

A CRIANÇA ADOTIVA
NA PSICOTERAPIA
PSICANALÍTICA
Gina Khafif Levinzon
5a edição revista e ampliada
A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica, 5ª edição
© 2025 Gina Khafif Levinzon
Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Rafael Fulanetti
Coordenação de produção Ana Cristina Garcia
Preparação de texto Ariana Corrêa
Diagramação Mônica Landi
Revisão de texto Lígia Alves
Capa Juliana Midori Horie
Imagem da capa “Mother playing with her child”, Mary Cassatt
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Levinzon, Gina Khafif
A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica / Gina Khafif Levinzon. – 5. ed. rev. ampl. – São Paulo : Blucher, 2025.
192 p. Bibliografia
ISBN 978-85-212-2667-3 (Impresso)
ISBN 978-85-212-2663-5 (Eletrônico – Epub)
ISBN 978-85-212-2665-9 (Eletrônico – PDF)
1. Psicanálise. 2. Adoção. 3. Psicoterapia. 4. Psicanálise infantil. 5. Psicoterapia infantil. 6. Análise da criança. 7. Crianças adotivas. 8. Família adotiva. 9. Psicoterapia psicanalítica. I. Título. CDU 159.964.2
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise CDU 159.964.2
1. O universo da criança adotiva
Na minha experiência profissional tenho notado uma afluência frequente de crianças adotivas encaminhadas para psicodiagnóstico e psicoterapia, sem que a questão da adoção seja necessariamente o problema emergente que leva os pais a procurarem ajuda. Com frequência, as queixas iniciais trazidas como elementos motivadores para um trabalho psicoterápico são dificuldades de aprendizagem, problemas no relacionamento interpessoal e até comportamentos antissociais como furtos ou dificuldade de controle da agressividade. O trabalho com essas crianças mostrou-me que há algumas características semelhantes e específicas, que estão ligadas à sua condição de adotivas, e que podem ser detectadas tanto na realização do psicodiagnóstico quanto na posterior psicoterapia. Observei que há várias questões a serem respondidas e dificuldades no atendimento clínico dessas crianças e suas famílias que merecem um estudo mais aprofundado. A seguir, examinarei o universo da criança adotiva segundo a visão de alguns autores e de minhas próprias observações.
A adoção
Smith e Miroff (1987), num guia para pais (You’re our child: the adoption experience), definem adoção como uma invenção social que permite o estabelecimento de relações do tipo pais-filhos entre pessoas que não estão ligadas biologicamente. Para esses autores, a adoção, se bem conduzida, proporciona à criança imagens parentais com quem pode se identificar. A criança, recebendo todos os ingredientes necessários para o desenvolvimento da personalidade, pode crescer normalmente. O amor e a aceitação dos pais adotivos formarão a base para a estabilidade e produtividade na sua vida futura.
A criança pode ser adotada pouco depois do nascimento, ou muitos anos após, e isso parece ter bastante ressonância no desenvolvimento de sua personalidade e no estabelecimento de suas relações objetais. De modo geral, recomenda-se que uma criança seja adotada o mais cedo possível, de modo a tentar evitar maiores problemas no seu desenvolvimento.
A meu ver, o intervalo de tempo e as experiências vividas entre o momento da separação da mãe biológica, e o acolhimento da criança pela família adotiva podem ser fatores marcantes no desenvolvimento da personalidade da criança. Muitas vezes a criança passa por várias pessoas intermediárias ou é internada em instituições até ser adotada, o que contribui para o aparecimento de intensas sensações de desamparo e insegurança.
Na maioria das vezes, a adoção refere-se ao vínculo entre uma criança que foi abandonada por seus genitores e um casal que não pôde ter filhos biológicos, por apresentar problemas de esterilidade. Esse vínculo possibilita que a criança tenha o papel de filho, e esse casal o papel de pais dessa criança.
O tema da adoção pode ainda ser descrito como constituído pelo encontro entre um casal que tentou e não conseguiu conceber um filho (ruptura vincular biológica com a descendência) e com o filho
de um casal que o concebeu e não o criou (ruptura vincular biológica com a ascendência) (Schejtman, 1990). Para este autor, a adoção determina a criação de um espaço vincular fundante de um encontro que reúne desencontros biológicos, ausência de vínculos de consanguinidade e conteúdos relacionados com abandono do adotado e com o filho não concebido do casal estéril. Esses desencontros qualificam histobiograficamente a dinâmica vincular do encontro.
Pode-se dizer que a adoção envolve situações muito dolorosas para a criança e para os pais. Brinich (1980) afirma que a adoção de uma criança é, em termos humanos, sempre um evento doloroso e potencialmente traumático. Na nossa cultura, a adoção acontece apenas quando alguma coisa importante falhou: um ou os dois pais morreram, ou não tinham condições de cuidar do filho que conceberam. Do lado dos pais adotivos, a decisão de adotar uma criança frequentemente se segue a anos de fracassos nas suas tentativas de conceber a sua própria criança. Esses fracassos podem estar baseados em anomalias fisiológicas ou conflitos psicológicos, e os pais têm que considerá-los para optar pelo caminho da adoção.
A adoção foi descrita por alguns autores (Feder, 1974 e MacDonnell, 1981) como um trauma que marca a vida da família que adota e da criança, considerando o relacionamento familiar e sua inserção no macrocosmo social. Segundo esse ponto de vista, as vicissitudes do triângulo adotivo fazem com que as dores da adoção sejam mais fortes que “as do trabalho de parto”. Penso, no entanto, que seria mais apropriado falar em trauma quando nos referimos aos motivos que determinam a adoção: o abandono da criança pelos progenitores, devido à sua impossibilidade de mantê-la, e o drama de um casal que não consegue gerar um filho. A adoção em si é uma solução que proporciona a ambos os lados possibilidades de superar essas dificuldades e encontrar situações de vida mais satisfatórias.
Observam-se os mais variados tipos de atitudes e julgamentos em relação a crianças e pais adotivos. Como afirma Piccini e Marquês de Sá (1984):
Bem sabemos que o adotado não deixa indiferentes as pessoas: algumas o sentirão dotado de certo fascínio pelo seu misterioso passado; outras o julgarão merecedor de amparo suspeitando antigas desproteções; outras, mais preconceituosas, o julgarão inevitavelmente marcado por características negativas… Quanto aos adotantes, eles também terão, às vezes, de suportar chavões do tipo “a verdadeira mãe é só quem botou no mundo”, chavão este que se tem incontestável confirmação no plano biológico, nem sempre o terá dentro de uma visão mais ampla que inclua fatores educativos, psicológicos, afetivos e interpessoais. (p. 2)
Nos Estados Unidos, uma série de guias para pais adotivos procuram responder a questões e dúvidas comumente levantadas pelos pais (Smith & Miroff, 1987; Melina, 1986; Schaffer & Lindstrom, 1989; e Arms, 1990). Na Argentina, encontramos alguns como os de Ferreyra (1988) e Kweller (1991). Esses trabalhos se referem à adoção como uma experiência gratificante, para pais e filhos, mas ressaltam a necessidade de os pais adotivos poderem considerar que existem diferenças significativas entre uma família adotiva e uma família biológica. Para Melina (1986), a principal diferença é que a criança tem outro casal de pais, o que não é típico na nossa cultura, e às vezes é difícil ela entender isso. Em geral, as crianças crescem considerando que a maioria das crianças moram com os pais que as conceberam, e, os pais, por sua vez, também cresceram imaginando que viveriam com crianças “nascidas deles”. A maioria das pessoas, tanto férteis quanto inférteis, não inclui em suas representações e fantasias de
2. A criança adotiva no processo de psicoterapia psicanalítica
As vicissitudes da transferência
O termo transferência refere-se ao
processo através do qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles, e eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se, aqui, de uma repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de atualidade acentuada. (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 668)
No epílogo do caso Dora, Freud (1905/1980) desenvolve os primórdios de uma teoria sobre a transferência, na qual afirma que no tratamento psicanalítico a neurose deixa de produzir novos sintomas, mas cria um tipo particular de formações de pensamento, na maioria
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das vezes inconscientes. A transferência existe fora e dentro da análise, que tem a função de detectá-la e torná-la consciente. No artigo “A dinâmica da transferência”, Freud (1912/1980) afirma que a catexia libidinal do analisando, que se acha parcialmente insatisfeita, dirige-se para a figura do analista, segundo clichês estereotípicos que se acham presentes no indivíduo. Caracteriza a transferência como positiva quando está ligada a sentimentos amistosos, ou negativa quando se refere a sentimentos hostis. Os impulsos inconscientes esforçam-se por se reproduzir de acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de alucinação e o paciente os sente como contemporâneos e reais. Eles procuram colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real. A tarefa do analista é levar o indivíduo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, e submetê-los à compreensão à luz de seu valor psíquico.
A transferência é um tipo de relação objetal em que se evidencia a reedição das primeiras ligações da infância. Na situação analítica, ela aparece com particular clareza e intensidade, e segundo Moore e Fine (1992):
A razão para isso pode ser que, à medida que a análise progride, o paciente começa a tolerar os derivados das formações de compromisso da infância que são subjacentes à transferência. Ademais, as condições de abstinência e frustração intrínsecas à análise promovem a regressão a uma estrutura de personalidade mais infantil, a qual realça o desdobrar da transferência. A relativa anonimidade do analista facilita a transferência, pelo paciente, para a pessoa daquele, de imagens iniciais revividas. Na ausência de informações a respeito dos atributos e da vida pessoal do analista, o paciente gera fantasias relativamente não contaminadas pela percepção do presente . . . A transferência
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é dinâmica; ela oscila dentro da situação analítica, de maneira que o analista pode representar diversas figuras pertencentes ao passado do paciente. (p. 208)
Melanie Klein (1927/1981) ampliou o campo de ação da psicanálise ao mostrar que a transferência também tinha um papel central na análise de crianças, e que podia ser inferida pelo analista a partir da observação do brincar e das associações da criança durante o trabalho analítico.
No artigo “As origens da transferência”, Klein (1952/1991a) afirma que apenas analisando a situação de transferência em profundidade, somos capazes de descobrir o passado em seus aspectos fantasiosos e realistas. De maneira geral, na mente do bebê, toda experiência externa está entrelaçada com suas fantasias, e toda fantasia contém elementos da experiência real.
As flutuações na transferência têm origem na infância mais remota, e estão sujeitas a rápidas alternâncias, às vezes numa única sessão, entre mãe e pai, entre objetos onipotentemente poderosos e perseguidores perigosos, entre figuras internas e externas. Para Klein (1952/1991a), “ao desenredar os detalhes da transferência, é essencial pensar em termos de situações totais transferidas do passado para o presente, bem como em termos de emoções, defesas e relações de objeto” (p. 78).
Minha experiência clínica com crianças adotivas permitiu que eu pudesse observar algumas configurações de transferência peculiares a elas, que se evidenciaram nos seus processos de psicoterapia e que se destacaram pela intensidade e regularidade com que se manifestavam.
A análise representa para a criança uma situação primordial, na qual deposita sua esperança de ser compreendida, ser percebida na sua especificidade, e obter ajuda para a elaboração de conteúdos psíquicos angustiantes e amedrontadores. O analista representa então
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um objeto bom, um personagem com quem poderá iniciar uma viagem pelos meandros de seu psiquismo, auxiliar e companheiro nessa importante e, por vezes, dura jornada. Para isso, este último coloca em jogo sua intuição, seu conhecimento, sua empatia e sensibilidade, de modo a favorecer o desenvolvimento da criança.
Pude observar que na criança adotiva o “gostar do analista” pode provocar, dependendo do caso, um alto nível de angústia. Na transferência, em muitos momentos, o analista é sentido como uma figura perigosa, não confiável, que pode levar novamente a criança a situações de sofrimento insuportáveis, que reeditariam suas experiências anteriores de abandono e rejeição. Com frequência as crianças se mostram assustadas com a ligação afetiva que vão estabelecendo com o analista, e vivem a desconfiança de estarem entregues a um personagem sedutor que pode lhes trazer grande perigo. Por um lado, temem perder o analista a quem se afeiçoaram e, por outro, muitas vezes temem estar traindo seus pais adotivos com seu afeto pelo terapeuta. Em muitos momentos, vivem a relação com este último como se ele representasse a mãe biológica perdida, causa de tantas feridas, ao mesmo tempo, acenando para um reencontro desejado.
A relação analítica, como qualquer relação humana, traz frustrações. No entanto, as condições que cria através de seu enquadre e especificidade potencializam os sentimentos resultantes dos desencontros e separações. As crianças adotivas, muito frequentemente, recorrem a defesas maníacas para lidar com o perigo representado pelo sentimento de dependência e medo de perda do objeto: negação do amor, abandonar antes de ser abandonado etc. Observei nos atendimentos realizados com essas crianças que havia períodos intensos de transferência negativa, muitas vezes seguidos de situações de separação, ou quando as crianças começavam a se dar conta de que eu estava me tornando muito importante para elas. Havia também muitas vezes um medo intenso de que seus pais adotivos se ressentissem do seu afeto por mim. Nestes casos, era interessante observar como
3. A configuração afetiva da criança adotiva
Algumas precauções necessárias
A psicoterapia psicanalítica oferece condições para o conhecimento das vicissitudes do universo da criança adotiva de maneira profunda. Há, entretanto, a necessidade de tomarmos alguns cuidados na generalização das observações realizadas. As crianças aqui estudadas apresentavam sintomas. De algum modo, não estavam bem adaptadas. A análise de seu dinamismo mental mostrou que havia várias dificuldades e que a adoção ficava subjacente a esses distúrbios, como veremos a seguir. Uma questão importante pode ser levantada: até que ponto podemos estender o que foi percebido para as crianças adotivas e suas famílias de modo geral? Faz-se necessário um incremento na pesquisa junto às famílias adotivas, incluindo aquelas que relatam haver uma boa adaptação com relação à criança adotiva, para poder ampliar o campo do conhecimento. Creio, entretanto, que os pontos observados no atendimento psicanalítico devem representar questões
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mais sensíveis no universo da criança adotiva de modo geral. Talvez haja diferenças no grau de angústia presente e na possibilidade, tanto individual como da família, em lidar com as questões que vão surgindo, como infertilidade, separação, curiosidade, expectativa familiar, continência afetiva. Não podemos ainda deixar de considerar que há variações individuais, genéticas, por exemplo, a tolerância à frustração e variações ambientais, que se unem na formação do psiquismo dos indivíduos e estão ligadas à condição de “equilíbrio mental”.
O mundo psíquico da criança adotiva
A experiência clínica em psicoterapia de base analítica com crianças adotivas mostra que a angústia de separação e suas vicissitudes representam uma questão nuclear no equilíbrio psíquico do adotado. Os sentimentos de abandono, desamparo e iminência de perda do objeto amado aparecem como um pano de fundo que influencia suas possibilidades de contato com o mundo interno, suas relações interpessoais e os mecanismos utilizados para sobrevivência e adaptação ao ambiente.
A criança adotiva sofreu um corte brusco no seu contato com a mãe biológica e suas primeiras experiências foram de abandono e desproteção. Teve que enfrentar situações precoces de exigência de adaptação numa idade em que seu ego era frágil para levar a cabo tal tarefa. Muitas vezes, passou por situações dramáticas de vida antes de poder ser acolhida pelos pais adotivos. Necessitou adaptar-se a uma mãe que, embora se mostrasse dedicada de maneira geral, não pôde viver o “estado de preocupação materna primária”, descrito por Winnicott (1956/1988a), tão importante no estabelecimento do vínculo mãe-bebê. Essa situação representa para a criança uma ferida narcísica que fica intensamente gravada em seu psiquismo e resulta numa dificuldade maior em estabelecer um objeto interno bom, confiável.
a configuração afetiva da criança adotiva 171
Nos atendimentos clínicos realizados com as crianças adotivas, observei que o medo de perder as pessoas que tinham importância para elas estava sempre presente. Parecia “um fantasma” que a qualquer momento poderia vir assombrá-las. O sentimento de falta era vivido como uma ameaça de nova orfandade. Na análise, muitas vezes a analista era vivida na transferência como se representasse a mãe biológica que traria consigo novamente frustração e abandono.
O sentimento de desconfiança da criança adotiva com relação ao objeto parece ter raízes profundas, oriundas da experiência de abandono. Instala-se de imediato nas situações desconhecidas, próprias para projeções do mundo interno. Esse tipo de relação pode ser identificado no relato de pais adotivos que contam que seus filhos “demoram um tempo maior que os outros para se acostumar com situações novas”. Na situação analítica, notei que mudanças no enquadre, como trocas de horários, intervalos maiores devido a feriados eram sentidos como indicadores de “catástrofes iminentes” e, às vezes, geradores de muita confusão mental.
Um traço marcante nessas crianças referiu-se ao medo de amar. O objeto amado é visto como uma “sereia sedutora” que vai trazer novamente para a vida da criança os infortúnios que ela tenta apagar de dentro de si. Na análise, essa fantasia era responsável por momentos marcantes nos quais predominava a transferência negativa. Sentir que amava a analista e imaginar que estava à mercê de seu desaparecimento a assustava de tal forma que passava a odiá-la como defesa contra a possível dor. Havia o uso intenso de identificações projetivas de emoções referentes a rejeição e a abandono.
Nesse contexto, a dependência do outro é sentida como algo extremamente ameaçador. Gostar, precisar, depender, são vistos, ao mesmo tempo, como algo de que se necessita vitalmente, mas que deve ser evitado a qualquer custo, pois trará consigo um sofrimento inevitável. No processo psicoterápico, esses sentimentos se expressam através de uma forte ambivalência com relação ao analista.
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Diante dessas emoções, as crianças adotivas por mim atendidas recorriam com frequência a defesas maníacas, tentando calar dentro de si as preocupações referentes ao vínculo com o objeto. Negavam a importância da analista, interrompiam as sessões antes do final do tempo, abandonando antes para “não serem abandonadas”, ameaçavam interromper a terapia sempre que se estava próximo de alguma interrupção como a das férias. Como afirma Guex (1973), entre as medidas de proteção contra o abandono estão os desligamentos prematuros: “largar para não ser largado, destruir para não ter o que perder etc.” (tradução nossa). Nesses casos, por meio de identificação projetiva, procuravam inverter os papéis: a analista ficaria no lugar do abandonado e a criança no lugar daquele que rejeita e não dá importância. Algumas crianças denotavam intensa angústia persecutória, principalmente nos períodos iniciais de análise, e tendiam a identificar o analista com um personagem assustador, “a mãe desaparecida”, que viria ameaçar sua integridade física e mental.
Essas fantasias de ligação das crianças adotivas têm repercussões no seu relacionamento interpessoal de modo geral. Naquelas que já estavam na adolescência podia-se observar, por exemplo, dificuldades nos vínculos amorosos. Embora nessa fase de vida isso seja comum, pois se trata de um momento de descoberta e experimentação, nos adotivos parecia que havia um peso a mais, à medida que o outro era visto com desejo, mas com muita desconfiança. Entregar-se numa relação parece ser por demais temido.
O medo de ser abandonado é notado também na relação da criança com seus pais adotivos. Aparece às vezes nos esforços em agradar a seus pais, tentando ser o que imagina que estes desejam. Podia ser visto na análise, quando as crianças precisavam “disfarçar” para os pais seu interesse pela analista, para que eles não entendessem que ela os estava traindo, ligando-se a outra pessoa. Muitas vezes, na transferência, a analista era identificada com a mãe biológica, que só podia ser amada secretamente. Ao mesmo tempo, encobrindo seu

