Organização, textos e notas
Renata Udler Cromberg
Tradução
Renata Dias Mundt
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Organização, textos e notas
Renata Udler Cromberg
Tradução
Renata Dias Mundt
Obras Completas, volume 3

Uma pioneira da psicanálise
obras completas – volume 3
Organização, textos e notas
Renata Udler Cromberg
Tradução
Renata Dias Mundt
Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise. Obras Completas, volume 3
© 2025 Renata Udler Cromberg
Editora Edgard Blücher Ltda.
Série Psicanálise Contemporânea
Coordenador da série Flávio Ferraz
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Rafael Fulanetti
Coordenação de produção Ana Cristina Garcia
Produção editorial Luana Negraes
Preparação de texto Rodrigo Botelho
Diagramação Negrito Produção Editorial
Revisão de texto Ariana Corrêa, Maurício Katayama e Regiane da Silva Miyashiro
Capa Juliana Midori Horie
Imagem da capa Carta de Sabina Spielrein sobre cartas russas (2021), Fabio Praça
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.
Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570
Sabina Spielrein : uma pioneira da psicanálise : obras completas / organização, textos e notas Renata Udler Cromberg ; tradução Renata Dias Mundt. – São Paulo : Blucher, 2025.
3 v. (616 p.). – (Série Psicanálise Contemporânea / Coord. Flávio Ferraz).
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2617-8 (impresso)
1. Psicanálise. 2. Mulheres da psicanálise. 3. Spielrein, Sabina, 1885-1942. 4. História da psicanálise. 5. Correspondência psicanalítica. I. Título. II. Série. III. Cromberg, Renata Udler. IV. Mundt, Renata Dias. V. Ferraz, Flávio.
CDU 159.964.2
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
CDU 159.964.2
1. Os diários russos
Sabina Spielrein
2. Uma terapia íntima por imagens: os desenhos de Sabina Spielrein 153
Martina Bortignon
3. Diários alemães 167
Sabina Spielrein
4. As cartas entre Spielrein e Jung e Spielrein e Freud
5. Spielrein, Freud e Jung: entre judaísmo e antissemitismo 453
Renata Udler Cromberg
6. Algumas reflexões sobre o esquecimento da obra de Sabina Spielrein
Renata Udler Cromberg
495
Conclusão: a prosseguir... 579
Renata Udler Cromberg
Referências
593
Posfácio – Memória e devires em Sabina Spielrein 605
Jô Gondar
Sabina Spielrein
Diário russo I 2
12/09/1896 – 09/05/1897
Quinta-feira, em 12 de setembro de 1896.
Primeira visita ao ginásio não para provas
Acordei muito cedo e mal podia esperar o momento em que teria de ir ao ginásio pela primeira vez não para fazer os exames. Não consegui nem mesmo fazer direito minha tarefa de música. Finalmente chegou o momento. Eu estava com um pouco de medo de ir sozinha, pedi a papai para ir comigo, mas ele não quis. Nossa casa fica em frente ao ginásio. Papai me mostrou a porta pela qual eu teria de entrar e saiu para ver como eu entraria. Entrei por uma porta e queria continuar andando, mas o porteiro me disse que eu tinha de passar pelo portão. Eu queria falar com
1 Alguns trechos dos diários não têm ponto-final, e existem palavras incompletas, variações de grafia e padrão, pois respeitamos as ocorrências do original. [N.T.]
2 Sabina Spielrein, Russisches Tagebuch I. Trad. Renata Dias Mundt.
uma das alunas, mas não sabia com qual. Até que encontrei Wera Sabsowitsch. Alguns minutos depois, as classes foram convocadas. Levei um caderno e um lápis, mas a diretora disse que não precisaria deles. Fiquei curiosa sobre o que faríamos sem caderno e lápis. As classes foram levadas ao salão. Foi tão bonito e agradável que eu mal podia esperar até que fosse a vez da nossa classe. Uma menina da série preparatória foi até o local onde estavam as primeiras séries. A diretora perguntou de que série ela era e, ao ouvir a resposta, mostrou-lhe um lugar. Então ela começou a chorar. A diretora perguntou à sua irmã mais velha se ela estava chorando. Achei tão divertido que sorri. Eu estava muito esfomeada e muito feliz quando pudemos ir para casa.
Em 20 de novembro de 1896. Quarta-feira.
Alegria
Hoje fiquei muito alegre. Até mesmo a diretora disse que sou aplicada. Fiquei especialmente alegre porque papai e mamãe ficariam contentes com isso. Foi na aula de desenho, minha aula preferida. Isso me alegrou tanto que mal podia esperar até que a aula acabasse. O professor disse que eu pinto melhor que os outros. Foi assim... Estou cansada e não posso mais escrever.
Em 1o de fevereiro de 1897. Sábado. Como quase morri congelada.
Sanja teve escarlatina. Nos mandaram – Jascha, eu e Milotschka – para a casa da avó. (Já faz tempo) Nós estávamos frequentando o ginásio. Como a avó morava na casa de Muchin na [rua] Nikolskaja, não longe da estação de trem, perto da travessa Sobatschew, e o ginásio ficava à direita do parque municipal na [rua] Puschkin – era muito longe. Ademais, era inverno e nós podíamos nos atrasar, por isso vovó enviou seu criado Osip para nos acompanhar
até o bonde de cavalo. Eu ainda esqueci de dizer que o ginásio de meninos era ainda mais longe, ou seja, na [rua] Taganskaja, perto da estepe. Nós esperamos e, por fim, cheguei à conclusão de que chegaríamos atrasados se continuássemos esperando. Jascha não concordou e queria esperar, mas eu não gosto nada de andar com o bonde a cavalo, por isso fui a pé. Eu estava bastante apressada, Jascha me chamou, eu olhei para trás e caí. Nós ainda tínhamos geografia e por isso ainda estava carregando o atlas. Senti que fiquei sem ar e me agachei, embora a Mademoiselle estivesse passando por nós com as ginasianas naquele momento. Mas estava na hora. Eu me levantei, caminhei, caminhei e fiquei [de novo] sem ar, voltei a me agachar, caminhei de novo. E então não consegui mais andar até o banco e me encostei na parede e pensei que então iria morrer. Quase chorei e mal podia respirar. As ginasianas passaram por mim, mas ninguém me viu. [Apenas] uma perguntou por que eu estava ali parada. Eu lhe disse e ela foi embora, e pensei que iria morrer asfixiada... Mas então vieram duas ginasianas e perguntaram: “Você parece que está congelando.” Eu disse: “Sim.” Então elas disseram: “Ah! Pobre de você, se não fôssemos nós, você teria ficado aqui.” Elas me levaram, uma pegou a mala da escola, a outra, o atlas, me deram uma luva (porque eu estava sem luvas) e correram rápido para o ginásio.
O que posso escrever sobre hoje? Hoje não tivemos russo, nós anotamos os verbos fortes [regulares] e fizemos um ditado em alemão. Fico com muito medo quando escrevo ditados, porque papai diz que é uma desonra e uma vergonha quando faço erros e recebo uma nota 5-. Hoje fiz um desenho copiado da foto de papai e recebi de papai um 3+. Papai diz que se eu recebesse mesmo um único 5+ seria o mesmo que uma outra menina recebesse um 3; [seria] excelente – se eu só tivesse 5+ em tudo. Eu sempre fico tremendo quando alguém me pergunta alguma coisa. A professora de aritmética Marija Sikerdonowna não nos deu dever de casa hoje porque
hoje ou amanhã é uma grande data comemorativa. Mas agora chega por hoje.
Em 2 de fevereiro. Domingo. No ano de 1897
Hoje é domingo. Não tenho que ir ao ginásio. Acabei de terminar a tarefa de geografia. Nós fizemos geleia de laranja e eu dei a maior parte para a ama, porque tinha lhe prometido. Nós três fizemos uma boa geleia. Milotschka sempre pedia: “Mais.” Nós temos uma aia [ama]. Quando éramos crianças [pequenas], não conseguíamos falar mademoiselle e a chamávamos de Madmasika. Mas agora já nos acostumamos a chamá-la de Madmasika e continuamos a chamá-la assim. Ela não é muito bonita, tem um nariz comprido, mas ela é principalmente muito malvada. Sempre defende o Sanja e sempre nos dá sovas, sejamos culpadas ou não. É magra, alta e muito suja. Ela nos odeia e sempre briga conosco e nos bate. Sua cidade natal é Varsóvia. Ela é polonesa. Quando dei geleia para todos, mas não para a Madmasika, a Milotschka disse (ela chama a Madmasika de bomba): “Mas a Mia (ela me chama assim) não deu geleia para a Bomba”. Então a Madmasika disse: “Mas que criança de ouro, lembrou da sua Bombinha [ama]!” Madmasika é mesmo uma mulher gozada. Quantas vezes rimos dela! Ela raramente me chama de Sabina, quase sempre Sabinka, Sabucha, Sabulka. Muitas vezes, ela mesma não sabe do que se trata e reclama de nós com mamãe, e mamãe acredita nela e ralha conosco sem necessidade. Quantas vezes mamãe já acreditou nas histórias da Madmasika e ralhou conosco e nos bateu. E sobre o Sanja, que começava tudo e nos batia, ela dizia que ele era franzino e pálido, e dizia na frente dele que nós éramos crianças feias e detestáveis para que ele não brincasse nem aprendesse conosco. Isso nos deixa furiosas e por isso não conseguimos gostar dele. Com isso, ele fica mal-educado, mas mamãe diz que ele aprendeu todas as maldades conosco.
Jascha toca música e a pajem fala para Milotschka: “Música, música”, e a Milotschka pergunta: “E onde estão os músicos?” Mas isso não é tão engraçado como os outros casos, dos quais não me lembro mais. A Milotschka vai fazer dois anos no dia três de março. Ontem fiz tanta música, e papai disse que nem toquei. Mamãe diz que o Sanja está com febre. Eu não quero que ele fique doente. Em nossa casa há de qualquer forma uma grande confusão: a Milotschka chora, mamãe e Madmasika gritam, Jascha toca música e então Nadika – nossa camareira – [ainda] entra gritando. Ela é muito malvada, tem um rosto comprido e patas sujas; quando ela limpa facas e garfos, ela cospe neles, mas quando mamãe lhe pergunta se ela cospe, então a Nadika responde: “Não, senhora! Deus me livre!” Ela também mente muito. Ela nos bate, xinga e cospe em nós, mas quando contamos para mamãe, ela diz: “Que mentira você está contando, Sabinka (ou), que mentira você está contando Jaschka?” Quando alguém a manda para algum lugar, então ela fica horas enfiada em algum lugar, provavelmente com homens. Agora ela está ali em pé e enfiou os dedos na boca. Mas se Sanja ficar doente, então [toda a situação] vai ficar ainda pior. Mamãe foi hoje com papai, com Moisei e parece que também com tio Noi ao teatro. Moisei é primo da mamãe, ele é casado. Cena noturna. Ontem aconteceu o seguinte em casa. Nós estávamos à mesa (isso foi à noite) jantando. De repente, a Nadika entra e grita: “Sabinka, por que você quebrou o copo de vinho? Depois eu tenho de pagar por isso no seu lugar!” Eu pergunto: “O que aconteceu? O que aconteceu com a senhora, eu não quebrei nenhum copo”. Nadika xingou, xingou e, por fim, cuspiu e saiu. Enquanto ela xingava, fiquei calada e pensei: “Deixa o cachorrinho latir”, mas quando ela cuspiu, eu gritei: “Quem mandou a senhora cuspir?” e bati a porta. Eu não quero continuar contando porque estou cansada. Sanja também começou um diário. Eu fiz para ele um caderninho de papel.
Em 3 de fevereiro, Segunda-feira. No ano de 1897
História do ginásio
Em russo, Maria Alexeewna nos explicou os pronomes. Nós lemos primeiro. Maria Alexeewna (ela é a professora de russo) mandou seis alunas lerem a mesma história, porque todos leram tão mal. Em alemão houve um aborrecimento: eu tirei um 4 no ditado, um 4 na cópia e um 5- na declinação. Na declinação eu escrevi “Ploral” ao invés de “Plural”. Na cópia (nós copiamos por sílabas), me pareceu que a Anna Genrichowna havia dito para escrever assim [separar]: “vie-lleicht” [talvez], isso me pareceu estranho, e por isso marquei no livro. Descobri, porém, que Anna Genrichowna (ela é a professora de alemão) dissera para dividir assim: “viel-leicht”, e além disso, ainda esqueci de escrever [a palavra] “xxx”.3 No ditado, escrevi “Gymnasium” [colégio] e a professora até havia escrito a palavra no quadro. Então fui tomada de uma burrice, antes eu havia escrito certo (lá estava a palavra “wir” [nós]), mas depois ouvi como a professora alongou a palavra e na minha cabeça criou-se uma confusão, não percebi que estava fazendo uma burrice e escrevi “wier”. Esqueci ainda de dizer que separei em russo “Mosk-wa” [Moscou] e a professora me corrigiu “Mo-skwa”. Agora papai chegou e estou tão triste, provavelmente ele vai me repreender. Por que outras meninas podem se alegrar quando tiram uma nota três e eu preciso sofrer quando recebo um quatro? Anna Genrichowna não vai anotar as notas de agora no livro de classe porque todos tiraram nota um e dois. Tenho a impressão de que quando uma outra menina recebe uma nota um, ela não fica tão triste quanto eu quando recebo um quatro, porque as pessoas não zombam dela em casa como ocorre comigo. Por causa
3 A partir daqui, frases incompletas são transcritas com [...], e algumas palavras ou trechos ilegíveis ou mesmo riscados no original são transcritos como “xxx”. [N.T.]
Martina Bortignon2
“Pergunte”, replicou Baba Yaga, “mas lembrese de que um excesso de conhecimento pode fazer uma pessoa envelhecer prematuramente.”
Vassilissa, conto popular russo.
Sabina Spielrein não é apenas a brilhante psiquiatra e psicanalista que conhecemos graças às suas teorias pioneiras e escritos seminais. Ela também expressou sua criatividade e sua genialidade em contos, poemas, composições musicais e desenhos. Estes últimos se reúnem – até onde sabemos – em um de seus diários escritos
1 Este capítulo é produto do projeto Anid Fondecyt Regular 1230246, “Locas madres. Un estudio comparado de autoras del siglo XX sobre ambivalencia y creación en el nudo maternidad-psiquiatría”, do qual sou Pesquisadora Responsável.
2 Martina Bortignon é professora associada de literatura da Universidade Adolfo Ibáñez, Chile. Suas áreas de investigação convergem em torno da poesia comparada a partir de uma perspectiva interdisciplinar: maternidade, psiquiatria, psicanálise, fenomenologia e experiência, embodied cognition e neurociências, entre outros enfoques. Atualmente está desenvolvendo o projeto de investigação “Mães loucas. Um estudo comparado de autoras do século XX sobre ambivalência e criação no nó maternidade e psiquiatria”.
em russo, que começa com um registro feito em 21/07/1901. Na parte final desse diário, cuja redação pode ser situada, de modo verossímil, a partir de outubro de 19043 – alguns meses após a internação de Sabina Spielrein na clínica Burghölzli com o diagnóstico de histeria –, a escrita ordenada e clara da aluna de colégio dá lugar a uma série de imagens e traços bastante perturbadores, tanto por sua beleza quanto por seu conteúdo. Alguns desenhos parecem ter sido realizados em um ímpeto, como uma espécie de ato impulsivo, especialmente aqueles que retratam figuras masculinas ou diabólicas e partes do corpo; outros mostram um estudo muito mais cuidadoso da figura humana e um notável domínio da arte do retrato, o que sugere uma circunstância de execução emocionalmente mais tranquila e serena. A escrita recua para um segundo plano, limitando-se a anotações e breves frases que acompanham as imagens. Além disso, em determinado ponto do diário, várias páginas aparecem parcialmente arrancadas, o que sugere um gesto de descarga de energia subconsciente ainda mais imediato do que o de traçar linhas e formas gráficas.
É muito provável que Sabina nunca tenha mostrado os desenhos a C. G. Jung, seu médico responsável, já que não há nenhum indício disso na ficha clínica redigida por ele, apesar de toda outra atividade criativa da paciente ter sido anotada: os contos incessantes sobre os habitantes do planeta Marte, a composição de canções sobre os internados, a escrita com os olhos fechados, as zombarias um tanto violentas, mas certamente engenhosas e fantasiosas, direcionadas ao pessoal de saúde (Covington & Wharton, 2015, p. 68, registro de 11/11/1904). Nesse sentido, a prova do cuidado dos relatórios de Jung sobre o que Sabina inventa e faz é que um
3 Foram consideradas as datas anotadas nos poemas que precedem os desenhos (25/10/1904) e outras que aparecem ao lado de algumas figuras (03 e 04/12/1904), assim como a data de início da redação do diário seguinte (24/04/1905), cujo incipit está em russo.
certificado médico emitido pelo Sanatório Heller, no qual aparecem três desenhos de Sabina, está diligentemente colado em uma das folhas da ficha clínica e comentado, mas não há menção a outros desenhos.
Podemos formular a hipótese de que a transição da escrita referencial do diário para a composição literária (consistente em alguns poemas que precedem e encerram a seção de desenhos e um sonho narrado como conto de fadas) e, sobretudo, para o desenho, marca uma mudança de registro expressivo que a jovem Sabina adota para elaborar o processo psíquico vivido durante os meses de sua permanência no Bürgholzli. Em outras palavras, pode-se pensar que Sabina canalizou em suas criações artísticas um itinerário íntimo e autônomo, paralelo à terapia guiada por Jung. Essa seção do diário pode ser vista como um diário de cura que recorre à arte do desenho como ferramenta expressiva: um presságio da atual arteterapia? Assim, a referência que Sabina faz a si mesma como pintora, anos mais tarde, em uma carta a Jung, na qual descreve “o sonho em que me via representada como uma pintora e queria confiar em meu ‘inconsciente’”,4 não é simplesmente um deslocamento onírico de sua principal paixão criativa – o canto e a música – para outra forma de arte, mas atesta uma imersão no inconsciente por meio de uma arte figurativa realmente praticada e vivida.
Neste capítulo, meu objetivo é propor uma descrição e possível interpretação de alguns desses desenhos,5 cruzando-as com regis-
4 Carta de 06/01/1918, Carotenuto, 2012, p. 189, e Capítulo 4 – As cartas (II –Uma relação de amizade e confiança profissional – Sabina Spielrein e Sigmund Freud – 1909-1923), neste volume.
5 Por razões de espaço, decidi não incluir na análise os desenhos de uma jovem de cabelos longos e ondulados que, segundo minha interpretação, representam o espírito protetor de Sabina e condensam a figura de sua irmã falecida e certos aspectos psíquicos da própria Sabina. Essa figura crucial é abordada em outro dos meus textos, intitulado: “Lo que se volvió salvaje busca expresarse plenamente: dibujos y un sueño en los diarios rusos de Sabina Spielrein”.
tros da ficha clínica redigida por Jung ao longo da terapia de Sabina Spielrein. Esses registros permitem contextualizar e compreender melhor o possível significado e a provável função psíquica dos desenhos. Como chave de leitura, proponho manter em mente as figuras do salvador, do pai e da mãe.
O primeiro par de páginas desenhadas apresenta, na parte inferior da folha esquerda, um pequeno rosto masculino com óculos redondos, um leve indício de bigode e uma boca oval em expressão de surpresa. Um rosto semelhante aparece desenhado na parte superior da folha direita. Ambos poderiam ser descritos como caricaturas, em contraposição ao estilo de execução de outros dois rostos de perfil, desenhados com muito mais cuidado formal e realismo estético, que dominam a página direita (um deles é um primeiro esboço insatisfatório, deixado incompleto e riscado). O rosto que foi completado possui cabelos longos e abundantes, lábios finos e um olhar doce, tranquilo e acolhedor. Além disso, observam-se quatro olhos de perfil, rascunhados com diferentes graus de execução. Há também frases e palavras reiteradas que acompanham os desenhos. Ao lado do rosto com óculos na página esquerda, aparecem duas frases: “Que teus olhos saltem para a tua testa” (uma expressão coloquial russa usada para indicar que alguém vai se surpreender muito), emoldurada em um quadro; e, logo abaixo, ao lado do esboço de um olho com alguns círculos pretos alinhados (seria a pupila em movimento?), a frase: “Obrigada a você, ajuda, pelos seus olhos de vidro, e que os seus saltem para fora”. Na página à direita, Sabina escreve sete vezes a frase “Não sei” e duas vezes “Marte”. Ao lado direito da figura de cabelos longos, há uma frase que começa com “Por que eu te amo…”.6
Arriscamos afirmar que aqui se evidencia o desejo pela figura salvadora, bem como o encontro com ela, que guia Sabina através
6 O restante da frase é incompreensível, e não foi possível completar a tradução.
3 157 dos pântanos de sua crise – ou seja, Jung. Ao revisarmos fotos de Jung aos 30 anos, destaca-se a semelhança entre ele e as caricaturas, incluindo os óculos. O rosto de perfil, por outro lado, além da semelhança física, reúne em seus traços andróginos tanto a expressão de compreensão, atenção e acolhimento que Jung proporcionava a Sabina quanto as características de contenção de uma figura parental que é, ao mesmo tempo, mãe e pai. Essa representação andrógina de Jung personifica a projeção de uma figura parental empática à qual Sabina se prende: “ela precisava encontrar uma mãe que a fizesse sentir-se desejada e um pai amoroso” (Covington & Wharton, 2015, p. 119). De fato, ao realizar a anamnese sobre a relação de Sabina com o pai e a mãe, Jung percebe a sensação de invisibilidade aos olhos dos pais que aflige a jovem: “ela não pode recorrer ao pai; ele realmente não a compreende” (Covington & Wharton, 2015, p. 61, registro de 18/08/1904). Por outro lado, a mãe é viciada em compras, precisando subtrair dinheiro ou contrair dívidas com parentes, às escondidas do marido: “ Toda vez que ela sai para fazer compras, volta para casa com uma quantidade enorme de coisas de que ninguém precisa, mas que são muito caras” (Covington & Wharton, 2015, p. 68, registro de 12/1904) – ou seja, ela não consegue identificar as necessidades reais dos familiares e não assume responsabilidade por isso, pedindo-lhes cumplicidade para manter o segredo diante do marido. Nesse sentido, a reiteração do desenho dos olhos confirma a ideia de, finalmente, “ser vista”.
Por outro lado, as frases na página esquerda ressoam com o que Sabina insinua em uma das primeiras sessões com Jung, conforme ele anota no registro de 18/08/1904:
[Ela] acusa o escritor [Jung] de não ter tempo para ouvir tudo, de não estar realmente interessado, de apenas fingir etc. Insiste que, se tivesse que dizer tudo, isso a perturbaria tanto que as coisas ficariam realmente
158 uma terapia íntima por imagens
ruins depois. O Ref. [Jung] veria o que aconteceria. (Covington & Wharton, 2015, p. 61, grifo nosso)
Já no registro de 18 de outubro, Jung escreve que a paciente entretém os demais internados contando histórias fantásticas sobre o planeta Marte, nas quais projeta suas fantasias contrassexuais, ou seja, a negação da necessidade da sexualidade. Jung conclui: “[Ela] sustenta a veracidade dessa história diante do Ref., como uma criança travessa que não quer abrir mão de um brinquedo” (Covington & Wharton, 2015, p. 67). Esses antecedentes lançam luz sobre a dinâmica expressa pelos desenhos e pelas frases: a sedução operada por meio da imaginação (as histórias sobre Marte) e da revelação progressiva de seu trauma (a premonição da surpresa, a ameaça de algo assombroso e perigoso que poderia acontecer) exercida pela paciente em relação ao seu médico, junto ao intenso pedido de atenção (os olhos) e de ajuda profissional (os olhos de vidro). O vínculo entre paciente e médico assume contornos de amor, como expressa a pergunta associada à figura de perfil; um amor que pode estar, em parte, eroticamente desativado (daí as alusões a Marte, onde as pessoas têm filhos sem necessidade de relações sexuais), mas suficientemente seguro e constante para permitir a Sabina dar vazão à incerteza que acompanha todo processo de transformação profunda (“Não sei”).
Um segundo conjunto de desenhos parece estar relacionado ao trauma de natureza sexual que Jung identificou como a causa do complexo subjacente à histeria de Sabina. Esse trauma está vinculado à figura do pai, a quem Sabina amava com um sentimento desesperado e ambivalente. A representação do trauma toma a forma de uma série de rostos quase idênticos, alguns riscados ou desenhados em folhas parcialmente arrancadas. A expressão dos rostos é libidinosa, com sorrisos cruéis, embora os traços faciais sejam puros. Parecem encarnar o público masculino que assistia às
Sabina Spielrein
Diários alemães I & II 1
Trad. Renata Dias Mundt
C.s.P.! 2
há muito
[provavelmente senhor professor Freud!]
Finalmente envio-lhe a carta prometida. Será a última. Por que justamente agora essa decisão? Porque, pela primeira vez, eu o representei belo em meu sonho. Há alguns meses, tive de renunciar ao desejo de lhe escrever porque o sonho lhe conferiu seios femininos, apresentando-o velho como o Prof. Forel e, ainda por cima, feio. Mas o senhor era ao mesmo tempo colossalmente inteligente. Nós fomos à sua casa com o irmão (dr. Jung); o senhor atentou ao irmão, mas a mim, nem um pouco. Tenho de confessar que, depois que recebi suas 2 primeiras cartas, logo me alegrei com meu sonho,
1 Sabina Spielrein. Deutsches Tagebuch I & II. Tradução Renata Dias Mundt.
2 Abreviação de: “caro senhor Professor”. [N.T.]
o qual me pareceu acertado em sua essência. A história cala sobre a IIIa. carta.
Agora o sonho de hoje. Estou no hospital e o ouço conversando com dr. Jung no quarto ao lado. Será que devo sair porque eles logo virão para o quarto onde estou? – Não, faço meu trabalho, posso eventualmente zombar de vocês dois. – O senhor entra e sinto que está pensando a meu respeito: “Essa é a beleza que ele disse que poderia se igualar à de minha filha?” Eu me olho no espelho e me sinto envergonhada, pois não me acho nem um pouco bonita. A cada movimento que faço, temo que o senhor veja nele algum sentido sexual; sinto-me tola e faço algumas travessuras. Sei apenas que o dr. Jung é muito simpático comigo, mas o senhor, não. Logo o senhor vai para o próximo quarto. Nesse momento, olho seu rosto; ele é juvenil, belo e extraordinariamente simpático. Eu me sinto mal, o coração e a garganta ficam muito apertados, tenho de fazer uma compressa na cabeça; por que ele não quer me ouvir? Por que faz tão mal juízo sobre mim?
Será que devo entrar no próximo quarto ou não? Nesse momento, uma colega me chama à janela: “Quero lhe contar algo interessante!” – Eu respondo irritada: “O que a senhora poderia me contar!” Ela me lança um saquinho com guloseimas. – “Mas isso não tem nada de especial!”, eu digo. A colega se afasta. Nesse meio-tempo, dr. Jung percebe pela porta aberta minha hesitação e chama divertido: “Mas entre!” – Eu me aproximo do quarto e penso que me importa principalmente a sua opinião, não a relação com o dr. Jung. É possível que por trás desse rosto se esconda um gênio colossal. Eu quero apenas vê-lo. Então o senhor se vira em sua cadeira de tal forma que me dá as costas –
Pronto
Assim o senhor vê como uma jovem índole processa suas cartas nas profundezas da personalidade! O sonho me diz, em primeiro
lugar, a seu respeito que o senhor tem agora sua melhor personalidade externamente (no que diz respeito a esse tema, o inconsciente nunca me engana) e, em segundo lugar, ele me mostra que não me é nem um pouco indiferente o que o senhor pensa de mim depois que esqueci, em minha exaltação, que o senhor não me conhece, depois que eu, ao invés de lhe enviar algumas provas, simplesmente afirmei que foi assim e assim. Naturalmente o senhor pensa que tudo foi fruto de minha fantasia e daquilo que se associa a ela! História pérfida! Agora estou disposta a comprovar tudo o que não lhe pareceu plausível em minha última carta. O consciente pensa ainda agora que a mim não importa quem é o Prof. Freud e o que ele pensa de mim. Eu naturalmente não quero ocultar a carta ao dr. Jung. Sim, eu queria enviá-la ao dr. Jung para que ele a lesse para o senhor, mas “a ocasião faz o ladrão”. Não conte ao dr. Jung essa pequena incerteza: se ele tiver certeza de que acreditamos em sua probidade, isso é um grande suporte para a melhor parte da personalidade, principalmente no caso de naturezas tão altivas com afetos tão instáveis. Existe também mais uma razão, que o senhor pode lhe dar: eu envio a carta diretamente ao senhor para que ele não pense que quero me “ligar” a ele.
Eu certamente não sou inimiga do dr. Jung: mas não penduraria o quadro que ele me presenteou (a Ave Maria a trasbordo de Segantini) sobre o piano em minha casa. Ele me parece meu filhinho mais velho no qual investi tanta força e o qual agora é capaz de viver autonomamente; se falo com o senhor sobre ele é porque o senhor o ama: quando tomei a decisão de lhe escrever, eu ainda não sabia que ele lhe contara alguma coisa etc. O senhor sabe!
Eu só tenho de esclarecer ainda minhas “profecias” (na carta). Não acredito que um acontecimento qualquer tenha sido ordenado a mim e ao dr. Jung e tenha que se realizar de qualquer maneira. A definição da vontade que senti era o amor pelo dr. Jung existente dentro de mim. O fato de que visualizei, por exemplo, não apenas
no exame, mas também em 3 cursos de revisão, os símbolos definidos por mim antecipadamente, interpreto como efeito da sugestão: eu tinha uma grande vontade dentro de mim, a qual queria isso e aquilo, e o professor deve ter sentido isso de alguma forma, sendo que mandou que o preparado necessário fosse colocado à disposição; e eu naturalmente tive que tirar imediatamente o número certo. E um senhor totalmente desconhecido soube me dizer o que eu receberia! Devemos considerar isso coincidência? Seriam coincidências demais, como o senhor verá nas cartas? Eu tendo a atribuir ao complexo uma esfera de influência muito maior sobre o mundo externo do que se poderia comprovar cientificamente. Pois o complexo realmente, eu diria, “nasceu” como uma necessidade oriunda de todos os componentes possíveis do mundo externo. Certamente esse princípio está correto em “O significado do pai no destino do indivíduo”. Apenas me admira que o dr. Jung, há relativamente pouco tempo, ainda quis me convencer de que eu poderia amar igualmente qualquer outro médico como ele; eu tive de lhe escrever à época uma longa epístola (ainda a tenho) de que não existem acasos, que nós amamos nos objetos as semelhanças, que por isso amamos primeiro nossos familiares e depois sempre descobrimos semelhanças no amado.
Não deveria soar estranho que a mãe me tomou meu amado pela terceira vez? Antes do dr. Jung, eu me apaixonei por 2 quase ao mesmo tempo (eu ainda era muito imatura para o amor). Ambos gostavam de mim, mas como eu ainda era uma criança, inicialmente o primeiro, depois o segundo herói se apaixonou perdidamente por minha mãe.
Dementia senilis. Estádio3 inicial, decorrer e princípio. Init. Stad. Sintomática simples. Início com memória fraca, as pessoas percebem. Enfraquecimento do intelecto. Essa mudança é frequente. Causada por tifo, doença pulmão. Depressões frequentes, estado semelhante ao maníaco, ocupação bonde [sic], como em mania. Se memória fraca, dementia senilis. Comportamento instável trapaceiro. Frequentes vigarices infantis, roubos ou falta de tato sexual (impulsos sexuais tardios).4 Muitas vezes exibições, preferência por crianças para atos sexuais. Insônia frequente. (Algo de apoplexia) Decorrer – progressivo detido por remissões que frequentemente se estendem muito (exemplos de interdição por anos). Leves psicoses em progressão; por ex. desorientado e temeroso de noite, tb. de dia com ataques de fúria (devido a alimentação. Transtornos do cérebro). Frequentemente excitação maníaca ou depressão. Muitas vezes apoplexia e tendência a outras doenças (o que significa marasmo) marasmo sem entorpecimento, como na parálise. Na verdade, há entorpecimento ocasional na apoplexia, mas não como na parálise; apenas mais claro e... (incontinência da urina).
No final, torna-se totalmente apalermado. Ou pode chegar à chamada epilepsia senilis (sintoma do adoecimento do córtex: baseado em “focos” no cérebro). Causa final mais frequente pneumonia hipostática. Delinquência do senil relativamente baixa.
Às vezes atos de vingança infantil (p. ex. incêndio premeditado). Complicações da demência senil nomeadamente por alcoolismo. Abuso que também pode favorecer o surgimento precoce da doença. Podem ocorrer ataques epiléticos na chamada “epilepsia
3 Vários termos estão abreviados em alemão. Resolvi escrevê-los por extenso para facilitar a leitura. [N.T.]
4 Em alemão: Johannistrieb, termo usado para descrever um apetite sexual que surge em idade mais avançada. [N.T.]
tardia”, a da demência senil xxx, que pode levar, no final, a uma verdadeira degeneração cerebral ou “parálise tardia”, a qual é difícil de diferenciar da demência senil. Diferenças nos sintomas físicos e grande x [ilegível]. Demência senil – ônus familiar. Outras doenças também podem aumentar o risco de demência senil, como por ex. imbecilidade, dementia praecox [...]
[...] capaz de pensar. Eu agora estou completamente burra e não consigo explicar mais.
9/VI/06
Como em uma população que se divide em diversos grupos, sendo que cada grupo recebe uma outra língua, cada um cria suas expressões “específicas” que, apesar de todos os conhecimentos de palavras e da gramática, permanecem incompreensíveis ao estrangeiro, assim ocorre também em pequenas “comunidades” fechadas, assim também em indivíduos isolados. Portanto, é compreensível que quanto menor se torna o grupo segregado, tanto mais facilmente as “expressões específicas” ganham direitos civis. Pois eles conhecem a tendência à economia, regresso ao conhecido etc. No indivíduo, isso nunca encontra uma contraposição, já que ele justamente só precisa ser compreensível para si mesmo. A singularidade da língua eleva colossalmente o sentimento de excentricidade; eles não esperam mais nada do mundo para si e, na frieza artificial em relação aos próprios sentimentos que se segue, eles se tornam igualmente estranhos aos seus semelhantes; reagem a tudo com um sorriso frio porque já perderam há muito toda a crença e o interesse na vida, e percebem toda fala como sons sem sentido. Eles tampouco dão atenção a xxx xxx, como uma mãe que, sob a influência de outro intenso sentimento, não dá atenção às falas de seu dileto: ela não reage ou se comporta de forma um pouco inapropriada, sendo que não se percebe nenhum sentimento. A rigidez não advém da
I. Uma relação amistosa e amorosa – Sabina e Jung, um romance epistolar e seus registros em diário
Há quatro anos e meio, o dr. Jung foi meu médico, depois se tornou um amigo e, por fim, “poeta”, ou seja, amante. Afinal, ele veio a ter comigo e tudo aconteceu como as coisas costumam acontecer na “poesia”. Ele pregava a poligamia, segundo ele, sua mulher estaria de acordo etc. etc. Agora, porém, minha mãe recebeu uma carta anônima, escrita em bom alemão, a qual dizia que ela precisava salvar sua filha, pois, caso contrário, ela poderia ser arruinada pelo dr. Jung.
Fragmento da carta enviada por Sabina Spielrein a Sigmund Freud em junho de 1909 (Hensch, 2003, pp. 85-86).
Muito se tem escrito sobre o estatuto da relação entre Sabina Spielrein e Carl Gustav Jung. Num primeiro momento, a descoberta das cartas trocadas entre eles e entre ela e Freud e de seu diário escrito em alemão de 1909 a 1912 deu a entender uma violação sexual “incestuosa” da paciente por seu médico durante o seu tratamento. Novos documentos achados posteriormente, a partir do início das pesquisas sobre ela, sobretudo na década de 1990
266 as cartas entre spielrein e jung e spielrein e freud
– novos fragmentos de cartas de Jung a ela, um diário em russo que estava no arquivo Claparède, um novo diário escrito em alemão e novas cartas trocadas entre Sabina Spielrein e sua mãe – geraram uma verdadeira polêmica sobre a consumação ou não do ato sexual nessa relação (Lothane, 1999, p. 1.189).1
Especificar a natureza da relação amorosa entre Sabina Spielrein e Jung por meio dos documentos não é o foco deste trabalho, já que meu interesse principal é o resgate de seu pioneirismo e visionarismo enquanto teórica e clínica da psicanálise por meio de sua obra. No entanto, analisar essa questão trouxe três desdobramentos importantes. O primeiro deles é a participação do episódio entre Spielrein e Jung na elaboração freudiana dos textos sobre transferência e nos demais ditos escritos técnicos de Freud na virada que ele dá em 1912, quando passa da pretensão de escrever apenas um pequeno texto não publicável – recomendando uma autoanálise aos psicanalistas a fim de diferenciarem seus conteúdos inconscientes daqueles dos pacientes, abordando, então, o fenômeno da contratransferência – para a decisão de publicar escritos que exortavam a necessidade da análise pessoal para que alguém pudesse tornar-se analista, exatamente no período que antecedeu a ruptura com Jung. O segundo desdobramento diz respeito ao lugar em que foi colocada a violência na relação entre Jung e Spielrein. Ela está presente muito menos na existência de um relacionamento amoroso e sexual entre eles do que na maneira como Jung se comporta no que diz respeito a essa relação junto a Freud, a Sabina, a Eva, mãe de Spielrein, e a sua mulher. O terceiro desdobramento
1 O material não publicado foi obtido por ensaios, alguns dos quais eu não tive acesso direto, apenas por meio do trabalho de Lothane, que cito aqui: Brinkmann & Bose, 1986, pp. 215-223; Gabbard, & Lester, 1995; Swales, 1992, pp. 30-37. Posteriormente, tive acesso às cartas publicadas em Covington & Wharton, 2003, e Cifali, 1983. Os diários de Sabina Spielrein traduzidos neste volume por meio de Wackenhut & Willke, 1994, compõem também esta parte.
diz respeito à pouca importância que vem se dando nas pesquisas à relação de Spielrein com Jung quando da leitura do texto A destruição como causa do devir, cujo conteúdo é material privilegiado para a decisão da questão. Como mostramos no volume 1, o ensaio tem como foco responder à questão de por que a penetração sexual desperta tanta angústia. Aqui são tematizadas a loucura amorosa e a fusão erótica em suas várias facetas. Como uma moça de 24-25 anos poderia escrever tão profundamente sobre a questão se não tivesse se envolvido também profundamente, corpo, alma e psiquismo, com essa angústia? Sabina diz também, em seu diário, que Jung havia sido o seu primeiro amor juvenil, o primeiro a quem teria se entregue. Se a escritura desse ensaio, como mostramos no primeiro volume, é a elaboração do luto pelo filho real que desejava ter com Jung, Siegfried, e de seu amor sexual por Jung, sendo que seu diário mostra seu desejo de encontrar um outro homem com quem pudesse viver esse amor com exclusividade, com quem mais haveria de ter tido uma relação sexual com penetração?
O ensaio de Zvi Lothane fornece um bom eixo para examinar a relação entre Jung e Sabina, apesar de meu desacordo com algumas das conclusões desse autor. Ele discorda da interpretação, geralmente aceita, de que o relacionamento entre Sabina e Jung, entre os anos de 1904 e 1910, incluísse relações sexuais e constituísse uma infração ética dos limites nos quais deve se desenrolar a relação médico-paciente em um tratamento. Spielrein declarou que seu tratamento havia terminado ao ter alta como paciente de Jung entre 1904-1905, no hospital Burghölzli. Jung explicou que havia prolongado a relação para prevenir uma recaída, referindo-se a ela como uma amizade. Para Lothane, o material documental novo traz um ponto de vista matizado sobre a relação entre os dois e aponta a função do afeto não erótico na relação terapêutica. Além disso, ele permite uma análise nova da correspondência entre Freud e Jung quanto ao tema Spielrein-Jung, segundo a qual,
268 as cartas entre spielrein e jung e spielrein e freud
a impressão de Jung de que Spielrein havia gerado um escândalo sexual se deveu ao fato de Jung ter interpretado mal certos rumores relativos a uma outra mulher. Assim, esse episódio não teve efeito negativo algum na relação entre Freud e Jung. Como coloquei anteriormente, penso que são duas questões diferentes: a primeira, se houve ou não relacionamento sexual entre Jung e Spielrein; a segunda, se houve uma infração ética dos limites em que deve se desenvolver uma relação médico-paciente durante um tratamento. O terceiro ponto levantado por ele, sobre a confusão enganosa que Jung teria criado ao escrever para Freud sobre o escândalo feito por Spielrein, afirmando que ela não teria tido nenhuma influência nas relações entre Jung e Freud, parece-me não dizer respeito à tese principal do autor quanto à natureza da relação entre os dois e a quebra ética, tenho a impressão de que Lothane o utiliza para encobrir a gravidade do que está sendo discutido e suas consequências para o movimento psicanalítico, colocando a ruptura entre Freud e Jung muito mais em termos de diferenças conceituais quanto ao caso Schreber, o que sem dúvida foi um ponto importantíssimo, mas de maneira alguma o único.
1905 2 – O estabelecimento da transferência amorosa e de fortes laços pessoais
Até essa data, o dr. Jung foi médico de Spielrein e ela, a primeira paciente a ser tratada pela psicanálise, como ele a conhecia dos escritos de Freud até então. O tratamento durou relativamente pouco tempo graças ao investimento de toda a equipe, em especial de Jung, nele. A transferência amorosa em relação a Jung ficou
2 Adoto a periodização feita por Lothane na análise da questão do relacionamento entre Jung e Sabina.
evidente na rápida melhora dos sintomas e na aquiescência à condução que este fazia do tratamento.
Ambos estabeleceram fortes laços profissionais e pessoais. No seu diário em russo, ao escrever sobre a sua impressão do primeiro dia de aulas na faculdade, em 25 de abril, podemos percebê-la encaminhando seus sentimentos em relação a Jung mais como amigo do que como médico. Afirma que se sentia isolada dos outros estudantes por se sentir mais profunda, séria, evoluída criticamente, independente, e se pergunta se será capaz de trabalhar cientificamente:
Entretanto, uma vida sem a ciência é impensável para mim. O que me resta ainda senão a ciência? Casar? Mas é terrível pensar nisso: às vezes meu coração dói tanto, anseio por carinho, amor; mas é apenas um momento externo ilusório e passageiro que coincide com a prosa mais rasteira. O que já custa no mínimo a opressão da personalidade! E o vazio, o tédio, assim que o primeiro instante de paixão se desvanece? Não! Eu não quero esse amor: eu desejo um bom amigo ao qual eu possa mostrar cada traço de minha alma, eu quero o amor de uma pessoa mais velha para que ele me ame e compreenda (semelhança interior) como os pais amam um filho. E para mim é como se os pais não estivessem presentes... Mas essa é uma história conhecida demais para mim para que eu queira descrevê-la.
Se eu fosse tão inteligente quanto meu Jung[a]! Diabo! Eu quero saber se conseguirei ser algo. O fato de que não sou um homem também é estúpido: eles conseguem tudo mais facilmente. É também ultrajante o fato de que toda a vida está estruturada para eles. E eu não quero ser uma escrava! (Spielrein, Diário Russo IV, 25/04/05, p. 148)
270 as cartas entre spielrein e jung e spielrein e freud
Sabina revela sua expectativa de alguém que seja como um pai para ela e não um parceiro e companheiro; ela procura em Jung o amor ao pai, ou seja, ela ainda está ligada ao pai em sua mente que preza o conhecimento científico acima de tudo e a faz se sentir mal naquilo que a faz mulher. Jung é, portanto, também a personificação do ideal. Por isso inveja os homens com sua vida fácil e iguala o casamento à subjugação.
No seu diário em russo, ela continua a descrever suas tentativas e triunfos à medida que progride em seus estudos médicos que a entusiasmam cada vez mais, e cresce tanto emocional como intelectualmente à medida que sua amizade com Jung se aprofunda:
A única coisa que tenho agora é minha liberdade e protejo essa última preciosidade com todas as forças. Eu não suporto nem mesmo o menor atentado à minha personalidade, nem mesmo na forma de uma simples lição, um sermão. E quanto mais influência uma pessoa tem sobre mim, tanto mais ela consegue me enfurecer, até mesmo com uma lição gentil. (Sei bem demais por que é assim). Apenas de Jung suporto tudo. Dói-me profundamente quando ele me repreende. Quero chorar, implorar-lhe que pare porque sinto a opressão de minha personalidade, mas por outro lado, não posso resistir a ele. Essa dor desesperada e insuportável que ele me causa (mas também professor) frequentemente me é, ao mesmo tempo, agradável, e me felicito quando ele se aborrece, e me alegro com minha humilhação. Se alguém soubesse o quanto me dói escrever estas linhas! Quanto esforço me custou escrever tais palavras, essas frases humilhantes, refletir sobre elas! [...] Amanhã vou à biblioteca médica e talvez empreste dela (Cantonal 13)
Renata Udler Cromberg
“Qual o seu nome, prezada senhorita?” – // Pol se intrometeu na conversa mais uma vez. “– Como sou distraída, até agora não perguntei com quem passei o tempo com tanto prazer!” – a esposa se admirou. “Eu me chamo Revekka Samuilowna Bronstein”. “– Não pode ser, a senhorita está a gracejar!” – a senhora sorriu e repentinamente seu rosto empalideceu. “Por que a senhora acha que eu estaria gracejando?” – “Bem, esse nome não é russo!” – “O que ele é, então?” – “Pois ele é judeu!” – “Sim, é um nome judeu e eu sou judia”, disse a senhorita elevando-se orgulhosa. “Não, nunca vou acreditar nisso! Grega, italiana, armênia, mas não judia!” – “Não pense isso: eu lhe dou minha palavra, eu sou judia!” – Rewecka Samuilowna explicou claramente mais uma vez. Nesse momento, a expressão no rosto da senhora se modificou repentinamente: o doce sorriso se transformou em uma careta de desprezo, ela se virou para seu marido e sussurrou enojada: “Pol, ela é uma judia!”
Trecho da redação Imagens da Natureza, escrita por Spielrein aos 16 anos, que aparece no terceiro diário russo, no dia 9 de agosto de 1902, primeira referência de uma consciência do antissemitismo
454 spielrein, freud e jung: entre judaísmo e antissemitismo
O objetivo deste capítulo é desenhar uma polêmica latente entre o judaísmo de Freud, como ele o assumiu para Sabina Spielrein, frente ao arianismo de Jung com seu latente antissemitismo – que se manifestou, em 1933, após a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha –, como se pode depreender da correspondência trocada por Spielrein com Freud e com Jung, entre 1911 e 1923. Em agosto de 1913, Freud se diz muito feliz por ela ter se reconciliado com sua vida presente duas vezes mais rápido do que ele previra. Ele não pode suportar que ela lamente o antigo amor e os ideais passados:
Eu mesmo, como a senhora sabe, estou curado de qualquer resto de predileção pelos arianos e suponho que, se for um menino, ele se tornará um rigoroso sionista. / É preciso que ele seja, ou ao menos se torne, moreno, não mais cabeças loiras, deixemos as quimeras para trás! (Hensch, 2003, p. 118)
Ele lhe diz que ela sabe que não enviou suas saudações a Jung em Munique. Mas deseja a ela que tudo vá bem, deseja a ela um acréscimo de ternura, de humor e de bom senso, a fim de que muito dessas virtudes passem à jovem vida da criança: “Nós somos e permanecemos judeus. Os outros sempre nos explorarão, sem jamais nos compreender e tampouco estimar” (Hensch, 2003, p. 118).
“Curado da predileção pelos arianos” refere-se aqui à ambivalência freudiana em relação ao seu bando de judeus em Viena, seus primeiros discípulos que tinham sido relegados a segundo plano com a chegada de seu herói ariano e louro, Jung, que livraria a psicanálise de ser uma ciência judaica. Freud não hesitou em transformá-lo em chefe político do seu movimento, justamente porque não era judeu. Freud sempre manifestou sinais de uma ambivalência própria à identidade judaica no final do século XIX. Falava
sabina spielrein – obras completas – volume 3 455
sem hesitar da “raça judaica”, da “diferença entre judeus e arianos”, sempre designando os não judeus como arianos, mas a utilização dessas expressões nunca o levou a promulgar uma psicologia das diferenças. Nada lhe causava mais horror do que ouvir seus adversários reduzirem a psicanálise a um produto do espírito judaico ou a uma mentalidade vienense. Mas, em vez de afirmar, claramente, sua oposição a esse tipo de argumento, Freud oscilou entre duas atitudes que não correspondiam à sua concepção da cientificidade da psicanálise. Até 1913, em nome de uma ciência universal, Freud quis fazer de Jung o herói da “desjudaização” do seu movimento: em 26 de dezembro de 1908, ele escreveu a Karl Abraham: “nossos camaradas arianos nos são realmente indispensáveis, sem eles a psicanálise seria presa fácil do antissemitismo” (Roudinesco, 1999, p. 42). Em contrapartida, após a ruptura com Jung, ele muda bruscamente de opinião e reivindica a aliança possível da judeidade e da invenção de uma ciência universal. A Enrico Morselli, escreve:
Eu não sei se o senhor tem razão de ver na psicanálise um produto direto do espírito judeu, mas, se é o caso, não me sentiria nem um pouco envergonhado. Ainda que alheio há muito tempo à religião de meus ancestrais, nunca perdi o sentimento de pertencer a um povo e de me solidarizar com ele e penso, com satisfação, que o senhor mesmo se define como aluno de um dos meus companheiros de raça, o grande Lombroso. (Roudinesco, 1999, p. 42)
Se Freud teve uma atitude ambivalente em relação ao judaísmo, a qual foi marcada por uma mudança após a ruptura com Jung, a mesma atitude ambivalente estava presente em Jung. Em final de janeiro de 1918, em sua correspondência com Spielrein, o psiquiatra suíço observa:
456 spielrein, freud e jung: entre judaísmo e antissemitismo
Não se esqueça de que o judeu também tinha profetas. A senhora ainda não vive uma parte da alma judia porque espreita demais o que está do lado de fora. Isso é – “infelizmente” – o infortúnio do judeu: o seu lado psíquico mais próprio e mais profundo ele denomina “realização infantil do desejo”, ele é o assassino de seus próprios profetas, até mesmo de seu Messias. (Hensch, 2003, p. 213)
Ele fala provavelmente de um sonho dela, onde o n. 6 = sex, como Freud o entende, e continua:
A senhora se orienta pelo entorno externo, pelo mundo visível, por isso o mundo interno lhe parece caótico. O mundo interno, no entanto, vem com uma força irresistível e vai se apossar da senhora. A senhora vai viver uma transmutação curiosa. (Hensch, 2003, p. 214)
Sabina responderá, ferozmente, dizendo que não foi somente o povo judeu que matou os seus profetas e que é peculiar ao destino dos profetas não serem reconhecidos na própria pátria, durante a sua vida. Discorre, então, sobre o judaísmo, o cristianismo e a sublimação. Essa será a última carta que conhecemos dela, ainda que, como há algumas cartas de Jung de final de 1918 e do ano de 1919, supõe-se que ela também tenha escrito a ele. Quanto ao judaísmo, ela responde a Jung:
O senhor nos acusa, a nós judeus, junto com Freud, de vermos nossa mais profunda vida psíquica como a realização de um desejo infantil. A isso eu primeiramente tenho de lhe responder que nenhum povo está tão fortemente inclinado a ver o místico e profético em
tudo quanto o judeu. O oposto disso é o claro espírito empírico-analítico de Freud. Uma pessoa não pode se ocupar de todos os problemas do mundo. O mérito de Freud foi o fato de ele ter comprovado as manifestações da vida pulsional até a mais tenra infância durante a análise. Freud também nos mostrou como toda nossa vida se torna dependente dessas primeiras vivências da pulsão infantil. Agora nós podemos, se aceitarmos essas observações e, inclusive, esclarecimentos, ir mais adiante e afirmar: a vida pulsional não é o primário, mas sim ora expressão, ora meio de uma outra coisa que nos é proclamada por meio de diferentes combinações dos elementos psíquicos dentro de nós etc. etc. Todo reconhecimento tem um valor relativo, o senhor vê que mesmo as doutrinas darwinianas são apenas relativamente corretas depois que conhecemos os estudos de Mendel.1 Eu não vejo por que Freud estaria desvalorizando os feitos mais elevados do ser humano ao ver suas raízes, ou seja, suas molas propulsoras, nas moções pulsionais reprimidas que chegam até a mais tenra infância. (Hensch, 2003, p. 173)
Não posso deixar de comentar o destino dessa ambivalência freudiana e junguiana em relação aos judeus nos destinos da psicanálise e da psicologia analítica no que diz respeito à política do nacional-socialismo quanto às psicoterapias.
Do lado de Jung, a polêmica nomeação para a presidência da Allgemeine Ärtzliche Gesellschaft für Psychoterapie (AÄGP),
1 Gregor Johann Mendel (1822-1884). Suas investigações sobre a hereditariedade de características simples foram publicadas em um jornal provincial em 1866 e inicialmente ignoradas pelo mundo científico. Sua relevância foi reconhecida apenas em 1900 por Hugo de Vries, Carl Correns e Eric Tschermak.
458 spielrein, freud e jung: entre judaísmo e antissemitismo
entidade fundada em 1926, com sede em Zurique, que tinha por objetivo unificar as diferentes escolas europeias de psicoterapia, sob a égide do saber médico. A Zentralblatt für Psychoterapie, criada em 1930, servia de órgão de difusão da AÄGP. Com a ascensão de Hitler ao poder, a ramificação alemã da Sociedade e a revista, editada em Leipzig, foram submetidas à nazificação sob o controle de Göring, sobrinho do tristemente famoso marechal. Foi nesse momento que os psicoterapeutas alemães, preocupados tanto em agradar o regime quanto em manter suas atividades nacionais e europeias, pediram a Jung que assumisse a direção da entidade da qual já era o vice-presidente.
Jung aceitou a presidência, desejando assegurar o domínio da psicologia analítica sobre o conjunto das escolas de psicoterapia. De Zurique, ele pretendia proteger tanto os terapeutas não médicos quanto os colegas judeus que tinham perdido o direito de exercer suas atividades na Alemanha. Na realidade, ele foi escolhido pelos clínicos alemães devido à confiança que inspirava nos promotores da psicoterapia ariana, ferozmente oposta ao pensamento freudiano. Os artesãos da nova medicina do Reich, orquestrados por Matthias Göring – um psiquiatra assistente de Kraeplin, que primeiro adotou a psicologia individual de Adler e depois tomou como modelo a psicologia junguiana, sonhando torná-la o protótipo de uma nova psicoterapia hitleriana centrada na superioridade da alma alemã –, haviam acrescentado ao seu programa a destruição da psicanálise, do seu vocabulário, dos seus conceitos, das suas obras, do seu movimento, das suas instituições e dos seus clínicos. De todas as escolas da psiquiatria dinâmica e da psicoterapia, ela foi a única a receber, enquanto tal, o qualificativo de “ciência judaica” tão temido por Freud.
Para Roudinesco (1999), Jung se engajou em uma aventura da qual poderia ter facilmente se poupado. A partir de 1933, começou a publicar textos favoráveis à Alemanha nazista na Zentralblatt
Renata Udler Cromberg
A apresentação do pensamento de Sabina Spielrein nos dois primeiros volumes deixa evidente um pensamento metapsicológico próprio apoiado na metapsicologia freudiana da primeira tópica, mas indo além dela, antes de Freud fazê-lo.
Evidente remete a visível. De fato, todos os textos de Spielrein foram muito bem recebidos por Freud e publicados nas pioneiras revistas de psicanálise quase imediatamente após sua escritura. Por que então, a partir do seu retorno à antiga URSS, eles ficaram invisíveis, estando lá, mas não sendo mais vistos ou lidos, esquecidos progressivamente, até a publicação da compilação de suas cartas e trechos de seu diário por Aldo Carotenuto em 1977?
Utilizar a palavra esquecimento1 da obra remete a um ato superficial, involuntário, um não estar presente na memória imediata. É uma maneira fenomenológica válida de descrever a desaparição dos textos de Spielrein como referencial psicanalítico. A obra de
1 Agradeço a sugestão deste termo a Décio Gurfinkel, que, me vendo às voltas com o diálogo interno em torno do uso do termo recalque, minha escolha inicial, a partir do questionamento de Renato Mezan, sugeriu-me manter o termo mais fenomenológico e depois realizar a discussão teórica.
496 algumas reflexões sobre o esquecimento da obra de sabina spielrein
vários outros psicanalistas das origens teve esse destino, sobretudo aqueles que não participaram ou não tiveram uma posição de destaque no movimento político institucional da psicanálise, estiveram envolvidos em querelas ou não fizeram uma política da teoria para que sua reflexão única e singular tivesse reconhecimento destacado dentro da coletividade psicanalítica ou fora dela.
Poderíamos utilizar a expressão “soterramento histórico da obra”, o que combina bastante com a metáfora do método de trabalho que foi emergindo dessa tese, a geoarqueologia da ruína. Forças históricas que atuam no sentido de sobrepor camadas de depósitos pela ação do tempo, da política geral e institucional de cada tempo, que funcionam com algum nível de determinação e causalidade, mas também por fendas e irrupções, à maneira do magma vulcânico. A pergunta então seria: quais forças trabalharam resultando no efeito de eliminação da recordação e do registro histórico de Sabina Spielrein como uma indiscutível pioneira da psicanálise, um de seus mitos de origem?
Será que poderíamos falar de recalque2 da obra?
Richebächer (2003, pp. 246-247) acha que sim. Para ela, o conceito psicanalítico de recalque se traduz no axioma de que um evento anterior A é retrabalhado como resultado de um evento posterior B e dotado de um novo sentido que, então, desenvolve um efeito patogênico. Esse processo é cunhado com o termo Nachträglichkeit, a posteriori. Para ela, o conceito de recalque também pode ser aplicado à história mesma da psicanálise. Sabina Spielrein primeiro foi esquecida, com razões suficientes para isso. Sua pessoa, seu nome indubitavelmente faziam lembrar a ruptura entre Freud e Jung, em 1913, que foi tão traumática para
2 No início, eu pensava que inequivocamente deveríamos falar em recalque da obra de Spielrein. Um genuíno questionamento realizado por Renato Mezan, a quem sou grata, permitiu uma igualmente genuína abertura de entendimento.
o movimento psicanalítico. Concordo com a autora quando ela diz que Sabina Spielrein era uma pessoa independente, de desejo próprio, e não permitiu ser pega na armadilha dos interesses do movimento psicanalítico como um mero aparato. Ela, sem dúvida, ofendeu seguidamente as estruturas patriarcais psicanalíticas. Ernest Jones, que foi o mais hábil político da história do freudismo e quem passou mais tempo à frente da Associação Internacional da Psicanálise (Plon & Roudinesco, 1998, pp. 385-386),3 de 1934 a 1949, não podia suportá-la.
Para Richebächer, o reaparecimento dos diários e correspondência de Spielrein e a publicação de seu trabalho científico a partir de 1980 não funcionaram como gatilho de memória para a psicanálise. As pessoas preferem se poupar o trabalho da memória, rotulando-a retrospectivamente com um diagnóstico de distúrbio psíquico severo, como vimos no volume 1 (Cromberg, 2021a, Capítulo 3). É estranho que a psicanálise resista à sua própria história, pois, de todas as disciplinas de saber, ela é a única fundada na crença do poder curador da memória. Atribuir retrospectivamente um falso diagnóstico assegura que nada mude.
Eu penso que é necessário distinguir bem entre o recalque (Verdrängung) e a repressão ou supressão (Unterdrückung). Esta última é uma operação psíquica que tende a suprimir conscientemente uma ideia ou um afeto cujo conteúdo é desagradável. Já o recalque designa o processo que visa a manter no inconsciente todas as ideias e representações ligadas às pulsões e cuja realização,
3 Ele ficou à frente da instituição justamente no período em que ela se transformou, a partir de 1925, numa organização centralizada, dotada de regras de formação e admissão que visavam a normatizar as análises e afastar da formação os analistas “selvagens” ou transgressores, além de proibir as práticas ditas “incestuosas” de analisar membros da família ou de uma mesma família, além da proibição de manter relações sexuais com pacientes, qualquer que fosse sua forma.
498 algumas reflexões sobre o esquecimento da obra de sabina spielrein produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, transformando-se em fonte de desprazer. O recalque é a operação psíquica constitutiva do núcleo original do inconsciente. Ele não lida com as pulsões em si, mas com seus representantes, imagens ou ideias, os quais, apesar de recalcados, continuam ativos no inconsciente, sob a forma de derivados, ainda mais prontos a retornar para o consciente, já que se localizam na periferia do inconsciente.
A questão é: como utilizar de maneira válida os conceitos psicanalíticos de recalque e repressão ou supressão, que foram concebidos para o entendimento de processos psíquicos singulares de cada ser humano, num sentido que envolve o coletivo, seja na forma de suas instituições sociais, seja na forma de processos históricos? Qual é a ponte entre o aparelho psíquico de um ser humano e os processos históricos, políticos e institucionais que incidem sobre ele e que dizem respeito ao tempo ao qual ele pertence, mas não só a esse tempo, e sim também ao tempo que o antecedeu e aquele que sobreviverá a ele?
Foi na conceitualização da própria Spielrein que encontrei um caminho possível para pensar a questão do esquecimento da sua pessoa, da sua obra e da sua importância para o movimento psicanalítico, dentro do enquadre dessa questão. Ela diferencia
Verdrängung de Unterdrückung, no esteio de Freud, mas acrescenta o uso dos termos subconsciente e linguagem simbólica subliminar. Na teoria subjacente às ideias expostas na carta a Jung que analisamos no volume 1 e que apresentamos no Capítulo 4,4 aquilo que é do coletivo, seja na forma de precipitados do passado da espécie, chamado psique coletiva, sejam os ideais éticos, morais, a percepção da continuidade da evolução histórica, está no subconsciente, suprimido do consciente, mas passível de consciência. Pode-se
4 Carta de Sabina Spielrein a Jung de 20/XII/1917, p. 381.
ligar a registros corporais e do pré-consciente, essa zona psíquica formada pela censura que atua no recalque das representações da pulsão, lugar em que se dá a percepção da duração do tempo. Esses, o pré-consciente e os registros corporais, também são parte do subconsciente. As representações simbólicas, o símbolo, a linguagem simbólica subliminar, não são processos do consciente que se apoiam quase exclusivamente no plano visual, mas sim subconscientes, passíveis de consciência.
Penso que as forças históricas que atuaram no esquecimento da pessoa e da obra de Sabina Spielrein se relacionam àquilo que é marca simbólica da sua corporeidade e aos fantasmas pessoais, fruto do recalque. Penso que, no espaço da intersubjetividade, essas forças históricas atuaram também nos dois personagens principais de sua história, Jung e Freud, e também com a marca simbólica da sua corporeidade e dos seus fantasmas pessoais.
Por marcas simbólicas da corporeidade, entendo as determinações simbólicas constituídas pelo fato de Sabina Spielrein ser mulher, russa e judia, condições que perpassaram sua corporeidade desde antes de seu nascimento e influíram na sua movimentação no mundo. Da mesma forma, para Freud, homem, judeu, austro-húngaro e para Jung, homem, cristão e suíço-ariano.
Por fantasmas pessoais, entendo aquilo que se mostra constituído e constitutivo do recalcado a partir de vivências corporais e pulsionais que constituem uma reserva histórica pulsional singular e que, ao ser mantido recalcado, produz efeitos até mesmo nos processos sublimatórios.
O fato de Freud, Jung e Spielrein terem sido forças constituintes do movimento psicanalítico em seus primórdios colocou-os atravessados pelas forças instituintes coletivas que iam determinando os rumos dos ideais do novo campo de saber, o que também era perpassado não só pelas práticas psicanalíticas nascentes,
500 algumas reflexões sobre o esquecimento da obra de sabina spielrein
mas pela política institucional e pela política da teoria nascente, junto com elas.
Assim, as forças históricas que atuaram no esquecimento da pessoa e obra de Spielrein são forças políticas gerais que fizeram intersecção com forças políticas institucionais específicas e com forças políticas culturais. Por política, aqui, entendo o debate e o embate das ideias sobre como determinar a relação entre os homens no espaço público em qualquer plano que se apresentem, a condução das práticas humanas nos planos culturais, sociais e econômicos, discussão que se dá por meios pacíficos ou violentos, violência explícita ou velada.
As problemáticas da política da teoria, da política institucional nos 25 primeiros anos do movimento psicanalítico, a constituição do imaginário misógino no final do século XIX e início do XX e a problemática da bissexualidade em psicanálise, a política da Guerra constituíram algumas forças político-histórico-culturais que atravessaram a corporeidade de Sabina Spielrein e que compõem uma nova camada de compreensão da repressão ou supressão que está na base do processo de marginalização histórica, após a análise do que, no plano do recalque fantasmático sexual, funcionou como um ímã atrator.
Spielrein
Sabina Spielrein entre Freud e Jung, Sabina Spielrein entre Piaget e Freud, Sabina Spielrein entre Freud e Bleuler, Sabina Spielrein entre Freud e Claparède, Sabina Spielrein entre Piaget e Vygotsky/Luria, Sabina Spielrein entre Hitler e Stalin. Todas essas triangulações em que Sabina se apaga parecem ser a repetição de uma conjuntura fantasmática de um triângulo entre Sabina Spielrein, sua mãe e um homem em comum, com o seu apagamento e não reconhecimento.

Renata Udler Cromberg é autora bastante conhecida e reconhecida no meio psicanalítico brasileiro. Sua obra sempre primou pelo vigor intelectual e clínico da psicanalista aliado à elegância da escritora. E agora, com a finalização desta trilogia sobre Sabina Spielrein, outra qualidade vem a estas se somar: a meticulosidade e o rigor da pesquisadora e historiadora. Merecidamente, esta trilogia impressionante alça Cromberg ao rol dos escritores psicanalistas internacionalmente reconhecidos. Poucas vezes uma personagem da história primordial da psicanálise, como Spielrein, ganhou um estudo tão extenso e profundo que, ademais, tem uma função claramente reparatória, dado o tratamento que a política psicanalítica historicamente até agora lhe reservara.
– Flávio Ferraz
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Coord. Flávio Ferraz
