Marina F. R. Ribeiro

A função psicanalítica da personalidade
Conversa sonhante: a função psicanalítica da personalidade
© 2025 Marina F. R. Ribeiro
Editora Edgard Blücher Ltda.
série academia de psicanálise
Coordenadora MarinaF. R. Ribeiro
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Rafael Fulanetti
Coordenação de produção Ana Cristina Garcia
Produção editorial Andressa Lira
Preparação de texto Regiane da Silva Miyashiro
Diagramação Lira Editorial
Revisão de texto Cristiana Gonzaga Souto corrêa
Capa Laércio Flenic
Imagem da capa Marina F. R. Ribeiro
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br
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Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570
Ribeiro, Marina F. R.
Conversa sonhante : a função psicanalítica da personalidade / Marina F. R. Ribeiro. –São Paulo : Blucher, 2025.
280 p. – (Série Academia de Psicanálise / coord. Marina F. R. Ribeiro)
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2604-8 (impresso)
ISBN 978-85-212-2603-1 (eletrônico - epub)
ISBN 978-85-212-2602-4 (eletrônico - pdf)
1. Psicanálise. 2. Identificação projetiva. 3. Reverie. 4. Identidade (Psicologia). 5. Personalidade. 6. Autoconhecimento. I. Título. II. Série.
CDU 159.964.2
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
CDU 159.964.2
Prefácio 13
Roosevelt Cassorla (in memoriam)
Antes do primeiro ato: a complexidade da conversa sonhante 21
Primeiro ato
O conceito de identificação projetiva e alguns de seus desdobramentos transformativos
1. Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment: O analista implicado 47
2. Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um autor 71
Segundo ato
Sobre transformações, reverie e intuição psicanalítica
3. A intuição psicanalítica e a reverie: captando fatos ainda não sonhados 95
4. Sobre intuição psicanalítica: a afetação enigmática 129
5. Transformações: vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e ontológica 145
12 conversa sonhante: a função psicanalítica da personalidade
Terceiro ato
A função psicanalítica da personalidade e suas apresentações nas narrativas imaginativas e nas palavras aladas
6. Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico 167
7. Narrativas imaginativas na sala de análise: W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto
191
8. As palavras aladas na conversa sonhante 205
9. A função psicanalítica da personalidade do analista e a linguagem de alcance psicanalítico (o analista no seu ofício contínuo de vir a ser) 231
10. Destinatários do amor: continentes para a função psicanalítica da personalidade 243
Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator Borges, 1923/2007
Um dos desafios para o psicanalista hoje é compor, dentro do vasto acervo de teorias existentes, um diálogo entre conceitos que se aproximam, mas também se diferenciam. Podemos identificar denominações que parecem inéditas, no entanto, diante de um exame minucioso, percebemos a complexa rede conceitual que as tornou possível, iluminando, assim, facetas do fenômeno clínico ainda não colocadas no centro das discussões teóricas e clínicas.
Lembrando da proposição de Bion (1992), de que o pensamento antecede o pensador, podemos refletir que a criação de um conceito é fruto das ideias que circulam em determinado grupo de psicanalistas, dentro de um tempo e espaço próprios. Trata-se de ideia também presente na epígrafe que abre este capítulo, na qual Borges (1923/2007)
1 Originalmente publicado nos Cadernos de Psicanálise, 38(35), 11-28; e posteriormente em Cintra, E. M. U., Tamburrino, G., & Ribeiro, M. F. R. (Orgs.). Para além da contratransferência: o analista implicado (v. 1, pp. 41-54). Zagodoni.
48 conversa sonhante: a função psicanalítica da personalidade fala, de forma belíssima, do verso em busca de um redator. Temos também a conhecida peça de Luigi Pirandello (1921/1978), O falecido Mattia Pascal: seis personagens à procura de um autor.
Diante da vastidão do universo da psicanálise contemporânea, penso então que as gerações de novos conceitos precisam ser evidenciadas, de modo a se contemplar trabalhos que façam um cotejamento entre ideias que se aproximam, mas são diversas, já que pertencem a momentos históricos diferentes.
Bion (1970) também destacou que a psicanálise é uma sonda que expande o campo que investiga – somando-se à experiência clínica, as teorias são, pois, instrumentos que, ao nos possibilitar investigações, expandem o território investigado. Dessa forma, as teorias psicanalíticas ampliam-se constantemente, exigindo do psicanalista, concomitantemente pesquisador e clínico, uma habilidade de compreensão de diversos vértices válidos dentro do arcabouço existente. Mesmo que estejamos dentro de uma procedência teórica – por exemplo, Freud, Klein, Bion e Winnicott, hoje considerados autores clássicos –, esse tronco já guarda uma série de complexidades, questionamentos e até mesmo antagonismos conceituais e clínicos.
Penso ser possível problematizar, tanto de modo mais amplo como mais aprofundado, os conceitos a posteriori.2 Trata-se da possibilidade de compreender a complexidade das formulações teórico-clínicas depois de vários anos, a partir de outra geração de psicanalistas. É o caso do texto kleiniano sobre identificação projetiva, que pôde ser desvelado de forma mais clara na sua complexidade teórica e clínica após a leitura e a compreensão dos textos considerados pós-kleinianos. Há, também, a possibilidade de construção de
2 A posteriori é um termo utilizado por Freud, significando que: “Há experiências, impressões, traços mnésicos que são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, do acesso a outro grau de desenvolvimento. Pode então ser-lhes conferida, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica” (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 33).
Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um autor1
Por ora, estou interessado nos pensamentos selvagens que surgem e sobre os quais é impossível rastrear, de imediato, a quem pertencem ou qual sua genealogia particular.
Bion, 1977/2015
Acredito que, em psicanálise, fazemos bem ao permitir certa inexatidão nas ideias e nas palavras.
Ogden, 2013
Nos últimos anos, venho pesquisando as transformações que ocorrem nos conceitos psicanalíticos, especialmente no que se refere à identificação projetiva2 e seu desdobramento na ideia de terceiro analítico. Assim como o processo de análise é uma sonda que expande o
1 Originalmente publicado em Ribeiro, M. F. R. (2020). Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: Um pensamento psicanalítico em busca de um autor. Ágora (PPGTP/UFRJ), 23, 57-65; e posteriormente no capítulo 7 do livro Por que Ogden? (2023), organizado por mim.
2 Segundo Rocha Barros e Rocha Barros (2018), os conceitos de identificação projetiva e de continência estão entre os cinco considerados mais importantes para a clínica psicanalítica contemporânea.
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próprio campo investigado (Bion, 1970/2007), a teoria psicanalítica também está em constante expansão, trazendo novos desdobramentos conceituais, frutos de uma psicanálise viva, compreendida como uma obra aberta. Podemos pensar que, enquanto a invariante da psicanálise reside no reconhecimento da existência do inconsciente, há hoje inúmeras variantes, cabendo ao psicanalista a tarefa de identificar o próprio acervo teórico para construir um fio condutor dentro do vasto universo da psicanálise contemporânea.
A intenção deste capítulo é justamente essa: expor um fio de Ariadne3 de modo a tecer uma trama teórica própria, dentro de inúmeros recortes possíveis, buscando aprofundar o conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden. Para tanto, utilizo a compreensão das matrizes psicanalíticas de Figueiredo e Coelho Júnior (2018), no livro Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura: matrizes e modelos em psicanálise. Faço essa escolha, pois considero o recorte do universo teórico psicanalítico proposto pelo autores um organizador para a leitura e a compreensão das múltiplas interseções teóricas e clínicas que encontramos hoje.
3 “O conhecido mito do Fio de Ariadne ou mais conhecido como Labirinto do Minotauro narra a trajetória de Teseu, um herói que salvou a cidade de Creta do terrível minotauro, criatura nascida da união de Zeus com a mulher do rei da cidade, Minos. Assim, o rei constrói um labirinto para aprisionar a criatura, mas só conseguia através do sacrifício de sete moças e sete rapazes a cada sete anos. Ariadne, filha do rei Minos, se apaixonou por Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, resolvendo ajudá-lo a matar o monstro. Assim, em sua jornada ao interior do labirinto, entrega uma bola de linha dourada para Teseu, bola que o ajudaria a entrar no labirinto sem se perder. Assim foi feito: Teseu encontra e enfrenta a criatura, derrotando-a com uma espada mágica entregue por Ariadne e retornando ao início do labirinto. Ao fugir da perdição do labirinto, Teseu vê a verdade quando descobre que, através do cordão, o ponto de partida era a chegada!”. Disponível em: https://vidapsiquicablog.wordpress.com. Acesso em: 30 out. 2018
Sugiro que alguém aqui poderia, ao invés de escrever um livro chamado “A interpretação dos sonhos”, escrever um livro chamado “A interpretação dos fatos”, traduzindo-os em linguagem dos sonhos – não apenas como um exercício perverso, mas a fim de conseguir um tráfego em duas mãos.
Bion, 1977/1992
Quando um conceito é citado por vários autores e está presente em um número considerável de textos, podemos dizer que foi uma maneira bem-sucedida de nomear um fenômeno clínico em determinado momento da história da psicanálise. A reverie parece ser um dos conceitos da psicanálise contemporânea pós-bioniana que vem erigindo esse imprevisto destino.
Fundamentado na compreensão de que a psicanálise é uma preconcepção em busca de realização (Bion, 1962/2014c), cada texto escrito é uma realização possível em um determinado momento a partir de uma intertextualidade. Considerando isso, tudo o que temos é a
1 Este texto foi originalmente publicado em inglês: Ribeiro, M. F. R. (2022). The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed. The International Journal of Psychoanalysis, 103(6), 929-947, e posteriormente publicado como Capítulo 3 no livro Vastas emoções e pensamentos imperfeitos: diálogos bionianos (Blucher, 2023), livro organizado por mim e Elisa Maria de Ulhôa Cintra.
96 conversa sonhante: a função psicanalítica da personalidade experiência, tanto na sessão, quanto na escrita de um texto psicanalítico: uma mente produzindo efeitos sobre outra mente, um texto produzindo efeitos a partir de outros textos, continente e contido, reverie e função alfa, um intercurso mental promovedor de transformações e aberturas de novos campos de indagações.
A proposta deste capítulo é apresentar, aproximar e dialogar alguns conceitos na obra de Bion e no texto de psicanalistas pós-bionianos: intuição psicanalítica, reverie e função alfa. Para tanto, inicio apresentando uma experiência perturbadora do analista na sala de análise; em seguida, faço um exercício metaforizante de aproximação dos conceitos com o material clínico. São conceitos e teorias que serão posteriormente cotejados com novas experiências clínicas em um movimento de constante retorno, expansão e criação: um diálogo que se pretende aberto e complexo. O conhecimento é momentâneo, provisório e sempre nos escapa, pois no exato momento em que conhecemos e somos capazes de narrar a experiência analítica, a experiência já passou, já pertence a um passado: mesmo que muito recente, a transformação já ocorreu, a narrativa já se tornou saturada, o texto já foi escrito, tornando-se vivo novamente para um leitor no futuro.
A epígrafe do texto é a inspiração para a reflexão aqui exposta. Afinal, o que Bion quer dizer com a interpretação dos fatos? Traduzindo-os em linguagem dos sonhos? Sigo por essas indagações, lembrando que, como Bion comentava em vários de seus seminários e supervisões, ele fazia apenas perguntas aos seus analisandos, de modo a expandir continuamente o campo investigado. A reflexão teórico-clínica apresentada a seguir tem a mesma intenção: expandir o campo teórico investigado, sem intenções resolutivas.
Se a situação analítica for intuída com precisão – prefiro esse termo à “observada”, “ouvida” ou “vista”, porquanto ele não traz consigo a penumbra de associação sensorial –, o analista comprova que o inglês falado, comum, é surpreendemente adequado para formular a sua interpretação.
Bion, 1967/1994
Vou começar2 pelo que poderíamos chamar de ilustração teórica a partir do texto de Chuster (2019), no qual o autor destaca que o Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1969b) pode ser compreendido como um texto testemunho de uma intuição freudiana de toda a obra que se desenvolveria posteriormente, uma espécie de memória do futuro (Bion, 1975/2014f). O Projeto foi um texto
1 Originalmente publicado em Ribeiro, M. F. R. (2022). Sobre intuição psicanalítica: a afetação enigmática. Caderno de Psicanálise, 44, 155-168. Posteriormente publicado como capítulo 9 no livro Entre sedução e inspiração. Como situar o Eu na obra de Jean Laplanche? Org. Luiz Carlos Tarelho. São Paulo: Ed. Zagodoni, 2022
2 A participação no grupo Conversas Psicanalíticas (2021) na SBPSP, coordenado por Antônio Carlos Eva, em especial aos comentários de Evelise de Souza Marra, em muito colaborou para a expansão das ideias presentes neste texto. A expressão “entre cesuras” devo à Evelise (2021). A expressão “afetação enigmática” é de Luis Cláudio Figueiredo (2021). Claro que não são apenas expressões, mas pensamentos consistentes condensados em duas duplas de palavras. Agradeço também a Arnaldo Chuster que muito tem contribuído para a expansão do meu pensamento com seus textos e aulas.
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freudiano desconsiderado por muitos anos, em função de sua característica não psicanalítica, ou poderíamos dizer, de um pensamento com características que podem lembrar quase um pensamento alucinatório. Quinodoz (2007) escreve que encontramos no Projeto intuições geniais de Freud disseminadas em um texto inacabado.3
Como podemos pensar psicanaliticamente sobre um conhecimento imediato, intuído, com características que podem se assemelhar a uma alucinação, pois se apresenta como uma visão que não passa pelos processos que costumamos validar como processos de pensamento – dedução, associação, comparação, análise, constatação etc. –, mas algo que aparece como uma imagem, que vemos, ou seria melhor dizer, criamos de forma imaginativa, sem apoio sensório identificável? Podemos conjecturar que Freud viu, por meio da sua imaginação criadora – termo de Chuster (2018; 2019) –, uma prévia do que seria a sua futura obra, ou uma intuição de um conhecimento que precisaria de muitos anos para se desenvolver em vários textos e deixar uma marca considerável na história. Mudanças que podemos considerar cesuras (Bion, 1977/2014g) na história, na qual há um antes e um depois, há continuidade e ruptura.
Cesura é um conceito de Bion que nos ajuda na aproximação dessa afetação enigmática, expressão de Figueiredo (2021), que parece ser a intuição psicanalítica, algo que nos afeta, nos captura de forma enigmática. Cesura é um termo retirado do texto de Freud “Inibição, sintoma e angústia” (1926/2014), no qual ele escreve que há mais continuidade entre a vida intrauterina e a vida pós-natal do que a impressionante cesura do nascimento nos faz crer. Aqui podemos pensar na presença do paradoxo: há uma impressionante ruptura, mas há, também, continuidade.
3 Para uma ilustração clínica, remeto o leitor à Reunião Científica online ocorrida no dia 13 de junho de 2020 intitulada Intuição e reverie no tratamento psicanalítico. Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=jWHTWg-Gu9E&t=509s. O que apresento neste texto é uma continuidade daquelas reflexões teóricas e clínicas.
O analista precisa focalizar sua atenção sobre O, o desconhecido e incognoscível. O sucesso da psicanálise depende de se manter um ponto de vista psicanalítico; o ponto de vista é o vértice psicanalítico; O vértice psicanalítico é O. O analista não pode estar identificado com O: ele precisa sê-lo. Bion, 1970/2007
Faço aqui uma aproximação da nomeação de Thomas Ogden (2020) de uma psicanálise epistemológica e uma psicanálise ontológica, com transformações em K (conhecimento) e transformações em O (tornar-se). Além disso, faço a proposição de vértices oscilantes, ou seja, penso que há um movimento contínuo entre esses dois vértices. Discorrerei a seguir sobre essa mudança do vértice epistemológico para o vértice ontológico no livro Transformações (Bion, 1965/2014a) a partir da leitura de Figueiredo (2000) e Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro (2011).1
1 Texto originalmente publicado na Revista de Psicanálise da SPPA, v. 31, n. 1, p. 1-17, abril 2024, com algumas modificações. Algumas das ideias aqui apresentadas também estão presentes no livro Reading Bion’ Tranformation, com coautoria com Figueiredo, L.C. e Tamburrino, G.; pela editora Routledge, 2024
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Transformações representa uma guinada na direção que Bion vinha seguindo em seus trabalhos anteriores. Anteriormente a essa obra, Bion estava interessado no aprender com as experiências emocionais, ou seja, nas transformações em K (conhecimento), que pertencem ao campo das representações, o que denominamos uma psicanálise epistemológica (Ogden, 2020). A partir do final dessa publicação, Bion se dedica às transformações em O, que ocorrem em um nível não representacional da experiência; no ser e no tornar-se, ou seja, no âmbito de uma psicanálise ontológica (Ogden, 2020).
O livro Transformações (1965/2014a) é considerado um dos mais enigmáticos e difíceis textos de Bion. Além disso, o próprio livro pode ser lido como o testemunho de um processo de transformação em O; uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion.
Uma mudança ocorre nos últimos capítulos de Transformações, no qual Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica – transformações em K (conhecimento) – para o ser, o tornar-se – as transformações em O. O subtítulo do livro aborda justamente essa mudança na obra: do aprendizado para o crescimento.
Considero produtivo e criativo quando um conceito, no caso cesura,2 é usado para pensar a própria obra do seu criador. A cesura ocorre justamente no livro Transformações, especialmente nos seus três últimos capítulos. A partir desse insight, momento no qual Bion postula as transformações em O, há uma mudança catastrófica na vida e na obra. Em 1968, aos 71 anos, Bion se muda para Los Angeles, na Califórnia, para surpresa de seus pares ingleses; uma mudança que revela o seu compromisso com a sua própria verdade emocional?
Uma transformação em O? Figueiredo (2000), na sua leitura, relata os
2 Vermote (2019), no livro Reading Bion, refere-se a essa mudança como uma cesura na obra bioniana, dividindo seu livro em antes e depois da cesura, conectando vida e obra. No entanto, essa não é uma divisão feita apenas por Vermote, mas encontramos essa ideia em Bléandonu (1993), Grotstein (2007), entre outros.
Muito mais que um meio, a linguagem é algo como um ser e por isso pode tão bem trazer-nos alguém à presença. Merleau-Ponty, 1980
Penso que um psicanalista, quando vai para o trabalho, deveria pensar que está indo para seu atelier mais do que para um consultório. Pois ele precisa considerar em primeiro lugar quais os instrumentos dos quais dispõe. Que linguagem vai empregar e em que língua a outra pessoa estará se comunicando.
Bion, 19722
1 Texto originalmente publicado em Ribeiro, M. F. R. (2019). Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico. Cadernos de Psicanálise, 41(40), 169-187 e posteriormente em Rocha Barros, A., & Candi, T. (Orgs.). (2019). Diálogos psicanalíticos. Bion e Laplanche: do afeto ao pensamento. Escuta.
2 Entrevista a Márcia Câmara, Jornal do Brasil (19/8/1972), citado por Chuster (2003, p. 171).
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“Eu o conheço muito bem, o senhor ficaria surpreso”.
Vamos começar3 com essa provocativa frase, que poderia ser de um analisando ao seu analista. Talvez muitos de nós ficássemos espantados ou até um pouco paranoicos, pensando: “o que deixei escapar e não percebi? O que esse paciente está querendo me dizer?”. No entanto, a afirmativa foi dirigida ao escritor turco Orhan Pamuk, prêmio Nobel de Literatura em 2006.
A literatura tem sido um aliado importante de muitos psicanalistas, começando com Freud que dialogou textualmente com Shakespeare, Goethe, Schiller, Hoffmann, Thomas Mann, entre outros (Mango & Pontalis, 2013).
Seguindo essa inspiração literária, relato a experiência de Pamuk (2010) diante de uma leitora assídua de suas obras, que, penso, poderia ser, também, a experiência de um analisando com seu analista.
“Sr. Pamuk, eu li todos os seus livros”, uma mulher me disse certa vez em Istambul. Ela devia ter a idade de minha tia e tinha toda a aparência de uma tia. “Eu o conheço muito bem, o senhor ficaria surpreso”. Nossos olhos se encontraram. Um sentimento de culpa e um constrangimento tomaram conta de mim, e pensei que eu entendia o que ela queria dizer. O comentário daquela mulher vivida, quase uma geração mais velha que eu, o constrangimento que senti naquele instante e as implicações de seu olhar ficaram em minha cabeça nos dias seguintes, enquanto eu tentava entender o que me perturbara.
Quando aquela senhora que me lembrava minha tia disse que me conhecia, ela não estava dizendo que conhecia
3 Agradeço as colaborações de Júlio Frochtengarten, Elisa M. U. Cintra e Cláudia M. Perrotta feitas ao manuscrito.
A capacidade imaginativa no setting analítico é nada menos do que sagrada. Ogden, 2010
A partir das conceituações de Bion, interessa a um analista as transformações ocorridas na sala de análise, no aqui e agora da sessão. Penso que o essencial de uma sessão, como o essencial de qualquer experiência, é irreproduzível e irrepresentável. Lidamos apenas com fenômenos, não com a coisa em si; lidamos com os resultados de múltiplos, encadeados e infinitos processos de transformação, nunca com a origem dessas transformações. O material clínico, ainda que já contenha algumas formas e padrões, está muito longe de ter o fechamento e a univocidade capazes de determinar de uma vez por todas a transformação psicanalítica mais apropriada (Figueiredo, Tamburrino & Ribeiro, 2011).
Ogden (2013, p. 21) inicia seu livro Reverie e interpretação com a seguinte frase: “A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se
1 Texto originalmente publicado em Ribeiro, M. F. R. (2017). Narrativas imaginativas na sala de análise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20, 181-193
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facultar certa imprecisão . . . A imaginação depende de um jogo de possibilidade.”. Considerando que a imaginação na sala de análise é simplesmente sagrada (Ogden, 2010, p. 47), e levando em conta que a capacidade imaginativa da mente é constitutiva da reverie, abordo aqui teoricamente alguns conceitos fundamentais para o trabalho analítico. O que mais nos interessa como analistas é o que acontece na sessão e como acontece, algo complexo e sofisticado, mesmo que para um leigo possa parecer uma simples conversa.
O material clínico contém uma dimensão enigmática, intrusiva, perturbadora, que nos obriga a trabalhar: working-through. Estamos cercados por desconhecidos, e vivemos tanto mobilizados no esforço de enfrentá-los, como inevitavelmente geramos novos desconhecidos, inclusive aqueles que advêm desse esforço (Figueiredo, Tamburrino & Ribeiro, 2011). No enfrentamento do desconhecido, é fundamental a qualidade das transformações que se realizam na sala de análise, dentro do campo analítico (Baranger & Baranger, 1962/2010). A dupla analítica tanto constrói narrativas, quanto desconstrói, forma e desforma.
Suscintamente, o conceito de campo analítico do casal Baranger (1962/2010) consiste em considerar o encontro das duas subjetividades em constante interação presentes na sala de análise, gerando tanto novos pensamentos como também levantando defesas inconscientes, os baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla.2 Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em interação, sendo que a responsabilidade na condução do processo analítico é do analista.
Bion escreveu que o analista é o comandante no campo de batalha – ele também corre o risco de se ferir ou morrer, mas tem a responsabilidade do comando. A aparência confortável da sala de
2 Para um aprofundamento sobre o conceito de campo analítico cf Tamburrino, 2013
A linguagem não é apenas uma cesta na qual as ideias são transportadas: a maneira pela qual a linguagem é usada para expressar uma ideia é inseparável do conteúdo da ideia.1 Ogden, 2016a
Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, enfim, através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites. Barros, 1985
Este capítulo2 tem como objetivo discorrer sobre o pensamento de Thomas Ogden no que se refere à compreensão das ideias de vitalidade e de desvitalização no processo analítico, mas, primordialmente, sobre a importância da linguagem do analista; do que aqui chamamos de palavras aladas.3 Introduzimos um primeiro sentido para tais
1 “Language is not just a basket in which ideas are carried: the way in which language is used to state an idea is inseparable from the content of the idea” (Ogden, 2016b, p. 8).
2 Este texto foi escrito com Fátima Flórido Cesar e originalmente publicado como As palavras aladas de Thomas Ogden. In Por que Ogden? (pp. 243-261). Zagodoni. Cesar e Ribeiro, 2023.
3 A expressão “palavras aladas” é encontrada em várias passagens da Odisseia de Homero, século III e II AC, tendo inúmeras versões publicadas. Estamos usando
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palavras com asas: a imprecisão e a incerteza instaladas no que várias vezes nomeamos de palavras aladas possibilitam que seja mantido o vivo do fenômeno, com rasgos e deslizes, ou seja, a experiência do encontro analítico. Palavras e silêncios vivificadores ao liberar as amarras do anseio de tudo saber. O verbo que voa e escapa e que apenas na recusa das certezas sustenta a experiência viva. As vadias palavras que, no dizer poético de Manoel de Barros, só estas, que promovem invenções e escapam da gramática, são capazes, sejam lorotas e apelidos, de alargar os nossos limites. Alargar nossos limites nos serve como tradução em poiesis do que Ogden com muito apreço ressalta como o objetivo da análise: auxiliar o paciente a tornar-se o mais “plenamente humano”. A vitalidade é parte desse horizonte: ampliar a capacidade de sentir-se vivo. Transitaremos pelo tornar-se vivo e humano e o discorrer da linguagem, não qualquer uma, mas uma determinada, as palavras aladas, que pretendemos apresentar de tal modo que possibilite o alcance desse horizonte, ou poderíamos dizer no plural: horizontes do humano.
Antes que nos dediquemos diretamente ao tema proposto, é interessante destacar, a partir da introdução do livro de Ogden, Leituras criativas (2014), como ele se apropria das ideias e das leituras que faz de outros autores da psicanálise, ou mesmo de qualquer leitura. Sua leitura é uma experiência: ele escreve o que vive ao lê-los. Nesse livro em particular, ele propõe uma leitura criativa de obras importantes de Freud, Fairbairn, Isaacs, Winnicott, Loewald, Searles e Bion.
Ogden afirma que a leitura criativa constitui uma experiência em que se faz algo ativamente com o texto, “tornando-o (o texto) nosso, interpretando de modo a acrescentar-lhe algo que não estava ali antes de eu ler” (p. 22). Um pouco mais adiante, ele acrescenta que quando essa expressão no sentido de palavras que “flanam”, palavras com asas e que contêm e revelam a verdade emocional dentro de uma situação analítica intersubjetiva. Usamos essa expressão em Cesar, Ribeiro e Perrotta, 2022. Algumas das ideias aqui apresentadas estão presentes neste artigo e em Cesar e Ribeiro, 2022
A função psicanalítica da personalidade do analista e a linguagem de alcance psicanalítico (o analista no seu ofício contínuo de vir a ser)1
No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Carlos Drummond de Andrade2
Sou água que corre pelas pedras: liberdade caça jeito. Manoel de Barros Entre palavra Flanalma
Acalmalma Crialma
Viraseralma
Arnaldo Chuster
1 Texto originalmente publicado em Ribeiro, M. F. R., & Cintra, E. M. U. (Orgs.). Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Diálogos bionianos (pp. 281-291) Blucher.
2 Esse poema de Drummond também foi referido em Chuster, A. (2020). Intuição psicanalítica no sonho e na vigília. Cesura, imaginação e linguagem de êxito. Conferência no Encontro Internacional BION 2020. Barcelona, fev. 2020
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Há sempre3 pedras no meio do caminho: a coisa-em-si, os fatos da vida, o enigmático da experiência, o elemento beta, aquilo que ainda não foi sonhado, imaginado ou pensado. O poema nos impressiona pelo ritmo e pela circularidade que convoca ao leitor; como a vida, invitando à função psicanalítica da personalidade. Somos inevitavelmente convocados aos enfrentamentos de nossas experiências ao longo do caminho, da cesura4 do nascimento à cesura da morte. A maleabilidade, a fluidez, a plasticidade psíquica, a liberdade de pensar – a função psicanalítica da personalidade – caçam jeito de continuidade; no tempo e no espaço de uma sessão, realiza-se um percurso entremeado por palavras aladas.5
Bion, em um seminário na clínica Tavistock (Bion, 1977/2014d), ao ser perguntado sobre a diferença no uso dos termos mente, personalidade e psiquismo, responde que são apenas formas diferentes de nomear a “coisa”. Estamos tentando dar nome a essa “coisa” de diferentes maneiras, por meio de diversos paradigmas teóricos, e correndo o risco de que todos os escritos na literatura psicanalítica sejam apenas paramnésias (Bion, 1976/2014c). A “coisa” é complexa e enigmática, uma pedra lançada no centro de um lago, produzindo ressonâncias.
Em Freud, temos uma clínica da arqueologia; em Klein, uma clínica do atravessamento de distâncias para alcançarmos a integração
3 Uma versão embrionária deste texto foi apresentada no grupo Conversas em novembro de 2022, coordenado por Antônio Carlos Eva.
4 Cesura indica um evento que, ao mesmo tempo, conecta e separa outros, de modo simultâneo e paradoxal. Indica continuidade e ruptura, concomitantemente. Trata-se de um conceito de qualidade abstrata, ou seja, capaz de se aplicar aos mais diversos fenômenos mentais (Sandler, 2021, p. 121).
5 A expressão “palavras aladas” é encontrada em várias passagens da Odisseia de Homero, século III e II a.C., tendo inúmeras versões publicadas (Homero). Estamos usando essa expressão no sentido de palavras que “flanam”, delicadas, palavras com asas e que contêm e revelam a verdade emocional dentro de uma situação analítica intersubjetiva. Usamos essa expressão no artigo “Palavras aladas guiando o encontro analítico” (Cesar, Ribeiro & Perrotta, 2022).
Ah… a delicadeza do amor… força e fragilidade… o vivo requer espaço e tempo… é água que escorre, transborda e se espalha no espaço consentido.
Em um depoimento gravado em vídeo, Octavio Paz diz:
1 Publicado originalmente na Revista Ide, 46(78), 39-40. 2024.
2 “Francesca Bion é a viúva de Wilfred Bion e a transcritora e primeira editora de seus seminários e palestras e de muitos de seus trabalhos publicados. Ela foi nomeada Associada da British Psychoanalytical Society em reconhecimento à importância de sua contribuição para a transmissão da psicanálise” (Mawson, 2014, p. XV; tradução livre).
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Eu não sei se o amor é conhecimento, como pensava Platão. Creio que o amor é reconhecimento, reconhecemos uma imagem muito antiga que tínhamos gravado no íntimo do nosso ser. E, também, e isso talvez seja o mais importante, nos sentimos reconhecidos, sentimos que alguém nos reconhece, que alguém nos vê de verdade. . . O reconhecimento de uma pessoa única, singular. Não uma pessoa única para todos, mas para mim. E eu sou uma pessoa única, singular para ela. Isto para mim é, eu creio, o amor. (tradução livre da autora)
Ao compreendermos a psicanálise como uma habilidade humana em potencial (Chuster et al., 2011) amalgamada a uma matriz amorosa, consideramos que a contínua construção autobiográfica está presente da cesura do nascimento à cesura da morte. A psicanálise, como a vida, é uma atividade autobiográfica, todos os textos são autobiográficos (Bion, 1965/2014).
Anne Lise Scappaticci3 (2023) escreve sobre o tesouro da linguagem na odisseia da vida: “somos sempre passageiros do desconhecido, não importa quanta análise façamos. Nunca saberemos quem somos”. Como um passageiro do desconhecido, Bion parece ter buscado em seus escritos autobiográficos um continente para suas intensas turbulências. Sim, um texto pode ser um continente, uma forma de pensar. Conforme a autora, “a autobiografia é uma transcrição de uma realidade interior, do psíquico, sobre o qual nunca se tem conhecimento direto e completo” (p. 136). Penso que a capacidade de sofrer a dor e a arte de realizar nas palavras sentidos para as turbulências fazem parte da função psicanalítica da personalidade. Francesca Bion
3 Agradeço a Anne Lise Scappaticci o convite para comentar seu inspirador livro Psicanálise: uma atividade autobiográfica, na Febrapsi, em novembro de 2023. Momento no qual apresentei algumas ideias presentes neste texto, que evoluíram a partir da leitura do livro de Anne Lise.
Sem especular e teorizar – quase digo: fantasiar – de maneira metapsicológica, não avançamos um passo neste ponto.
Sigmund Freud, 1937/2018
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler “distraidamente”.
Clarice Lispector, 1978
Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência.
Pablo Neruda, 2018
1 Texto originalmente publicado com Davi Berciano Flores e Janderson Farias Silvestre Ramos em Pinheiro, N. N. B., Peres, R. S., & Silvia N. C. (Orgs.). (2022). Pesquisas acadêmicas em psicanálise: reflexões teóricas e ilustrações práticas (v. 1, pp. 29-50). Pedro & João Editores. Agradeço a esses dois queridos orientandos e colegas a parceria na escrita deste texto.
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Por que abrir um capítulo2 de metodologia com duas referências poéticas? Estas nos servem aqui a, pelo menos, dois propósitos. Primeiramente, os temas evocados por Pablo Neruda (2018) e Clarice Lispector (1978) conversam intimamente com os temas e conceitos abordados ao longo do texto, como o leitor perceberá. Desse modo, acreditamos estar seguindo uma trilha há muito tempo aberta por Freud (1908/1996), quando disse que os poetas vão adiante de nós. São como desbravadores pioneiros no oceano da mente. Ou ainda, para seguir a metáfora marítima, como faróis. Os poetas são faróis a nos orientar em mares nunca antes navegados.
Em segundo lugar, mas não menos importante, à parte as temáticas dos poemas, o próprio exercício de ler poesia pode nos apontar um bom caminho para uma pesquisa psicanalítica. E aqui temos Ogden (2013) em nossa companhia, que afirma que “a poesia é um grande disciplinador para a escuta analítica” (p. 211). Com esses dois aspectos em mente, iniciamos nosso percurso apresentando a experiência de Ogden enquanto leitor de poemas, para, em seguida, deslocando-nos do campo da poesia, mas permanecendo no terreno da arte, refletir brevemente sobre a análise feita por Freud da estátua de Moisés construída por Michelangelo.
Esse mergulho inicial nas águas artísticas tem duas funções. Por um lado, indicar que a proposta metodológica que aqui apresentamos não se restringe ao território da clínica,3 mas se expande para qualquer objeto ao qual o pesquisador-psicanalista se debruce em uma investigação. Por outro lado, esperamos que os exemplos de Freud e Ogden sirvam como uma indicação prática da concepção de pesquisa
2 Agradecemos a Cláudia Perrotta e Fátima Flórido pelas sugestões feitas a este capítulo.
3 A expressão “clínica” é compreendida ao longo do texto no seu aspecto amplo, como pensamento clínico, ou seja, nessa compreensão está incluída tanto a clínica do psicanalista e seu paciente, como a clínica ampliada, que implica o exercício da escuta psicanalítica em diversos e diferentes contextos.
Marina F. R. Ribeiro oferece este livro como uma contribuição psicanalítica fundamental para esclarecer as coordenadas emocionais que determinam a invariância do trabalho clínico. Essas coordenadas são fornecidas pelo que Bion chamou de função psicanalítica da personalidade. A influência de Klein e Bion é nítida em Marina, que mostra em seus textos, cuidadosa e delicadamente, como segue um dos principais princípios clínicos de Bion: “abandonar a memória, o desejo, e a necessidade de compreensão”, de modo que seus sentidos de observação, sobressaindo a intuição, possam permanecer de uma forma insaturadamente poética até ser capaz de fazer observações “científicas” da vida emocional de seus pacientes. Os leitores deste livro certamente irão realizar a profundidade de seu trabalho, como uma dádiva para a inovação do pensamento psicanalítico e da capacidade de exercer de forma livre as conjecturas imaginativas e racionais, e os processos cuidadosos de reflexão, que conduzem o trabalho psicanalítico com cada paciente em sua singularidade.
Arnaldo Chuster
Analista didata da SPRJ e do Newport Psychoanalytic Institute, Califórnia
Autor de vários livros e artigos sobre a obra de Bion, publicados em diversos idiomas
Coord. Marina F. R. Ribeiro