para o desenvolvimento de um jovem.

Ao impedir os jovens da segurança necessária para poder visionar o seu futuro, criamos as condições para o seu desespero e radicalização, raízes da guerra e do terrorismo.


Out/Nov.

Madalena Andaluz

Política

Na juventude a força do futuro Perante os acontecimentos recentes a nível internacional, nomeadamente a situação palestiniana, não pude deixar de refletir sobre as bases históricas da posição e resistência estudantis e juvenis nestes contextos. Nós, jovens, estudantes universitários, com o tempo para sermos conscientes, para pensarmos e para nos revoltarmos face às injustiças sociais e à realidade material da nossa condição, deparamonos, nestas circunstâncias, com a impotência política, apesar de uma imensa solidariedade com o povo palestiniano. Assistir ao discurso dominante dos media ocidentais acerca deste assunto é sentirmos que a História nos está a passar por cima; é vermos um lado da narrativa a tomar o palco e a apropriar-se da ‘verdade’. A hipocrisia ocidental, e a sua aparente aceitação por grande parte das pessoas, persegue-nos e assombra as nossas perspetivas. Esta hipocrisia é o status quo.

Diante este cenário, a juventude, historicamente, aparece enquanto a voz que faz frente à narrativa dominante, que contraria o status quo e que apela a uma consciência histórica e humana (face à situação palestiniana). Para uma comunidade internacional que se mostra complacente aos crimes de guerra e crimes contra a humanidade de Israel, há uma juventude, (e não só), que reivindica os direitos do povo e do Estado palestinianos. O histórico do associativismo estudantil mostra-nos isto: desde a França na década de 1950 – em que, enquanto o governo e uma grande parte da opinião pública francesa cooperavam com os horrores da guerra na Argélia e tinham como bandeira ‘Argélia francesa’, a UNEF (Union nationale des étudiants de France) saiu às ruas e gritou ‘Argélia para os argelinos’ – à enorme greve estudantil de 1970 nos EUA contra a continuidade da Guerra do Vietname, a juventude mostra-se contra o escalamento de guerras coloniais e neoimperialistas com as quais o ocidente, EUA à cabeça, se mostra tolerante, prestável, cúmplice. Hoje, como ontem, a esperança de que os governos e media ocidentais reconheçam os direitos nacionais da Palestina e apelem a uma resolução pacífica de coexistência, parece morta, restando-nos a sua cumplicidade com os interesses económicos e políticos da guerra e da chacina do povo palestiniano na faixa de Gaza. A esperança é, assim, encontrada na juventude, na sua solidariedade e revolta: as declarações de apoio da Federação dos Estudantes da Índia à embaixada palestiniana é exemplo disso, assim como o é a carta pró-Palestina escrita pelos estudantes do Comité de Solidariedade com a Palestina de Harvard. A própria AEFCSH tem apelado à sua posição solidária com o povo palestiniano através de iniciativas como o acolhimento do debate organizado pelo Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente o ano passado. São estas algumas das importantes vozes que desafiam o discurso dominante, que pinta Israel de cor-de-rosa e compactua com a sua política de extermínio étnico e apartheid.

Para além disto, as ruas, em múltiplos cantos do globo, têm-se enchido de protestos que expressam apoio à Palestina e se revoltam contra a posição dos governos ocidentais, que têm vindo continuamente a declarar a sua solidariedade com Israel. É importante não esquecer que em muitos estados europeus os protestos pró-palestina foram proibidos: uma afronta ao direito à manifestação e um passo em frente à normalização de medidas fascizantes na Europa, que começa com a própria conivência com o regime de extremadireita israelita. Pinto, Vitor. “Grande Manifestação Em Lisboa Contra a Agressão Ao Povo Palestino.” MPPM, 30 Oct. 2023

12


Out/Nov.

Mariana Aleixo

Entrevista

Diogo Mendes: “Mudar o mundo está diretamente relacionado com a pessoa que eu quero ser” Foi na Faculdade de Economia do Porto que Diogo Mendes percebeu qual era a sua vocação. Hoje, com 29 anos, é um dos fundadores da U.DREAM, uma associação sem fins lucrativos que incentiva jovens universitários a fazer voluntariado. Ensina-os a utilizar as suas competências para ajudar a comunidade, acreditando que não é preciso grandes ações para mudar o mundo.

A partir de que altura consideras que surgiu o interesse em trabalhar com a comunidade? Eu acho que nunca existiu um momento formal em que tenha percebido que a comunidade precisava da minha bondade, do meu tempo ou da minha energia. Aliás, eu até acho que não existe um momento em que nós, cidadãos, sentimos essa responsabilidade. É algo que se trabalha com o tempo e com a experiência que adquirimos. O acaso de me querer colocar em experiências diferentes fezme conhecer as dificuldades e os desafios das comunidades que me rodeavam e perceber que podia ser importante na sua resolução.

Sentes que o teu percurso escolar e académico ajudou no desenvolvimento do trabalho com a comunidade? Acho que sim. Acho que nós tendemos a desvalorizar as competências técnicas que aprendemos na faculdade e, ao longo da vida, acabei por perceber que a área em que me formei foi muito útil para entender como um projeto social pode ser sustentável, subsistir no tempo e compreender a linguagem empresarial e a comunicação com os media. O meio académico foi também útil para crescer enquanto ser humano capaz de funcionar com outros, de viver em organização, de liderar e de ser liderado.

13

Que experiências de voluntariado destacas ao longo da tua vida? É inevitável falar da minha primeira experiência. Foi uma missão humanitária de dois meses e meio na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Foi uma missão muito simples e vivêmo-la também de forma simples, emergindo completamente na comunidade, pois tínhamos pouco contacto com Portugal. Foi uma experiência muito verdadeira e marcante, porque vivi na pele o mundo oposto. Compreendi o que é a escassez de recursos, a fome e a falta de segurança e isso transformou-me como pessoa.

Que aprendizagens experiências?

retiras

dessas

Acho que a principal é que todos nós podemos de alguma forma transformar a nossa comunidade e que mesmo no meio de um desastre irreversível, há sempre algo que podemos fazer pelos outros. Existe sempre forma de sermos úteis e, até ao último dia da minha vida, eu vou querer ser essa pequena diferença na vida das pessoas.


Out/Nov.

Como é que surgiu a U. DREAM na tua vida?

A U. DREAM surge da experiência de vida de um colega com quem trabalho há 10 anos, que teve um problema de saúde complicado quando era jovem. Ao passar muito tempo em hospitais, ele percebeu a importância dos pais, dos enfermeiros e dos voluntários na vida destas crianças, que sofriam imenso e que viam a sua vida ser roubada injustamente. Foi pela vontade de jovens usarem as suas competências de gestão para realizar sonhos que a U. DREAM nasceu. Trocávamos os conhecimentos que adquiríamos por bens e serviços que essas crianças pudessem precisar, tentando tornar mais feliz aquela fase mais complicada das suas vidas, dando-lhes alguma esperança.

Quais eram as tuas funções iniciais na U. DREAM? No início, aquilo que fazíamos era estar perto de quem precisasse, de ouvir as suas histórias e compreender as suas dores. Na altura, a curiosidade e a coragem fizeram-nos querer estar perto dessas famílias e era só isso que fazíamos. Eu, em particular, estava encarregue das relações externas, ou seja, fazia contactos e arranjava patrocínios. Nos primeiros anos, fazíamos coisas muito simples, como um passeio ao Jardim Zoológico ou o imitar de uma personagem que as crianças gostassem. Isto levou-nos a acreditar que coisas mais simples fazem diferença.

Mariana Aleixo

Hoje, o grande objetivo da U. DREAM é ajudar os jovens a compreender os problemas das suas cidades e, ao mesmo tempo, ajudá-los a perceber que eles têm potencial para os solucionar de forma simples, utilizando as suas paixões e competências.

Achas que tens influência nos outros, sobretudo em jovens universitários, agora que te encontras mais próximo deles? Sim. Acho que todos nós nos influenciamos de alguma forma. Eu

Entrevista

E, atualmente, qual é o teu cargo na U. DREAM? Apesar de ser um projeto pequeno, as minhas principais funções são a comunicação e tudo o que implica na relação com aqueles que são influenciados pela organização. Faço também a gestão e a aplicação da metodologia U. DREAM em jovens. Preparo e verifico se os conteúdos estão próximos da realidade e depois entrego-os aos jovens.

acho que influencio positivamente as pessoas que me rodeiam, não todos os dias, mas, regra geral, sim. Diretamente os jovens com que trabalho, até porque faz parte das minhas funções de formação. Porém, esse não é o tipo de influência que procuro. Eu procuro influenciar as pessoas que estão perto de mim todos os dias. De que me adianta ser um bom formador, alguém que gera impacto na comunidade, se depois não consigo ser um bom filho, neto e amigo? Esta influência só se consegue com congruência, que se vê nas pequenas palavras e ações diárias. Exige muito trabalho, mas é o que me orgulha.

Como sentiste o crescimento da U. DREAM nos últimos anos? Depois da realização dos primeiros sonhos, a U. DREAM transformou-se num projeto educativo que passou a ver, não na comunidade o objetivo final, mas nas pessoas. O público-alvo passou a ser os jovens, ensinando-os a fazer aquilo que nós descobrimos quando tínhamos 19/20 anos.

14


Out/Nov.

Emmanuel Walcher

Crónica Política

A inconstitucionalidade da “boiada” Enquanto rios secavam na Amazónia, enquanto ciclones transbordavam rios no Sul, enquanto uma onda de calor acostava o país em fim de inverno, na capital se disputava mais uma batalha de mais uma interminável guerra política do Brasil contemporâneo. Tão acostumados já estamos ao apocalíptico clima de fim de festa do século XXI (e em especial desta década) que tranquilamente o mais desavisado poderia afirmar que vivemos em aparente calma: this is fine. Mas não: vivemos em tempos de crescente emergência climática e de um agudizar de polarizações políticas, sendo que neste capítulo em especial não só a política e o clima dividiram as notícias como também se interseccionaram: a 20 de setembro, o Supremo Tribunal Federal do Brasil declarou que a tese do marco temporal aplicada a demarcação de terras indígenas fere a constituição, aparentemente pondo fim à tentativa reacionária de cercear direitos aos povos originários. A tese defendida por ruralistas/bolsonaristas visa em nome da “defesa da propriedade” restringir o direito às terras dos povos originários à data de promulgação da Constituição brasileira (5 de outubro de 1988): somente seriam demarcadas terras indígenas as que estivessem ocupadas ou em disputa na referida data. Se atualmente no abrigo da lei, que reconhece o direito ancestral as terras pelos povos originários, tanto se luta e tanto se morre para o reconhecimento das terras, com a aprovação do marco temporal, o Brasil seria palco de um genocídio e ecocídio legislados. Exatamente aí reside a diferença - “legislado” - porque o genocídio e ecocídio acontecem desde 1500 e nunca demostraram sinal de arrefecimento, somente ganharam o verniz industrialburocrático do atual colonialismo/capitalismo. Apesar de ferir a constituição, o marco temporal (sobre o disfarce de um projeto de lei mais “abrangente”) avançou no Senado, aproxima se da votação final no plenário e já gera burbúrio na base governista. Afinal a decisão do STF no atual clima político não é um fim definitivo à situação, este assunto é uma das intermináveis guerras políticas brasileiras que no fim do dia se confundem em uma só: a perseguição dos direitos das minorias por uma direita radicalizada. Não importa o mundo caindo ao seu redor, o bolsonarismo persiste a caçar direitos e a colocar a sanha imperialista na frente do bem-estar geral do planeta. Com o genocídio legislado do marco temporal, o ambiente sofre um severo ataque pois as populações originárias sempre estiveram na linha da frente da defesa da biodiversidade, atacá-las é colocar em risco biomas não só brasileiros, mas de importância global, como a Amazónia. E assim segue o Brasil em cabo de guerra à beira do abismo: as minorias continuarão a re-existir, seguindo o exemplo dos povos originários que desde 1500 confundem vida e luta face a um ímpeto desenfreado de tudo desmatar; a direita radicalizada continuará a procurar direitos para caçar (no momento da escrita o casamento homoafetivo é a presa desse bando de hipócritas desocupados); entretanto o clima muda a cada duas semanas em presságio das transformações irreversíveis que nos esperam. Nada de novo debaixo do sol, bom apocalipse!

15


Out/Nov.

Diogo D’Alessandro

Desporto

O Desporto

Universitário

O desporto universitário pode ser um grande fenômeno. Se olharmos para os Estados Unidos, é fantástico ver a paixão que existe em torno das equipes universitárias, e ver pessoas que torcem fielmente por equipas de Universidades, nas quais nem estudaram. É impressionante a valorização do esporte para os jovens nos EUA. Basicamente, todas as escolas têm equipas dos principais esportes, e isso se repete no ensino superior. Os jovens têm a possibilidade de disputar grandes competições em nome das suas faculdades, e é incrível as proporções a que algumas dessas competições chegaram. A primeira divisão das principais ligas universitárias (basquetebol, futebol americano e vôlei feminino) chegam a ser transmitidas em rede nacional, com transmissões de nível profissional. As arenas lotadas nos principais eventos também são admiráveis. As torcidas compostas por outros alunos, familiares, ex-alunos e até mesmo pessoas que não estão nesses grupos, mas tem alguma ligação com a universidade em questão têm papel crucial em toda a festa que envolve os jogos. Enquanto isso, no Brasil chega a ser triste fazer essa comparação, já que, por mais que existam ligas universitárias, não chegam perto do tamanho que as norte-americanas chegaram. As competições no Brasil são, normalmente, organizadas pelos próprios estudantes, além de toda a comissão técnica de uma equipa. Mesmo as grandes universidades dependem das “Atléticas” para ter as equipas de desporto. Essas organizações estudantis são responsáveis por praticamente tudo o que concerna às equipas, como marcação e organização de jogos, criação de competições, montagem de equipe, etc. Além disso, boa parte das competições entre universidades são, no fim, uma desculpa para os alunos ficarem bêbados (não que precisem de desculpas para isso). A diferença da valorização é bem clara, não que a forma que é feita no Brasil seja ruim, é a forma que encontraram de existir, e já é algo de se admirar. Se analisarmos esse mundo aqui em Portugal, vemos algo “no meio” dos outros casos. Enquanto há ligas bem organizadas e levadas a sério, não existe um público tão adepto. O padrão é ver as arquibancadas preenchidas (mas não cheias) por familiares e amigos dos atletas. As competições chegam até o nível continental, as equipas podem disputar o torneio europeu- óbvio que, para isso, precisam de ir vencendo os níveis mais baixos, mas de qualquer forma é muito bom ver que há incentivo para as modalidades universitárias, por mais que esse não seja o ideal ainda. Percebemos que, por mais que exista espaço de crescimento e melhoria do incentivo e dessa cultura em Portugal, não é o pior dos mundos. Os atletas têm qualidade nos locais de treino, disputam competições realmente organizadas e tem a chance de competir contra equipas de todo o continente. É possível e necessário melhorar, mas também é preciso respeitar o que já é feito, já que é claro que há lugares que não conseguem acompanhar a qualidade.

16


Out/Nov.

Rúben Ribeiro de Sousa

Opinião

Vejo o futuro por um canudo Ao dia que lhes escrevo, o sistema de ensino português é absolutamente obsoleto. Não, não venho da década de 1980. Ainda que as aulas já fossem desajustadas na altura, a única reforma que foi feita no ensino, desde então, foi a dos retroprojetores, que vieram a dar lugar aos excitantes Powerpoints. Depois de assistirem à sua memória ser avaliada à centésima em todas as áreas do saber – da FísicoQuímica até à História, da Língua Portuguesa às mais reputadas línguas europeias, passando pelas Artes gráficas e pelo Desporto –, as nossas crianças têm a convicta ambição de que lhes espera um futuro próspero (ou, como se chama agora, um “diploma”). Ao ensino obrigatório, segue-se obrigatoriamente a faculdade – como é natural, o talento é posto à margem e os miúdos são colocados (sim, “colocados”, como se faz com os bibelots) em Mui Nobres Instituições onde, regozija-se, serão, desta vez, avaliados às décimas. Já com os certificados na mão, estão “#OpenToWork” no LinkedIn, mas, lamentavelmente, as empresas lêem “Open to ser explorado e, no final do mês, as centésimas dão lugar aos cêntimos (nota do autor: eles não chamam “cêntimos”, chamam nomes mais elegantes como “ajudas de custo”, “subsídio de alimentação”, ou, para os mais arrojados, “nada, mas ganhas experiência”). Estou convencido que o ensino e o teatro estão intimamente ligados. As luzes das salas de espetáculos apagam-se, creio, para o foco passar a estar no que acontece em palco, esquecendo assim a vida real à volta. Ora, no ensino é igual: fica tudo escuro até que um holofote ilumina a quimera do canudo. Consegui! Ligam-se as luzes e o que se vê é a realidade – todos conseguimos o mesmo e urge começar a correr, porque os mais desenvencilhados já tiraram a senha para o IEFP. Sabe porque é que odeia a segunda-feira? Já pensou que o seu trabalho é inútil para a sociedade? E o seu chefe? Odeia o seu chefe? Não se consegue levantar da cama ao décimo despertador? Desistiu de um curso? Despediu-se? Faltou à escola/à faculdade por razão nenhuma? E ao trabalho? Mentiu para faltar ao trabalho? Encontrou um colega a meio da semana a faltar ao trabalho? A resposta é ‘claro que sim’ a muitas (ou todas?) estas perguntas. Uma breve história: Eu estava no secundário numa aula de Biologia e Geologia, segunda-feira às oito e quinze da manhã. A professora, com os seus cerca de 97 anos, explicava a matéria com o entusiasmo que a hora e o seu septuagésimo ano de ensino mereciam. Até que ela pára e, por entre solavancos de expectoração, dá um “mini-grito” ao Martim, que estava a cochichar desde o princípio da aula: “Cale-se, seu insolente! Estou a falar de uma matéria que o vai acompanhar para sempre – os ATP energéticos.” Eu não sei o que faz da vida o Martim, mas a mim apraz-me dizer o seguinte: - Cara professora, eu não sei o que é um ATP (e ainda bem, pois nunca mais ouvi falar disso), mas uma coisa ficou-me na memória: a senhora odiava as segundas-feiras.

17


Out/Nov.

Gürkh, 27.09.3023

Poemas

Pequeno - almoço

Fria chegada ao campus, Um cigarro vou fumar. Bons auriculares pus, Alice in Chains vou escutar. Café, esse com moeda, Da máquina vou tirar. Sabe a água suja (merda), Mais um dia p'ra lixar.

18


Out/Nov.

Lucas Berenguer

Aquela cena que o Tocha Humana diz antes de voar Quando éramos mais novos, ensinavam-nos os conceitos de ambição e de trabalho com figuras de escadas e frases feitas, como “os primeiros passos são os mais difíceis”. Nós ouvíamos aquilo e não levávamos o fim da escadaria a sério, tal como ninguém nos falava a sério do ensino superior aos 10. A verdade é que a escada acaba num sítio tão alto que consegues ver uma parte avassaladora do mundo ao teu redor, e uma senhora idosa simpática entrega-te um par de asas, feitas de penas e de cera, e diz “Agora salta, amor.” Se não tiveres a certeza de onde queres aterrar, e de que ventos queres apanhar até lá chegares, vão dizer-te que ainda tens tempo, que não é preciso desesperar, mas vão contar às amigas do café sobre o jovem mal encaminhado e acender duas ou três velas por ti. Ninguém te prepara para ser jovem no ensino superior, num mundo que se vai consumindo a cada dia que passa. Tal como os antigos caminhavam nas brasas para dominar a paz, nós também vamos suando rios por outubro adentro, enquanto as gerações acima, nos seus poços de calma e de virtude, vão rogando pragas àqueles que querem ser “do contra”. “Onde é que já se viu, parar o trânsito por essa coisa das alterações climáticas? Mais uma coisa impertinente que esses jovens inventaram, como os BeReals e a depressão.” Vão empilhando o peso do futuro nas tuas mãos, quando ainda tens toda uma juventude para ser vivida; tens sonhos, paixões e sentimentos, tens coisas a fazer e a dizer que te dizem tanto, mas para as quais o futuro te rouba tempo. Tens esse fogo no coração, como também tens um fogo na cabeça; tens um no corpo, tens outro nos pés, e vives num planeta que te espelha. Não é justo. O importante aqui é notar que não estás a arder. Estás com muito calor, muito soninho do sol, mas esses fogos todos estão dentro de ti, preparados para que tu os uses, seja para o que for. Também não precisas das asas que eles te dão para voar, nem de saltar do fim da escadaria. Podes descer alguns degraus e ver se assim te dá mais jeito o salto. Podes até sentar-te num deles até teres a certeza do que fazer. O caminho é teu para ser feito, não deixes que mais ninguém te diga como o ver. Se nem o quiseres entender como uma escada, podes também mandar-me a mim ir passear.

Mas voa, com tudo quanto tens, em direção a tudo o que tu quiseres. Voa. 19

Crónica


Out/Nov.

Inês Moreira

Livros

A sociedade do cansaço “A globalização exige a superação das diferenças entre as pessoas, pois quanto mais estas forem idênticas, mais veloz é a circulação do capital, das mercadorias e da informação” , reflete Byung Chul-Han em “A expulsão do outro”. jantar (e dormir). É retirado aos jovens o tempo para a criatividade, para a convivência, para a cultura, e o tempo pa-ra ter, efetivamente, vontade de fazer algo. Rapidamente os humanos deixam de ser percecionados como sendo “human beings” e passam a ser tratados como “human doings” – são criados cidadãos cujo valor reside no produto das suas ações, em detrimento de cidadãos tolerantes e verdadeiramente livres, em contacto com o meio que os rodeia e com a sua verdadeira natureza. Byung Chul-Han denomina este fenómeno como a “Sociedade do cansaço” – na obra assim denominada – em que a ansiedade, o burnout, o Numa sociedade que cultiva cada vez mais a ideia de autenticidade, expressividade e liberdade, o autor questiona-se sobre como esta narrativa é usada pelo neoliberalismo para virar os sujeitos para dentro, eliminando a existência do outro e fomentando a criação de um “eu narcísico”. Desde tenra idade somos envolvidos numa cultura de maximização de produtividade na qual nos é impregnada, como seres produtores, uma insuficiência cíclica, que desenvolve uma cultura de “auto-exploração”. Isto é principalmente visível na genZ, em que, na juventude, para além da escolaridade obrigatória, é bastante comum o indivíduo frequentar cursos de línguas e/ou praticar algum desporto e/ou instrumento musical e/ou frequentar algum tipo de reforço escolar, como explicações ou centros de estudo. Observam-se, inclusive, crianças de 10 anos que, após as 8 horas obrigatórias passadas na escola, chegam a casa com uma carga de trabalho pendente elevadíssima e que, a isto acrescido, têm de frequentar algum tipo de atividade extracurricular. Restam-lhes apenas tempo e energia para

“trabalho compulsivo” e a depressão atingem níveis sem precedentes, em camadas cada vez mais juvenis. Graças à transformação de “uma sociedade de obediência” numa “sociedade livre” onde o sujeito se apresenta como “empresário de si próprio”, maximiza-se a individualização, a autoexploração e a alienação, através da vida acelerada e da pressão que o trabalhador, desde aprendiz, exerce sobre si mesmo. A exploração passa a ser feita não só pelas instituições, mas também pelo próprio sujeito contemporâneo, que deseja incessantemente realizar o seu mais alto desempenho e produção, convencido que é desta forma que mais contribuirá positivamente para a sociedade. A eficiência laboral instituída pelo neoliberalismo através da competição e da autorrealização, descoberta através da retribuição financeira, leva a um esgotamento nas camadas mais jovens da sociedade e a possibilidade de medir o sucesso através de números leva, frequentemente, a uma sensação generalizada de falhanço constante. Esta “sociedade do desempenho” de-

senvolve-se em total dissonância com os valores humanistas, eliminando de tal forma o descanso e o lazer que até as atividades prazerosas do indivíduo se transformam regularmente numa positividade tóxica que visa alterar o próprio prestígio, de forma que possa alcançar uma posição mais alta em relação ao outro. Este fenómeno é, não só mas também, possível de verificar em ambientes académicos, onde a entreajuda e a comunidade dão cada vez mais lugar à competição, onde a divisão estudantil é um fenómeno cada vez mais visível e notório e onde a verdadeira educação transita para um plano secundário, dando lugar a uma nova educação que é vista como sendo algo que deve ser merecido, monetária ou intelectualmente, ao invés de ser encarado como um direito.

20


Out/Nov.

Tomás Vila Nova

Crónica / Cultural

Para onde nos leva a Arte nos dias de hoje? Para onde nos leva a Arte nos dias de hoje? Não leva. A degradação do mundo artístico é cada vez mais evidente, seja ela em que disciplina artística for; a pintura que se torna cada vez mais abstrata e nada inspira; a literatura que se afasta dos grandes temas filosófico-sociais e mergulha em bestsellers erótico-sentimentais americanos; o cinema que passa a mero conteúdo no joguete comercial dos grandes estúdios e das grandes plataformas de streaming; ou a música que perde o seu poder interventivo e passa a meras “batidas” desprovidas de conteúdo transformador.

Evidencia-se a evolução do capitalismo no campo artístico pela sua falta de sentimento e falta de fomento ao espírito crítico. A juventude de hoje (nós) não tem Godard para nos inspirar a pensar e a transformar o que vemos, nem tem Picasso a pintar «Guernica» como demonstração das atrocidades da guerra, nem temos Brecht e a sua poesia, e nem Zeca Afonso a intervir. Em vez disso, temos os “theme parks” da Marvel a alienar as massas, desprovendo-as desse mesmo pensamento crítico; temos bananas em telas brancas; temos um certo apresentador do telejornal a ser-nos apresentado como grande escritor e intelectual. Não estou, contudo, a dizer que não existe Arte em todo

21

o seu sentido nos dias de hoje. Mas é visível que ela é cada vez mais abafada nos grandes meios de comunicação ou exibição. A própria forma do ensino da disciplina de português desmotiva a leitura desde cedo, sendo esse um dos principais fatores pelos quais a taxa de leitura no nosso país é tão baixa. A própria degradação da Arte poderá mesmo estar ligada ao facto de Portugal ser o 2º país da OCDE com maior consumo de antidepressivos. Como se pode ser feliz num mundo cada vez mais vazio de sentimento, de paixão, em que temos cada vez menos tempo de ócio para a criação ou para a própria apreciação artística? Anos e anos de política capitalista trouxeram-nos até aqui. A falta de investimento no meio artístico, o controlo de grandes empresas sobre os meios de distribuição, e tudo o resto que já aqui foi dito, deixaram-nos chegar a este ponto. O sistema capitalista apercebeu-se de que a Arte tem um poder transformador na sociedade e, desde então, tem tentado a todo o custo torná-la em algo meramente superficial que promova o conformismo e o individualismo. Não podemos ter uma Arte para todos enquanto não tivermos tempo para viver. Não podemos ter uma Arte acessível a todos enquanto o sistema capitalista estiver de pé no nosso país.


Out/Nov.

Tiago Inácio

Crónica

Mais vale dois pássaros a voar do que um na boca do gato Os jovens são demasiado ambiciosos, eles querem tudo e mais alguma coisa. Não se contentam com nada e procuram sempre algo mais. Acima de tudo, os jovens são uma cambada de ingénuos que vivem no reino das nuvens e dos sonhos. Todos os sujeitos mencionados partilham dum certo caráter “utopista-idealista”, procuram confrontar a realidade com a sua própria conceção normativa de como as coisas deviam efetivamente proceder. Grande parte das vezes, ao apresentarem uma determinada configuração moral, esta arrisca-se, logo à partida, a sair contaminada pelo próprio facto de emanar dum sujeito situado num determinado espaço histórico. Isto acontece no caso daqueles que apregoam por um mundo mais justo, mas que ao final de contas repetem aridamente os valores da Revolução Francesa. Visto isto, surge uma necessidade urgente dos jovens em adotar uma posição realista perante a possibilidade da sua ação. Adotemos assim um tom maquiavélico que pretende acima de tudo analisar a realidade tal como ela é, e não como esta deve ser. Trazemos o reino dos sonhos e das quimeras à Terra e agora sim podemos proceder com a nossa análise calma e pragmática. Tomamos a investigação histórica como central para o nosso empreendimento e compreendemos a nossa época histórica como o resultado dum encadeamento temporal específico, mas então e agora? Provavelmente a história mundial já finalizou o seu trajeto demoroso. É aqui precisamente que o realismo se mostra limitado para lidar com aqueles que anunciam o fim da história. Este está de longe capaz para encarregar-se de pensar o futuro de forma satisfatória, apagando completamente a possibilidade de contingências históricas. Um projeto que não pensa fissuras e incompletudes mas apenas totalidades fechadas e resolvidas sucumbe ao falhanço; um movimento que não aposta na reflexão do horizonte infinito de alternativas arrisca-se acima de tudo a tornar-se mero porta-voz dum determinado período histórico. Parece que ainda estamos a trabalhar com as antípodas colocadas pela famosa frase de Marx: « Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo». A pergunta que se coloca então: Como raio se constituem sujeitos à frente do seu tempo?

22


Out/Nov.

João Strecht

Crónica

Crónica de um sítio que foi Cortaram a árvore da casa que fica à esquina da minha rua. A pintura pálida das suas paredes desbotara, a tinta escamava pouco a pouco, consumindo paulatinamente aqueles dois andares, subindo e descendo – sem critério. As casas também morrem quando lhes cortam as árvores, essas testemunhas absolutas de todos os acontecimentos, dos movimentos e das agitações. Criaturas privadas, não se apresentam, só se despedem – e como são tristes as suas extensas despedidas. São grandes ouvintes, e, por vezes, uma grande ouvinte basta, fortuitamente alguém que olha inalterável é o necessário para sobreviver, para enfrentar um dia - uma vida. As janelas da casa fitavam-me vazias, refletiam outros tempos, um eu não existente. Verticais e altas no primeiro piso – convidativas. Quadradas e canónicas no segundo – reservadas. Queimaria a vista como quem olha para o sol se as continuasse observando. Outrora a casa fora de um amarelo vivo, emanava luz; da árvore brotavam flores brancas, tímidas, que surgiam singelas e esparsas entre a folhagem escura. Os ramos eram desorganizados, não existia copa, talvez se devesse a essa característica a minha afinidade pela árvore – era extremamente humana. Podia olhá-la e sentir compreensão, “vejo que também te custa este dia”. Havia vida naquela casa: a casa, a árvore, as janelas eram minhas colegas de adversidades. Agora passo por lá perguntando-me o que aconteceu, qual o motivo que levou à morte da árvore, o que matou a casa? O que sucedeu às pessoas que durante a minha juventude cuidaram e deram sentido àquele sítio? Mudaram-se? Morreram? Agora passava por ali e sentia o passar dos anos pesar no corpo. O tempo parava de ser atribuído à duração dos momentos – era a minha vida que passava. Eu desbotava e escamava como a casa, morria parte incerta em mim com aquelas duas mortes não notificadas. Onde está o obituário das casas amarelas e das árvores de flores brancas? A infância que agora encarnava naquela esquina surgia-me como neblina, pousando e cercando-me lentamente – não lhe resistia. Quantas vezes passara por ali dando por assegurado que aqueles amigos sempre permaneceriam? Sem os considerar, cumprimentar, dedicar-me. A infância também é isso, pensava, tentando consolar-me – um passar ao lado, um desprezo pela temporalidade, pela finitude. Talvez por isso atribuímos a esta idade a plenitude, a graça – pureza. Só quem é puro de espírito é que pensa, olha, vive, despercebido da temporalidade e mortalidade que o cerca. Era grande a tristeza que agora em mim se gerava por não ter apreciado aquelas flores. Sempre pensara que estariam ali para mim até não estarem. Porventura a juventude é esse mesmo olhar, um dado como certo, uma acrescida necessidade de crescer julgando que somente nós nos alteramos – o resto? Constante. Não conseguiria saber se era assim, o eu em pequeno foi dado como desaparecido há muito, só tinha a certeza de que aquela árvore havia sido cortada e morrera, talvez antes de ser cortada. Com ela desaparecera qualquer possibilidade de regressar a esse tempo – qualquer possibilidade de reconstituição. Era-me interdita a entrada, da vida da árvore, da casa e das possibilidades de juventude. Era uma vez uma infância, uma casa, uma árvore – interligadas, interdependentes. Porque permanecera eu? Não permanecera. Eu já não era, morrera também– quem escreve agora foi só testemunha.

23 O jardim do artista em Vétheuil, Monet, 1880


Agenda cultural out/nov. 24


Cinema. OUT

31

COM A LINHA DE SOMBRA (sessão sobre o colonialismo em Timor) Cinemateca Portuguesa Vários Horários

Ciclo CANGUE E NERVO: O CINEMA DE WILLIAM FRIEDKIN

NOV

04

EL ÁNGEL EXTERMINADOR Curious Monkey Film Club CINEMA ESSENCIAL 40s 50s - 60s Prosa - Plataforma Cultural 19.00h

Cinemateca Portuguesa Até 31 de outubro 2023- Vários Horários

NOV

09

10ª edição dos Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival Cinema São Jorge e Cinemateca Portuguesa Até dia 16 de novembro 2023- Vários Horários

NOV

10

FESTIVAL LEFFEST- Lisbon & Sintra Film Festival Festival de cinema

Vários locais entre Sintra e Lisboa Até dia 19 de novembro 2023 - Vários Horários

NOV

07

AMAZÔNIA - O DESPERTAR DA FLORESTANIA Cinema São Jorge 18.30h

25


Concertos. OUT

28

NOV

02

Pôt-pot + Maquina + Bunny O'Wiliams

Festival Ameson Urban Routes

DAMAS - Lisboa 22h

Musicbox Até 4 de novembro 2023 - A partir das 20:30h

OUT

30

THE CINEMATIC ORCHESTRA - Man With a Moving Camera Aula Magna 21h

NOV

10

Apresentação do disco Cosmopolita de Francisco Fontes, primeira parte de Gorjão

NOV Fanky Fest

04

Centro de Inovação da Mouraria 16-22h

Musicbox 21:30 h

NOV

11

800 Gondomar - facaKILL - Lizatron (DJ) Galeria Zé dos Bois 22h

26


Exposições. NOV

11

António Júlio Duarte Guiné-Bissau 1990

Galeria Bruno Múrias Até 11 de novembro 2023 -Terça a sábado, das 14h às 19h

OUT

24

Joana Vasconcelos – Plug-in

MAAT Até 31 de março de 2024 - Quarta a segunda, 10h-19h

OUT

28

NOV

26

Primeira Pessoa e ... e os seus contemporâneos de Mário Cesariny Perve Galeria Terça - Sábado, 14h - 20h

NOV

25

Corpo, Dentro - Eliza Azevedo

Pedro Cabrita Reis Flores

Uma Lilik_ Quarta a sábado 14h - 19h

Galeria Miguel Nabinho Segunda a Sábado - 10.30 - 13h e 14h19h

27


Teatro. Conversas. Festivais Multidisciplinares. NOV Teatro

11

A FARSA DE INÊS PEREIRA FÓRUM MUNICIPAL LUÍSA TODI, Setúbal 21h

NOV Teatro

09

OUT

26

Conversas

Homenagem a Natália Correia no Centenário do seu nascimento ACADEMIA DAS CIENCIAS de Lisboa - acesso online 15h-17h

NOV

12

Festivais Multidisciplinares

Festival TEMPS D'IMAGES Até 12 de novembro 2023 - Diversos locais de Lisboa e diversos horários.

AL_GHARB Teatro Meridional Até 17 de Dezembro 2023 - Quarta Sábado às 21h00 | Domingo 16h

NOV Teatro

17

O BARBO, SALVAR GAIA RUMO A YOD FÓRUM MUNICIPAL LUÍSA TODI, Setúbal Até 26 de novembro 2023 - 21h

NOV

29

Conversas

Maria Alda Nogueira, uma vida de luta pelos direitos da Mulher, da Liberdade e da Paz Auditório do Museu do Aljube 17h

28


Out/Nov.

Sofia António

Crónica

Ser jovem é fácil, dizem eles...

Ser jovem é liberdade, independência, diversão, conhecimento, aprendizagem, descontração. Parece tão simples ser jovem. Nesta altura, nada é decisivo, tudo muda, nada é constante. A felicidade está do outro lado da porta e é, ao mesmo tempo, tão distante. Porque ser jovem também é angústia, ansiedade, medo e efemeridade. É ansiar pelo que não é garantido e sofrer por antecipação. É não saber identificar o que sentimos em tamanha confusão. É achar que estou certo quando, na verdade, nunca estive tão errado. É achar que sei tudo, quando não sei nada. É querer tudo o que não se pode ter. É olhar para o mundo com olhos de ver. É pensar no clima, na habitação, na saúde e na educação. É querer encontrar soluções para todos os problemas do mundo, sem encontrar solução para os problemas que só a mim me assombram. É dúvida e incerteza. É receio de, no futuro, não ter comida na mesa. É pensar que um dia terei de sair do país que foi casa, desde que nasci. É tentar suspender todos os pensamentos que tenho para não me afogar neles. Mas lá está: também é felicidade e momentos de pura imaturidade. É dançar, sonhar, cantar e gritar. É planear viagens que sei, com toda a certeza, que nunca farei. É viver no limite, porque os jovens pensam sempre que são imortais e que nada lhes acontecerá. É amar, abraçar e beijar. É fazer tudo aquilo que o tempo me roubará, mais cedo ou mais tarde. É aproveitar o momento, sem pensar num futuro que, talvez, nunca chegará. Ai como é fácil ser jovem! – dizem eles. Mas não é. Eu sou jovem, eu sei como é.

29


Out/Nov.

Inês Fonseca

Crónica Poética

Equidistância da inexistência É esplêndido acordar num corpo que tudo faz, numa altura que tudo tem. Avançar no grau dos problemas da vida, subir patamares de estatutos e expectativas. É incrível ter consciência do que se sente, tornar lógico o ilógico, perceber que nem tudo tem de ser percebido. É extraordinário ser jovem: um mini adulto, mas uma criança grande. É maravilhoso ter gritos internos sobre o chocolate ou o rebuçado negado; sobre ter de emprestar os brinquedos que deviam ser somente meus; sobre não poder “afastar-me muito no mar” ou ter de dar beijinhos aos tios. Ter pensamentos contraditórios, perder-me no labirinto das decisões finais; preocupar-me com algo maior que o desenho animado que passa às 8h na tv; encher o cérebro com adivinhas sobre como aquele exame ou aquela entrevista de emprego vão correr. Mas querer, em simultâneo, um beijinho de boa noite, uma história para adormecer (em específico, aquela que já se ouviu nas últimas 87 noites), e um copo de leite quentinho com chocolate. Querer contar as estrelas que passam mesmo por cima do carro em movimento, verificar se a lua ainda nos segue. (Acho que sim.) Ambicionar o amor de alguém, provar que se é merecedor. Escolher a dedo o futuro, pensar, mas manter o sonho no pensamento, que tudo será de certa forma. Escapar às poças de água tentadoras que nos chamam para saltar, só para apanhar o autocarro a tempo de parar no café, para depois apanhar o metro, para depois andar 15 minutos a pé, para depois entrar no local de trabalho e perceber que devia ter ficado retida na pergunta do “Queria? Já não quer?” do senhor do café. Ver a carteira a esvaziar mais depressa que o saco de gomas. Observar as rugas nos rostos dos que mais amo, percebendo que cada uma delas ali apareceu na minha presença. Saber que, se me fosse agora, deixaria algo pendente. Uma ponta solta. Uma esperança de envelhecer, para poder descrever exatamente o que é viver. Para quando chegarem a minha casa eu ter uma (ex) caixa de bolachas

cheia de agulhas e linhas. Estamos naquele meio do ano, do mês, da semana, e é meio-dia. Não somos pequenos, nem somos gigantes. Somos os que já fizeram tudo e os que ainda têm muito para fazer. Rabiscamos, apagamos, recortamos e colamos, o pedaço de papel que nos deram, o livro de reclamações ou de elogios, porém, guardamos a fatura com contribuinte na carteira. Ainda corre uma lagrimazita quando a nostalgia chama, no entanto, correm rios com as ideias do futuro. Se estas fossem pequenos barcos, os meus estariam a tentar socorrer-se mutuamente, não se comprometendo a naufragar. Enquanto isso, eu naufrago no sofá depois de um dia cansativo a sentir a juventude, a sentir a equidistância da inexistência. A um passo em frente do primeiro dia do resto da minha vida, e a um passo atrás do último dia do resto da mesma. Ter tudo nas mãos, ter o rei na barriga, ter o cu virado para a lua. Um espirro, um suspiro, um pestanejar mais longo, mais duradouro do que o habitual (também conhecido como sesta), e tudo nos escapa. É a instabilidade a nossa melhor amiga, é ela que nos dá a mão no caminho para a consulta do psicólogo. Pobres jovens. Pobres os que desafiam todos os limites, os que não têm medo de se erguer e se fazer ouvir, mas se alguém pedir para se apresentarem, numa sala cheia de estranhos, farão uso do menor léxico possível, e a uma altura acústica de um peixe. É o sabor agridoce da própria idade, que não é nem doce, nem amarga. O que nos salva é que não ficamos enclausurados no consenso. Aliás, somos pássaros livres, prontos a voar ou a despenhar. De qualquer modo, é fenomenal pensar diariamente no que basear a alimentação ou onde depositar os últimos cêntimos: se em ilicitudes ou numa refeição reconfortante. Nesta altura, neste sítio, nesta posição, é deslumbrante ser jovem. Eu gosto de estar no meio.

William-Adolphe Bouguereau (1825-1905) - The Youth of Bacchus (1884)

30


Out/Nov.

Raquel Francisco

Poemas

«Quer crescer e não quer Vive na indecisão constante E ainda que o ritmo seja assíncrono Há um espaço, sempre escondido, ínfimo Que contém a esperança de que amanhã vai ser melhor»

A vida De nascença acendrado, rápido vira diabo Com um toque de narcisismo que passa por charme e graça E um sorriso rasgado que tudo disfarça É sol de outubro, vento de novembro Com leveza encara a vida que o consome por dentro E espera, Pelo comboio até à terra de ninguém Para ser feliz só e verdadeiramente feliz, também Quer crescer e não quer Vive na indecisão constante E ainda que o ritmo seja assíncrono Há um espaço, sempre escondido, ínfimo Que contém a esperança de que amanhã vai ser melhor

31


Out/Nov.

Constança Pereira

Crónica (poético)

Metadisformia A minha visão começa a desfocar. O meu reflexo no espelho encontra-se imóvel, ligeiramente mais sujo do que eu, mexendo-se apenas quando o também o faço. A música ecoa pela casa de banho dentro, mas nem eu nem ele dançamos. A luz acima de mim parece tirar fotos sucessivas à nossa imobilidade, registado-a para si. A torneira está aberta, a água desliza pelo lavatório e é engolida pelos canos frios e enferrujados. O meu reflexo e eu olhamo-nos. A luz replica um trovão novamente, em intervalos sem qualquer tipo de ritmo. No espelho, reparo que a pele abaixo do meu olho esquerdo derrete como que cera de uma vela. Primeiro, permaneço imóvel. Não tiro os olhos daquela figura que partilha o meu nome, a minha face, a minha essência. Ela permanece imóvel também, não tirando os olhos de mim, a sua pele a escorrer lentamente como que uma lágrima. Levo, finalmente, as mãos à minha face. Toco-lhe e nada sinto. Permaneço igual, o que quer que isso signifique. A figura não replicou o meu movimento. Apenas continuou a fitar-me, silenciosa, um sorriso leve a aparecer no seu rosto. A música parou e o frio invadiu a pequena casa de banho. Conseguia ver as pequenas nuvens de ar a sair da minha boca, assim como da da figura diante de mim. Mas estas não tocavam no vidro, não o embaciavam com o seu calor humano. Fecho os olhos, como que evitando confrontar a imagem diante de mim. A água continua a correr, o seu som consumindo o silêncio. Como que sentido este pensamento, a lâmpada faz a sua presença notar-se, com o barulho do seu reluzir. Instintivamente, abro os olhos. Ali estou eu, outra vez. Quieta, imóvel, uma réplica fiel de quem sou. Ponho as mãos na porcelana gelada do lavatório, confronto-me, vejo o meu reflexo a fazer o mesmo. Sorri para ele. Ao sorrir-me de volta, sangue escorre da sua boca, que revela fileiras de caninos sobrepostos. Passa pelo seu rosto até ao seu pescoço agora deformado, disforme e irregular. Continua a sorrirme mesmo depois de eu parar de o fazer. Toco na minha face, olho para a minha mão e não vejo qualquer prova de que o que tenho à minha frente seja eu. A música recomeça, alguém bate com força na porta, as luzes voltaram ao normal. Eu fecho a torneira e olho para mim. Será que quem vejo sou eu desta vez?

32


Out/Nov.

Raffaella Tomaiuolo

Opinião/Recensão/Música

NOVA VAGA | NOVI VAL | NEW WAVE

A Juventude não é um tema novo na arte, não é um tema novo para qualquer pessoa que alguma vez tenha questionado a sua existência e como aproveitar ao máximo a mesma. O artista, acima de todos, enfrenta essas questões quotidianamente como veia para o seu próprio trabalho. A Novi Val é uma canção que nos fala de uma das inúmeras perspectivas sobre o que é ser jovem hoje. A particularidade é que esta banda eslovena, fazendo música sobretudo na sua língua nativa, tem conquistado cada vez mais público, desde a sua participação no Festival da Eurovisão da Canção deste ano. Existindo também uma versão em língua inglesa da canção (traduzida como New Wave, em dueto com Elvis Costello), a versão original possui uma dimensão mais fortemente emotiva, talvez por ser cantada na língua materna dos artistas. Também o instrumental é intenso e catártico, partindo apenas com guitarra acústica e voz e acabando com piano, violinos e coro. Este crescendo musical da solidão e do silêncio para a multidão e uma melodia expressa perfeitamente a mensagem da canção: a sensação de desânimo conjugada com a vontade de intervir para a mudança da sociedade em que vivemos. A letra fala da dicotomia entre a falta de sentido e o desejo de o encontrar. Parece-me que esta é a realidade para uma grande maioria dos jovens hoje em dia: nunca tivemos tantas opções como temos hoje mas também nunca nos pareceu mais difícil de encontrar um lugar no mundo. Para aqueles que não se deixam intimidar por uma língua estrangeira, recomendo a versão eslovena da canção. E para os mais corajosos, que gostem de indie rock, a discografia completa da banda consiste em dois álbuns: Demoni e Umazane Misli. Ambos têm o seu estilo distinto, sendo bastante coerentes em si mesmos. Deixo-vos alguns fragmentos mais ilustrativos do contraste de emoções mencionado, cuja letra está obviamente traduzida para inglês (retirada do site LyricsTranslate, porque pessoalmente ainda não domino esloveno para fazer uma tradução fiel):

Kam od tu naprej, če že zdaj zažigamo obzorje Kako od tu nazaj, če je papir več vreden kot smo mi V časopisu piše, da smo zašli s poti Včeraj smo rojeni in že vsega krivi mi Zbrali smo pogum za upor, da nekaj spremenimo Bolje da smo danes nori, kot da jutri se bojimo Generacija ljubezni, upanja Novi val

33

Where to go from here if we're already burning the horizon How to go back from here if paper is worth more than we are The newspaper says that we've lost our way We were born yesterday and are already at fault for everything We've gathered courage to resist and change something It's better to be mad today than to be afraid tomorrow A generation of love and hope A new wave


Out/Nov.

Carolina Ramos

Cultural/Cinema

Cinema que inspira e expira juventude A revolução cultural que se desenhou no seguimento da Segunda Guerra Mundial tinha os jovens em liderança e em destaque, no ativismo político e na arte. Na Europa, como na América Latina, os novos movimentos cinematográficos assumiram esta juventude. O aspeto encantador desta revolução quando aplicada à sétima arte é que nela a juventude não se manifesta necessariamente através dos cineastas, mas de uma maneira muito mais bela, e com alguma poesia na forma de se fazer cinema. Apesar de, considerando o seu nascimento nos finais do século XIX, o cinema já ter alcançado a terceira idade,

Novelle Vague - França

movimentos como a Nouvelle Vague, na França, e o Cinema Novo, no Brasil, fizeram renascer a sua adolescência. É na negação do status quo que este renascimento acontece. Os conteúdos e métodos subversivos de realizadores como Glauber Rocha, Jean Luc Godard, Alain Resnais e Cacá Diegues, colocam o cinema no centro da revolução, não apenas por exporem as reivindicações e as inclinações ideológicas da juventude, mas por fazerem dele próprio um jovem. Os parcos recursos inspiravam alternativas revolucionárias, as ideias que faziam vibrar os indivíduos tinham de ser transmitidas, e, para isso, era preciso reinventar o que era conhecido e estabelecido.

Cineasta brasileiro Glauber Rocha

Cineasta franco-suíço Jean Luc Godard

Cinema Novo - Brasil

Cineasta francês Alain Resnais

Cineasta brasileiro Cacá Diegues

O cinema passa a ser parte ativa do processo, ele junta-se às manifestações populares do maio de 68 e faz-se presente nas associações estudantis, na luta contra a ditadura militar do Brasil, nos cafés e nos bares. Sendo assim, a juventude não é apenas trazida para as telas, o cinema é também levado para as ruas. “Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” e a desordem proposital entre princípio, meio e fim, a revolução ganha um aliado. Desta forma, mais importante do que qualquer outra colocação a ser feita, é reconhecer que da juventude florescerá sempre arte e mudança.

34


Out/Nov.

Laura Abreu

Cultural/Cinema

Sessenta Verdes Anos “Um filme que transpira a ansiedade da juventude de se emancipar e se libertar, mas também um filme que poeticamente narra a história de dois jovens a quem os sonhos foram roubados.” Diretamente influenciado pelas novas ondas de Cinema que se respiravam em França na segunda metade do século XX, Paulo Rocha apresenta a Portugal, em 1963, a obra Os Verdes Anos. Um filme revolucionário no plano do cinema nacional que - juntamente com outros nomes, como Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira - inauguram o Cinema Novo em Portugal. Os filmes da nova vaga abriam espaço à crítica da realidade material, através de inovações técnicas, estéticas e temáticas, corrompendo com a ideia do Cinema apenas como uma indústria de entretenimento, ou seja, era

Simbolizando, nesta obra, a dicotomia cidade-campo, Júlio, um jovem vindo da província com o objetivo de se emancipar, logo nas primeiras cenas se mostra perturbado pela cidade, chocando com os vidros do hall de entrada de um prédio, que representam a clausura a que está sujeito e a sua incapacidade de adaptação. Também a cave onde trabalha, metaforicamente colocada por baixo do resto do bairro, representa a clausura - não só da cidade, mas também da classe social que Júlio representa.

agora visionado como uma conceção artística, resultado de uma participação externa ativa, que coletivamente o construía.

Momento do filme Os Verdes Anos

Os Verdes Anos de Paulo Rocha

Acto da Primavera de Manuel de Carvalho

O enredo de Os Verdes Anos prende-se na relação de Júlio e Ilda, dois jovens da província que, ao se mudarem, por sua vez, para Lisboa, são confrontados com o choque cultural da vida citadina. Assiste-se, por isso, ao gradual desgaste da sua relação, fruto não só da tenra e inexperiente idade dos protagonistas, mas também consequência da longa ditadura fascista que assombrava Portugal e das dificuldades inerentes à classe trabalhadora, a que ambos pertenciam (Júlio era sapateiro na loja do tio e Ilda empregada doméstica numa família burguesa). A história colide num final trágico, ao estilo clássico grego, com o pesaroso assassínio de Ilda pelas mãos do namorado.

A relação do jovem com Ilda perpetua-se devido ao mútuo sentimento de intrusão no meio citadino. Entre passeios nos arredores da cidade, quase que fugidos, almoços com o tio de Júlio na outra margem do Tejo, visitas a casa da família onde Ilda trabalhava, e serões em bailes de Lisboa, a relação vai tomando outras proporções, até que Júlio pede a mão de Ilda em casamento. Cética, Ilda recusa, por ser consciente da sua condição e por saber que entre as exageradas horas de trabalho de ambos, a incapacidade de pagar um quarto em Lisboa e o jugo do patronato a que estavam sujeitos, poucas eram as condições reunidas para este romance ter um final feliz. Perturbado, Júlio vai ao encontro de Ilda e mata-a. Estava já descartado o casamento como opção de libertação, consequentemente, nada lhe resta senão tomar a violência que a cidade celebra e representa– uma fatalidade incontornável. Volvidos, em Novembro, 60 anos do lançamento deste filme, são inegáveis os paralelismos com a atualidade da vida da juventude na capital. Desde a incapacidade de alugar um quarto, ao escasso tempo livre, resultado de excessivas horas semanais de trabalho, a obra de Paulo Rocha mostra-se dramaticamente atual. Um filme obrigatório para a juventude e a sua progressiva consciencialização; um filme que desnuda os problemas sociais nas grandes cidades portuguesas do século XX, mas que espelha também os do século XXI; um filme que transpira a ansiedade da juventude de se emancipar e se libertar, mas também um filme que poeticamente narra a história de dois jovens a quem os sonhos foram roubados.

Personagens Júlio e Ilda no filme Os Verdes Anos

Durante aproximadamente hora e meia de filme, a longa-metragem de Paulo Rocha explora o degredo da vida na cidade de Lisboa aquando do Fascismo, tão evidente que nem mesmo a melancólica, quase reconfortante, balada da guitarra portuguesa, nas mãos de Carlos Paredes, consegue camuflar.

35

Momento do filme Os Verdes Anos


Out/Nov.

Tália Moniz

Opinião/Cinema

Crescer com a Greta Gerwig Vi Barbie. Sem amigas, sem cor-de-rosa, só eu, com os meus óculos vermelhos, vestida de azul dos pés à cabeça. Entrei no cinema sem grandes expectativas, a estranhar a sensação de ir ver um filme sozinha,

A Ladybird precisa de saber se a sua mãe gosta daquilo em que ela se está a tornar; a Jo tenta compensar a sua solidão com a sua independência; e a Barbie precisa de sentir que precisam dela, que

sem ninguém para fazer as minhas piadas de pai e comentários nada produtivos. É sempre assustador fazer coisas sozinha enquanto adulta,

ela tem um verdadeiro impacto na vida real. Todas elas mostram uma parte diferente de crescer e de aceitar o que nos rodeia. Uma muda-se

estamos tão acostumados a ter alguém ali, é o que fazemos desde sempre, ir com alguém ao cinema, almoçar com alguém, etc. Ir sozinha ao cinema parecia algo que só adultos faziam. Estava à espera de ser mais um filme, sabia que ia ser bom, mas até que ponto? Agora, escrevo no meu computador, horas depois, minutos antes de ver

para outra cidade, começa do zero, outra consegue encontrar o amor (ou não) e outra decide encarar as mudanças que a vida lhe dá. A forma sensível como nos conseguimos relacionar com todas estas protagonistas, de nos ver nelas e a forma como todas elas mostram e representam momentos diferentes da vida de uma mulher, a faculdade, a

outro filme e todos os meus pensamentos levam-me ao mundo perfeito da Barbie que lentamente vemos cair e desfazer-se à frente dos olhos dela. Lembro-me do sentimento de conforto de ver aquelas primeiras cenas, de repente tenho 7 anos e vejo uma pequena versão de mim mesma, a brincar com aquela mesma casa, com aquelas mesmas bonecas, a ir ver um filme da Barbie no cinema com primas. E à medida que o filme foi passando, vi essa menina crescer com a Barbie, a passar pelas mesmas coisas, a perguntar-me se iria gostar do que me estava a tornar, a pensar

publicação de um livro, perder a conexão com talvez a nossa “Barbie interior”. Tudo isto que no fundo se resume com a saída da zona de conforto que é passar de menina para mulher, tendo de passar por tudo isto e ainda tentar surpreender as expectativas criadas para nós e por nós, refazer a nossa aparência e personalidade inteira só para dizer que nos encaixamos, para receber a aprovação de outros, ou para sequer gostarmos um pouco mais de nós… Não sei bem o que escrever. Mesmo horas depois não percebo sequer o que o filme significou para mim. Foi apenas lindo. Uma representação perfeita de ser mulher, desde tudo aquilo que nos torna mulher: rosa, a Barbie, ganhar um prémio nobel e ainda chorar quando vemos um filme triste, fingir-nos de parvas para sermos mais ouvidas, camadas e camadas de referências, ser mãe, filha, irmã, amiga, namorada, sei lá, tudo ao mesmo tempo. Não sei se qualquer homem, nem mesmo o Alan,

Momento do filme Barbie

se os outros também iriam gostar. Na história da Barbie, em tudo o que ela passa, vi-me a mim, vi amigas, colegas, todas as mulheres que conheço e não conheço. Deixar para trás aquela menina, deixar para trás aquela Barbie é um peso que todas carregamos ao abraçar o mundo real e ter de lidar com tudo aquilo que não tínhamos de lidar é demonstrado de forma perfeita no filme: ser uma mulher, o lado bom, o

compreenderia a importância deste filme ou qualquer outro filme da Greta Gerwig. No fundo, com a Barbie podemos todas olhar para trás e perceber que é ok crescer. Sim é assustador, vamos chorar deitadas na relva, ligar à nossa mãe porque as coisas não estão a correr como queríamos, enfrentar a verdadeira guerra que é a celulite, sofrer quando a nossa música preferida já não é tocada no rádio, mas ainda assim, parte de nós ainda vai ser aquela menina pequena que brincava com bonecas, sem preocupações. E está tudo bem. Eu acho.

lado mau, as expectativas e a realidade. Tudo de forma tão brutal quanto qualquer outro filme da Greta Gerwig, em que acompanhamos a suas protagonistas, Ladybird e a Jo March a tentarem criar uma melhor versão de si mesmas… Algo em comum entre as três é que elas sentem a intrínseca necessidade de ser aceites pelo que são por todos à sua volta

Cineasta Greta Gerwing

Filme LadyBird de Greta Gerwing, 2017

Filme Little Women de Greta Gerwing, 2019

36


Out/Nov.

Pietra Blasi

Crítica / Filme

Uma ode às party girls que tornam um pouco mais tolerável a nossa juventude

O que seria da nossa juventude sem as nossas queridas personagens extravagantes que nos cercam, seja na faculdade ou na noite – ou até mesmo na internet, afinal estamos em 2023 –, e alegram nossas vidas? Tenho certeza que conheces pelo menos uma, ou então és tu a figura que costuma servir entretenimento de primeira classe. E, poucos filmes conseguem capturar tais personalidades com tanta exatidão e esmero como fez Party Girl, um clássico cult que ilustra muito bem a cena clubber da década de 90. A obra acompanha a vida de Mary, uma club kid fashionista nova-iorquina que, após ser presa e ter sua fiança paga pela madrinha bibliotecária, passa a trabalhar na biblioteca como forma de pagar a dívida. O filme levanos a sair à noite caótica de Manhattan – acompanhamos Mary a raves ilegais e festas ballroom regadas a muito voguing –, mas também passamos tardes complicadas e tensas na biblioteca. E, a meio caminho, seguramos a vela quando a protagonista apaixona-se por um vendedor de kebab.

37

Mas, como um filme que retrata uma era tão específica (anos 90) – num sítio também muito específico (Manhattan) – como consegue apresentar situações tão atemporais? Provavelmente porque a juventude é algo atemporal. A realizadora Daisy von Scherler Mayer conseguiu – com maestria – explorar detalhes que acabam por transparecer as atemporalidades intrínsecas àquilo que é “ser jovem”. Definitivamente, um dos destaques é a maneira como a auto-expressão – uma necessidade tão marcante e típica da juventude – foi abordada. Mary tem um roupeiro que faria inveja a qualquer pinterest girly (ela mistura peças vintage de Vivienne Westwood e Jean Paul Gaultier como uma verdadeira it girl do fashion TikTok), e sabe usá-lo de maneira a representar a sua personalidade irreverente e a sua urgência de se destacar em todo e qualquer ambiente – até mesmo na biblioteca.

Outro factor que aborda essa autoexpressão é a retratação da vida noturna e cultura das festas no filme. Todos estão lá reunidos com a mesma vontade de se divertir, é claro, mas também usam as festas como um veículo de performance da própria autenticidade – e não é mui-

to difícil encontrar tal situação na vida real. Deparámo-nos com este cenário em todas as saídas à noite, e sem tal elemento básico as saídas seriam infinitamente mais limitadas, medíocres e insossas. No entanto, nem tudo são flores. No decorrer do filme, Mary começa a incomodar-nos com as suas constantes atitudes irresponsáveis, a sua preguiça e o seu habitual egoísmo – no qual ela gradualmente se afoga. Aliás, são características comumente inerentes ao clichê do jovem, o que torna ainda mais realista determinadas situações da obra – só algumas, pois outras são completamente malucas, e é essa linha ténue entre a identificação e a maluquice que faz Party Girl ser tão especial. Entretanto, mesmo com a protagonista sendo enervante, inevitavelmente passamos o filme a torcer para que a vida dela entre num caminho um bocado mais estável. Honestamente, não há dúvida de que a Mary não seria uma amiga tão boa. Entretanto, eu adoraria tomar uns copos com ela no Bairro numa quarta-feira qualquer.


Out/Nov.

Jéssica Marques

Cultural/Inglês

Franny and Zooey and the comfort of having an existential crisis “The relief of giving in to destruction.” - Franz Kafka Everything we do is as a means to be loved. We go on writing poems and capturing seemingly perfect moments only for them to be lost in time, but slowly we become adored. About this necessity J.D Salinger wrote “I’m sick of not having the courage to be an absolute nobody. I’m sick of myself and everybody else that wants to make some kind of splash.” In 1961 Salinger created Franny, a promising young woman that grew within a family of popular child actors. She was raised to prosper and inspire but as we unveil the profound avant-garde intellectualism we come to learn that, in the midst of her prime, she falls deep into what could only be characterized as a crisis of faith. After reading a small book titled The way of a Pilgrim, in which a traveler learns how to pray ceaselessly, Franny struggles through waves of spiritual overthinking and finds solace solely on the couch in her family’s apartment. It’s in the first story, titled Franny, that we discover her discontent with the human ego. “I’m just sick of ego,ego,ego.”,and the natural human condition of wanting to be recognized and distinguished. How often we get sidetracked and wrapped up in ourselves, constantly thinking about small injustices that feel like the world. Why do we tend to forgive everyone but ourselves? We sympathize with Franny because we understand her despair. She seems exhausted and unable to continue; she lays down and wastes time because that’s all she seems able to do. That’s where Zooey comes into play. Along with Franny, Zooey is a younger member of the Glass family. Both had a childhood embedded in English poetry, American art and the belief that they had to create something special. Exhausted attempts to make Franny feel better lead to Seymour’s old story about “The Fat Lady”. Here, the term is used as a symbolic metaphor, turning sacred ground into a mundane one. However, it’s not necessarily religious, it’s not directed to a God necessarily as it is to small moments of faith, or kindness, found in our lives that could make a bit of a difference. Zooey explains “An artist’s only concern is to shoot for some kind of perfection, and on his own terms,not everyone else’s.” Doing things on our own terms and not living just for the chain of applause is crucial, after all, there is always a “Fat Lady” in the audience, even if no one else sees it.

38


Out/Nov.

Inês de Castro Perdigão

Coragem A vida põe à prova a nossa coragem. Todos os dias de manhã, precisamos dela para deixarmos o nosso mundo utópico e, simplesmente, viver! Quem é corajoso não é quem salta de um avião com o paraquedas às costas, é sim, quem salta para a vida por desejos de paz, para salvar alguém da ausência dela, para matar a fome, para dar carinho, para amparar. No fundo, corajoso, é aquele que age ousadamente, fazendo a diferença. A vida sofre alterações inesperadas, ela é uma folha de papel em branco onde gotas de tinta se derramam e traçam um percurso, onde escreveremos os nossos atos, e, mesmo acreditando que não temos coragem, ela está lá, manifestada em atitudes que, parecendo banais, são heróicas.

39

Poemas


Out/Nov.

Sofia Fernandes

Recomendações de Leitura

O que ler num dia de outono (ou quando desejavas que o fosse) No momento em que estou a escrever parece que estou no verão e já se começa a notar o desconforto de todos os que, como eu, esperam o ano todo por esta estação de mudança, dias chuvosos e muitas horas passadas com uma manta, uma bebida quente e um livro. É verdade; o tempo não nos está a ajudar e não conseguimos sentir a estação em que o mês nos diz que estamos. Por isso, temos que romantizar o momento. Para a manta e para a bebida quente pode estar muito calor, mas com o livro podes sempre contar! Deixo-te aqui uma lista de leituras perfeitas para um dia de outono, verdadeiro ou por ti forçado…

1.

The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde and Other Tales of Terror, Robert Louis Stevenson

Queres ler um clássico, procuras uma leitura atmosférica e só te recomendam The Picture of Dorian Gray, que já leste? Tens aqui a escolha perfeita. Composto por três histórias não muito compridas e com uma linguagem bastante acessível, este é o livro indicado para quem procura uma narrativa que o deixe desconfortável sem lhe tirar noites de sono. A história de Jekyll e Hyde é o ponto alto do livro, que te fará pensar em imensos temas da condição humana apesar de ser bastante curta. Mas não deixes de ler também as outras duas, que exploram diferentes tropes típicos da literatura gótica. Só um conselho: faz o que puderes para evitar spoilers do grande twist, se ainda não o conheces! Descobri-lo com a história é a melhor forma.

2.

Os Meus Dias na Livraria Morisaki, Satoshi Yagisawa

Esta é a escolha certa para quem quer devorar um livro num só dia, talvez até de uma só vez, e não quer uma história muito complicada, mas sim a exploração da beleza na simplicidade do quotidiano. No bairro das livrarias de Tóquio encontramos um paraíso para quem procura parar e renovar as energias que a confusão da cidade rouba. E isto aplica-se também ao leitor! Ao acompanhar a história de Takako, uma jovem que se sente perdida, de coração partido e sem esperança num futuro bom, e da sua relação com o excêntrico Satoru vemos uma carta de amor aos livros e um canto de esperança nos novos começos. Esta é uma história simples e curta que pode ser a melhor companhia para uma tarde passada a ler.

3.

Wicked Fox, Kat Cho

Gostas de kdramas? Então nem precisas de continuar a ler o que eu digo e podes apenas passar para este livro. A atmosfera de outono é perfeita nesta história e qualquer leitor interessado na cultura coreana irá adorar as referências feitas aos mais variados temas, desde comida a mitologia. Meio romance meio urban fantasy, esta é uma história que nos agarra e nos transporta para as ruas de Seoul onde vamos acompanhar o percurso de Gu Miyoung, uma gumiho que tenta sobreviver, mantendo-se fiel às suas morais, mas a quem a decisão de ajudar um rapaz vai mudar a vida. Vale a pena descobrir.

40


Out/Nov.

Joana Martins

Escrita criativa

Sete-Sóis, Não me chames de louca por te chamar assim, é que o teu nome cresce cólera no mais profundo espaço do meu ser. Sou completamente viciada em ti, como se fosses algo derivado do ópio. Ia-te escrever isto sem usar sofrimento sob forma de metáforas, mas sabes que nunca fui boa na arte de ser direta. Como te chamei, Sete-Sóis, Baltazar da minha Blimunda, existe um pequeníssimo grande parênteses que nos faz estar tão sós. Se há um sol, há uma lua, que, para todos os efeitos, devo ser eu. O brinco na minha orelha esquerda e o colar que carrego ao pescoço diariamente sabem mais que eu. A lua não pode estar junto do sol, nunca, à exceção da outra corrente, de pedras laranjas e um brilhante no meio, onde a luz forte do Universo cravou a tua expressão de um modo abstrato, invisível, pendurada no meu pescoço. Talvez em sonhos infantis, onde princesas se escondem atrás de muralhas, para que se possam salvar da luta dos guerreiros homens, seus pais, irmãos e maridos. Enfim, impossível, claro está. A nossa vida não tem uma relação de complementaridade. Tu estás bem nos braços de outros astros, mesmo sendo a tua face oposta, hás de, por ventura, casualidades da vida, preferir uma estrela qualquer. Contudo, nem as cores loucas de Platão ou Neptuno me tiram destes passeios mentais, onde eu desaguo sempre em ti. É a velha história do desejar. Sempre que desejamos, o destino teima em fazer acontecer. Podia soltar um “é o karma” algures nestas, sei lá quantas, palavras pesadas, onde te escrevo uma carta de um suposto amor que tomo por pessimista. É incrível, caio sempre na teia dos artistas, daqueles que fazem mesmo coisas, não artistas como tu, daqueles que não jogam pelo seguro, que partem tudo, que desafiam a ordem natural daquilo a que chamamos “coisas”. Enfim. Digo tantas vezes “enfim”. O teu heroísmo romântico dá cabo do meu fôlego, das minhas glândulas sebáceas, do fluxo de sangue que, subitamente, me corre mais rápido pelas veias e, do nada, sou um pedacinho de zero, junto de ti. Permanece no ar o desafio de me unir contigo. No fim do mundo, porque até lá duvido muito que algo sequer remotamente parecido com um avanço vá tomar conta de nós. Às vezes parece que te vejo rodopiar sob a forma de uma sombra negra no meu quarto, no âmago dos meus desejos mais obscuros, vais pondo músicas a tocar no gira-discos. Uma assombração divina, que veio do submundo, até dos helénicos, ou romanos, sei lá. Pena que me petrifiquei no teu olhar soberbo, cheio dessa arrogância que costumo apelidar de inconsciente. O meu amor faz-se através de palavras que não te sei dizer, apenas dedicar em cartas parvas, ou bonitas, sei lá. Também digo, vezes sem conta, “sei lá”. No meu olhar vou arquitetando este léxico que gostaria que conseguisses ler nas entrelinhas das minhas expressões faciais, no meu olhar confuso, nas minhas palavras cortadas a meio, no engolir em seco, nas interjeições, ou nos sorrisos que te mando, acompanhados de risos abafados e controlados. Talvez racionalize muito as imagens que tenho de ti em criança, mesmo nunca te tendo conhecido em criança, ou a bracejar nas ondas do mar, nas ondas da minha paixão ardente, própria de um signo de fogo. Talvez tenha lido muito Pessoa, talvez tenha lido muito Ricardo Reis, talvez reze pouco a Deus, talvez seja demasiado obstinada com a tua rebeldia juvenil e os teus traços femininos, meio feios, às vezes. Para te finalizar este resquício do meu ser que te ama, estupida e loucamente, tenho-te a dizer que a caravana passa, os cães ladram, o tempo passa e eu vou me deslumbrando secretamente com o sentimento que provocas em mim. A inspiração e a musicalidade que oscilam no espaço entre nós, nesta galáxia, na outra vizinha. Obrigada por seres esta musa. Deste-me as ferramentas com que descobri a luminosidade das crateras do meu redondo astro. Ainda não é desta que construímos a passarola, mas eu vejo no teu mundo interior que também o queres, mesmo não sendo comigo. Havemos de colidir, mais dia, menos dia. A tua, Sete-Luas Jo

41


Out/Nov.

Beatriz Batista

Prosa Poética/Inglês

A Somewhat Ode to Autumn Autumn. The cloudy grey skies, the colour change of the foliage, the cooler breezes. The season where nostalgic yearning and melancholy are associated with. The warm tea, the apple, cinnamon and pumpkin cakes and sweets. When we start getting whiffs of fireplace smoke in the air as the weather gets colder. Where mornings become a tad more challenging, thanks to the cosy allure of our sheets or the onset of seasonal blues. The desire of just wanting to stay in the warmth of our homes, maybe with a book and tea or coffee, while watching the gentle pattering of rain against the window. It’s truly intriguing, isn't it? How so many of the things we associate with calm, and comfort are somehow connected to this season. Well, at least it is to me. Maybe because my overall mood starts to change while adapting to the new season. My two favourite seasons are in direct contrast with each other: spring and autumn. One is a time of nature’s rebirth and the other marks its decline. Nothing brings me more happiness than to see the flowers bloom and the vibrant life emerge when the birds chirp louder and the bees do their diligent work going from flower to flower, where we feel the sun finally warming our skin after months. But it also brings me immense joy when the weather starts getting cooler and the sun isn’t as warm anymore after the scorching heat of the summer months. The world transforms into a tapestry of yellows, oranges and reds, and the ground is adorned with the satisfying crunch of the fallen leaves beneath our feet. Here the grass is greener during this season and when the aroma of roasted chestnuts wafts through the streets. Two opposite seasons that somehow evoke such similar feelings. One where I’m one with nature and the other where I’m one with myself but in both I’m whole.

42


Out/Nov.

Poemas

Rita Sezinando e Maria Inês

Melodias de Dezembro Rita Sezinando, Dezembro 2021

III Maria Inês

Dançamos pelas ruas Ao som de uma batida inconfundível. Entrelaço as minhas mãos nas tuas, Para que não me perca na tua melodia irresistível.

Soturna e silenciosa luz de luar, teus sussurros ecoam na perfeição Mostram-se poetas, putas

Balançamos ao som de um coro de angústia

e aqueles que morrem de amor

Daqueles que não acompanharam o ritmo da vida. Paro para ouvir a sua triste música, Sabendo que ali ficarei, A dançar ao som da tua silenciosa partida.

Soturna e silenciosa luz de amar, vives no engano da escuridão Também eu a ti me mostro: Viva por amor, poeta sem rigor

E assim vivemos nós, os tristes e desamparados, Presos nas melodias que ouvimos outrora, Rendidos a musicais do passado, Devotos à evasão do agora.

43

Ó lua da nossa cidade, Tu, que me vês afundar em turbação Saberás como as noites são putas do amor e dos poetas de ocasião.


Out/Nov.

Danichi Marques e Hefesto de Oliveira

Amor e Tentação

Danichi Marques, 2° Ano, Licenciatura de Arqueologia

Poemas

Ínclita geração Hefesto de Oliveira

Na noite perdida daquele verão, mais uma de muitas outras que lá foram, cruzamos o olhar, trancamo-lo, e começamos a dançar, a sorrir, a partilhar o abano do leque de quem alegre é. Da tua boca saíam as melodias da euforia, da minha boca as canções do júbilo, e quando elas se encararam, aproximaram, no rebolar da dança de tentação lasciva, saltou pois, saltou, a tampa do nosso coração! Do primeiro encosto, do primeiro fecho, do primeiro toque de língua, do primeiro chupo, a primeira lambida e o primeiro saborear... Amor honesto na sua mais pura forma. Atração inata, hormonal, quente, humana. Toque, deslize, aperto, apalpão, puxão, roçar, alimentam-se duas almas iluminadas pelo holofote multicolor da disco carnal! Amor queer, lésbico, instantâneo, explosivo! Atração felina de duas mulheres libertas! Na madrugada louca, lua a sorrir, lábios exaltados, recorda a alma desejada a comunhão que acabou de ter. Com tabaco na boca, passo deliberante, caminha a alma deslumbrada com o fascínio arrebatado pelo calor do álcool.

(Para: D.J.R-W) Luz dentre tempestades (Muro de tempestades), Insistência em existir: Grito Ímpeto Trovão Ansia, falta de tempo, Falta de entender o tempo Ó ansiada geração! Quanta crise, quanta aspiração! Ó ínclita geração O intransigente passado O insuficiente presente O impossível futuro Teu mal do século é viver, Teu mal é sobreviver! Impetuosa geração, Gerada para a luta. Resista em rebeldia Ó casmurra geração! No retumbar do trovão, Na ira do dia, illa dia!

44


Autoria de António Vouga, 2023 45


Autoria de Canudo Canudo, 2023

46


PARA PASSARES O TEMPO...

Vertical 1. Ilustre antigo estudante da FCSH que responsa marido extraviados. 2. Medo de uma geração nova por parte de uma antiga. 5. Guerra das... 6. Tu não me prendas o... 7. Nome de um herói nacional que faz uma crítica feroz à sociedade de consumo, todas as noites, na RTP1 10. Moon, a hole of light through the big top tent up high

Horizontal 3.Catcher in the Rye 4. Onde os artistas e engenheiros se encontram 8. O Coronel que frente ao esquadrão de fuzilamento havia de lembrar-se daquela derrota 9. Escritor clássico. Os Doze Césares. 11. Personagem-tipo na prosa de Eça de Queiroz de um wannabe @novaemfolha.aefcsh Verifica as soluções na nossa página do instagram

47


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.