Anais 2014-2015

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ANAIS Ano V Brasília, 2015


ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA 2014 – 2015

ANAIS Ano V

Brasília, 2015


Anais da Academia de Medicina de Brasília 2014-2015, ano V. Brasília: ed. do autor, 2015 280p. Coletânea de escritos apresentados em palestras. 1. Medicina. I. Academia de Medicina de Brasília (2014-2015) CDU 61

Revisão: Simônides Bacelar Diagramação: Marcos Aurélio Pereira Capa: Marcos Aurélio Pereira

Academia de Medicina de Brasília SGAS 607 – Edifício Metrópolis – Cobertura 1 Asa Sul – Brasília – DF – CEP: 70200-670 Endereço eletrônico: acadmedbr@gmail.com Site: http://www.academiamedicinadebrasilia.org.br/ Tel.: 61 33463655


ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA DIRETORIA AMeB Biênio 2014-2015

Presidente Acad. Edno Magalhães Vice-Presidente Acad. José Francisco Paranaguá de Santana Secretario Geral Acad. Etelvino de Souza Trindade Diretor Financeiro Acad. Procópio Miguel dos Santos Conselho Fiscal Acad. Maria Mouranilda Tavares Schleicher Acad. Leonardo Esteves Lima Acad. Izelda Maria Carvalho Costa Conselho Fiscal. Acad. Francisco de Assis Rocha Neves Suplentes Acad. Antonio Geraldo da Silva Acad. Simônides Bacelar



ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA – AMeB ACADÊMICOS TITULARES Cadeira n.º 01

Acadêmica Elisa de Carvalho

Cadeira n.º 02

Acadêmico Marcus Vinícius Ramos

Cadeira n.º 03

Acadêmico Augusto César de Farias da Costa

Cadeira n.° 04

Acadêmica Izelda Maria Carvalho Costa

Cadeira n.º 05

Acadêmico Laércio Moreira Valença

Cadeira n.º 06

Acadêmico Pedro Luiz Tauil

Cadeira n.º 07

Acadêmica Janice Magalhães Lamas

Cadeira n.º 08

Acadêmico Luiz Augusto Casulari Roxo Mota

Cadeira n.º 09

Vaga

Cadeira n.º 10

Acadêmico Edno Magalhães

Cadeira n.º 11

Acadêmica Rosely Cerqueira de Oliveira

Cadeira n.º 12

Acadêmico José João Ferraroni

Cadeira n.º 13

Acadêmico Antonio Geraldo da Silva

Cadeira n.º 14

Acadêmica Maria Mouranilda Tavares Schleicher

Cadeira n.º 15

Acadêmico Marcos Gutemberg Fialho da Costa

Cadeira n.º 16

Acadêmico Emmanuel Dias Cardoso

Cadeira n.º 17

Acadêmico Procópio Miguel dos Santos

Cadeira n.º 18

Acadêmico Iphis Tenfuss Campbell


Cadeira n.º 19

Acadêmico Jair Evangelista da Rocha

Cadeira n.º 20

Acadêmico Leonardo Esteves Lima

Cadeira n.º 21

Acadêmica Lucimar Rodrigues Coser Cannon

Cadeira n.º 22

Acadêmico Renato Maia Guimarães

Cadeira n.º 23

Acadêmico Simônides da Silva Bacelar

Cadeira n.º 24

Acadêmica Regina Cândido Ribeiro dos Santos

Cadeira n.º 25

Acadêmico Oscar Mendes Moren

Cadeira n.º 26

Acadêmico José Ulisses Manzzini Calegaro

Cadeira n.º 27

Acadêmico Etelvino de Souza Trindade

Cadeira n.º 28

Acadêmico Osório Luís Rangel de Almeida

Cadeira n.º 29

Acadêmica Ísis Maria Quezado S. Magalhães

Cadeira n.º 30

Acadêmico Francisco Floripe Ginani

Cadeira n.º 31

Acadêmico Paulo Andrade de Mello

Cadeira n.º 32

Vaga

Cadeira n.º 33

Vaga

Cadeira n.º 34

Acadêmico Maurício Gomes Pereira

Cadeira n.º 35

Acadêmico Luiz Fernando Galvão Salinas

Cadeira n.º 36

Acadêmico José Paranaguá de Santana

Cadeira n.º 37

Acadêmico Geraldo Damião Secunho

Cadeira n.º 38

Acadêmico Armando José China Bezerra

Cadeira n.º 39

Acadêmico Geraldo Magela Vieira

Cadeira n.º 40

Acadêmico Ronaldo Mendes de Oliveira Castro

ACADÊMICOS EMÉRITOS Acadêmico André Esteves de Lima Acadêmico Antonio Marcio Junqueira Lisboa


Acadêmico Célio Rodrigues Pereira Acadêmico Elias Tavares de Araújo Acadêmico Ely Toscano Barbosa Acadêmico Eraldo Pinheiro Pinto Acadêmico Francisco Pinheiro Rocha Acadêmico Hélcio Luiz Miziara Acadêmico João Eugênio G. de Medeiros Acadêmico José Antônio Ribeiro Filho Acadêmico José Leite Saraiva Acadêmico Manoel Ximenes Netto Acadêmico Odílio Luiz da Silva Acadêmico Renault Mattos Ribeiro Acadêmico Roberto Ronald de A. Cardoso Acadêmico Ruy Bayma Archer da Silva

ACADÊMICO HONORÁRIO Acadêmico Jofran Frejat



SUMÁRIO

Apresentação...............................................................11 Humanização da Medicina............................................13 Palestrante – Antonio Marcio Junqueira Lisboa A Medicina no Distrito Federal......................................45 Palestrante – Assembleia Medicina e Saúde Pública.............................................61 Palestrante – Pedro Luiz Tauil Medicina e Violência.....................................................97 Palestrantes – Lucimar Rodrigues Coser Cannon, Marcos Gutemberg Fialho da Costa, Augusto Cesar de Farias Costa Economia e Medicina.................................................. 135 Palestrante – Flávia Poppe Munhoz Doenças Transmitidas por Vetores no DF.................... 161 Palestrante – Pedro Luiz Tauil Brasília 55 anos. E a saúde?....................................... 189 Palestrante – Jofran Frejat


Situação Política Atual do Brasil: Uma Visão Imparcial... 217 Palestrante – Sílvio Costa Brasil, 2015. Para Onde Vamos?................................. 251 Palestrante – Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto


APRESENTAÇÃO

Palestras, debates, discussões, intercâmbios de ideias e tudo o mais que ocorra em reuniões da Academia de Medicina de Brasília, em qualquer gestão ou período, convergem sempre para o mesmo empenho ou a mesma preocupação, ou seja, o exercício digno da medicina. A reboque da mercantilização observa-se a queda vertiginosa da qualidade na prática da assistência médica, incluindo-se a saúde pública e suplementar no Distrito Federal e em boa parte do País. A leitura dos Anais mostra que os membros desta Academia são observadores e bem qualificados em razão de conhecimento e experiência que demonstram. Pergunta preocupante: Deve a Academia de Medicina persistir como observadora ou chegou a hora de adotar a proatividade como seu comportamento? Brasília, fevereiro de 2015 Edno Magalhães Presidente da Academia de Medicina de Brasília



PALESTRA HUMANIZAÇÃO DA MEDICINA Sessão Plenária de 27-5-2014

Acad. Dr. Edno Magalhães. Enfoco um assunto que vai voltar muitas vezes à discussão em nossas reuniões. Gira em torno da humanização da medicina. Para este tema creio que não haveria nada mais justo do que convidar o Prof. Antonio Marcio Lisboa, Acadêmico Emérito, que acompanho desde 1968 quando eu era médico-residente. PALESTRANTE ACAD. DR. ANTONIO MARCIO LISBOA. Agradeço ao Presidente Dr. Edno Magalhães por me ter convidado para falar sobre um assunto do qual gosto muito. Trabalho nesse tema há muito tempo. Penso que o ensino médico na área clínica deveria começar com uma aula muito simples, convenientemente trazida à área da pediatria. O médico está em seu consultório. Entram o pai e a criança. O médico pergunta ao pai: – O que seu filho tem? – Doutor, o senhor não quer saber meu nome? – Qual é seu nome? 13


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– Eu me chamo Paulo. – Mas o que seu filho tem? – O senhor não quer saber o nome do meu filho? Ele se chama Marcelo. Doutor, posso me sentar? – Ah! Pode se sentar. Primeira aula – um evento que quase nunca é cumprido. Tive um exemplo, num pronto-socorro em Taguatinga, com um chefe de serviço, quando a mãe segurava a criança no colo. Solicitei uma cadeira para eles. Dois dias depois do atendimento, voltei lá e notei que a cadeira fora retirada. Mandei recolocá-la. Dois dias depois, a cadeira foi retirada outra vez. Minha chefe do pronto-socorro disse: Agora vou querer saber quem está tirando essa cadeira. Ela vai ficar aí. Passados uns dias, um colega me procurou e disse: Você fez muito mal em tirar a cadeira, porque as mães demoram demais. Elas ficam cansadas com as crianças no colo, e aí você atende mais rápido, pois elas vão embora mais depressa. Assim, vimos como é esse tipo de situação. Vamos pensar sobre o seguinte: procuramos muito mais esse pessoal mais antigo. Meu avô era médico e não tinha praticamente recursos tecnológicos nenhum. Não havia radiografia, nem exames complementares. Era clínico geral, cirurgião, obstetra. Pode ter perdido alguns casos. No entanto, a maternidade tinha o nome do meu avô e umas das ruas principais de Itajubá tem o nome dele. Meu pai tinha mais recursos disponíveis. Foi o primeiro sanitarista de Minas Gerais e foi um dos primeiros radiologistas daquele Estado. Ele contava com alguns exames complementares, como exames de fezes, de urina, hemograma e a parte de radiologia. Talvez não tenha, assim, perdido muita gente. 14


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Meu tio, também médico clínico e obstetra em Itajubá, tem seu nome como designação de um hospital. A radiologia desse hospital tem o nome dele. Há também uma escola e uma rua com seu nome. Uma academia da cidade tem o nome dele. Ele também quase não tinha recursos laboratoriais, como exames complementares e, assim, deve ter perdido casos. Um dia, ele estava em forte estado emotivo e muito sofrido porque tinha perdido uma parturiente. Meu avô, seu pai, perguntou-lhe: – Gaspar, você não acha que está perdendo muita parturiente? Ele respondeu: – Ah, pai, todo obstetra perde. Você nunca perdeu? Meu avô objetou: – Nunca perdi. Meu tio disse: – Então, o senhor deve ser protegido da Nossa Senhora do Parto, porque todos os obstetras perdem pacientes e só o senhor não perdeu nenhuma, não? Meu avô afirmou: – Pois é essa nossa diferença Gaspar. É que eu sou protegido por Nossa Senhora do Parto, e você deve ser protegido pela Nossa Senhora do Óbito, pelo que você perde clientes. É isso que temos de observar. Entre todos esses meus familiares e os médicos que vi em minha terra quando eu era pequeno, não havia nenhum que não fosse querido pela população. Mas hoje ocorre algo estranho. Nós curamos muito mais. Naquela época, a mortandade infantil estava em 150 por 1.000 recém-nascidos. Agora, chegamos a cerca de 12, 15 ou 17 óbitos de recém-nascidos. É um sucesso muito grande. 15


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Deveríamos ser idolatrados pela comunidade e pelas pessoas pelo que fazemos. Quanta gente estamos salvando! Isto é o que a estatística prova. Sabe-se que estamos num avanço tremendo na área da medicina e, paradoxalmente, a comunidade cada vez mais gosta menos de nós, médicos. Para confirmar se gostam ou não é só ler os jornais. Há processos quase todos os dias contra médicos. Há muitas agressões. De vez em quando, um médico é morto, o que mostra a indignação da população, muitas vezes injusta, contra os médicos. O problema é a complexidade do sistema da saúde e da estrutura insuficiente com que o profissional trabalha. Esses não ocorrem por causa do médico em si. Antigamente, a estrutura em que os facultativos trabalhavam também era muito precária. Mas eram elogiados e chegaram até a serem chamados de mártires numa época da qual agora eu não mais escuto falar muito. Houve um tempo em que, no Distrito Federal, os médicos eram tratados em termos de deuses. Eu ouvia dizerem: Abaixo dos deuses, só os médicos, doutor Lisboa. Havia muita fé nos médicos. Acreditavam e gostavam deles. Eram pessoas queridas na cidade. Por que isso mudou? O médico do século passado fazia uso de recursos pessoais com simpatia, dedicação e calor humano. Embora os recursos materiais não fossem fartos, sobravam fé e confiança. O médico era visto na população como um semideus. As transformações sociais e os avanços tecnológicos foram responsáveis por parte do desprestígio dos médicos. Tornaram o terapeuta bem mais eficiente, mas menos humano. A forma de atendimento em massa da população pelos seus frutos tecnológicos despersonalizou ainda mais o profissional. Agora, dificilmente uma pessoa atendida no serviço público se lembra do nome do doutor que o atendeu. Se perguntarmos ao doente que acabou 16


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de sair do consultório sobre quem foi o médico que o atendeu, ele vai responder que não sabe quem foi. O médico, por sua vez, não pergunta o nome do doente. Começa o atendimento perguntando: O que o senhor tem? Segundo parece, ele tem três minutos e meio para atender o paciente. O que fazer? É necessário humanizar as instalações de atendimento, a estrutura e as normas contidas nas assistências à saúde, bem como os próprios profissionais da área assistêncial, principalmente os médicos porque estes são os líderes. Temos que atuar em dois pontos, isto é, um está na formação dos cidadãos, e o outro está na formação dos profissionais do sistema da saúde. A formação do cidadão é essencial. Existem médicos, bem como outros profissionais e cidadãos de comportamento criticável. É importante cuidar de sua formação educacional, moral e cívica. O número de condutas condenáveis está crescente em nossa sociedade. Há dois dias, vi pela televisão que assassinaram quatro mulheres por motivo de ciúme. Degolaram e jogaram uma criança em uma lata de lixo. São coisas inimagináveis. Em outro caso, um indivíduo trancou a porta, tocou fogo na casa e cozinhou dois meninos que estavam ali dentro. Isto significa que vivemos uma época de barbárie, algo formidável a meu ver. Tenho um livro publicado sobre isso: Primeira Infância, Raízes da Violência. Sobre bandidos que são assim formados desde quando crianças. A prevenção é imprescindível para melhorar o indivíduo como cidadão. Temos que atuar lá atrás, desde que a criança nasce até pelo menos os seis anos de idade, quando se forma, não totalmente, mas grande parte da personalidade do ser humano. A formação dos profissionais de saúde é uma área de maior responsabilidade nossa. A primeira fase da infância também o é, principalmente se somos pais. 17


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Educar é transformar bebês em bons cidadãos. Não é só ensinar a escrever, ler, ter boas maneiras, conviver socialmente. É construir uma pessoa com disciplina, limites, personalidade firme, bom caráter, bons princípios e valores, elevada autoestima, autossuficiente, com capacidade de expressão, espírito de iniciativa, corajosa, responsável, de fácil convivência e de consciente compromisso social. É a maior arma que se tem contra a formação de delinquentes, do mau comportamento social. Estive na China em 1976. Vi um aspecto da educação e da formação dos cidadãos diferenciado dos nossos processos educacionais. Presenciei uns menininhos que capinavam o jardim ao lado da escolinha. O professor nos explicou: Isso não significa que não temos jardineiros, mas para que a praça fique bonita. Nós dizemos a eles que essa praça só ficou bonita porque fizeram a limpeza. Eram crianças de 4, 5 ou 6 anos de idade, que ali capinavam para aprender o trabalho. Faziam sua tarefa e, depois, os meninos estavam orgulhosos porque a pracinha ficava bonita e porque fizeram aquilo. Vi teatrinhos lá também. Não era apenas para os outros verem. Tudo contribuía para a formação de valores. Não entendo chinês, mas compreendi quando veio ao cenário um menino que queria entrar numa carrocinha, que nela queria subir, mas não conseguia. Veio outro e os dois puseram uma pranchinha de subida à carrocinha. Veio uma menininha que, simulando uma chuva, chamou o menininho e o pôs debaixo de um saco para que não tomasse chuva. Tudo ocorre com esse tipo de conduta. Compreendi que esse povo está ali formando pessoas para o trabalho com bom caráter desde o início da formação deles. Fiquei impressionado. Escrevi um artigo sobre o tema, que foi publicado no Correio Braziliense em 1977. 18


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Os valores têm a ver com o ser e o dar. Contempla-se o componente benéfico tanto para quem pratica o dar, quanto para quem recebe. Ficamos, na maioria, satisfeitos quando dizem que somos honestos porque tem valor a honestidade, quer dizer, adoramos ser chamados de honestos. Se lhe dizem que V. é um sujeito leal, você ficará satisfeito. Se eu for leal, quem é amigo meu também vai gostar, porque ele tem um amigo leal. Honestidade, sinceridade, amor, carinho, lealdade são valores universais. Como valores aprendidos, essas coisas só vêm com os pais, com a família e com os professores nas escolas. Principalmente com o exemplo dos pais na convivência familiar antes dos 6 anos de idade. Se formos a uma creche ou a uma escola, calculo que muitas das pessoas ali não sabem ensinar aqueles valores. Não ensinam em casa também. Na escola, quando fui aluno, lembro-me de que tínhamos um livrinho chamado Civilidade. Tenho esse livro até hoje. Ensinava como se trata o professor, o vizinho, o pai e a mãe. Tudo isso era ensinado por livros e cobrado. Naquela época, aprendíamos a amar a pátria, a cantar o hino nacional e a amar a bandeira nacional. Nos dias de feriado, marchávamos com essas coisas. Aprendi a amar a escola, o País, a pátria. Naquela época, a porta da rua de minha casa ficava aberta. Quando fui a Leopoldina, com 17 anos de idade, ali não havia roubo. Cito um caso esporádico de violência, numa fazenda, em que decapitaram um primo meu, que era um camarada louco. Deram-lhe uma foiçada na cabeça, que o matou. Afora esses casos esporádicos, não havia mais nada. As crianças brincavam dia e noite. Nunca vi por ali um revólver e nada parecido. Era esse nosso tempo da infância. 19


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No presente, imagino, por exemplo, que tenho umas coisas para temer de dia e de noite. Se eu tiver um pneu furado nas ruas, não sei o que poderia acontecer comigo. O que se vê por aí e pela televisão é terrível. Quando alguém pára o carro, pode ser morto sem nada lhe perguntarem. A criança pode fazer alguma coisa, não? É preciso disciplina e autoestima. Autoestima é importantíssimo. A maior parte dos bandidos internados tem baixa autoestima. Aprendem e ensinam coisas que destroem a autoestima da criança desde cedo com afirmações como: Você é burro. Você não presta. Você é idiota. A criança acha que é verdade e sua autoestima vai lá para baixo. Os delinquentes têm comportamento assim. A maior parte deles tem baixa autoestima. Ter o indivíduo confiança nele próprio é muito bom. A velha medicina assim entendida se apequena, obrigando-se a profundas modificações em seu ensino e em sua prática. Os profissionais da área de saúde têm que ter conhecimentos de psicologia, etnologia, antropologia, sociologia, ética, custo e beneficio para cumprir bem sua missão. A medicina deixou de ser somente cuidar da saúde física. Deve-se também se ocupar da saúde mental, emocional e do bem-estar social. Algumas das coisas de que falamos podem ser questionadas. Dizer que o médico é um profissional que apenas cuida da saúde da população não parece certo. A saúde é uma situação de bem-estar físico, mental e social. Mas, se nesse contexto não aprende quase nada de emocional ou social, um médico não trata integralmente da saúde da população. Ele tem sido formado para tratar muito bem da saúde física da população. Dos outros dois elementos afetos à saúde ele não aprende nada ou quase nada. Na escola, deve-se falar sobre o efeito, por exem20


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plo, dos inseticidas, do efeito da água clorada, das condições climáticas que estão sobre nossa influência, das condições da habitação, daquilo de que se vive, onde a criança vive. Pouca gente ensina isso. Os médicos estão sendo produzidos em massa. Ao serem admitidos e promovidos os docentes são avaliados pelos seus conhecimentos técnicos profissionais e quase nunca pelo seu comportamento humano e ético. Se o médico tiver comportamento humano, ético, e gostar do paciente, não terá promoção garantida na carreira da universidade. Agora, seremos titulares de alguma coisa se escrevermos um trabalho e deixarmos de atender bem o aluno e atendermos mal a população. Estamos fazendo o quê? Com essa valorização da parte de pesquisas na carreira universitária formamos uma pirâmide, na qual quem fica no topo não tem essas qualidades que o médico deveria ter. Há esses ensinos de que vou ganhar mais se eu escrever e publicar muito. Mas tratar bem o paciente não interessa. Na Universidade de Brasília, incontáveis vezes ouvi o professor dizer: – Temos quatro crianças aí fora que não posso atender. Já atingi minha cota de pacientes. – Mas você atendeu apenas seis dos dez a atenter. – Mas eu não tenho nada com isso. Esse problema eles encaminham ao SUS e, como assistentes, não têm nada com isso. Quando estive em um hospital público de Taguatinga, observei que o paciente saía do ambulatório e me telefonava para dizer que o médico não chegou, não estava no consultório. Criança pobre faz um grande esforço para ir ao hospital e ser atendida. O doutor foi ao consultório, mas quando chego ali, às vezes, o consultório está parado porque a doutora 21


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ou o doutor está trabalhando no pronto-socorro para ganhar dos dois lados e mandou fechar o consultório. Poderia contar cem histórias desse tipo. Mas isso não pode ocorrer, pois desmoraliza nossa classe. A escola médica, em geral, prioriza o ensino e a pesquisa, mas quase nunca a responsabilidade social para com a comunidade. Não contém disciplinas que melhorariam o comportamento social do médico, como psicologia, antropologia e outros saberes similares. Os alunos não são educados para servir à população. A depender do comportamento docente eles aprendem mais pelo exemplo. Desde o curso fundamental, o estudante aprende muito mais pelo que veem do que pelo que as pessoas lhes dizem. Isso os impressionará mais. Se sou um sujeito que tira o time, não gosto de atender o aluno, atendo mal a população, mas tenho uma carreira privada e ganho muito dinheiro. Ele está vendo que aquele malandrão ali, com aquele comportamento, é o que fica rico, porque o coitado que fica o dia inteiro trabalhando e ensinando não vai ficar rico nunca. A avaliação do comportamento discente ou docente deveria ser feita com o perfil do médico ou o professor a ser formado. Virou modelo pedagógico o chamado newtoniano-cartesiano, que considera o ser humano como se fosse máquina, que pode ser estudado em partes, o que dá origem a uma multiplicidade de disciplinas. Seus aspectos mentais, ecológicos e sociais são pouco ensinados. Foi Descartes quem recomendou dividir em partes os problemas complexos para resolvê-los. Mente e corpo foram separados. Aprendemos, assim, os conhecimentos existentes apenas em partes, daqui para baixo ou daqui para cima. Mas, como a parte de baixo influencia a de cima e esta influencia a de baixo, não é boa conduta ensinar só a parte de baixo e 22


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esquecermos outras partes. Temos que fazer um ensino diferente, o holístico, o integral. É o que fazíamos em Sobradinho, no hospital da UnB, ao considerarmos o ser humano como unidade indivisível, que vive numa família, em uma comunidade e reage continuamente com o meio em que atua. O ensino utiliza motes por programa, ou seja, criança e adulto são contemplados com integração docente assistencial. Há diferença entre os modelos cartesiano e holístico. O cartesiano volta-se à assistência médica, e o holístico é para todos, independentemente do serviço de saúde. O holístico tem integração docente assistencial, um ensino concentrado no hospital, regionalizado e hierarquizado. Para se ter ideia desse problema, em Taguatinga, na enfermaria de pediatria, fizemos um mapa da cidade e ali marcamos os locais de onde procediam os doentes. Cada doença tinha um alfinetezinho colorido. Os alfinetes assinalavam a localização de onde vinham as crianças e quais as doenças que tinham. O que o aluno depois via no mapa era uma pequena área cheia de alfinetes. Iríamos ver de que se tratava. Por que este local do mapa estava cheio de alfinetes e aquele outro pedaço ali não tinha nenhum? Fomos verificar o local e era uma favela. Se não consertarem essas irregularidades, não se esvazia o hospital. Nunca se acabará o ciclo. Trata-se o paciente, mas ele retorna. Em seguida, volta à favela e depois volta ao hospital novamente e permanece nesse vaivém. Eu ensinava que, se uma criança nasce no Plano Piloto e outra nasce em uma localidade desfavorecida, esta última terá mais possibilidades de óbitos por inadequação assistencial. A criança não têm condições de prevenir doenças nem orientações para tal. 23


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É preciso saber que isso tem de ser ensinado porque tais ações não dependem totalmente do médico. Sabemos que a solução desses problemas não está só na assistência hospitalar. É preciso modificar as condições da área em que mora o doente. É preciso mostrar ao aluno o problema de perto. Eles têm que ser formados sabendo-se que nossa atuação em querer melhorar o sistema da saúde tem limites. Muita coisa que independe do médico pode ser melhorada administrativamente para diminuir a mortalidade infantil por motivo de enfermidades. O médico é responsável pela atenção à saúde. O doente vai ao pronto-socorro hoje e volta na semana que vem ou no mês que vem sem haver participação da comunidade. É preciso haver atendimento permanente e a comunidade participar. O método holístico constitui assistência médica individual e ocasional de um lado. De outro lado é coletiva, integral, contínua e permanente com participação da comunidade. Isso é importantíssimo. Reitero que tínhamos assistente social e reuniões com a comunidade em Sobradinho. Como diretor do hospital, fiz uma reunião com a comunidade para ouvir as queixas da população, e uma delas foi que estavam dando comida com arroz, feijão, legumes, frutas às parturientes e queriam que dessem canja porque esta é que recupera a mulher parturiente. Mandei fazer canja para todas as parturientes no período pós-parto e ficou todo o mundo feliz. Daí, a comunidade tem que ser ouvida. O chefe de setor hospitalar tem que ouvir as pessoas para saber aquilo de que a comunidade mais precisa e o que desejam o paciente e as pessoas dessas comunidades. O paciente tem família com mulher e filhos. Vive numa comunidade e tem seus sentimentos. Tais condições têm que ser analisadas pelo médico. Predomina a visão fragmentada e especializada de que quanto mais número de disciplinas melhor. Como é isso? O aluno 24


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comparece de 8 até as 10 horas à unidade de pediatria; de 10 às 11 horas, otorrino; das 13 às 14 horas, anestesia. Três vezes por semana o estudante vai à enfermaria de pediatria. Duas vezes por semana vai à enfermaria de clínica médica. Uma vez por semana vai ao setor de pós-parto. Como é que se pode ensinar assim? Como ensinar tudo isso direito? Escrevi um livro cujo título é Currículo Arco-Íris. Fiz o seguinte: um dia apanhei o currículo de escola médica e o colori, quer dizer, cada disciplina foi assinalada em cores variadas. Observa-se que quanto mais bonito e colorido, mais desintegrado é o ensino. Não se está ensinando nada dessa maneira. Há estágios no internato com cinco dias de cardiologia, cinco dias em neurologia. Chega-se ali e se conhece o local por apenas dois dias ou cinco dias. Isso é confuso. Outra é a visão humanitária. Escrevi um livro que está no Conselho Federal de Medicina para publicação e distribuição. Nesse livro, em que ensino a origem do ser humano, vamos estudar começando pelo feto. Ele tem peculiaridades. Na placenta, ele apresenta particularidades diferentes. O recém-nascido não é um feto, mas outro serzinho. O lactente não é um recém-nascido, mas outro ser. O escolar é outro, o pré-escolar, o adolescente e o adulto, cada um deles tem peculiaridades fisiológicas, anatômicas e histológicas próprias. São diferentes, e essas peculiaridades vão determinar suas necessidades. Quais são? Físicas, mentais, emocionais, nutricionais. A necessidade nutricional de um bebê não tem nada a ver com a do adolescente. Então, por que não os estudamos com suas individualidades? Vamos ensinar, para também aprender, os temas voltados ao recém-nascido completo, o que ele tem de necessidade emocional, aquilo de que ele precisa em suas necessidades sociais, 25


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do que ele precisa para se desenvolver socialmente. Deve-se fazer a mesma coisa com o pré-escolar e com todo o mundo. Isso quer dizer que se deve ver o recém-nascido da cabeça até os pés, bem como o adulto. A separação médico-paciente e a interação médico-paciente, bem como a cura do enfermo dependem do médico e do próprio doente. A medicina fundamentada na doença e a assistência holística fundamentada na saúde são elementos indispensáveis durante os atendimentos. Foi mencionado que, na China, o médico era remunerado ou descontado de seus vencimentos de acordo com os resultados do atendimento por doente. Se ele tomava conta daquela comunidade, considerava-se que quanto mais doentes ali ocorriam, menos ele receberia; quanto mais saudáveis as pessoas, mais ele receberia. Ele não recebia por doente, mas por pessoa sadia, o que é um raciocínio claro, que entra no mecanismo da doença, nas causas das doenças e isso por quê? O mecanismo pelo qual funcionam o coração, suas arritmias e outros distúrbios compete ao médico saber. Nesse caso, os fatores biológicos são os mais importantes. Mas, em questão de parasitoses, os mais importantes são os fatores sociais e ambientais. O que se espera de um médico? Ter vocação para servir, de ser útil e de amar o ser humano. A vocação é de extrema importância. Quando eu estava no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, de vez em quando queriam fazer greve por motivo salarial. Desde quando me formei, aprendi que salário de médico sempre foi pequeno. Em todo lugar em que trabalhei, os médicos diziam que ganhavam pouco e eu pensava comigo: Poxa, eu gosto tanto do que eu faço que trabalharia aqui de graça pelo que eu estou fazendo e ainda me pagam. Temos que 26


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gostar de medicina e não adquirir a frieza dos procedimentos puramente técnicos. É relevante sobrepor o interesse coletivo aos próprios interesses, ser competente, ético, compreensivo, piedoso, caridoso, compromissado com o social. Onde existe o amor do ser humano, existe o amor pela arte médica – conforme afirmou Hipócrates. A longa fila no consultório é uma indignidade. Imagino a respeito de um dia quando entrei num hospital em Taguatinga e havia oito parturientes deitadas sobre um lençol no chão. Disse a elas: Vocês estão deitadas aí porque são pobres, porque é o pobre que as pessoas mantêm assim deitado. Se fosse minha mulher, estaria numa cama, num quarto com ar condicionado. Isso que acontece com vocês é um absurdo. A fila para marcar consultas, a sala de espera desconfortável ou o atraso do médico são eventos lamentáveis. Quem tem condições é atendido no local de marcação de consultas onde fica sentado. O consultório e a sala de espera são espaçosos, bem ventilados e iluminados, com móveis confortáveis, com brinquedos para as crianças como pacientes, a atendente tem boa aparência e é bem humorada com os assistidos. O atendimento e a importância da relação médica com o paciente são de alta importância. Perguntar o nome do paciente deveria ser a primeira coisa a fazer. É plena civilidade tratar as pessoas como senhor e senhora. Se for pessoa mocinha, perguntar: Como é que você se chama? Outra coisa: a criança é gente. No consultório, quando a cliente entra com uma criança, primeiramente cumprimentam-se mãe e pai. Depois, nós nos dirigimos à criança: – Quantos anos você tem? – Três anos. 27


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– Mas você está tão bonita! Você vai à festa hoje? – Não. – Mas quem comprou esse vestido bonito para você? – Foi a mamãe. – E esse brinco? Você me deixa ver seu brinco? Não perguntei nada sobre doença. Vou conversando até ficar amigo. Com o adulto é a mesma coisa: Você é de onde? Nasceu onde? Ah, nasceu lá em Minas Gerais. Em que cidade? Eu sou lá de Leopoldina e tal. Tornar-se amigo não custa nada. Agora, chega a hora de perguntar: O que você tem? Há quanto tempo você tem isso? Dez anos?! Mas só agora é que você vem me procurar? O que houve? Tem que ser assim. Tentar descontrair. Ter bom relacionamento com o paciente é a chave do sucesso. Bom, há um detalhe, isto é, no consultório, eu faço isso para o doente voltar. Quando o doente é pobre, eu aprendi uma coisa com meu pai, que era médico como já mencionei. Ele me disse uma vez: Antonio Marcio, o rico você não deve tratar mal, mas se você quiser até seria possível, mas não deveria. Sabe por quê? Porque ele pode procurar um médico onde ele quiser, ele pode destratar você, ir embora e procurar outro médico. Mas o doente que você atende no hospital público não tem recursos, ele só tem você. Ele não tem dinheiro e não vai lhe pagar nada. Ele precisa do seu carinho. Ele precisa de você. Isso é o que tem de ser feito com os pacientes, isto é, compreender, ensinar e dar segurança. Isso é o corpo e a alma da prática médica. Quanto à criança, não lhe tirem toda a roupa se ela tiver acima de 2 anos de idade, a não ser que seja imprescindível. Use 28


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ao máximo fazer o exame da criança no colo da mãe ou do pai. Deixe o exame da garganta para a parte final do atendimento. Alguns truques podem evitar o uso de abaixadores de língua. Não os utilize logo como rotina em consultas porque a própria mãe chegará lá: – O senhor não vai dar uma olhadinha na garganta? – Não. – Por quê? – Não, eu vou pegar o abaixador de língua para quê? A criança não tem nada! Outra questão também é: – O senhor não vai ver o ouvido? – Não, para que ver se não há nada para ver no ouvido? Mas é o principal porque recebo muita criança que chega ao consultório e avisa: Na boca não! Na boca não! Existem três inimigos das crianças que vocês têm de conhecer, ou seja, roupa branca, espátula para abaixar a língua e injeção. Quando eu tinha consultório, havia um assistente comigo, Dr. Roberto, também médico. Quando era para aplicar vacina, era ele que dava a injeção. Quando a criança começava a chorar, eu ia à sala de vacinações e dizia: O que ele fez com você? Vem cá Roberto, você deu injeção? Ah coitadinha, vem aqui comigo. Sempre amiga minha, a criança não gostava de Dr. Roberto. Mas, era eu quem dava as injeções nos clientes dele. No diagnóstico, diga-se sempre a verdade, sem destruir a esperança. Já ouvi muitos dizerem: Seu filho vai ser um retardado porque ele teve mais de cinquenta convulsões. Porque ele isso, porque isso aqui e mais isso, espere e vá se preparando. Parece que ele vai ser um deficiente. 29


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Mas, depois, o indivíduo aos 15 anos de vida torna-se um atleta. Ouvi um monte de vezes dizerem que o caso é grave, complicado, difícil. Mas temos que verificar melhor. Vamos fazer o possível para melhorar a situação. A boa estratégia é responder às perguntas dos pais e desfazer suas dúvidas com linguagem clara e simples. Fazer diagramas se necessário. Fizemos um estudo sobre esse tema em Sobradinho. Após o atendimento e a receita, eu me dirigia ao médico e perguntava: Venha cá. Como você vai dar esse remédio aqui? Muitos não souberam explicar detalhadamente como usar o que prescreveram. Há outras questões. Quando receitarem no ambulatório, só deverão escrever em apenas um lado da receita. Não podem usar o outro lado da folha. Mas por quê? Porque se você virar a página, o paciente vai chegar ao fim do mês, vai lhe mostrar a receita e perguntar: Doutor eu recebi meu salário. Qual desses remédios eu compro? Então, temos que receitar aquilo que seja mesmo necessário para ele comprar naquele dia. Deve se ter certeza de que as orientações verbais e escritas foram bem compreendidas. É necessário esclarecer o porquê dos exames complementares, das prescrições e explicar o que, para que, quando e por quanto tempo se deve usar o medicamento prescrito. É preciso evitar solicitações generalizadas de exames complementares e uso abusivo de medicamentos, o que está muito sendo feito. O problema está cada vez mais sério. Teria toda criança com enterovirose ter exames de transminases, de sódio, de potássio e radiografia do tórax? Há casos de crianças com diarreia que nos chega até com pedido de exames séricos de várias enzimas e outras solicitações. Há exames que nem sei por que se está pedindo. Mas o que se prescreve depois são apenas 30


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umas gotinhas, e a cura ocorre de um dia para o outro. É preciso lembrar que os pacientes têm nomes. Mas, são identificados por papeletas, por número do leito, pela doença durante sua fase hospitalar de tratamento: Veja aquele paciente ali no leito 10. Internei uma pneumonia. Isso não poderia ser. Inferiorizado pela doença, o doente deve merecer nosso respeito, nosso carinho e nossa compreensão. Temos que chegar a tempo junto do paciente e conversar com ele: Está melhor? Não? Você vai ficar bom porque está tomando o remedinho direitinho e tal. Em outras palavras, temos de pensar que o cliente pobre é um rico e tratá-lo como se ele fosse milionário e que, ao sair dali, fosse nos dar um bom presente. Melhoramos muito em termos de horários das visitas. Houve tempo em que, se o parto não deu tempo de ocorrer no horário das visitas às quintas e aos domingos, quando nascia a criança, o pai não entrava. Até nos Estados Unidos havia um ursinho no qual estava escrito o horário em que se podia visitar a criança. É importante manter criança e adulto juntos, haver internação conjunta de mãe e filho, ter o pai permissão para participar dos exames pré-natais e do parto, providenciar alojamento conjunto, permitir a presença das mães nas UTIs, dar aulas às mães sobre o tema referente ao seu estado como paciente e respeitar a privacidade dos doentes. Fui a um hospital do DF visitar um primo que estava internado no pronto-socorro. Havia ali gente desnuda misturada com outros, mulheres quase sem roupa, com vestes sujas, urinadas. Tudo aquilo apenas numa sala. Imagino minha mulher ou uma filha minha internada ali. Fico pensando nas reuniões em comunidades às quais já me referi. 31


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Não se pode esquecer que são todos iguais perante o direito e a ética. Isso é muito importante. Uma criança em hospital público tem que ter o mesmo grau de atenção e carinho que eu dedicaria a uma criança em meu consultório.

AUDITÓRIO Acad. Dr. Laércio Valente. Meus cumprimentos pela ótima palestra. É sempre bom presenciarmos a renovação desses postulados. Uma observação em relação ao problema de o médico hoje não ser mais um deus. Julgo que há muito a ver também com a disseminação do conhecimento. Antigamente, o médico falava, dava o diagnóstico e não tinha meio de comprovar que aquele diagnóstico estava errado. Às vezes, não havia exames, não se faziam os exames ou não se tinha acesso a eles. A palavra do médico era a palavra final. Hoje não. Quando se faz um diagnóstico e eventualmente este não é o correto, o paciente pode descobrir a incorreção pela web. Assim, eu penso ser esta uma das razões de termos caído, de certa forma, desse pedestal de deus, de ter a última palavra, de saber tudo. No presente, o acesso à informação está muito mais democratizado. Esse é um desafio para nós porque exige que se estude muito mais, que estejamos sempre atualizados, que não fiquemos atrás nas informações às quais eventualmente o doente tem acesso.

Acad. Dr. Antonio Marcio Lisboa. O que você disse é verdade. Se pensarmos nos que têm internet, eu estou de acordo com você. Mas essa é a minoria. O pobre das filas dos hospitais, que sai na televisão, não tem internet e não estão gostando muito de nós. 32


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Acad. Dra. Cleire Paniago. Fui aluna do professor Antonio Marcio Lisboa e tive a oportunidade de aprender com ele não só pediatria, mas pelo exemplo, pela sua maneira de agir. Esses ensinamentos são tão raros, pela falta de sensibilidade que se vê ultimamente em muitos hospitais, sobretudo em relação ao doente pobre. A medicina atual virou algo robótico. Também o paciente rico me diz no consultório: Doutora, o médico nem me olhou direito, nem me examinou, não esperou eu dizer o que sinto. Quer dizer, não mais haveria tempo para se dedicar ao paciente? Como vamos resolver essa situação? Precisamos trabalhar nesse sentido.

Acad. Dr. Hélcio Miziara. Há alguns pontos que eu gostaria de citar. A medicina mudou de tal maneira que, se o médico não se cercar de muitos exames na clínica, pode encontrar pacientes perseguidores, que vivem nos corredores dos hospitais e até na porta de cemitérios. Atualmente, o indivíduo procura a defesa do consumidor por qualquer lapso que ocorra. Logo procura um advogado e vai à Justiça. Muitos juízes não estão exatamente bem preparados para julgar médicos. O doutor vai ser responsabilizado se deixou de pedir determinado exame que seria importante para dar aquele diagnóstico. Antigamente não havia isso. O lapso dos médicos no processo da obtenção de um diagnóstico era tolerado pela sociedade. Agora, a sociedade faz do equívoco médico um modo de ganhar dinheiro. Existe agora o dano moral. Muitos de nossos colegas vivem esses problemas. É preciso se cercar de tudo quanto é exame. No hospital público, o paciente mais desprovido de recursos econômicos, às vezes, não procura advogado. Mas se aparecer algum 33


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que entre contra o hospital, o médico ficará acobertado com sua documentação formada pelos exames pedidos e realizados. Na clinica particular, isso também é um problema seriíssimo. Outra coisa interessante, à qual você se referiu – é que agora o aluno começa o curso primário e chama sua professora de tia e o professor, de tio. Considero que isso é um erro. Quando ele chega ao curso fundamental, para dizer que é amigo do aluno e que é democrata, o professor afirma: Pode me chamar pelo meu nome Roberto, Ricardo e tal. Quando o aluno chega à faculdade, quer chamar o professor também pelo nome. Pelo menos na minha área, sou doutor ou professor. Mas me chamar de Miziara eu não aceito, porque ele deve me levar a sério e eu digo a ele: Se você for fazer residência médica e chamar seu preceptor pelo primeiro nome, ele não vai gostar. Isso faz parte da educação médica desde o início. É aquilo a que você se referiu sobre a China. Desde cedo, eles ali aprendem que educação com respeito é importante. Sobre o que você está dizendo e que está acontecendo hoje na sociedade brasileira, educar é algo muito sério. Dou um exemplo. Conheço um rapaz que vende carne assada aos sábados e domingos. O filho dele estuda de segunda a sexta. Trabalha com ele aos sábados. Para isso, disse ao garoto: Você fica comigo cuidando do caixa. Um dia entrou ali um advogado que alertou: Isso não pode, porque é exploração de menores. Ah, eu vou denunciar. O indivíduo, ignorante, ficou apavorado. Em vez de ficar em casa vendo televisão e fazendo bobagens, o garoto estava lá ajudando o pai. Mas estudava durante a semana. É essa a sociedade brasileira que temos no presente. Não nos respeitam mais, e o médico é envolvido por isso. Vejo tudo isso como um problema muito sério. Tudo que você disse realmente seria o ideal, mas penso que falta educação, além de uma série 34


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de outras providências. Nossa sociedade não está mais paralela a tudo isso.

Acad. Dr. Antonio Marcio Lisboa. Deixe-me aproveitar um ponto seu, Dr. Miziara. Primeiramente, esses exames, em minha opinião, pelo motivo que você explicou, são muito pouco pedidos. Penso que estão pedindo porque não têm segurança. Estamos formamos maus médicos e a linha é essa. O que eu não faço? Se tenho uma criança com febre, tosse e sistematicamente peço radiografia, é porque não sei escutar um pulmão. Fico com medo de aquela tosse ser resultado de pneumonia, quer dizer, peço radiografia por ser incompetente, não para apenas complementar ou comprovar meu diagnóstico. Então, calculo que a maioria não tem medo do advogado. É porque somos essa abstração, uma distração complicada. Podemos ingressar na universidade para ser professor por termos curso de mestrado e de doutorado. Acredita que melhorou a formação do médico pelo professor ter mestrado e doutorado? Julgo que não. Agora, é importante dizer que há mais pesquisas no âmbito universitário. Mas eu me refiro à formação do doutor que sai para atender a população, porque se quisermos formar médicos para a pesquisa, é preciso haver uma área de ensino para formá-lo com essa capacitação. Outra questão é que se faz um mestrado como se fosse uma residência. Mestrado é um preparo para formar mestre ou professor, para fazer uma dissertação científica. Mas isso é outro tipo de atividade. O médico, depois de sua graduação universitária, sai como profissional. Quer ser pediatra, passa então pela especialização em pediatria. Quer ser professor de pediatria? Nesse caso, vai aprender a ser professor. Por quê? Porque no estágio de pediatria na faculdade 35


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e na residência de pediatria não tem necessariamente que saber ensinar. Se o médico tiver uma tese ou doutorado em medicina, vai servir melhor numa linha referente à pesquisa na área médica e não a totalmente voltada à medicina assistencial. Penso que a formação do médico é construída ali no consultório. Ainda é o consultório onde se aprende muito a atender doentes. Clinico até hoje e realmente fico muito preocupado com os clientes que chegam para me consultar, para que eu os examine. Fico preocupado porque há muita gente que não sabe avaliar uma garganta. Hoje, recebi uma criança com herpes e que, havia dois meses, vinha tomando nistatina e passando não lembro mais o quê na lesão. Mas o herpes continua ali, melhora e piora. É um caso de diagnóstico difícil que deveria ser fotografado e publicado em revista científica, porque não souberam fazer diferença entre candidíase e herpes. A questão é complicada. Examina-se a garganta de uma criança e não sabem se ela tem amidaglite monocítica da mononucleose ou se há ali gânglios palpáveis por adenite. Cumula-se o doente com antibióticos, principalmente amoxicilina, que não deveriam usar. Para resumir, nossa formação não está boa. A formação e a atuação do médico têm de ser suficiente e bem trabalhada para serem sólidas. Supõem que uma pessoa de 87 anos como eu não mais poderia ter clínica porque, se o indivíduo é um velhinho ou uma velhinha, é um medalhão, um indivíduo do passado que não deveria nem ir ao consultório. Podem usar os adjetivos que quiserem, mas vai muita gente ao nosso consultório. E por quê? Porque estão me dando valor, não? Com esses erros motivados por insuficiência de formação profissional e tudo o mais, o pessoal vai ao nosso consultório. 36


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Acad. Dr. Augusto Cesar. Temos um marco chamado acordo MEC e suponho que todos se lembram quando houve intervenção no ensino fundamental brasileiro. Houve intervenção também no ensino das faculdades de medicina e estas foram especialmente direcionadas para depender de tecnologia. O que temos atualmente é uma história que começa dessa época. Eu entrei na faculdade em 1971, tenho 61 anos e talvez eu pertença a uma das últimas gerações que estudaram Biologia, raciocínio clínico e aprenderam que os exames eram complementares e não diagnósticos. Essa excessiva dependência da tecnologia nos fez deixar de ter raciocínio clínico, observação, toque pessoal e aparência. Com tudo aquilo que aprendemos a serviço do paciente e a nosso serviço, junto veio também a medicina defensiva, ou seja, aquilo que inibe o contato do médico com o paciente em geral, com as questões particulares tidas como abusos e assédios de natureza sexual. Junto a isso também existe a quebra da formalidade de uma maneira geral e até do princípio da autoridade em que observamos essa informalidade. Esta não aproxima ninguém. A relação não fica melhor por causa dela. Antigamente o médico, além de aconselhar, era firme, incisivo. Mas essa informalidade atual, essa quebra do principio de autoridade, ocorre também no período que vem logo depois da ditadura, quando, com a ressaca do autoritarismo, a sociedade brasileira passou a ver, na quebra do princípio de autoridade, uma maneira de aspas, para garantir que não viesse mais o autoritarismo. Claro que isso pode ser remetido aos sociólogos muito mais do que para mim. Mas é esse o entendimento que tenho a respeito desse tema. Ainda existe outro dado. É a questão da educação doméstica. As mulheres, – e tinha que acontecer isso, é claro –, saíram de casa no período final dos anos 60 para conquistar o mercado de 37


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trabalho, para se realizarem profissionalmente. Isso foi mais do que o necessário. Enfim, não se pensou sobre quem iria tomar conta da família. Eu falo sobre os países desenvolvidos em que esse fato também ocorre. Penso também sobre um programa de educação integral em que essas crianças tivessem aquilo que antigamente havia para elas, que era o educandário. Atualmente temos escola e colégio, mas quando se falava em educandário, envolvia-se também o princípio de educação, porque ensinavam-se valores pelos quais se aplicavam os princípios de cidadania. No presente, há escolas meramente repassadoras de conteúdos para habilitar certo número de alunos, que vão conseguir galgar um ensino superior. Vejo essa questão toda como uma complexidade tão grande, que não permite como resolver isso em curto prazo. Deveria haver não só uma reforma da educação, mas também deveria ser bem considerado o princípio do respeito. Dei aulas durante quatro anos na UnB. Havia alunos que vinham à aula com “sandálias de dedo”, bermuda, camiseta regata e colocavam os pés sobre as cadeiras que estavam à frente. Então, pensei em quando, na minha vida de escola, no terceiro grau de ensino superior, eu me arriscaria a entrar na faculdade ou mesmo no colégio com “sandálias de dedo”, bermuda e camiseta regata. Jamais. Essas considerações são somente uma contribuição a respeito do que os colegas falaram. Pensei em transbordar mais esses temas para ver se conseguiríamos ter de fato mais encaminhamentos para a solução dessas questões.

Acad. Dr. Antonio Marcio Lisboa. Vou abordar duas coisas a respeito do que você disse. Há quinze anos, em um congresso, ousei afirmar que a violência nas ruas acabaria se as mães 38


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ficassem em casa. Quase me trucidaram. Nunca mais repeti isso. As pessoas disseram: Só faltava essa! Agora, até da violência nós somos responsáveis! A segunda questão da qual você falou, sobre esse ensino que tínhamos no curso primário ou no ginásio, passou a ser educação moral e cívica, que continua parecido com Estudo Brasileiro. Acharam que Estudo Brasileiro era coisa de militares. Retiraram esse estudo. Por isso, publiquei o livro Primeira Infância, Idade da Violência. O que estamos conversando agora apresentei a um governador, amigo meu, por volta de 1987, como projeto para formar cidadãos. Ele me disse então: Lisboa, isso vai levar uns dez anos, você não acha? Respondi: Não, não acho. Ele perguntou: Vai levar menos? Não, vou fazer uma proposta de começar hoje para, daqui a vinte anos, termos outra geração, outras cabeças. Vinte anos porque, antes disso, não se vai mudar nada. Se eu fosse, por exemplo, concretizar o plano, começaria pelas escolas, com a educação em prol da saúde como já se faz nas escolas, ou seja, escovar os dentes, lavar as mãos e tal. Entre os valores, por exemplo, eu ensinaria honestidade. Toda criança que fizesse um ato honesto teria seu nome à mostra em uma parede: O Maurício devolveu a bola perdida ao Paulo. Ele é o honesto da semana. Em seguida, eu ensinaria o que é honestidade. Há uma forma de ensinar honestidade e lealdade. Tudo isso é ensinável. Dizem que esses valores não nascem com as pessoas. Assim como se ensina matemática, é preciso ensinar ser honesto, ser leal, amar o próximo. Como é que se vai mudar o médico que não ama o próximo? Como mudar um sujeito que descansa os pés em cima da mesa diante do professor? Aquilo foi criado nele e ele acha que está certo, que ele tem esse direito. Temos 39


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então que voltar ao início. Se eu fosse começar, começaria com a criança ainda muito pequena. Um aluno me contou que o pai disse a seu professor, que reprovava todo o mundo: Professor Machado, o senhor precisa apertar meu filho. Quantas vezes eu ouvi isso no colégio? Atualmente, o professor dá uma nota baixa ao filho de alguém e reprova o menino. O pai vem ao professor e ameaça: Se você não retirar aquela nota do meu filho, eu vou pegar você lá fora! Escute bem o que eu estou dizendo. Estamos nesse nível. Creio que temos de fazer um plano. Vamos começar do princípio. Como é que se acaba com malfeitores? Não é que se possa acabar com todos os meliantes, nem com todos os pedófilos. É necessário estruturar a sociedade de modo diferente. Como exemplo, citei o que a China andou fazendo, pois vi o que eles fizeram. É preciso estruturar a criança. Mas como? Na escola. Os bons valores vão ser ensinados em toda escola. Devem ser ensinados, e os alunos, avaliados. Quero, antes de formar o aluno, avaliar se o menino é honesto. Existem formas de avaliarmos se ele é leal. Como geografia e matemática, vou aplicar os valores e avaliá-los como alunos a começar pelos pequeninos na escola, porque educar os pais é algo complicado, porquanto estão na formação velha. Às vezes, as pessoas me perguntam como agir com a corrupção que está por aí. O combate à violência é outra história. Isso é do âmbito da Justiça, da polícia ou como quiserem fazer melhor. Meu problema é diminuir o número de indivíduos que têm comportamentos antissociais. Nunca um aluno me desafiou. Eu chegava na hora, ensinava, cobrava e eu era amigo dele. No meu tempo, havia professor que se sentava na mesa, tratava o aluno como se fosse irmão. Sofria. Diziam-lhe palavrões. 40


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Mas temos que inspirar respeito. É uma forma de educar crianças. Não bato em criança. Mas com filho meu eu falo uma vez. Afirmo: Isso você não faz, porque eu não quero, porque eu não gosto, quando eu digo não, é não. Aprendeu a me respeitar quando? Ainda pequenininho, quando se deve aprender, isto é, aos 5 ou 6 anos de idade. Sem bater. Temos que fazer assim. O que observo ser preciso fazer é trabalhar a escola primária, a creche, e começar por introduzir esses valores com disciplina, o que é um trabalho grande. Se houver cem professores que saibam ensinar alunos, penso que é muito. Vão até achar que ensinar esse negócio de ser honesto não é currículo. Mas isso tem que entrar no currículo, no ensino. Estou me referindo à minha ideia de começar por aí e, em um período de vinte ou trinta anos, viveríamos os resultados, com eu disse a um governador. Mas já faz 25 anos desde então e não houve nenhuma virada. Se tivéssemos começado naquela ocasião, poderia ser que agora a situação estivesse melhor um pouquinho.

Acad. Dra. Janice M. Lamas. Quero agradecê-lo muito pela oportunidade de ouvi-lo. É uma renovação e uma reafirmação do que precisamos saber diante do paciente. Falo também como pessoa que se dedica à tecnologia. Julgo que esses conhecimentos devem ser também aplicados por quem trabalha com tecnologia, que saiu daquela metodologia de sistematização, de estudo de órgãos, de sistemas e vai para o campo energético. Temos outra visão da medicina. Vemos uma pessoa, a criança, o homem, o adulto não só como sistemas orgânicos, mas com o movimento das moléculas de átomos de hidrogênio que eles têm. Essa energia vibra e vai dar certo tipo de imagem. As doenças, as vibrações e as energias são diferentes. Daí, a medicina está 41


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passando por essas mudanças. Temos de saber aproveitar essas grandes evoluções tecnológicas, mas nelas incorporar sempre isso que o senhor explicou, que é o respeito pelo paciente, saber que a mamografia não é só uma técnica rotineira, mas que se relaciona com uma vida, com a presença da pessoa examinada. Penso que falta também, para quem estuda e faz tecnologia, essa integração com a prática da medicina. Conciliar essas duas coisas é importante em muitos aspectos da tecnologia, principalmente na detecção de tumores, de lesões iniciais. Quando o diagnóstico é precoce, este não é um estudo clínico, o diagnóstico não vem por sintomas nem por sinais, mas por alterações pequenas e visíveis em exames de imagem. Nesse ponto, existem muitas doenças que exigem essa detecção antecipada, que não vai ser realizada pelo exame clínico. Eu queria registrar essa importância com base no que o senhor expôs, também para as pessoas, para médicos que trabalham com tecnologia.

Acad. Dr. Edno Magalhães. Eu queria agradecê-lo muito pelos seus ensinamentos, professor, principalmente porque eu creio que esta seja talvez a maior plateia para multiplicar esses conhecimentos. Conheço seu pensamento há muito tempo. Acredito que iremos consertar alguma coisa trabalhando na base. Mas porque vamos trabalhar na base, não podemos deixar que os médicos continuem a ser formados como estão sendo. A medicina defensiva aqui lembrada tem origem única, ou seja, na insegurança. Trabalho há muitos anos com médicos residentes. É uma lástima o que se verifica quandos eles nos chegam. Não têm o mínimo de segurança ou de confiança neles mesmos. Se o médico confia nele mesmo, não tem medo de sofrer processos jurídicos. Ele sabe se defender. O grande problema é que a 42


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grandiosa maioria não tem segurança nenhuma. São formados em escolas moderninhas, onde quase nunca põem a mão em doentes. Existem escolas no Brasil, felizmente, onde não se põe a perna em cima da cadeira e onde tratam os professores como professores mesmo. Estou me referindo a escolas que a maioria dos senhores conhece e não é em Brasília, pois a nossa é um exemplo de flagrante desrespeito, e as outras que estão surgindo seguem esse modelo infelizmente. Impressionante é a insegurança dos médicos novos, é essa medicina defensiva que tanto prejudica, quando a saída é ficar em guarda o tempo todo. O médico tem receio de que o doente lhe pergunte alguma coisa. Por isso, ele não conversa. Repito, professor, esta é a melhor plateia para multiplicar o que o senhor expôs, muito obrigado. Encerramos aqui a sessão.

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PALESTRA A MEDICINA NO DISTRITO FEDERAL Sessão plenária de 7-7-2014

Acad. Dr. Edno Magalhães. Discutimos com a diretoria atual a respeito de uma conversa que é constante entre médicos. O que a Academia faz? A própria sociedade de Brasília pergunta o que é a Academia de Medicina. Resolvemos escolher um tema para desenvolvermos, não nós, diretoria, mas nós da Academia. O tema que escolhemos foi A Medicina no DF. Procuramos compartimentalizar esse tema em humanização, saúde pública, violência e saúde. Evidentemente, cada um desses temas comporta discussões variadas e estão dentro de nossas atribuições e do estatuto da nossa Academia. Com relação à humanização, demos um passo adiante e fizemos alguns contatos. Resolvemos, por meio de órgãos de divulgação entre médicos, publicar alguma coisa e será na Revista da Associação Médica que vamos fazer circular, de preferência entre alunos das escolas de Medicina do Distrito Federal, um pequeno folder em que ocorram dez a doze recados. Solicitamos a colaboração das confreiras e dos confrades que nos enviem pelo e-mail da Academia algumas sugestões. Por que escolhemos distribuir esse pequeno folheto nas escolas de Medicina? Temos ouvido falar de humanização da Medicina ou da desumanização da Medicina. Temos uma dúvida 45


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interessante. Não seria reumanização da Medicina? Humana ela sempre foi. Não é desumanizada totalmente. Há quem culpe o progresso tecnológico pela baixa humanização atual da Medicina. Particularmente, não abraço essa teoria. Entendo que a tecnologia não veio para complicar e desumanizar a Medicina, mas para ajudá-la. Cérebros brilhantes da Medicina trabalharam com tecnologia e se pronunciaram a respeito disso. Bernard Law, por exemplo, um cardiologista que nasceu na Lituânia e foi para os Estados Unidos onde estudou Medicina, é simplesmente o indivíduo que inventou o desfibrilador cardíaco. Tem atuação em universidades famosas dos Estados Unidos e da Inglaterra. Ele acompanha muito essa história de humanizar e usar a tecnologia na Medicina. Agora, no século XXI, cunhou uma frase interessante: Nunca a Medicina esteve tão bem equipada para prestar melhor contribuição ao ser humano do que atualmente. Estou trazendo essas palavras aqui porque devemos não radicalizar, pois entendo que uma opinião nossa que saia publicada ao término desses trabalhos, dessas discussões, vai pesar em nosso âmbito, pelo fato de estarmos discutindo Medicina. Cada um de nós tem sua ideia. Sei que existem colegas muito favoráveis à tecnologia e outros, mais reticentes. Mas continuo a apostar que a verdade está no meio. Desejo cuidar para que não cheguemos a nenhum ponto de radicalização. Sabemos que a Medicina nasceu humanítária, atravessou séculos, passou pela Idade Média, chegou até a primeira metade do século XIX, quando surgiu a melhora do conhecimento técnico e científico, sem que os médicos deixassem de ser humanos com seus pacientes. Muitos, mesmo nos dias atuais, chegado o século XXI, utilizam-se da tecnologia para ajudá-los 46


em seus diagnósticos e tratamentos sem terem deixado de ser médicos humanitários, que praticam boa medicina. Ao longo dos trabalhos que deveremos ter para desenvolver esse tema, quero crer que vamos deparar muita coisa que tem culpa por essa desumanização. Possivelmente, nós todos vamos ser acordes com um ponto a respeito disso. A pouca humanização que se encontra hoje é porque se oferece ao médico jovem, ao estudante que está saindo da escola médica, um aporte imenso de tecnologia e quase nada de humanidades no ensino. Creio que a chave dessa humanização que propomos fazer está nas escolas. Ninguém vai dizer: Ah, os professores não fazem assim ou assado. A escola, por meio de suas direções, tem como ditar normas que levem a um melhor tratamento deste assunto. Se existe em cada Estado e no Distrito Federal, entidades que mais possam discutir este assunto, julgo que são as academias de Medicina. Por isso, na diretoria, propusemos este assunto, o que foi aceito. Gostaria de que os senhores colaborassem com esses trabalhos que vamos tentar desenvolver. Não há intenção de apenas tomar o tempo de todos. Queremos parte do intelecto dos senhores. A diretoria se propõe a trabalhar com o que os senhores nos oferecerem a respeito desses temas. Acad. Dr. Roberto Ronald. O desejo dos senhores é, de fato, relevante. Sou descrente do que vem ocorrendo, não só em medicina, mas em todos os campos do conhecimento humano. Cito alguns exemplos. Quando eu era menino, se entrávamos num ônibus e ali entrava uma mulher grávida ou qualquer outra mulher, nós nos levantávamos e dávamos lugar para ela se sentar. Isso não existe mais. O sujeito, diante de uma mulher grávida, vira-se de lado, olha a paisagem e não sai do seu lugar. 47


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Podemos observar, por exemplo, os grandes criminosos. Para mim, os atuais são indivíduos que matam sentados tomando uma taça de champanhe. São os corruptos sociais, que trucidam milhares de mulheres e milhares de crianças, milhares de indivíduos. Sentados e tomando champanhe porque tudo o que eles subtraem vai faltar ao resto da sociedade. Por exemplo, todos se lembram de um investidor, no Rio de Janeiro, que fez um edifício com areia da praia e aquilo despencou. Então, o que o indivíduo teria na cabeça, ao fazer um edifício de vinte andares com estrutura falha. Um indivíduo frio e desumano, que talvez não tivesse avaliado que iria matar pessoas que estavam naquele edifício. Vimos recentemente um viaduto em Belo Horizonte despencar. Por que despencou não sei, pois não sou engenheiro. Não sei se foi feito com material de péssima qualidade e a infraestrutura despencou por essa razão. Vamos trabalhar em nossa área com a humanização da medicina. Leciono como professor em uma escola de Medicina, na Faciplac, no Gama-DF. Tenho contato muito próximo com meus alunos e converso muito com eles. Dos quarenta alunos que tenho em minha turma, vinte querem ser donos de hospitais ou querem ser prefeitos. Querem seguir carreira política, carreira administrativa ou semelhante. Penso que a humanização não deve ser só da Medicina. Deve ser global, combatendo-se as gigantescas falhas sociais que temos. Penso que temos de trabalhar entre os que nos cercam. Não pretendo trabalhar num grupo afastado de mim.

Acad. Dr. Procópio Miguel. Sou docente na Escola de Ciências da Saúde. Há uns três anos, um aluno queria abandonar o curso de Medicina. Ia passar para o quarto ano e obtinha notas 48


satisfatórias, mas gostava de criar cavalos. Foi obrigado pelos pais a estudar Medicina, e estes mexiam com fazenda. Eu o convenci a não abandonar o curso. Comentei: Você não precisa deixar a medicina. Você pode ser médico e ainda mexer com cavalos, sem mais problemas. Você pode fazer medicina. Talvez eu tenha convencido um que não vai ser bom médico. Talvez fosse melhor que o tivesse convencido a abandonar o curso.

Acad. Dr. Iphis Campbell. Preocupou-me um pouco a forma de reportar o tema da medicina no DF ao aluno por meio de folders. Gostaria de ouvir a opinião dos colegas com formação acadêmica. Seria mais apropriado ao perfil da Academia promover-se um simpósio com diretores de faculdades para abordar especificamente esse tema e ouvir o que eles têm a dizer. É só uma tentativa de contribuir para a discussão.

Acad. Dra. Izelda Maria Costa. Aproveito o comentário de Dr. Iphis para dizer que eu faria as duas coisas. O contato direto com o aluno é importante, bem como fazer o debate em um simpósio na Academia.

Acad. Dr. José Calegaro. O tema proposto é de fundamental relevância. Quando eu era acadêmico de Medicina, eu me orgulhava muito, porque era a única profissão em que praticamente não havia desistências. A convicção do pessoal, talvez por um problema de educação, era definitiva. A educação não vem só da faculdade. Vem da base escolar. Em meu curso fundamental, tínhamos Educação Física, mas esta foi mais tarde abolida da escola. Tínhamos também Canto Orfeônico. O Brasil 49


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tem uma tradição musical soberba. Excluímos um instrumento que poderia dar chances a muitas pessoas que têm veia artística. Houve depois discussões sobre essas disciplinas na base da nossa educação. Foram extintas. A atual condução é deficiente e incompleta. Essas desistências que ocorrem atualmente em faculdades de Medicina podem ser reflexo de desorientação educacional. O indivíduo entra na faculdade não com o objetivo de ser médico, mas de utilizar a profissão para outras finalidades. Daí, ocorre um desvirtuamento que chega a causar certa espécie. Entendo como fundamental esse tema porque, se não podemos influir na educação básica, podemos ao menos influir um pouco na escola médica, com iniciativas dessa natureza. Penso que é uma preocupação extremamente apropriada, legítima, que deve ser levada avante, mas julgo que, talvez, a repercussão não seja a que gostaríamos de ter.

Acad. Dra. Lucimar Cannon. Creio que o folder pode sensibilizar alguns ou vários estudantes, mas eles vão querer compreender melhor o tema: Mas como eu faço isso? Por quê? Acredito que, se chamássemos diretores de faculdades, fizéssemos parceria com eles e iniciássemos uma campanha com material educativo, esses acadêmicos poderiam ir às faculdades e conversar com os estudantes, fazer palestras ou uma roda de conversa. Creio que isso seria muito mais eficaz do que apenas usar folders. Teríamos um terreno para trabalhar com o folder, mas este apenas, sem haver alguma coisa dentro da faculdade, talvez não fosse tão eficiente. Particularmente, não gosto do termo “humanizar a Medicina”. Sempre fui uma médica que tratou muito bem os pacientes. Em nossa sociedade, hoje, especialmente os jovens, são todos da 50


era digital. Todos estão muito familiarizados com a tecnologia e é muito difícil que não sejam assim. Creio que perdemos valores e princípios e vamos perder mais porque, no presente, a relação não é mais pessoal. É uma relação a distância. Os jovens, principalmente, relacionam-se a distância. Muito pouco há de presencial. Acredito que a educação cívica deva ser aplicada desde o início da pré-escola até a escola médica. Temos condições de mudar um pouco a realidade como educadores. Temos de continuar fazendo educação. Nunca trabalhei na área de comunidade porque sou da geração da ditadura militar. À época, falar em comunidade era ir contra a ditadura. Não podíamos fazer encontros. Até hoje, temos esse tipo de problema, o de que não conhecemos muito o espaço do outro para saber onde termina o nosso. Não sabemos muito ser solidários, não sabemos muito selecionar em termos de comunidade. Penso que passamos isso para nossos filhos. Temos uma série de coisas para pensar e, ao trabalhar com os estudantes de Medicina, esses tópicos podem ser tocados. Isso vai ajudar muito a humanizar a Medicina.

Acad. Dr. Laércio Valença. Será que a escolha desse tema redefiniria de alguma forma a função e a inserção da Academia diante do contexto médico no Brasil? Aprendi muito pelo exemplo. Principalmente quando procuramos mirar os bons. Nessa esquematização, o exemplo teria de ser do professor que atende o paciente junto do estudante. Sabemos que nossos estudantes estão nos prontos-socorros, perto do médico que está ali no dia a dia dentro da rede pública e naquelas condições de atendimento que bem conhecemos. Será que o estudante está vendo bons exemplos de abordagem junto ao paciente com todos esses preceitos a que todos somos favoráveis? 51


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Acad. Dr. Pedro Tauil. Temos aqui um tema muito delicado. Atribuir a responsabilidade apenas ao aparelho formador não é suficiente, pois o aparelho utilizador, em muitos momentos, também deturpa o exercício da profissão. O médico tem que atender grande número de doentes para cumprir sua agenda. Na questão do serviço público, tem que atender as pessoas independentemente das necessidades do tempo necessário para cada um. Na prática profissional, existem problemas no aparelho formador e no utilizador também. Criamos uma situação no internato de Medicina da UnB, quando idealizamos o estágio dos alunos em Ceres e em Santa Isabel, Goiás. Ali se pratica medicina que consideramos humanizada. Poderia haver alguns seminários para abordar relações médico-pacientes e, talvez, seja um termo melhor que humanização. Creio que esta é a melhor forma de prestigiar a Academia. Convidaríamos diretores e coordenadores de curso médico porque, em muitos lugares, o coordenador é mais prestigiado na parte disciplinar, o que é lógico. Com isso, a Academia se aproximaria do ambiente universitário.

Acad. Dr. Osório Rangel. Precisamos rever a relação médico-paciente. A instituição pública trabalha na instituição privada e na escola. Tenho a grata satisfação de constatar que o comprometimento dos estudantes da ESCS está muito satisfatório com relação a essa aproximação. No Hospital de Base, onde sou coordenador do programa de residência médica, tivemos o agradecimento de um paciente em relação à forma em como uma residente se apresentou a ele: Doutora, muito obrigado. Raramente a gente tem esse tipo de tratamento. Creio que teríamos de aplicar essa relação médico-paciente. 52


Os que não vivem só da medicina privada ou vivem da medicina complementar estão sendo atropelados por essa prética complementar em que o doente deixou de ser do médico. Atualmente, é um número que interessa financeiramente às instituições operadoras assistenciais. Temos exemplos que deterioram a relação médico-paciente. Gostaria de enfatizar o resgate de valores quanto à atividade médica. Uma paciente me procurou, no consultório, com dor de cabeça. Havia passado por vários colegas. Fui examiná-la na maca e voltamos a conversar. Ela me disse: Doutor, o senhor é o primeiro médico que, dentro dos últimos trinta dias, colocou a mão em mim para me examinar. Nessa relação médico-paciente, o cifrão não poderia nos atropelar. Cerca de 1% ou 2% dos pacientes são atendidos por médicos privados. É bem diferente o relacionamento. Em certa época, sugeri a entidades de classe, o CRM, a Associação Médica e o Sindicado, que determinassem providências a favor da relação médico-paciente. Com livre escolha, o paciente conseguiria se manter fiel a seu médico, e o médico, fiel ao seu paciente, em lugar de o doente ser apenas um número no contexto dos atendimentos. Parece-me que o tema humanização já é um programa do Ministério da Saúde. Compete à Academia também ter esse papel. Temos cabelos brancos, e a experiência teria que trazer influência na humanização do exercício da medicina. Agora, o estudante nos chama pelo nome sem se preocupar com a referência. Somos mais um que está chegando ali, e tudo fica por isso. Os valores referenciais estão caindo e este é um dos itens que poderíamos resgatar por via da Academia de Medicina no contexto da humanização. 53


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Acad. Dra. Lucimar Cannon. Para realizar alguma programação com as faculdades de Medicina, penso que a Academia poderia ir à faculdade em lugar de os alunos virem até a Academia. Teríamos que fazer um acordo, um projeto a respeito, pois assim teríamos muito mais audiência do que aqui no auditório.

Acad. Dr. José Saraiva. Esse tema é de alta importância para a vida da Medicina não só brasileira como da Medicina mundial. Realmente, é esse cenário de academia que deve ser o local da dialética, do debate, porque temos esse caráter. Importa cumprir nossa parte num mundo globalizado. Temos, no presente, receio de cumprimentar uma pessoa e ela nada responder por pensar que vamos ter atitudes contrárias ao relacionamento amistoso. Que conflito de gerações estamos vivendo? Estamos numa posição de terminalidade de nossa postura como cidadão, como médico e como pessoa. Uma nova geração tenta assumir o espaço que ocupamos. Vêm assumindo uma maneira empurrada por uma tecnologia de ponta que o mundo oferece a cada cidadão e a cada conjunto de iniciativas. Como humanizar? É preciso distinguir em que lado ou em que posição vamos atuar para, pelo menos, deixar claro que a Academia tem um pensamento. Pode até não atingir esse objetivo, mas ela tem um posicionamento. Discordo do título “Humanização da Medicina”. Precisamos respeitar o conceito de Medicina, que é arte e ciência e tem por fim evitar, controlar e curar doenças. Então, ela figura aqui como adjetivo. Ela não é o sujeito do processo. Não vamos humanizar a Medicina. O que tem de ser humanizado é o ato médico, como vai o médico se relacionar com seu paciente. É o sujeito que está 54


em suas atividades médicas, exerce o papel que a Medicina lhe abriu como filosofia de um procedimento. O médico tem que ter postura, compostura e cultura para honrar o título de ser médico. Cabe a ele ser humanizado já que, nos tempos atuais, nem a escola e menos a educação médica propiciam aquela formação que vai resultar em relacionamento médico-paciente humanizado. Pensar só no cifrão, no retorno financeiro, tem sido o objetivo maior de médicos desinformados, desestruturados, sobretudo inexperientes e novatos na profissão. A Academia pode tentar recobrar o processo médico educacional brasileiro. Todavia, temos mais de quatrocentos mil médicos no Brasil, e a Academia não tem como inverter tendências inadequadas em todo o processo da assistência médica brasileira. É a realidade. São os jovens que tiveram essa formação que condenamos. No esquema de ensino, faltou o bom exemplo que importa ao professor dar a seu aluno. A Academia não teria poder de desfazer esse quadro se o estudante teve o exemplo ruim da maior autoridade no contexto da sua escola. Mas ela pode influenciar. Aqui temos um debate do qual vamos deixar para a posteridade que um grupo de acadêmicos se preocupou com essa situação. Não só se preocupou, mas apontou possíveis soluções com possíveis caminhos para recuperação educacional e comportamental do médico desorientado. Isso tudo é fruto da falta da educação básica e sabemos que é muito difícil mudar a cabeça de um adulto. Suas convicções estão firmadas, certas ou errôneas. Questiona-se sobre escolas que cobram mensalidades exorbitantes de alunos de Medicina. A instituição é uma escola ou é uma empresa de negócios? Essas coisas têm que ser expostas antes de se criar expectativas de que a Academia tem possibilidades de mostrar opções possíveis. 55


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Creio que a Academia deva atuar nas escolas. Fizemos isso em nossa gestão na Academia, em um encontro na Escola de Ciências da Saúde (ESCS), ao qual o diretor estava presente, junto à maioria do corpo docente. O debate foi caloroso, mas foi uma gota d’água no oceano. Contudo, foi uma iniciativa. Finalmente, reitero o ponto principal do meu comentário. Sou eu que tenho de me conduzir com humildade, com presteza, com altivez, com carinho, com respeito ao doente, não a própria Medicina. Nós, médicos, somos os culpados. Não me identifico quando vou consultar um médico. Em uma consulta, fiquei de frente para as costas do colega e ele, de frente para o computador, disse: Fale o que o senhor sente. Deu-me, depois, um jornal de pedidos de exames. Graças a Deus, vim de uma escola médica, há mais de cinquenta anos, em que o professor assistente ficava cerca de seis horas com o aluno. Eu aprendi medicina e me orgulho disso. Exercitei-me dessa maneira. Estou chocado no fim da vida com o que estou assistindo. Tive um aluno que coloquei para fora da sala de aula. Passou-me: Professor, eu quero só o diploma. Eu não estou interessado em Medicina. Meu pai é dono de hospital e eu vou para lá trabalhar. Disse-lhe: Então, aqui não temos lugar para o senhor. Ou o senhor muda ou o senhor não passa. Somos culpados como professores, observadas as exceções à regra, quando não damos bons exemplos para o aluno. Esta é a verdade. É preciso desfazer a máscara do corporativismo médico inescrupuloso e ter coragem para dizer a verdade. Vamos fazer mea culpa e discutir.

Acad. Dr. Procópio Miguel. Concordo com Dra. Lucimar e outros colegas em que o nome humanização realmente é impróprio, 56


porque humanizar o ser humano é proposição questionável. Ele já é humano, um ser humano. Talvez pudéssemos usar o termo profissionalismo, que é utilizado na ESCS, talvez para fazer um chamamento.

Acad. Dr. José Saraiva. Não seria profissionalismo, se me permite discordar. Humanização é a ação de quem exercita algo, ato de humanizar. Eu tenho que humanizar o sujeito que está realizando uma atividade. Nesse caso, é o médico que age durante o ato médico. Temos de humanizar o ato médico no sentido de ser cortês, educado, solidário, ter humildade para com meu paciente. Humanizar o ato na acepção de torná-lo benévolo, ameno, fazê-lo com sentimento humano de apoio, de solidariedade.

Acad. Dr. Edno Magalhães. Estou muitíssimo satisfeito com as exposições aqui realizadas. O que foi resolvido na diretoria surtiu um efeito extraordinário. Estou há uns cinco anos na Academia e não me lembro de ter assistido a uma discussão desse porte entre os acadêmicos. Foi posto aqui esse tema para provocar realmente. Comecei por dizer que a Medicina já era humana. Humanização é um chavão. Um número muito grande do que se escreve ultimamente em literatura médica desemboca na relação médico-paciente. O que se quer humanizar, melhorar, disciplinar, educar é a relação médico-paciente. Quando se ouvem as queixas de centenas de pacientes, eles estão se referindo a essa relação. É a relação porque, do mesmo modo que a informação chega aos médicos ela chega aos pacientes. Atualmente eles vão aos consultórios com anotações 57


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que fizeram por meio da internet. É necessário que essas informações sejam consideradas e avaliadas pelo médico assistente. Quanto à relação, o doente não consegue ter opções. O paciente solicita: Eu vim aqui para o senhor me indicar um cardiologista. Mas ele vai sair e ir a três ou quatro cardiologistas. Vai se informar sobre aqueles cardiologistas, mas nunca pode adivinhar se o cardiologista que escolheu vai conversar com ele, se vai tratá-lo pelo nome, se vai se apresentar a ele. Por outro assunto, não dissemos, no início, que a campanha era tão somente feita por meio de folder. Esta é uma das armas a ser usada. Há, inclusive, conversações para ser elaborado um edital a ser publicado em uma revista médica para chamar o médico à atenção para esse assunto. Quanto à relação de trabalho em hospital público e medicina privada, eu também chamei os senhores à atenção sobre saúde pública. Cada ponto desse tema daria vez a uma infinidade de outros subtemas. Queríamos um pouco de ideias para ajudar que se monte uma política, uma forma de desenvolver e divulgar o tema. Solicitamos sugestões para montar uma campanha. Não creio que tudo esteja perdido. Acredito que é possível melhorar.

Acad. Dr. José Saraiva. Em meu comentário, perguntei qual é o papel da Academia e qual é seu poder a esse respeito. O importante é sair sugestões deste debate para registrar o que é possível mudar.

Acad. Dr. Edno Magalhães. A Academia pode influenciar, mas não poderia variar o status quo. A intenção é trabalhar com as faculdades. Não é possível que entrem e saiam anos e a 58


Academia fique silenciosa. Ela não existe só para fazer reuniões. Plano de saúde, hospital público, hospital privado, todos esses pontos cabem nas discussões. É humanamente impossível um médico fazer ambulatório em hospital público e seja obrigado a atender, em quatro horas, vinte ou trinta doentes sem conversar com eles de modo adequado. Queremos que se converse com o paciente. Todos nós temos exemplos a dar. Isso acontece com todos nós. Nem sempre o médico chega ao consultório médico como doente e diz ao médico ou à secretária: Olhe, sou médico e tal. Nesse particular, infelizmente o colega não tem, às vezes, a conduta de educar a secretária. O médico poderia ter cuidado de prepará-la bem, programar para que ela faça um curso especial a respeito de receber clientes em consultórios médicos. É possível trabalhar com alunos, professores, médicos, sobretudo médicos recém-formados. Tentaremos montar mesas, reuniões aqui e fora daqui com diretores de faculdades, professores, alunos. Não perdi e não vou perder a esperança de mudar, de influenciar e de sempre contar com o apoio desta Academia.

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PALESTRA MEDICINA E SAÚDE PÚBLICA Sessão plenária de 16-9-2014

Acad. Dr. José Paranaguá. Cumprimentamos e convidamos Dr. Pedro Tauil para as apresentações na ordem pautada para o tema de hoje a respeito de Medicina e Saúde Pública, situação nosológica, evolução e recentes tendências no Distrito Federal.

PALESTRANTE ACAD. DR. PEDRO LUIZ TAUIL. Para fazer uma apresentação com dados objetivos relacionados a mortalidade e morbidade, no âmbito da saúde pública do Distrito Federal, teríamos que nos basear em algum método de informação confiável. Entre nossos processos de informações confiáveis, temos atualmente o Sistema de Informação de Mortalidade, o mais antigo e que agrega quase um milhão e quinhentos mil óbitos. Assim, este sistema tem representatividade. Surge também o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) que traz os registros das doenças de notificação compulsória. Outro recurso destinado a avaliar morbidades – o Sistema de Informação Hospitalar do SUS (SIH-SUS) –, não foi criado com 61


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finalidade epidemiológica, mas para a regulação financeira do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, no Distrito Federal, esse sistema não é suficientemente representativo porque acolhe elevada participação do setor privado, como os planos de seguro de saúde, que não são computados no sistema do SIH-SUS. Este apenas registra a morbidade hospitalar em unidades do Sistema Único de Saúde e de seus conveniados. Dessa maneira, a questão da morbidade vai estar baseada praticamente no sistema de registro de doença de notificação compulsória. O número de mortes no Distrito Federal variou de 8.500 óbitos em 2000 para 11.308 em 2012. Tivemos um aumento sobremodo razoável. O número maior de óbitos está registrado no grupo de idosos, uma incidência esperável. Observamos que as taxas ou os coeficientes de mortalidade por mil habitantes, relativas ao DF, estão se mantendo, ao longo desses últimos anos, em torno de 4. É um coeficiente de mortalidade geral muito baixo. Por avaliação das taxas proporcionais de mortalidade por grupo etário, constatamos que falecem mais homens que mulheres, como ocorre no cenário mundial. Excetuam-se, entretanto, os países de população muçulmana, nos quais o número de óbitos em mulheres é proporcionalmente maior do que entre homens. No cenário global, o grupo etário de oitenta anos mostra predomínio de sobrevivência das mulheres, ou seja, temos mais viúvas do que viúvos. Entre as perdas fetais, o número de fetos masculinos é maior que o de femininos. Levanta-se a hipótese de que há maior vulnerabilidade biológica no homem, associada ao menor número de genes porque o corpo do cromossomo Y é menor do que o X. Os homens teriam menos genes do que as mulheres. Mas isso é ainda uma especulação. 62


Um dos indicadores mais importantes, o que transcende o setor da saúde, é o indicador social. Este faz parte do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e está conexo com a mortalidade infantil. Nos anos 2000 a 2005, o Distrito Federal teve baixo coeficiente de mortalidade infantil, comparado aos demais observados no Brasil. Apenas em alguns anos, em alguns estados como São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a taxa de mortalidade foi menor que a do DF. No entanto, quando se consideram as taxas de mortalidade infantil por região administrativa, no Distrito Federal, percebem-se grandes desigualdades. Uma criança de comunidade pobre tem três vezes mais probabilidade de morrer com menos de um ano do que uma criança que nasce em comunidades mais favorecidas. Em termos de percentuais vistos em taxa de mortalidade específica por grupo e por causa, segundo o capítulo da Classificação Internacional de Doença (CID), as doenças que mais matam, em termos de taxa por cem mil, são as do aparelho circulatório. As neoplasias malignas procedem em segundo lugar. As causas externas ocorrem em terceiro lugar. Em alguns estados brasileiros, estas ultrapassam as neoplasias malignas. Em outros, e em nosso caso no DF, temos as neoplasias malignas como a segunda causa de morte e de risco de óbito. No capítulo da CID que trata de doenças infecciosas, há um viés com relação a essas doenças porque os autores não contemplam todas elas nesse capítulo. Por exemplo, as pneumonias e as meningites são incluídas entre as doenças do aparelho respiratório ou entre as doenças do sistema nervoso. Algumas doenças infecciosas apresentam valor de 18,5 como taxa por cem mil, incluso o período neonatal em que a taxa é relativamente baixa. Em relação às doenças mais frequentes no Distrito Federal, com base no Sistema de Notificação de Agravos de Doenças 63


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Compulsórias, avistamos doenças que têm mais de mil casos registrados em 2013, isto é, no ano passado. A grande endemia que temos atualmente é dengue. Neste ano, temos registros de mais de dez mil casos. É a doença de maior notificação compulsória no Distrito Federal. A varicela é outra morbose bem notificada, mas não muito citada. O terceiro tipo de agravo que entra nesse sistema inclui a violência doméstica, a violência sexual e outras formas de agressão, sobretudo física. Como exemplos de intoxicação exógena, atualmente, o Centro de Informações Toxicológicas (Ciato) tem registros de elevado crescimento de intoxicação em frentistas de postos de gasolina e em trabalhadores rurais que lidam com pesticidas. A Aids continua crescendo em incidência. Cresce menos, mas continua a crescer. Ocorrem altas incidências de hepatites virais, síndrome de corrimento uretral masculino, condiloma acuminado. Estranhamente, os acidentes causados por animais peçonhentos, entre eles cobras e escorpiões, são frequentes. Todos esses dados foram citados apenas para que tenhamos uma visão mais ou menos global das doenças mais frequentes no Distrito Federal. Reiteramos que outras fontes de dados correspondentes a morbidades não têm representatividade a respeito do que está acontecendo, de fato, no Distrito Federal.

Acad. Dr. José Paranaguá. Dr. Pedro Tauil foi exemplar em seu conteúdo temático. Convido Dr. Laércio Valença para expor a segunda palestra em referência ao tema.

Acad. Dr. Laércio Valença. Falaremos sobre nossa expe­ riência alcançada no cargo de Secretário de Saúde. Não acompanhei 64


de perto a evolução dos acontecimentos ao longo dos anos mais recentes. No primeiro semestre de 1986, comecei a atuar nessa área. Foi um semestre conturbado no Distrito Federal. Tínhamos deixado o regime militar havia pouco tempo e ocorria uma sede muito grande de manifestações e de reivindicações. Houve muitas greves na área da saúde. Episódios lamentáveis de má prática médica chegaram às manchetes dos jornais. Diante desses eventos, o governador José Aparecido criou uma comissão para estudar uma redefinição do sistema de saúde, para ver o que poderia ser feito de forma mais bem ordenada e melhorar o atendimento público no campo da saúde do Distrito Federal. Para que esse grupo de trabalho fosse representativo foram participantes um ex-Secretário de Saúde, representantes do Ministério da Saúde, da Previdência Social – que, à época, dirigia o Inamps –, do Ministério da Educação, da UnB, do Inamps local, da AMBr e pessoas que tinham saliência na área de Saúde Pública do Distrito Federal, a saber, Dr. Ernesto Silva, um dos médicos pioneiros da cidade, Dr. Elias Tavares, estudioso do assunto, e outros. Como Secretário de Saúde, fui indicado para coordenar esse grupo. Depois de quase três meses de trabalho, chegamos a algumas recomendações que encaminhamos ao governador. Em suma, as conclusões recomendavam que se buscassem melhorias no sistema de atendimento público para que os usuários ficassem mais satisfeitos com o sistema. Propusemos a integração das várias instituições do Distrito Federal para harmonizar as diferentes áreas públicas que atuavam na Saúde do Distrito Federal. Na ocasião, não existia o SUS, o qual surgiu com a Constituição de 1988. Tínhamos um sistema precursor, mas, neste, havia autonomia. À época, o Inamps era independente da Secretaria de Saúde. 65


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Entre as conclusões básicas, houve a criação do SUS, o que já estava em andamento. Recomendou-se autonomia administrativa e orçamento financeiro individualizado entre as várias unidades de saúde do sistema, bem como desenvolvimento de programas de ensino e pesquisa na UnB, a única universidade do DF com faculdade de Medicina à época. A ideia desse grupo era que a UnB integrasse o sistema de saúde pública do Distrito Federal, o que não se conseguiu. Recomendou-se estimular a competência e a provisão de recursos para plena utilização da capacidade instalada. O fato é que os recursos foram menos abundantes do que se desejaria ser. Propusemos incentivar a criação de Conselhos Comunitários para que a comunidade ajudasse a elaborar e organizar metas, que trouxessem recursos para o próprio sistema da saúde e provessem contingentes voluntários. Recomendamos a implantação do atendimento pelo sistema de médico de família e isso foi algo pioneiro porque, à época, no próprio Ministério da Saúde, não se falava a respeito do assunto. No período em que estivemos na Secretaria de Saúde, começamos a criar um núcleo voltado à atenção primária. Depois, veio o programa do Ministério da Saúde. Houve, ainda, diversas recomendações correlatas às atenções secundária e terciária. Fui chamado para assumir a Secretaria de Saúde e, naturalmente, leva-se algum tempo para conhecer uma empresa de grande porte. À época, tínhamos cerca de quinze mil funcionários, 83% trabalhavam em hospitais e contávamos com cerca de 1.700 médicos. Havia dez hospitais, 42 centros de saúde e mais o Instituto de Saúde com o Hemocentro. Mantínhamos cerca de 2.500 leitos e 680 consultórios. 66


Sentimos, como é de conhecimento geral, que a instituição era extremamente centralizada. Se aspirina faltava em uma instituição regional, o Secretário era diretamente responsabilizado por não ter feito a necessária provisão. Senti que havia uma filosofia de centralização, que esta interessava a determinados dirigentes, porque este era o meio de distribuir benesses, de ter tudo à mão de poucas pessoas. Mesmo quem não ocupava altos cargos tinha aquela ideia de ser certo centralizar, que o pessoal mais afastado do centro do poder, possivelmente, não teria competência para gerir recursos, fazer compras e tal. Recomendou-se, à época, que começassem a mudar essas concepções. Hospitais de grande vulto não tinham praticamente nenhum recurso. O máximo que conseguíamos, diante das limitações legais, era uma verba muito restrita, que resolvia poucas necessidades. Outra coisa que observamos, do ponto de vista administrativo, sem tocar na parte estritamente médica, foi ausência de programas de treinamento em administração hospitalar. Sentíamos que a instituição era tocada pela boa vontade daqueles que ocupavam cargos de chefia. Se a pessoa não tivesse treinamento, mas tivesse boas intuições e alguma vivência, ela se sairia melhor. Procuramos, naquela ocasião, começar algo dentro dessa ética. Não havia carreira de administração hospitalar, como creio não haver ainda hoje. Chamou-nos à atenção as enormes redes de hospitais e outros centros de assistência, na esfera da saúde, que estavam deterioradas. Durante as visitas que fazíamos, às vezes, ficávamos chocados com o que víamos nos hospitais, nos centros de saúde e tal. Seriam imprescindíveis grandes investimentos para a manutenção de toda essa rede. 67


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Nossa filosofia, dentro da ideia do grupo de trabalho, era que, em lugar de investir em construção de novos hospitais, deveríamos recuperar a rede na medida do possível. Com efeito, verificamos que havia muitos leitos ociosos nos hospitais em decorrência de sua deterioração. Lamentamos muito ter feito apenas uma parte do plano porque o problema era muito maior do que nossa capacidade de atender à demanda. Mas realizamos melhorias necessárias, sobretudo quanto à tecnologia dentro da instituição, que se encontrava defasada e com aparelhos de má qualidade. A medicina efetuada no sistema decaía com essas limitações. À época, iniciou-se a implantação da primeira tomografia computadorizada. Outro problema difícil de resolver foi a conservação dos equipamentos existentes. Tudo dependia de contratos de manutenção. Na ocasião, demos apoio ao Departamento de Tecnologia, que executava um trabalho muito bom como setor de recuperação de equipamentos. Tentamos fazer que esse trabalho fosse também aplicado às diversas unidades hospitalares, para atender pelo menos à manutenção dos aparelhos mais simples e imprescindíveis à assistência dos pacientes. Outra coisa que nos chamou à atenção foi o enorme desperdício que ocorria dentro da instituição. Contavam-se histórias, não sei se verdadeiras, de pessoas que montaram clínicas e hospitais à custa de material da Fundação Hospitalar. Falava-se que se viam lençóis da Fundação espalhados pela cidade, todos nitidamente identificáveis. Havia fundo de verdade a respeito, mas era difícil quantificar perdas. Apesar de haver sistematicamente os esquemas estatísticos e recursos semelhantes, havia muita dificuldade para avaliar a real qualidade da assistência médica. É possível que seja assim 68


ainda hoje. Conhecemos casos que nos chegaram da imprensa, com repercussão desfavorável. Mas contávamos com estatísticas de mortalidade e outras variáveis correlatas ao sistema de saúde. Assim, no plano geral, sabemos que a assistência médica que prestamos fora eficaz. Buscamos mais transferências de recursos com o Ministério da Previdência porque o Inamps era o órgão que tinha mais dinheiro naquela ocasião. O que tínhamos foi insuficiente para atender a todas as necessidades. Começamos a tentar realizações, mas não houve tempo de avançar muito. Saí da Secretaria com algumas ideias. Deveria haver descentralização administrativo-financeira da instituição. Cada grande hospital deveria contar com orçamento próprio para executar compras e providenciar a manutenção de sua estrutura física. Seria um meio de compartilhar responsabilidades. Se todo o poder estiver nas mãos do Secretário e de seus assessores imediatos, muitas vezes, o diretor de uma unidade hospitalar regional não se sente diretamente responsável pela economia de material e em evitar desvios. Assim fazemos em nossa residência – quando algo se quebra, vamos consertá-lo com os recursos que temos. Dentro da instituição pública, os eventos são análogos. O núcleo administrativo central ficaria com a função de elaborar normatizações e com o controle funcional, o que não é pouco. O preenchimento dos cargos de direção, de chefias clínicas, deveria ser por capacitação técnica. Naturalmente, há exceções. Um Secretário pode ser pessoa não médica, como tem sido no Ministério da Saúde. Poderia haver um processo seletivo para a ocupação de cargo de chefias, com mandatos determinados por reeleição ou não. 69


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Havia um acordo com o sindicato médico sobre as transferências de médicos por antiguidade. Isso não é bom para a boa qualidade da medicina dentro de hospitais como o Hospital de Base, o HRAN e outros. Essas transferências deveriam ser, basicamente, por mérito. Não conseguimos mudar nada a respeito porque, dentro dos acordos com o sindicato, não era possível mudar esse procedimento. Continuo a crer que isso deve ser mudado. Outra questão é a de instituir, dentro do sistema de saúde, cursos de administração hospitalar para que não dependêssemos de pagar pessoas de fora para nos prover do que seria possível criar entre nós. Havia o Cedrus, à época, que cuidava dessa parte de treinamento, para que este se expandisse dentro da área hospitalar. Não me refiro à área médica porque existiam e ainda existem alguns mecanismos de treinamento e de educação continuada nesse domínio, mas, dentro do setor hospitalar, precisamos desses dispositivos. Criou-se a Faculdade de Medicina ligada à Secretaria de Saúde. No entanto, penso que não seria missão da Secretaria, necessariamente, formar médicos. Outras instituições fariam ou fazem isso. Precisávamos, antes, de um sistema de educação e de treinamento em administração hospitalar. Quando se fala em saúde pública, percebemos que este é um dos problemas mais sérios que temos no Brasil. Eu quis apenas trazer algumas ideias para que possamos refletir a respeito e chegar a um consenso. A Academia de Medicina teria uma oportunidade única de se debruçar mais sobre os problemas da área da saúde pública no Distrito Federal. Ela dispõe de notórios membros com muita experiência no assunto. São diversas e ricas experiências. Penso que esta seria uma das 70


missões pertinentes à Academia porque, às vezes, perguntamos: A Academia serve para quê? Qual a função dela? Em que ela pode ser útil? Ela poderia ser muito útil se, em cada época de eleições, encaminhássemos propostas aos candidatos a cargos de governador, de senador, de deputados e equivalentes. Seriam propostas a serem estudadas por quem se propõe a exercer funções de mando no Distrito Federal. Se essas propostas fossem aceitas ou não, seria outro problema. Pelo menos, faríamos nossa parte ao produzir e propor ideias. Fico por aqui e espero discutirmos mais algumas coisas em sequência.

Acad. Dr. José Paranaguá. Dr. Laércio, todos os problemas a que o senhor se referiu com elegância são atualíssimos e muito presentes. Com Dr. Osório Rangel passaremos ao tema das relações entre sistema público, sistema supletivo e medicina privada

Acad. Dr. Osório Rangel. É de responsabilidade ímpar apresentar algo a um grupo tão experiente em referência ao tema. A parte que me coube diz respeito à medicina suplementar que, antes, chamávamos de medicina privada. Entendemos que a medicina suplementar trouxe complementação à assistência médica que o governo é incapaz de satisfazer. Sabemos também que a Constituição de 1988 estabelece ser a preservação da saúde um dever do Estado e um direito do cidadão. O artigo 598 dispõe que a medicina também pode ser exercida pela atividade privada. Com a Lei n.º 9.656, de junho de 1998, foi criada a Agência Nacional de Saúde, que determina normas para o funcionamento da medicina privada. 71


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Em termos de medicina suplementar, a lei dá ao cidadão o direito de usar assistência privada por meio do sistema de seguro de saúde. Para isso, durante certo tempo, ele deverá pagar previamente certa quantia e, depois, será assistido por um plano que lhe dará algumas garantias contratuais. Creio que o sistema de planos de saúde é injusto para quem o utiliza, visto que a assistência ou o direito à saúde é um dever do Estado. Quando este se declara incompetente e não fornece o que deveria oferecer, passa a transferir a assistência à atividade privada. Mas não permite que tal repasse seja completo, ou seja, se gasto cem unidades monetárias com assistência à saúde, só tenho direito ao desconto de 25% do que pago como imposto de renda. Compreendo existir aqui uma injustiça. O Estado teria de me repor o gasto completamente, mas não repõe. Outra injustiça no âmbito da medicina suplementar é a dificuldade que tem o doente em escolher o médico que deseja consultar, mas o paciente não escolhe livremente seu médico. Isso danifica a relação médico-paciente, um dos grandes problemas que atravessamos atualmente. O paciente tem vinte anos de assistência pelo convênio. De repente, muda-se o convênio e o cliente vai ser atendido por outros profissionais que nunca viu e que não sabem de sua história clínica. Por conseguinte, a familiaridade e a amizade com seu médico, um dos mais importantes vínculos em medicina, se esvaem pela quebra abrupta da relação médico-paciente. Assim, prevalece o capital independentemente da qualidade de assistência médica. Apresento um trabalho do Conselho Federal de Medicina, de extrema importância para a conscientização dos médicos que atuam em medicina suplementar. 72


Desde que comecei a trabalhar com a medicina privada, sinto por esse viés do paciente, análogo ao que ocorre entre o marisco e a água do mar. O enfermo compara-se ao marisco que está entre a pedra e a água, que sofre sem poder de barganha. Em justificações para participar de greves que ocorreram ao longo do tempo, o doutor chega a dizer: Poxa, tenho que atender pelo convênio, aviltado, porque não tenho como me sustentar. Importa que o doente tenha um cartão de seguro-saúde, usá-lo onde quiser e escolher o médico que desejar. É preciso que o médico, por sua vez, seja remunerado sem haver autorizações e glosas. Que se criem mecanismos de ajustes sem a glosa programada. Quem atua com medicina privada sabe que há convênios que glosam, definitivamente, 25% da sua consulta, do seu trabalho. Em épocas anteriores, o médico não pagava, e a instituição dependia do seu serviço. Com essa dependência atual, o convênio, dois, três, quatro meses depois, negocia a dívida com deságio e o doutor é obrigado a pagar o débito porque, se não, deixa de existir. Infelizmente, o médico não tem forças e continuará a não ter. Vou mostrar um exemplo público. O desempenho das empresas privadas de seguro-saúde é incluído no ranking mundial de poder de capital, em detrimento do que estamos perdendo em termos de capacidade de resolução. Segundo um levantamento realizado pelo Conselho Federal de Medicina, cerca de 160 mil médicos atuam em saúde complementar e há dependência de cinquenta milhões de habitantes do País à medicina suplementar. Então, a assistência suplementar constitui um canal de rendimentos e tem propiciado lucros exorbitantes para quem explora o médico. Existe um convênio que mudou um pouco a figura que atende a vários ministérios, embora tivessem a capacidade de deliberadamente não pagar convênios. 73


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Cerca de 80% dos planos de assistência médica são coletivos. Quase não mais existe o plano individual, pois é aviltante o custo que se paga por esse tipo de plano. Os médicos atendem, em média, oito planos de seguro de saúde e, entre os usuários da assistência, 20% ainda permanecem em planos antigos, o que causa a polêmica da falta de reajuste. Os planos de saúde manipulam dados e, ainda, criam dificuldades contra as quais não temos reações. Há outro evento interessante. Com o Índice Nacional de Preço ao Consumidor, utilizado recentemente, o índice de inflação foi 111%, mas os planos de saúde tiveram aumento de 150%. Para quem é usuário desses planos configura-se uma situação aviltante, quer dizer, ele recebe 111% e paga 150%. A receita dos planos e os dados sobre a saúde financeira das operadoras não param de crescer. Os valores de 2011 foram quatorze bilhões de reais. São de 3% ou 4% a mais que em 2010. À custa de quem? À custa de quem paga. E à custa de quê? À custa de necessidade de aquecimento dos planos de saúde. Por quê? Porque a assistência à saúde, dever do Estado e direito do cidadão, não é exercida em sua plenitude por n razões que foram expostas aqui pelos colegas que me antecederam. Esse crescimento exagerado está sendo feito à custa das correções, da manipulação abusiva que os planos de saúde fazem contra médicos e usuários. Não sei por que há toda essa permissividade. O valor médio das mensalidades aumentou em 127%. Outro indicador de que o mercado vai bem é a redução da sinistralidade. É que os médicos estão bem, trabalham bem, fazem boa prevenção, a atenção básica em saúde está bem, diminuiem a sinistralidade e reservam a garantia de pré-pagamento para esses convênios, o que é algo muito bom. 74


Menciono dados sobre a interferência na autonomia dos médicos. São informes da Datafolha e do nosso Conselho Federal de Medicina. Foram entrevistados 2.184 médicos. Há dados sobre a interferência dos planos de saúde na autonomia dos médicos e aqui entra nossa parte de responsabilidade. Em denúncia do Conselho Federal de Medicina, que tem de participar e atuar nisso, aparecem os seguintes trechos: Entrevista mostra que os médicos do seguro-saúde atribuem, em média, nota 5, em uma escala de zero a dez. Noventa e dois por cento dos médicos que atendem aos planos de saúde afirmam que sofreram ou que ocorreram interferências das operadoras na autonomia técnica. Em mais da metade dos hospitais, afirma-se que os planos determinam a transferência dos pacientes para hospitais próprios da operadora. Em mais da metade dos hospitais, os planos demoram para liberar internações. Cito o exemplo de uma paciente nossa que, infelizmente, faleceu por causa desse problema. Uma paciente de 32 anos que precisava de substituição da sua válvula mitral protética, mas teria de trazer autorização do convênio. Ela apresentou franca insuficiência cardíaca, foi operada, mas não saiu viva da mesa operatória. Se fosse operada trinta dias antes, como fora solicitado, ela não teria agravamento do quadro clínico. Era uma prótese que se rompeu, e a história natural de ruptura de prótese é avassaladora, pois piora exponencialmente o quadro do paciente. As glosas limitam o número de exames e de procedimentos, restringem atendimentos em casos de doenças pré-existentes, autorizam atos diagnósticos e terapêuticos somente diante da 75


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designação dos auditores, obrigam o médico a comprometer a privacidade do paciente ao declarar diagnósticos, incidem na própria solicitação dos exames que são checados, complementados e analisados por pessoal não médico, interferem no tempo de internação, negam prescrição de medicamento de alto custo. A interferência na autonomia do médico é real. Vivemos tudo isso intensamente em nosso dia a dia. Sofremos com a invasão da privacidade do paciente. Infelizmente, nós, médicos, estamos nos submetendo a isso. As interferências dos planos tiram nossa autonomia em nossas tomadas de decisão e em nossa relação médico-paciente. Sabemos que, no presente, 2% a 3% da população tem assistência privada pura, particular. Dados apontam que, quanto maior o número de clientes de uma operadora de plano de saúde, maior o tempo médio para agendar consultas. Segundo pesquisas, 30% dos pacientes e 70% dos clientes produtivos levam quatorze dias, em média, para agendar sua consulta. Existem casos em que o tempo médio de agendamentos em clínica geral é de 210 dias. Isso tudo assemelha-se a manipulação porque, quando o serviço não é remunerado, o pré-pagamento torna-se caixa, o que vai aumentar o fluxo de caixa da empresa. Oitenta por cento das pessoas que têm plano de saúde utilizaram a rede credenciada nos últimos meses. Seis de cada dez pacientes da saúde complementar tiveram experiência negativa. As reclamações mais comuns estão relacionadas à demora do atendimento. Vinte e um por cento relatam haver poucas opções de médicos. A restrição ou a perda da capacidade de escolha leva o doente a apenas dois ou três médicos disponíveis, sem haver meritocracia bem definida. Valorizar o mérito não é valorizar quem indica, mas o indicado. 76


O excesso de burocracia foi outro ponto de reclamação. Treze pacientes vivenciaram demora na atualização de exames, inclusive em internações, e tiveram a cobertura de procedimento negada. É um absurdo o que está sendo feito na esfera da medicina complementar em detrimento da melhor assistência ao paciente – o grande motivo de todo o nosso trabalho. Reiteramos que nossos dados indicam que uma empresa médica de assistência à saúde aparece entre as mais ricas do mundo. O responsável pela empresa é brasileiro e tem patrimônio estimado em dois bilhões e seicentos milhões de dólares. Agora ele é o 663.o na classificação das pessoas mais ricas do mundo. Se ele for avaliado em conjunto com sua mulher, que está na 931.o colocação do rol retromencionado e tem um bilhão e novecentos milhões de dólares em bases patrimoniais, o casal tem, então, quatro bilhões e quinhentos milhões de dólares em termos de patrimônio. É uma empresa de saúde pela qual eu atendo pacientes. Na criação de sua empresa, ele declarou: Médico é muito bom para a gente trabalhar. Por quê? Porque médico não reclama. Se a gente demora a pagar, ele fica satisfeito, sem problema. A gente diz que vai pagar depois, ele aceita. Médico trabalha 120 horas por semana, não recebe de um lado, mas recebe do outro e, para isso, ele trabalha mais. Tomei a liberdade de declarar alguns posicionamentos pessoais, mas eu não tinha como ultrapassar os dados do Conselho Federal de Medicina. Volto a dizer que esse trabalho em que o capital é mais importante, foge do que tem nos mantido como formadores de opinião. Sou coordenador do programa de residência médica em cardiologia no Hospital de Base e coordenador de internato em uma escola de Medicina. Trabalhamos formando opinião. 77


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Entendo que a Academia de Medicina tem que se ocupar com esse quadro de irregularidades e questionar esses fatos que nos foram expostos. Nós e nossos filhos que forem médicos vamos sofrer as consequências do que tal medicina suplementar produz em contrário do nosso plano ético profissional. Reiteramos nossa declaração de reconhecimento da incapacidade do Estado de não cumprir o que deveria ser cumprido e descontar do nosso imposto de renda apenas 25% do dispêndio em cuidados com nossa saúde. A área da saúde tem problemas gravíssimos para resolver. A veemência com que defendemos algumas posições é justificada. Não poderíamos deixar de fazer esses posicionamentos com aproveitamento dos números obtidos pelo Conselho Federal de Medicina. Pelo exposto, por causa de questões mal resolvidas, optamos pela saúde complementar sem termos as devidas retribuições. Junta-se a isso o grande aviltamento do nosso trabalho como médicos e cidadãos, sobretudo por não contarmos com defesas suficientes contra a exploração do trabalho médico, imposta e contrária à ética profissional e, por fim, por não permitirem que tenhamos assistência à saúde em grau avançado.

AUDITÓRIO Acad. Dr. José Paranaguá. As apresentações cumpriram plenamente seu objetivo, com informações baseadas em dados e estatísticas disponíveis e, principalmente, pela experiência profissional, técnica e científica de cada expositor. 78


Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. Parabenizo a Academia por trazer a debate esses grandes temas da medicina. Desejaria chamar à atenção o que foi dito pelo Dr. Osório Rangel. Temos duas estruturas no Brasil envolvidas na avaliação geral em relação à medicina. Uma é a Anvisa, Agência de Vigilância Sanitária, que tem cinco pessoas nomeadas e não tem nenhum médico. São quatro advogados e um farmacêutico. Fizemos um congresso médico na Associação Médica de Brasília e convidamos o pessoal da Anvisa para falar sobre conflitos de interesses entre os médicos e a indústria. Foi enviada uma enfermeira, e eu perguntei a ela se o fato de a diretoria da Anvisa não ter médico não interferiria nas ações da Anvisa. Ela nos disse que não. Mas eu penso que sim. Na Agência de Saúde Suplementar, está bem caracterizado que são nomeados antigos ex-diretores de planos de saúde que passam ali cinco anos, depois saem e voltam para os planos de saúde. Creio que aí está nossa fraqueza, isto é, nos locais de decisão, não temos pessoas para interferir por nós. Considero que tudo o que foi dito por Dr. Osório é de pleno conhecimento. Deveríamos atuar e fazer força junto ao Senado para que médicos como o Marcos Gutemberg e outras lideranças nossas possam ocupar uma posição de comando nessas agências.

Acad. Dr. Marcos Gutemberg. Para complementar a fala de Dr. Casulari, na eleição para indicar a nova gestão da Anvisa, tentamos sugerir nomes de médicos. Inclusive, os médicos-assessores nos procuraram. Quando a enfermeira disse que não há interferências em assuntos médicos, é lógico, ela está advogando em causa própria. Conversei com os assessores da Anvisa sobre os médicos que nos procuraram. A questão é real­ mente política. 79


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Acad. Dr. José Saraiva. Cumprimento os três palestrantes pelas brilhantes exposições e pergunto a Dr. Pedro Tauil se a notificação compulsória tem sido observada com toda confiabilidade pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal. A Dr. Laércio Valença, por sua vivência na Secretaria e por suas observações atuais do sistema de saúde reinante, perguntaria se a extinção da Fundação Hospitalar do Distrito Federal trouxe benefícios ou complicou o sistema de saúde do Distrito Federal. A Dr. Osório Rangel gostaria de observar que, guardadas as exceções da regra, muita coisa que acontece no sistema complementar é culpa dos nossos colegas que aceitam serem aviltados.

Acad. Dra. Janice Lamas. Gostaria de perguntar ao professor Tauil se não seria interessante propor à Secretaria de Saúde e a outros órgãos relacionados a elaboração do registro único da notificação de doenças, atrelada ao CPF da pessoa, como ocorre nos países desenvolvidos. Penso que seria interessante se tivéssemos a criação do registro único, pois, assim, tem-se conhecimento do que ocorre com aquela pessoa em relação às doenças que teve ou às causas de sua morte. No meu caso, gostaria de acompanhar os pacientes por onde fossem e saber qual foi o registro da prevalência ou da incidência de seus casos para fazer um estudo populacional. Outra questão a respeito da medicina suplementar é que, correntemente, muitos dos problemas que enfrentamos com glosas e pagamentos vis por consultas e procedimentos, em muitos casos, segundo percebo, é culpa do próprio médico. Temos de nos afastar de convênios irregulares, de ter coragem de reduzir aquela quantidade de convênios e impor um preço mínimo para nossos procedimentos profissionais. Pelos méritos do próprio 80


médico, se este tem pacientes que o procuram e gostam do seu trabalho, ele deveria declarar o preço mínimo e justo de seus serviços profissionais.

Acad. Dr. Francisco Ginani. Parabenizo os conferencistas pela contribuição que nos deram. A escola médica em que me formei, no Rio Grande do Norte, deu-nos consciência e informações sobre os problemas sociais em que iríamos nos debater no exercício profissional. Vim para a Universidade de Brasília e vivenciei uma experiência fantástica ao participar da medicina comunitária, um dos pontos mais importantes da minha carreira como médico. Em meu tempo de Inglaterra, participei de um programa devotado à saúde pública. Em Brasília, nos idos de 1967, o Plano Bandeira de Melo, elaborado em 1959, foi adotado para formar a rede hospitalar do DF. Tinha como plano importante a criação do Hospital de Base como hospital de referência, e de hospitais distritais ou regionais como unidades satélites e, ainda, o hospital rural. Este plano foi idealizado com uma visão hierarquizada, não de medicina verticalizada, mas de medicina horizontalizada. Mas o que se realizou vem exatamente de encontro ao que eu imaginava, ou seja, que o Distrito Federal não precisava da quantidade de hospitais que foram construídos. Vários governos passaram e, de fato, tivemos os que não construíram hospitais em profusão, não admitiram que as unidades hospitalares resolvessem todo o problema assistencial em saúde no DF. Passou-se então à criação dos centros de saúde, das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). É interessante verificar que, mesmo com tantos hospitais existentes no Distrito Federal e termos índice demográfico de 81


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4,1 médicos por mil habitantes – número próximo ao de países europeus, de países desenvolvidos –, ainda assim, se importam médicos de outros países para prestar assistência no DF. Naquela experiência da Inglaterra, aprendemos que o problema da assistência na área da saúde pública não é solucionado com apenas assistência hospitalar. O que tínhamos de ter, no panorama nacional, era estruturação de uma rede de atenção básica. Cerca de 80% da população inglesa conhecia seu médico, e o médico sabia quem era seu paciente. Esse aspecto é importante. Pela última pesquisa que o Ibope fez sobre a satisfação da população em relação ao trabalho do SUS verificou-se que, naquelas populações em que havia plano de assistência comunitária em saúde e plano de saúde familiar, o índice de satisfação com a assistência em saúde foi dez vezes superior ao índice obtido em relação à população no âmbito nacional. É importante debater esse princípio-base da saúde pública porque, no presente, vivenciamos aspectos importantes nos debates conduzidos pelo Conselho Federal da Educação com a pressão do Governo Federal. Temos visto que soluções absolutamente errôneas vão se somar aos problemas que o Brasil enfrenta. Por exemplo, abrir novas escolas médicas sem condições de oferecer boa formação é um dos aspectos importantíssimos a serem contemplados. O problema do financiamento da saúde pública é um caso grave. Apenas de 9,2% do PIB se tem investido na área da saúde. Realmente não se faz assistência médica sem investimentos. Há desigualdade na distribuição de médicos no cenário nacional. Como mencionei, há 4,1 médicos por mil habitantes no 82


Distrito Federal, mas, no Norte do País, o índice é de 1,2 médicos por mil habitantes. Importante acrescentar, quando se critica o SUS, que apenas 1,1 médico por mil habitantes atua nesse sistema. É um índice baixo, o que pode justificar os problemas assistenciais que o SUS enfrenta. Há muitos outros aspectos da estrutura da saúde no Brasil a serem considerados.

Acad. Dr. Renato Maia. Desejaria fazer comentários sobre as duas últimas palestras para chegar à primeira. O diagnóstico que poderíamos ter da Secretaria de Saúde, das dificuldades com a administração hospitalar que existe há bem mais de trinta anos, é a dificuldade de gestão. A medicina suplementar produz muito lucro porque tudo ali é controlado. No caso da medicina pública, muito pouco tem controle. É preciso melhorar a gestão. Na qualidade de médicos, podemos ser bons clínicos, cirurgiões, anestesistas, psiquiatras, o que quisemos ser, mas isso não aponta que somos bons diretores de hospital, bons administradores de centros de saúde. Tudo isso é tarefa para quem queira administrar, assumir uma gestão e ser cobrado por isso. O fato de eu ter um número de registro no CRM não me qualifica como gestor de algum centro de saúde. Quanto à relação de saúde suplementar e a medicina pública ou a saúde pública, mesmo que eu tenha cometido esse pecado, hoje defendo a posição de restringir a dupla militância. Quem quiser ficar na medicina pública, que se dedique e esta e que tenha boa remuneração, um salário e uma carreira pertinente ou, como prega o Conselho Federal de Medicina, uma carreira 83


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com dedicação exclusiva à medicina pública. Os que quiserem atuar na medicina suplementar que se dediquem a ela. Quem quiser ficar na medicina privada que fique e lute para ser bem remunerado. Mas a dupla militância não funciona. Em termos de gestão, isso me traz à primeira palestra, a de Dr. Pedro Tauil. O que vimos, no quadro por ele exposto, é uma transição epidemiológica. Quando Brasília começou, as doenças infecciosas e os acidentes matavam muitas pessoas. Correntemente, o que mata com muita frequência é a doença degenerativa crônica. O sistema de saúde de Brasília nos chama à atenção. Como está equacionado, não atende à nossa real situação. A realidade das doenças crônicas, sobremodo aquelas decorrentes do envelhecimento populacional, não terá boa resposta com o sistema hospitalocêntrico e de baixa resolubilidade em categoria assistencial de centros de saúde. Nestes, diante do quadro de simples hipertensão, de simples de distúrbio mental, o médico é estimulado a encaminhar o doente para um hospital e, desse modo, sobrecarregar o sistema hospitalar. Ainda que se valorizem os hospitais, é preciso qualificar melhor os centros de saúde, e considerar mais a assistência domiciliar de maneira impositiva. Temos um programa assistencial em domicílio, no Distrito Federal, com 1.200 pacientes e praticamente nenhum veículo motorizado para transportar agentes assistenciais. Isso não nos parece sério. A assistência comunitária domiciliar deve ser valorizada, e a assistência hospitalar deveria perder o glamour de que é resposta para tudo, porque não o é e não aguentaria sê-lo. Se assim persistir, em dez anos, os hospitais do Distrito Federal serão todos geriátricos, com baixa rotatividade e sem lugar para quem ficar doente. 84


É preciso pensar um novo sistema de saúde no Distrito Federal, sem fazer barulho na televisão para mencionar que se comprou um novo aparelho de ponta para um hospital porque isso não vai solucionar questões crônicas mais profundas. O que vai resolver é qualificar a assistência primária, os centros de saúde, trazer a “guerra” para esses pontos e considerar, como exemplo, que o paciente crônico, em lugar de estar num hospital, poderia ter assistência em casa. É preciso organizar esse modo de atendimento. Dr. Pedro Tauil comentou a respeito do envelhecimento e do índice de mortalidade masculina. De fato, o maior número de embriões formados é masculino, a maior mortalidade infantil é masculina. Entre as pessoas de até 75 anos de vida, a maior taxa de mortalidade é masculina, o que mostra a fragilidade do sexo masculino no aspecto etário. Os homens podem ter esses problemas, mas obedecem à seleção natural. O homem que passa dos 80 anos de idade é superdotado biologicamente. As mulheres nem tanto são assim, pois são biologicamente mais dotadas porque conseguem viver com agravos à saúde relativamente mais sérios até os 75 anos etários ou bem mais.

Acad. Dr. Marcos Gutemberg. Os dados epidemiológicos apresentados por Dr. Pedro Tauil nos enriqueceu muito com informações que não tínhamos. Dr. Laércio Valença expôs sugestões e dados sobre eventos que ocorreram na Secretaria de Saúde ao redor de 1986, mas é impressionante com são aplicáveis aos acontecimentos atuais. Mostrou que 86% dos médicos, naquela época, atuavam nos hospitais. Esse é o modelo hospitalocêntrico. Em 1979, a Conferência Internacional de Cuidados na Área da Saúde condenou esse modelo. Adib Jatene, como Ministro da 85


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Saúde, condenou também tal modelo. Temos agora um padrão assistencial focado em unidades de pronto atendimento (UPAs), mas é analogamente um modelo hospitalocêntrico. No DF, há sete leitos hospitalares para cada oitocentos habitantes. A média nacional é de quatro leitos por recomendação da Organização Mundial da Saúde. A média nacional é 1,65. No Distrito Federal, observa-se a maior renda per capita aplicada em saúde no País. São R$ 1.402,42. O problema não é falta de dinheiro. No contexto da dotação orçamentária nacional, nossa cobertura em atenção primária, fundada no Conselho Federal de Medicina, é 19%. A média nacional é 37%. Até os mais pobres dos estados do Nordeste repassam cobertura maior do que o Distrito Federal, em que a aplicação per capita é a maior do País. Em estratégia de assistência à saúde da família, temos cobertura de 20%, dado do Conselho Federal de Medicina. A Secretaria de Saúde contribui com 27%. A média nacional é 56%. Em tese, temos em média necessidade de oitocentas equipes de estratégia da família, mas temos 258. Então, temos que trabalhar muito em termos de gestão realmente. No presente, com relação à medicina suplementar temos o setor privado como responsável por 75% do custeio do setor, e o Estado arrecada 25%. Já foi o inverso. Em março do ano passado, houve uma reunião da Presidente da República com as quatro maiores operadoras em saúde do País – Saúde Bradesco, Amil, Sul América e Golden Cross. A presidente pediu que essas operadoras apresentassem uma proposta de plano de saúde para a população de baixa renda. Se tínhamos um princípio constitucional diretamente ligado à saúde da população, a maior mandatária do País queria conseguir plano da saúde para a população mais pobre. Algo questionável. 86


O aumento da assistência pela medicina suplementar ou a inclusão de usuários no sistema de saúde suplementar não melhorou a qualidade assistencial. Pelo contrário, está-se vendendo desassistência. O doente não consegue marcar consultas, não consegue internações hospitalares e arca com as glosas e as negações de autorização para os procedimentos necessários. Como está no âmbito legal, saúde é um direito de todos e um dever do Estado, mas o Estado quer se desobrigar desse ônus. No País, faltam em torno de 370 ou 380 mil leitos hospitalares. Quando se considera que temos de 40 a 60 milhões de usuários do sistema suplementar, o Governo trata esses números como se esses usuários estivessem bem atendidos e, assim, não destina verbas para atender a essa parcela da população. Como justificar? A diminuição, ano a ano, da dotação orçamentária para a saúde, faz surgir, no País, a figura do cidadão que está no limbo. Ele compra um plano de saúde porque o Estado não lhe dá assistência, pois o serviço de assistência pública não está preparado para atendê-lo. Mas ele paga até três vezes pelo sistema de saúde porque o Estado subsidia as empresas médicas de grupo. Desse modo, o cidadão paga um plano de saúde, paga impostos ao Governo para ter assistência numa rede pública que não funciona e ainda contribui para pagar os subsídios às empresas de grupo de saúde. O setor de medicina suplementar teve arrecadação de 85 bilhões de reais no ano passado, mas tem dois milhões de multas. Uma emenda no Projeto de Lei que tratava da tributação de empresas brasileiras no exterior perdoaria as dívidas de empresas médicas. Transformaria os planos de saúde no melhor negócio deste país. Essa emenda não foi sancionada pela Presidência da República porque as entidades médicas gritaram. 87


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A medicina suplementar cresceu sem qualidade. É imprescindível ter um sistema de saúde pública decente e medicina suplementar de boa qualidade. Em caso de doenças complexas, se compro um plano de saúde e não tenho assistência, migro para o sistema público que não funciona ou uso a medicina privada com o peso de altas despesas e terei dívidas impagáveis. É uma situação de profundo desespero. Encerro meus comentários com a mensagem de que precisamos resgatar o Sistema Único de Saúde para que ele seja competitivo em relação ao sistema complementar, se não, a desassistência na medicina suplementar vai aumentar.

Acad. Dr. Simônides Bacelar. Sabemos que a estratégia mais eficiente de diminuir as demandas pela assistência médica é promover ampla e continuada educação e cultura preventiva. Não saber prevenir doenças é caro e muito perigoso. Procurar tratamento de doenças em estado avançado pode causar imensas despesas para o Estado por motivo de cuidados prolongados e bem mais dispendiosos e, ainda, a incidência de óbito será mais avantajada e haverá consequente perda de força de trabalho e desestruturação do âmbito familiar do doente. Trabalho em uma área muito movimentada de pronto-socorro e tenho visto muitos problemas de peritonites generalizadas, infecções graves que poderiam ser evitadas. Temos comumente assistido pacientes com apendicite de quatro, cinco, seis dias ou mais, que chegam ao hospital em estado crítico. Ás vezes, perdemos pacientes por septicemia e outras complicações graves. Desejaria saber do professor Pedro Tauil se existem sistemas de planos para promover educação e cultura preventiva voltada 88


ao povo, com bases dentro da competência da epidemiologia, que possam ser efetuados em regime amplo e contínuo.

Acad. Dr. Augusto César. Quero congratular os expositores por essas utilíssimas provocações. Quero me ater a duas questões. Uma é que a realidade epidemiológica de Brasília é muito singular. Ocorre, como exemplo, certa realidade epidemiológica em São Sebastião e outra diferente no Lago Sul. De uma região administrativa para a outra distam apenas alguns quilômetros. Essa primeira questão faz parte de um perfil epidemiológico difícil de aferir em sua totalidade. Podem-se fazer várias comparações entre lugares que têm, por exemplo, vocação mais rural, como Brazlândia, e outros mais próximos, como Taguatinga, uma cidade de perfil cosmopolita. Outra questão a pontuar é a da Região Integrada do Desenvolvimento Econômico, o chamado entorno. São vinte e dois municípios, ou seja, dezenove de Goiás e três de Minas Gerais. Isso faz o quadrado do Distrito Federal se dissolver numa população que hoje chega a mais de quatro milhões de habitantes, quer dizer, dois milhões e seiscentos mil habitantes no Distrito Federal e perto de dois milhões de pessoas no entorno, com perfil de realidades epidemiológicas diversas. Além disso, mais outras questões precisam ser debatidas. Destaco a questão da Lei de Responsabilidade Fiscal. É importante haver responsabilidade fiscal, mas especificamente essa lei engessa o SUS por seu cálculo percentual de 49% a ser gasto com a folha de pagamento de pessoal. Nesse cálculo, entram o pessoal ativo, os aposentados e os pensionistas. Com isso, a disponibilidade para fazer concursos e contratar pessoal está, 89


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paulatinamente, empatando e se esgotam nesse contexto do funcionamento financeiro. Uma questão fundamental para entrar em pauta é a de atender aos campos de educação, serviço social, segurança e saúde. Se não houver disponibilidade de recursos para contratar gente, não há como cuidar de gente. A própria relação cidadão-quantidade de servidores públicos no Brasil é uma das menores em comparação com a dos países desenvolvidos, notadamente os do hemisfério norte, que mostra algo em torno de seis a oito servidores públicos para um cidadão. No Brasil, são três servidores públicos de qualquer natureza para um cidadão. Assim, a Lei de Responsabilidade Fiscal deve ser objeto de debates. Concordo com a questão de fazer da carreira médica uma carreira de Estado. Também não vejo muito sentido em regimes de duplas militâncias.

Acad. Dr. Pedro Tauil. O problema do sub-registro de doenças nos sistemas de notificações existe. Mas os dados que foram aqui apresentados são bem representativos da realidade. O processo de notificação de doenças infecciosas tem de ser aprimorado. Um exemplo típico é a questão de dengue. Temos muito mais casos do que aqueles registrados. O Governo garante medicamentos para algumas doenças, como leishmaniose, esquistossomose, malária. É uma conduta que tem sido aprimorada. Com relação ao sistema de mortalidade, o Distrito Federal tem a grande vantagem de não ter cemitérios clandestinos identificados. Para sepultar os mortos é preciso ter declaração de óbito e, com isso, temos registros fidedignos de mortes. 90


Quanto à implantação do cartão SUS, a questão é pendente. O cartão tem como finalidade o registro único de todo cidadão brasileiro na área de saúde. Aonde ele fosse, por meio digital com o cartão, seria possível conhecer seus dados históricos, por onde ele passou, que agravos á saúde ele tem ou teve. Talvez o cartão SUS passa por certo arrefecimento desde seu ímpeto inicial, mas é um caminho que subsiste. O Distrito Federal tem algo bom em relação à prevenção de doenças. Por exemplo, houve queda da incidência de meningites por hemófilos com a implantação da vacina para controle da doença. Isso teve um impacto que poucos observaram. Outra consecução que temos no Brasil e naturalmente incluso o Distrito Federal é o da redução praticamente a zero da transmissão vetorial da doença de Chagas. Em nosso último inquérito, a coisa foi impressionante. O Governo deveria divulgar mais essas coisas boas que existem no âmbito da saúde pública. O programa de imunização, inclusive no Distrito Federal, é muito bom e de alta cobertura. Tem havido alguns problemas contudo. Nesse último programa de imunização, a campanha contra a gripe em idosos e servidores da saúde apresentou problemas –, o da não aplicação da vacina por faltar o aplicador em algumas unidades e a ausência de funcionários aplicadores em outros postos de vacinação. Mas podemos manter que o padrão que temos é muito bom. Em relação à prevenção de algumas doenças imunopreveníveis, não tenho dados para falar a respeito, mas os distúrbios de maior prevalência, na população do Distrito Federal, são hipertensão e diabetes. As orientações para prevenir doenças têm muita importância. Mas a prevenção de algumas doenças, 91


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realmente, foge de nosso controle. Por exemplo, para prevenir apendicite aguda, faltam conhecimentos e tecnologia para saber como reduzir sua incidência, mas seria possível reduzir o número de complicações relacionadas à demora na aplicação dos cuidados devidos ao paciente.

Acad. Dr. Laércio Valência. Em relação à apendicite, entendo que é uma falha do sistema com seu diagnóstico precoce. Se o paciente chega em estado tão grave é porque alguém não diagnosticou o caso. Sabemos que praticar medicina, às vezes, é difícil. Mas, se são muitos casos que chegam em estado tão avançado, é um sinal de que o sistema não está funcionando bem. Sobre a extinção da Fundação Hospitalar, à época em que fui Secretário da Saúde, discutia-se sobre sua conveniência ou não de existir. Pessoas no âmbito do Governo, não dentro da Secretaria, defendiam as extensões das Fundações dentro do Distrito Federal. Mas o fato é que terminamos com a Fundação funcionalmente. Sentíamos que a fundação pública estava tão amarrada do ponto de vista legal que sua remoção do sistema administrativo global não faria grande diferença. Segundo observadores do que ocorreu na Secretaria, não houve alterações dignas de nota com a extinção da Fundação Hospitalar. Considero que o evento não mudou muita coisa.

Acad. Dr. Osório Rangel. A respeito da parte aviltante no contexto da medicina suplementar, concordo plenamente com a observação de que a culpa é essencialmente do médico. Mas sentimos que os médicos responsáveis por sua gestão não estão preocupados com o que está acontecendo. 92


O médico tem que se politizar e ter seus representantes nas áreas do poder. É nuclear que tenhamos poder e força para pugnar contra situações adversas. É relevante chegar a um momento em que tenhamos a Ordem dos Médicos do Brasil, à semelhança da Ordem dos Advogados. Dentro da Ordem dos Médicos, as bases sindical, associativa e corregedora são os três braços das representações de classe. Considero que a responsabilidade dos médicos em relação aos seus assistidos é de capital importância. Mas há também culpa dos médicos gestores porque o doutor que está ali na ponta com os atendimentos tem pouco poder de manobra. Além disso, ele precisa se sustentar e, se está na medicina privada, lida com o inerente comércio pessoal. Então, ele é uma empresa. Os gestores poderiam impedir as dificuldades que foram descritas nesta plenária, como o caso da Anvisa, em que não temos representação médica por motivos políticos, como o exemplo da Agência Nacional de Saúde em que progride proteção a essas empresas de medicina de lucro e em que inexiste meritocracia. Considero que isso é uma das grandes falhas de todo o sistema. Precisamos nos empenhar em instituir uma carreira de Estado para o médico. Definitivamente, teremos que nos enveredar na área política para termos representatividade. Existem áreas mais humildes que têm suas representações no poder. Quem vai nos ajudar e atender às nossas reivindicações se precisarmos de alguma assistência na atividade médica? Considero que o modelo do SUS é intocável dentro do que está formulado. Trabalho com medicina pública e penso que é possível este modelo funcionar bem. Em 2013, o orçamento público para a saúde alcançou dois bilhões e meio de reais. Observamos que a gestão é pífia, mas está mudando. 93


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Há muita gente que milita nas atividades-fim sem ter participado das atividades-meio. Fugindo um pouco da área que me compete, do ponto de vista da medicina suplementar, vejo que a medicina pública tem de propiciar condições para que a saúde pública possa competir com a medicina privada. É possível progredir. Estamos com atividades-ponta em desenvolvimento no Hospital de Base. Temos prêmios nacionais e internacionais para trabalhos científicos realizados no Hospital, bem como publicações em revistas de alto impacto. Estaríamos bem mais longe se todo o nosso trabalho tivesse mais apoio. No contexto da medicina pública, deveríamos ter gestão profissional em que se trabalhasse em cima de resultados. Medicina pública ou instituição pública tem de trabalhar com resultados. Para a medicina suplementar o resultado é o vil metal. Para a medicina pública o resultado é aquele do trabalho desenvolvido, da satisfação e da qualidade em pesquisa e ciência. Gostaria de deixar clara essa parte do meu pensamento.

Acad. Dr. Laércio Valença. Só uma nota. Eu vi, em propaganda eleitoral, que o orçamento da Secretaria de Saúde para este ano é de R$5.600.000.000, bem mais de dois bilhões de dólares.

Acad. Dr. Francisco Ginani. Considero que esses assuntos são de grande relevância e devem ser abordados com mais profundidade. Em defesa da medicina brasileira e de sua história, eu sugeriria que fosse nomeada uma comissão para estudar esse tema com mais detalhe, com base nos dados apresentados hoje e que se divulgasse um documento consistente da análise da saúde pública no Distrito Federal. 94


Acad. Dr. Edno Magalhães. Como os senhores veem, a finalidade dessas reuniões está sendo obtida, ou seja, a discussão, a provocação. Observo que muitos colegas naturalmente se entusiasmaram com a importância do tema. Este tem que ser didaticamente arrumado e divulgado. Não iremos descartar essa oportunidade. Esse conteúdo não vai ficar guardado e arquivado apenas entre nós. Quando se diz que os médicos têm culpa desses aviltamentos que ocorrem com a medicina privada não é só porque não gritam, mas porque existem alguns médicos que colaboram com isso e que deveriam ser advertidos pela classe médica. Não vamos jogar confetes em todos os médicos. Por incrível que pareça, uns poucos estão se aproveitando. Essas coisas existem e denigrem a classe médica. A ideia da diretoria atual é que, ao fim deste ano, possamos nos reunir e trazer uma discussão maior para que a Academia possa existir em Brasília e expressar o que pensa. Se os senhores observarem, absolutamente ninguém discorda do que foi dito aqui. Precisamos divulgar essas posições, de maneira organizada, a quem estas dizem respeito. Assim fazem a OAB, os evangélicos e muitos outros órgãos. Os médicos devem conhecer essas proposições. Teremos que achar a forma satisfatória, respeitável, de divulgar o que a Academia quer para a medicina. Muito obrigado.

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PALESTRA MEDICINA E VIOLÊNCIA Sessão Plenária de 14-10-2014

Acad. Dr. Edno Magalhães. Boa noite. Vamos dar continuidade às reuniões a respeito da medicina em Brasília. Desejamos reunir e divulgar sugestões que possam resultar em ações resolutivas como contribuições voltadas à área da saúde. Vamos ter uma mesa-redonda sobre violência e medicina em Brasília, coordenada por Dr. Etelvino Trindade, com participação de Dra. Lucimar Cannon, Dr. Augusto Cesar Costa e Dr. Marcos Gutemberg. Chamo à atenção dos senhores fatos que verificamos em um quadro estatístico. A frequência de óbitos por violência e acidentes afeta, fundamentalmente, pessoas de 15 até 24 anos de idade. Constata-se que crianças, adolescentes e adultos jovens são mais atingidos. É relevante observar que os adultos que foram lesados estariam no mercado de trabalho aplicando os conhecimentos aprendidos se estivessem sadias. No último decênio do século XX, os acidentes de trânsito vitimaram mortalmente cerca de 25 mil pessoas por ano, o que indica valores por volta de 250 mil óbitos em dez anos. Cada pessoa morta por acidente corresponde a treze pessoas feridas em acidentes em média, o que significaria três milhões de pessoas lesadas nos últimos dez anos do século passado. Em cada treze feridos, quatro se tornaram deficientes físicos, o 97


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que significaria um milhão de deficientes físicos no decênio em referência. No DF, todo domingo e toda segunda-feira aparecem notícias nos jornais sobre morte de jovens por violência. Tendo em vista o envolvimento médico como elemento resolutivo nesse cenário, prestamos nossas reflexões sobre condutas que possam aperfeiçoar estratégias, sobretudo preventivas, voltadas ao quadro da frequência de óbitos, distúrbios físicos e psíquicos temporários ou permanentes. Solicito a presença de Dr. Etelvino Trindade para coordenar as exposições.

Acad. Dr. Etelvino Trindade. Boa noite. Damos seguimento às reflexões que a Academia pretende reunir para criar um arcabouço de ideias a serem apresentadas essencialmente a autoridades e gestores, como contributo pertinente à função acadêmica. Apresentaremos três assuntos com participação de três acadêmicos. Inicialmente, Dra. Lucimar Rodrigues Coser Cannon, discorrerá sobre o tema Trânsito e Segurança Pública.

PALESTRANTES ACAD. DRA. LUCIMAR CANNON. Nosso tema sobre Acidentes de Trânsito no Distrito Federal também aborda o uso de bebida alcoólica, motocicletas, bicicletas e a mulher no trânsito. É oportuno conhecer alguns conceitos com base no sistema de informação de acidente de trânsito no Distrito Federal. Este é um evento não premeditado em que ocorrem danos aos veículos e ou de sua carga, provoca lesões em pessoas, animais em geral, bens públicos ou privados. As vítimas de acidentes de trânsito 98


podem sofrer lesões físicas e perturbações mentais, independentemente de sua culpa civil ou penal como autoras do evento. É considerado óbito por acidente de trânsito se a morte sobrevier na ocasião do acidente ou até trinta dias depois. Atropelamento é acidente com pedestres ou qualquer animal, que sofram impacto de veículo, estando, pelo menos, uma das partes em movimento. Choque é acidente devido ao impacto de um veículo contra qualquer objeto fixo ou móvel. Queda é acidente em que há impacto em razão de queda livre do veículo, de pessoas ou de cargas transportadas. Veículo é qualquer meio usado para transportar ou conduzir pessoas, quaisquer animais ou coisas, de um lugar para outro. No entanto, um reboque ou semirreboque não se classificam como veículo na crítica de acidentes. O veículo é considerado aquele ao qual estão acoplados. O sistema de informação de acidente de trânsito no Distrito Federal é muito eficaz, bem organizado e razoavelmente atualizado. Nesse sistema, as informações podem surgir da Polícia Civil do Distrito Federal, da Polícia Militar, do Departamento de Rodagem, do Instituto Médico Legal, do Instituto de Criminalística e da Secretaria de Saúde. Esse sistema subsidia o planejamento e a avaliação das ações voltadas à redução dos acidentes de trânsito no Distrito Federal. Segundo um gráfico presente naquele sistema, até o fim de 2013 no Distrito Federal, a quantidade de veículos alcançou 1.491.000 veículos. O número de mortes chegou a 381 até o fim de 2013. A estimação foi 35,5 mortos para cada cem mil habitantes em 1995 e chegou a 3,7 em 2013. Em 1995, iniciou-se o uso obrigatório de cinto de segurança. Em 1996, houve a Campanha da Paz no Trânsito. Em 1997, começaram a existir as faixas de pedestre ou de travessia e os radares para controle de 99


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velocidade. Em 1998, foi publicado o Novo Código de Trânsito Brasileiro. Começou a haver radares móveis em 2001. Em 2004, começaram a fazer blitzs mais frequentemente como modo de fiscalização ostensiva. Em 2008, foi publicada a lei que proíbe condutores de dirigirem alcoolizados, ou seja, a Lei Seca. Em 2010, foi promulgada a obrigatoriedade de a criança ser conduzida em cadeira protetora com cinto de segurança. De 2011 e 2012, houve a Operação Funil com integração das forças da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Rodoviária Federal. Em 2013, houve registro de 934 ocorrências de maxilares quebrados que surgiram por falta do uso do cinto. Ao exame da rede rodoviária no DF, exibida em um gráfico no sistema de informação do Departamento de Trânsito do DF, podemos verificar que a disposição das rodovias do Distrito Federal contribui muitíssimo para a ocorrência de acidentes de trânsito. As campanhas, o uso de cinto, as blitzs, a Lei Seca, as campanhas de faixa de pedestre causaram expressiva caída dos números de acidentes de trânsito. Acontecem mais acidentes com mortes no período de seis horas da tarde às seis horas da manhã com todos os tipos de acidentes em todos os anos. No primeiro ano da Lei Seca, houve redução em 17% do número de acidentes com morte. No segundo ano, 3%, no terceiro, menos 4%, no quarto, quase 16%, no quinto, 20% e, no sexto, ano 2013, quase 22%. Foi a maior redução desde o início da vigência da Lei. Contribuíu para essa redução o fato de todos os órgãos da Segurança Pública do Distrito Federal passarem a trabalhar de forma integrada no trânsito. Aumentou-se o número de operações de fiscalização em pontos onde há maior incidência de acidentes com pessoas alcoolizadas à direção de veículos. 100


O álcool é fator que aumenta o risco de colisão e de mais gravidade das lesões resultantes. Os condutores sob efeito do álcool colocam em risco pedestres e usuários de veículos, principalmente pessoas com uso de bicicletas. Esse risco varia com a idade. Os adolescentes são mais propensos a acidentes sob o efeito de álcool do que os velhos. Somos médicos e devemos saber por quê. O risco de colisão diminui à medida que aumentam a idade e a experiência do condutor. Os adolescentes sob o efeito de álcool trazem maior risco se houver passageiros no veículo que dirigem por uma questão de descuidos. Quanto menor a possibilidade de ser abordado pela fiscalização, maior é o risco de colisão. As pessoas notam ausência de fiscalização e, então, bebem, correm e causam acidentes. Em um artigo sobre o trânsito nos países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), relata-se que nesses há menos fiscalização e maior número de acidentes. As mulheres são 37,6% dos habilitados do Distrito Federal. Foram quase 560 mil condutoras em 2013. Observe-se que, entre motoristas envolvidos em acidentes fatais, em 2013, apenas 5,3% foram causados por mulheres. Entre as mortas em acidentes de trânsito, 52,9% eram passageiras e 7,4% eram motoristas. Entre homens mortos em acidentes de trânsito, apenas 9% eram passageiros e 60,3% eram condutores. Assim, o homem pode ser mais causador de acidentes de trânsito quando está ao volante. Brasília está se tornando a cidade da bicicleta. Seu uso precisa ser respeitado. A bicicleta precisa ser conduzida com responsabilidade, não apenas por causa da segurança do ciclista, mas para evitar acidentes. Em 2013, esses meios de transporte ocuparam o sexto lugar entre veículos envolvidos em acidentes. Em 2013, 44% das ocorrências com bicicletas tiveram lugar em 101


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vias urbanas, 4,7% em rodovias, com 14,8% em rodovias federais. O Recanto das Emas e o Gama foram as cidades que mais apresentaram registros de acidentes com bicicletas. As colisões representaram quase 90% dos casos desses acidentes com bicicleta e morte. O período noturno, 44,4% e o domingo 22,2%. Houve maior número de acidentes desse tipo porque as pessoas saem para passear de bicicleta nos fins de semana. Em acidentes, comumente o ciclista é a vítima e morre. Em 2013, estes acidentes tiveram redução de 16% em relação ao ano anterior, e foi este o menor valor desde 2003. As ciclovias ou ciclofaixas influenciaram essa redução, bem como as campanhas educativas para aumentar o respeito ao ciclista, o uso de capacetes e outros equipamentos de segurança. Em 2012, os acidentes com motocicletas foram 30% do total de todos os acidentes. Em 2012, as mortes representaram 11,3% entre os veículos em geral. Desde 2002 até 2012, em dez anos, houve crescimento de 272,5% do número de mortes, e os automóveis aumentaram em número apenas 87,5%. Houve aumento de 28% do número de acidentes com mortes em 2011 e 2012. A maior parte desses acidentes ocorreu em rodovias do Distrito Federal, 51,7%, seguidas pelas vias urbanas e os demais em rodovias federais. As pessoas procedem do entorno, das cidades satélites, em motocicletas porque são meios de locomoção mais baratos. Brasília e Taguatinga têm a maior taxa de acidentes com mortes. Entre as vítimas de acidentes com motos, 79% dos motociclistas morreram e, entre esses, 84% foram os próprios ocupantes de moto, 93% do sexo masculino e 57,4%, da faixa etária de 20 até 39 anos, portanto, jovens. As motocicletas contribuem mais para a elevação do número de acidentes do que o crescimento da frota de veículos em geral. Motocicleta é, por isso, um problema seriíssimo como causa de acidentes. 102


Uma estimação feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea –, aponta que, de 2005 até 2006, o cálculo do custo anual de acidentes no País foi cerca de quarenta bilhões de reais. Os custos foram nove bilhões no aglomerado urbano e trinta bilhões nas rodovias. O custo médio de um acidente com morte em rodovias gira em torno de seiscentos mil reais, basicamente por perda da produção e por danos à propriedade. A perda da produção foi muito maior. O custo médio com acidentes em áreas urbanas foi 116 mil reais e de acidente de colisão, 27 mil. Os acidentes com mortos levam a um custo maior, pois as vítimas são trabalhadores geralmente, e a perda de produção laboral é muito alta. Importa observar que a tendência da motorização no País é ascendente. O Brasil experimenta um fenômeno que a terminologia de estatística denomina de curva de Kusnet. Esta é muito aplicada na Organização Mundial da Saúde em termos de lesões em acidentes. O Brasil tem crescimento rápido das taxas de mortalidade, que são maiores do que em países com renda muito baixa ou muito alta. Essa curva pode ser empregada em outras análises pelo sistema de segurança do Distrito Federal. No Brasil, o Departamento Nacional de Trânsito – Denatran – é o gestor máximo de trânsito no País e cumpre as diretrizes emanadas do Conselho Nacional de Trânsito. No Distrito Federal, a Secretaria de Segurança Pública é o órgão máximo que dirige as atividades policiais, primordialmente as preventivas e de ação comunitária, visando à proteção social, melhora da qualidade de vida da população e efetivação de real estado de segurança. O sistema de segurança pública é composto da Secretaria de Segurança Pública, da Polícia Civil, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. O Departamento de Trânsito – Detran – é uma autarquia integrante do sistema, também vinculado à Secretaria. 103


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O Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo n.º 320, limita a destinação dos recursos que vêm das multas para sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito. À educação de trânsito deveriam ser destinados 5% do fundo de âmbito nacional voltado à segurança e à educação no trânsito. Em 2013, o Detran do Distrito Federal arrecadou 117 milhões de reais em multas e gastou menos de cinco milhões em educação. Naquele ano, o Detran recolheu, em média, 301,7 milhões. Isso significa que, em cada minuto, os moradores do Distrito Federal, desembolsaram R$ 209,57 para pagar infrações. Em 2012, os radares flagraram 1.114.373 veículos em excesso de velocidade, e isso corresponde a que oito em cada dez veículos tivessem sido multados. Temos de aumentar os graus de aplicação da legislação. Por aplicar a lei, em uma publicação da ONU sobre esse quesito, o Brasil recebeu nota seis em escala da OMS de um a dez. Uma nota razoável, mas continuamos com essa imensidão de acidentes de trânsito. Temos de ter medidas apropriadas de segurança no trânsito que devem acompanhar o aumento do número de veículos e da rede viária, considerar os pontos críticos de fluxo de trânsito e moderação do tráfego, incentivar o uso racional de transporte individual e oferecer boas opções de transporte coletivo. É essencial melhorar o planejamento do transporte, o uso do solo e das redes viárias. Quanto ao uso do solo, temos observado a criação de grandes áreas de habitações, com edifícios de quatro andares, muitos apartamentos por andar e muitas casas. O trânsito é crítico em algumas dessas regiões. A poluição do ar ocorre nessas áreas quando não se planeja bem o trânsito. Em adição, há poluição 104


sonora e altera-se a atividade econômica, o que implica exclusão social, aumento da criminalidade, desordem nas atividades residenciais, comercias e industriais. Com o aumento intenso do fluxo de trânsito em áreas residenciais, os veículos disputam espaços com os pedestres. Segundo o Observatório sobre Segurança Pública do Distrito Federal, não é eticamente aceitável que alguém morra ou fique gravemente ferido enquanto se desloca pelo sistema rodoviário de transporte. Se amamos nossos filhos e nossa família, precisamos pensar nisso.

ACAD. DR. ETELVINO TRINDADE. Sabemos que a violência traz suas consequências, e o médico sempre estará inserido nestas porque, se alguém é ferido, precisa de socorro. Dentro desse processo, Dr. Marcos Gutemberg vai ponderar sobre como o médico lida com essas questões, pois este passa a ser, às vezes, vítima dos problemas da própria vítima porque tem de prover soluções.

ACAD. DR. MARCOS GUTEMBERG. Boa noite. Nosso tema é O Médico como Vítima da Violência e como o médico lida com isso. Abordamos o sistema de saúde como um todo e como este faz o médico ser também vítima dessa violência. A última edição da revista Médicos, do sindicato dos médicos, tratou da violência nos hospitais. A professora Rosemeire Inojosa, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, publicou seu trabalho sobre o acolhimento nos hospitais e o encontro entre profissionais de assistência aos usuários da área da saúde. Segundo o artigo, na prática, temos de um lado, o paciente com medo, dor, ansiedade 105


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e, de outro, o médico pressionado, às vezes endurecido, pelas atividades constantes de lidar com o medo e a dor. O profissional sofre influência da violência do trânsito, de todo o caos e o estresse com que vive em seu dia a dia. Além disso, sofre a influência das péssimas condições e da sobrecarga de trabalho. Desse modo, surge um profissional pressionado por fatores externos e internos, inclusos os da própria gestão a que se submete. Mas precisa lidar com o paciente que confia na expectativa de ser bem acolhido e encontrar alguém para atendê-lo que esteja tranquilo, relaxado, sem ansiedade. Contudo, a realidade é diferente. Vemos profissionais extremamente angustiados, pressionados, sofrendo o tempo todo assédios circunstanciais. O Serviço Público tem sido alvo da insatisfação do cidadão com os serviços, com o Estado. A população do Distrito Federal aumentou em 1,5% no período de 2010 a 2014. Em 2011, era 3.500 o total de médicos nos quadros da Secretaria de Saúde. Novas unidades de saúde foram inauguradas, mas não houve contratação de novos profissionais em número suficiente. As instabilidades do Sistema Público de Saúde aumentam os casos de violência nas unidades do sistema de saúde. De acordo com dados da Secretaria de Saúde, entre o número de profissionais admitidos por concurso público e os que se aposentaram ou pediram demissão, houve aumento de 22 profissionais do quadro efetivo, desde o início do presente governo. Temos prontos-socorros cheios, poucos médicos e muitos pacientes angustiados a pressionar os profissionais que estão no atendimento. Daí, ocorrem agressões, violências, insatisfações que levam a grande número de queixas nas delegacias, e o médico é ameaçado de prisão, de agressão e até de morte, por motivo de escassez de profissionais. 106


Em 2013, foram registradas 1.647 queixas de mau atendimento em unidades públicas de assistência no Distrito Federal, equivalentes a 3,18% de todas as queixas relativas ao serviço público no DF, feitas sobretudo por meio do serviço de ouvidoria. Apesar disso, o médico tem sido elogiado por seus atendimentos. Nesse período, foram registrados 1.526 elogios ao desempenho dos profissionais de saúde, que correspondem a 45.69% do total de atendimentos realizados. O Sindicato dos Médicos tem feito, todo ano, duas pesquisas pela Vox Populi. É uma pesquisa da satisfação do usuário com o sistema de saúde. Usamos essas informações em nossas ações sindicais, em nossas negociações com o Governo, sobretudo quando das negociações salariais. A satisfação dos pacientes com os médicos e o resultado dessas pesquisas estão em concordância com a análise feita no País com relação ao atendimento no SUS. Em geral, quando o usuário consegue entrar no sistema e no consultório do médico, a satisfação é enorme. O trabalho dos colegas é elogiado. A insatisfação independe da atuação do médico. Decorre das más condições materiais e de trabalho, sobretudo sofridas pelos doentes. Contudo, frequentemente os médicos têm sido vítimas, tidos como vilões da violência e dos casos de insatisfação que chegam às páginas dos jornais quando envolvem as unidades de assistência. Temos pacientes, colegas e profissionais médicos com desgastes físicos e psíquicos, o que provoca doenças e sofrimento nos agentes assistenciais em razão de sobrecarga de trabalho. As falhas de gestão promovem o caos no Serviço Público de Saúde. Constatamos situações em que apenas um pediatra atendeu 107


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mais de cinquenta crianças em seu turno de trabalho no Hospital Regional do Gama. São situações que a comunidade não entende e os pais não compreendem bem essa realidade. Quando chegam ao consultório e ocorre prolongada demora de atendimento, provocam brigas e agressões contra o médico indefeso e assustado. Constatamos o caso de um colega que foi agredido no Hospital do Gama. Tivemos de ir à delegacia para conversar com o delegado. Se um colega está sozinho no plantão, precisa de repouso, de tomar água ou descansar por dez ou quinze minutos, porque é impossível ficar continuamente com essa toda essa sobrecarga, pois a capacidade laboral humana tem limites óbvios. Em vista das queixas que chegam à ouvidoria ou à diretoria dos hospitais, os prepostos dos seus gestores observam que o médico está em repouso, mas lhe dizem que é preciso continuar o atendimento. Há casos em que informam aos pacientes que o médico está em repouso e os próprios pacientes vão procurar os médicos no lugar em que repousam. Testemunhamos casos de chefes de equipes que foram a uma delegacia dar queixa do médico porque este não queria atender. Tiveram orientação da diretoria do hospital para pressionarem os médicos que tinham necessidade lógica e natural de repouso, o que se assemelha a um sistema de trabalho escravo. Fomos verificar os fatos. O delegado nos disse que o chefe de equipe veio se queixar dos médicos. Verificamos a realidade estatística. Um número maior de cinquenta fichas de pacientes para serem atendidos por um colega sozinho no plantão. Este fato caracteriza assédio à moral do médico que trabalha sob violências, agressões e atritos. Tivemos um caso, em Planaltina, em que o colega teve que sair escoltado por causa da violência. No 108


Hospital da Samambaia, ocorreu também um episódio de agressão. Mais grave ainda, em Planaltina, tivemos a transferência de um pediatra por motivo de ameaça de morte. Por decisão administrativa, o quadro de médicos plantonistas nos hospitais da Secretaria de Saúde é sempre exposto em um painel na sala principal de espera pelos atendimentos. Mas a quantidade de médicos que está registrada no painel não corresponde ao número de médicos que estão de plantão. Quando o paciente observa aquele painel, não sabe que essa informação está incorreta. Há médicos que faltam ao plantão por motivos lícitos. Além disso, o número de médicos exposto no painel não indica suas alocações por especialidade. Assim, entre cinco profissionais de plantão, dois são ortopedistas, dois são cirurgiões gerais e um é clínico geral ou pediatra. Contudo, o paciente compreende que existem cinco médicos de plantão para atender todos os doentes. Sabemos que nenhum painel mostra o número de plantonistas que efetivamente atuam no período indicado. Movidos pelas queixas de demora nos atendimentos, acorrem ao hospital jornalistas que perguntam por que só há um médico na clínica médica quando deveria haver cinco. Verificam a escala de plantão no painel e perguntam: Se são cinco médicos, onde estão eles? Tal incompreensão, estimula os pacientes a terem comportamento hostil com o médico que o atende. Constatamos essa realidade por meio de várias visitas nossas a hospitais e centros de saúde, feitas no decorrer de todos os anos. Conversamos com pacientes e esclarecemos que o número de médicos constantes nos painéis não corresponde aos que estão presentes ao atendimento, que os vários médicos presentes atendem especialidades diferentes e não a todos os casos. 109


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Quando do lançamento do painel eletrônico para expor a escala de plantão, o Secretário de Saúde à época foi à televisão e disse que aquele painel era destinado ao controle da frequência dos médicos no plantão. Podemos imaginar o estado de espírito do paciente em relação aos nossos colegas. É oportuno observar que, se um painel eletrônico é usado para controlar a presença de médicos ao atendimento, em verdade fornece informações falsas. Questionavelmente, o paciente está sendo estimulado a fiscalizar o profissional. Surge um grave problema com o absenteísmo. Em relação ao ponto eletrônico, foi recentemente publicado na revista Veja Brasília que, com a implantação do ponto eletrônico os médicos estariam boicotando esse sistema, que os médicos estavam entrando com atestados em razão da existência do ponto eletrônico. São essas as informações que saem na imprensa. No entanto, os médicos trabalham doentes e adoecem trabalhando. Tivemos uma ação do governo Arruda contra os profissionais em que o subsecretário, na ocasião, divulgou pela imprensa que os absenteísmos entre todos os servidores da saúde eram, em geral, da classe médica. Por mais que afirmássemos à imprensa, em espaços de entrevista, que tal afirmação era equívoca, o repórter não se corrigia e continuava a afirmar que aqueles números correspondiam ao absenteísmo da classe médica quando, na realidade, foram absenteísmos de servidores como um todo. Aqui observamos a culpabilidade da vítima. Mostra-se o número de procedimentos de investigação instalados por intermédio da ouvidoria e da corregedoria. Em 2014, foram instalados 61 procedimentos investigatórios. Desses, 53 foram arquivados, 110


quatro se transformaram em sindicâncias e quatro em processos administrativos disciplinares. O assédio à moral do médico tem sido violento. A Secretaria de Transparência obteve os dados sobre absenteísmo dos servidores com alcoolismo. Constava apenas um médico afastado por intoxicação alcoólica. No entanto, o Secretario da Transparência, em entrevista concedida à rádio Central Brasileira de Notícias – CBN – e a algumas redes de televisão, afirmou que os médicos de Brasília dão plantão embriagados. O impacto foi enorme. Tivemos que pagar a publicação de uma matéria em um jornal de ampla circulação nacional para contradizer tal declaração injusta. Tivemos o próprio Estado como agente dessa violência, desse assédio à moral dos profissionais em referência. Quando se instala um processo administrativo para investigar casos de violência nos prontos-socorros, em que pacientes agridem médicos e estes reagem, a situação se torna complicada, porque geralmente o médico é apontado como culpado. Por mais que ele esteja sobrecarregado, estressado, se reagir, o paciente passa a ser vítima. Temos, então, o Estado, na condição de investigador dos casos, que inverte a questão com a tese da culpabilidade da vítima, isto é, em que a vítima teve um comportamento indutor de violência. O Estado tem usado a culpabilidade da vítima de forma inversa, pois ele é responsável pelas más condições de trabalho, pela sobrecarga de trabalho, pelo adoecimento do médico. No entanto, aponta o comportamento de reação do médico como causa da violência. A ocorrência se concentra nos plantões noturnos, especialmente nas madrugadas. As médicas são os alvos mais constantes de agressões e ameaças. O cidadão ou a cidadã se sente mais à 111


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vontade ao agredir as médicas por sua vulnerabilidade física. Relatamos um caso ocorrido no Hospital da Ceilândia. Uma médica foi acusada de bater em uma paciente e jogá-la ao chão. O caso foi amplamente divulgado pela televisão, pela mídia nacional. Sabemos que, em verdade, a médica atendia sozinha no plantão. Havia duas pacientes na sala do pronto-socorro. A doutora foi solicitada para atender a um caso de parada cardíaca em outra sala. Foi atender ao chamado e, quando voltou, uma paciente fez-lhe reclamação. A médica lhe explicou que não poderia atender a todos porque estava sozinha. A paciente puxou a médica pelos cabelos e a jogou ao chão. Em seguida, ocorreu uma briga corporal em que a mãe da paciente se envolveu e ficou ferida. Foi à delegacia prestar termo de ocorrência contra a médica. Queixou-se de ter sido ameaçada, de que tinha sido vítima de agressão da profissional. O fato é que o próprio delegado inverteu a culpabilidade, arquivou a denúncia, mas, no boletim de ocorrência, indicou a médica como vítima da ocorrência. Quando chegamos ao hospital, a colega foi orientada a ir à delegacia. Quando chegou ali, a mãe da paciente já tinha feito a queixa como tivesse sido vítima. Até hoje, não conseguimos desmistificar esse caso. A doutora continua como autora daquela cena em que filmaram as duas no chão. A maior parte das agressões e ameaças contra médicos advém de mulheres. As agressões que partem de homens costumam chegar às vias de fato. O artigo 331 do Código Penal estabelece que desacatar funcionário público no exercício de sua função resulta em pena de detenção de seis meses a dois anos ou multa. Havia vários desses avisos espalhados na rede hospitalar. Mas isso causou reações do Ministério Público e esse alerta foi removido dos serviços. 112


Houve um paciente que foi a uma delegacia denunciar que estava sendo vítima de omissão de socorro, porque o médico não queria atender. Com a queixa, o agente policial foi ao hospital e solicitou socorro para o autor da queixa. O médico insistiu na identificação do agente, mas este considerou a atitude como desacato à autoridade, e o colega saiu algemado do pronto-socorro da Ceilândia para a delegacia. Ocorreram casos de ameaça de prisão e outras ocorrências de desconfortos contra os médicos no Hospital Santa Maria e no Hospital do Gama. Houve muitos pediatras desses hospitais que pediram demissão por motivo dessas violências. Reiteramos que o Sindimed provê ações como visitas a hospitais e centros de saúde durante todo o ano e observamos relatos de falta de policiamento, assaltos, consumo e tráfico de drogas. É oportuno relatar que a segurança funciona para proteção patrimonial, mas não física. Se ocorre um paciente brigar fisicamente com um médico, o policial não intervém para garantir a integridade dos contendores. Não é obrigado a se envolver. Todavia, se houver depredações, ele vai agir. Cobramos pela segurança física dos profissionais, sobretudo em casos de traficantes de drogas ilícitas. Alguns postos de atendimento têm sido assaltados. Ocorreram roubos de carros de colegas por não haver estacionamentos senão externos. As Unidades de Pronto Atendimento da Samambaia são localizadas em lugares onde há tráfico de drogas. Nas questões da construção das unidades hospitalares, não se levou em conta a segurança física dos profissionais que ali trabalham. O médico procura o Sindicato dos Médicos e recebe orientações sobre como efetuar as devidas reivindicações. Alguns colegas pedem demissão e outros solicitam retratação de quarenta para vinte horas semanais de trabalho. 113


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Um número elevado de facultativos pede demissão, principalmente os mais jovens. Começam a trabalhar para a Secretaria de Saúde. Todavia, com toda essa violência e insegurança, pedem demissão depois de curto período de trabalho. A incidência de demissão de colegas novos chega a 60% ou 70%. A retratação de quarenta horas também é enorme. Em eventos de desacato, agressão e ameaça, o Sindicato faz o registro em boletim de ocorrência policial. Em caso de um profissional se sentir ameaçado, ele deve pedir medida cautelar na própria delegacia para afastamento do agressor. Mas existem complicações. O agressor sabe onde o médico trabalha e tem acesso ao seu horário de trabalho. Se há litígios com o médico, o denunciado sabe quando o médico está de plantão, conhece o carro que o doutor tem. Já tivemos o problema de um colega sair escoltado do pronto-socorro de Planaltina. Se houver temor de perseguição ou de retaliação, o servidor deve pedir, administrativamente, sua remoção da unidade, mas é um problema conseguir remover o colega do seu local de trabalho para um mais distante dessa violência, dessa alegada ou comprovada perseguição. Procuramos verificar se o colega que está dando causa àquela versão de violência, na realidade, tem jornada tranquila e sem riscos. Há comportamento refratário da gestão pública em entender que o médico está extremamente fragilizado e exposto a essas situações de risco. Em reunião com o Secretário de Saúde, comentamos que, sem proteção e sem segurança vislumbramos a hora de médicos serem assassinados nos prontos-socorros do Distrito Federal. Com esse déficit enorme de profissionais e com essa sobrecarga de trabalho, não há como evitar atritos com os doentes. 114


Uma coisa é passar uma semana de plantão, outra coisa é passar duas, outra coisa é o ano todo, uma vida toda, ficar constantemente naquele estresse. Chega-se a uma hora – quem é psiquiatra sabe disso – em que o cidadão se descontrola. Esse é o panorama da violência nos hospitais do Distrito Federal.

ACAD. DR. ETELVINO TRINDADE. Como terceira palestra, o Acad. Dr. Augusto Cesar Costa vai falar a respeito do que compete ao gestor para tentar ajudar na resolução dos problemas devidos à violência no âmbito médico do DF.

ACAD. DR. AUGUSTO CESAR COSTA. Boa noite. Pincei algumas reflexões para acionarmos mais nossa criatividade e nossa experiência no sentido de ver qual é exatamente a responsabilidade do gestor. Em perspectiva mais moderna, a gestão é algo muito amplo e envolve vários setores. Sabemos que o universo da saúde não é onipotente. Nessa perspectiva, a primeira reflexão é sobre planejamento. Não é possível fazer gestão sem programações. Planejar é administrar as necessidades dos interesses e dos desejos porque o gestor tem que lidar com essas instâncias. É necessário trabalhar com um grupo de pessoas interessadas em fazer ou não fazer, porquanto há também o interesse de não realizar. Como gestores temos de andar dentro do balizamento da lei. O nosso caso são, mais especialmente, as lei n.o 1.112 e n.o 8.666, que tratam das licitações, dos contratos e dos servidores do Estatuto do Servidor Público. No caso, refiro-me à gestão pública. Viemos do século XX e entramos no século XXI com um bando de questões que envolvem a esfera da saúde. Considerei a problematização como primeiro item. 115


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Para refletirmos sobre a relação entre economia, indivíduo e sociedade temos as questões da globalização e do coronelismo diante da globalização. Vários fenômenos sociais ocorrem no mundo inteiro: as primaveras, as insurgências, os movimentos separatistas. Recentemente o Estado da Catalunha também requereu sua independência à Espanha. Enfim, não é só uma questão do Oriente Médio ou da Ásia que clama por identidade nacional. Essas questões causam problemas que vão refletir na área da saúde e em seus agravos. Desde quando começou o processo de globalização, temos observado mudanças no processo de produção, notadamente a migração dos grandes conglomerados. As grandes empresas vêm para países em desenvolvimento, notadamente do Oriente – China, Coreia do Sul. O Brasil começou a ter também um grande fluxo migratório dos países vizinhos ou do Caribe, que vem em busca de oportunidade, de emprego, de melhor perspectiva. Começa a vir, também, a produção do trabalho escravo. Isso traz paralelamente consequências do ponto de vista da saúde, da qualidade de vida e por aí mais. A questão dos direitos humanos envolve igualmente essa demanda como bandeira que veio do século XX e que, no século XXI, encontra-se muito por discutir, notadamente quando se fala da criminalidade, quando aparecem os direitos da pessoa que cometeu o crime e os direitos da pessoa que o sofreu. Esse debate é algo que vem crescendo em meio à sociedade. O direito humano de quem recebe o crime e as leis para quem faz crimes também tensionam a sociedade. A permanência da competição versus cooperação constitui outro fator que agrava as relações humanas e acentua o estresse porque vivemos em uma sociedade na qual, dessas bandeiras que vieram, uma emergiu com grande ímpeto – a bandeira do consumo. 116


Importa contemplar a perspectiva da existência, da condição humana, como o objetivo principal de consumir. Para consumir precisa-se de dinheiro, e este é preciso ganhar de alguma maneira, seja licitamente ou ilicitamente. Nesse panorama, o indivíduo emerge como único depositário dos direitos e, em cima dessa lógica de competição, em que os fins justificam os meios, o sentido do solidarismo e da cooperação cada vez estão mais excluídos da sociedade, da prioridade do convívio social, especialmente se observarmos a dificuldade que se tem hoje em criar consensos e a relação que isso tem com a judicialização. Desse modo, abarrota-se o sistema judiciário de processos e, às vezes, as pessoas não conseguem criar consensos sobre eventos banais. A altura do muro entre vizinhos pode ser um exemplo. Um quer dois metros, outro quer dois metros e vinte centímetros. Não se entendem e vão para o juiz. De acordo com a lógica de cada indivíduo, seu direito está acima do direito dos outros, porque o direito dele seria melhor que o direito alheio. O indivíduo não está interessado em negociar, em compor. Está interessado em prevalecer, em vencer. Desse modo, essa lógica da competição permeia toda a sociedade e tensiona também o ambiente social dos próprios indivíduos. O ecossistema apresenta o grande dilema de como fazer desenvolvimento com sustentabilidade. Os meios de produção têm sido cada vez mais nefastos às reservas naturais, ao ambiente natural e criam um mundo cada vez mais insalubre. Outro evento que tem muito a ver com a economia é o crime organizado. Ultimamente, o crime movimenta enorme quantidade de dinheiro. Este migra de um lado para outro, muito mais por meio da informação digital. Não circula dinheiro em espécie. De um dia para outro, o crime consegue lavar dinheiro em tudo que 117


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é canto, e isso também traz questões relativas à saúde, porque fomenta também violência e outros fenômenos desfavoráveis. Em relação à saúde, explicitamente entre o indivíduo e a sociedade, temos a internacionalização das doenças. Desde a eclosão do HIV, no começo dos anos 80 até hoje, pelo menos, de seis em seis meses aparece uma doença internacional. Não sei se há aqui uma questão midiática ou de mercado. Agora, estamos diante do Ebola, uma doença que está sendo internacionalizada com o alerta de todos os sistemas de vigilância sanitária do mundo sobre sua força de contaminação. O consumo de drogas ilícitas está cada vez mais ascendente. Como lidar com uma questão que tem a ver com uma sociedade que se dispõe a usar drogas e um grupo de pessoas que se habilita a vender drogas? Não é só uma questão de mercado, porque existe propensão de muitas pessoas de usar droga de qualquer natureza. Que sociedade é essa que estamos construindo ou que já construímos, em que as pessoas precisam usar qualquer tipo de substância que, de alguma maneira, as tire do sistema, que as deixe alienadas ou transitoriamente alienadas? As questões relacionadas aos tradicionais seguros, seguros de saúde, medicamentos e equipamentos, interferem diretamente na assistência à saúde e no planejamento desta do ponto de vista público e privado, no financiamento dessa assistência. Temos aí pesquisa científica e tecnológica versus mercado. Falo a favor da pesquisa científica e tecnológica. Se não houvesse tecnologia, pesquisa científica e intervenção de exames, não teríamos hoje condição de antever distúrbios dos quais o organismo humano há muito vem sofrendo. A questão é como a pesquisa científica e tecnológica vem servindo a uma lógica de mercado, ou seja, qual o tipo de 118


medicamento que vai ser pesquisado e desenvolvido, que vai atender a um determinado grupo de pessoas, que vai produzir determinada quantidade de ganho, de lucro, interessando-se, aí, as empresas que fabricam os medicamentos. O modelo assistencial é cada vez mais oneroso para o Estado. Nesse sentido, contempla-se a questão da atenção primária, que tem alta complexidade porque lida com tudo o que aparece, com a interrelação das doenças e das formas de adoecer. Nos hospitais terciários, existe alta tecnologia dispendiosa. A questão primária, secundária e terciária representa a escalada da tecnologia. A complexidade se faz na atenção primária, diante de uma gama de situações sanitárias, do ambiente natural, das situações relacionadas à criminalidade, à questão de desemprego e tudo o mais. É oportuno abordar a questão das relações entre profissionais e pacientes e a tecnificação da assistência. Segundo informação de cunho pessoal, na Austrália, os médicos evitam tocar no paciente para prevenir-se de processos por assédio sexual e por causa da impessoalidade da relação do doente com os profissionais. Assim, a tecnificação da assistência interfere na relação entre profissionais e pacientes quanto à questão do bom acolhimento. Sabemos que o acolhimento é uma situação basicamente humana. Acolhemos uma pessoa com seu sofrimento, escutamos suas queixas, suas pretensões, suas dúvidas. A base do acolhimento é, justamente, a disponibilidade do médico em ouvir o doente. No presente, a assistência é dinâmica e frequentemente requer abordagens intersetoriais e interdisciplinares multiprofissionais para obtenção de pareceres especializados e exames complementares. 119


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A questão da judicialização da saúde apresenta demandas surpreendentes. Recentemente, um medicamento foi mostrado em um programa de televisão com divulgação nacional. No dia seguinte, foi encaminhado um pedido ao SUS para que o remédio fosse cedido ao paciente que dele necessitava. Tendo em vista a obediência ao rito legal, há exemplos de decisões judiciais a serem cumpridas em 48 horas, relacionadas a tarefas impossíveis de serem cumpridas naquele prazo. Por exemplo, a internação compulsória é um procedimento assegurado pela Lei n.º 10.216 – originariamente de 2001 – para pacientes com transtorno mental que não estiverem de acordo com a própria internação. Quando determinada pelo juiz, a internação involuntária torna-se compulsória. Isto posto, quando da eclosão do crack, foi trazida a Lei em referência, artigo n.º 6, para legitimar essas internações. Nesses casos, o juiz determina internação compulsória em 48 horas. Para fazer essas hospitalizações é imprescindível haver previamente exame médico e todo o ritual de exames complementares para legitimar a indicação, por exigência da própria lei. Esse procedimento exige preparos especiais para realização do diagnóstico e do tratamento adequado. É necessário dispor de aparelhamentos adequados e frequentemente sua obtenção demanda licitações, processos oficiais pertinentes, planejamentos e todo um ritual que legalize o procedimento e ampare o gestor e a instituição. A atividade do gestor, hoje, é muito complexa porque não constitui somente uma questão de burocracia, com despachos, assinaturas e carimbagens. Tudo é muito mais dinâmico. 120


O gestor precisa de normas de planejamento. Atualmente, o gestor tem de se deslocar, ir para a ponta do atendimento e verificar o que está acontecendo ali. No Distrito Federal, temos que andar por todas as unidades assistenciais e verificar as necessidades de cada uma. Em seus planos de ação, o gestor tem primeiramente que pensar dentro dos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde, na inclusão da solidariedade e na cidadania como princípio que vai nortear a gestão que ele terá de cumprir, porque vai precisar ajuntar pessoas, aglutinar equipes, fazer tais equipes se relacionarem com os grupos sociais e estes, entre si; fazer, enfim, intervenções que alavanquem a saúde dentro do plano coletivo, populacional. A ética implica sentido do respeito às diferenças com inclusão das subjetividades, porque não se elaboram planejamentos se não for incluído o caráter subjetivo. Segue um exemplo. Construímos caminhos, calçadas. No entanto, a população não anda pela calçada, mas por cima da grama, porque assim é mais rápido para chegar ao ponto desejado sem dar voltas pela calçada. Nesse particular, o caráter subjetivo tem a ver com o conforto que a pessoa tem, com sua economia de energia. De fato, dispomos de faixas de pedestre, mas observamos ser preciso andar cem metros para alcançá-las e depois atravessar os cinquenta metros da rua. Apesar do risco de atropelamento, preferimos atravessar a rua fora da faixa de pedestres. Por essa razão, a subjetividade tem de ser considerada nos planejamentos. É necessário saber onde vai ficar a faixa de pedestre, ou seja, procurar o lugar onde as pessoas se acostumaram a atravessar e não aquele que a engenharia de trânsito escolha e determine do ponto de vista técnico. 121


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Desse modo, para a inclusão dessas subjetividades, levam-se em consideração as diferenças culturais da população e, no Distrito Federal, temos culturas diferentes com rituais, maneiras, códigos de comportamento, de relacionamento, que são distintos em cada região administrativa. As intervenções políticas têm a ver com a articulação entre os políticos constituídos e a sociedade – sobretudo por meio dos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e ainda do Ministério Público. Cada intervenção tem sentido técnico. Temos que pensar em termos de clínica ampliada, isto é, que inclua todas as especialidades, com um olhar sistêmico em cima do paciente. Isso é um desafio. Para termos noção do indivíduo em sua complexidade, há que haver entendimento da integralidade dele, o que é um dos princípios do Sistema Único de Saúde. O entendimento da intervenção de natureza jurídica tem a ver com atualizações da legislação, com vistas à garantia do direito. Nesse contexto, os cálculos no âmbito da responsabilidade fiscal têm que ser revistos, porque estão enfraquecendo o SUS. Nesses cálculos, entram indivíduos ativos, bem como aposentados e pensionistas. Então, para fazermos novas contratações não podemos considerar como gordura os aposentados e os pensionistas. É ainda preciso considerar a responsabilidade sanitária na elaboração dos cálculos. Manter a lei e a responsabilidade fiscal é indiscutível. Cabe ao gestor ter responsabilidade com o próximo gestor. A questão orçamentária e financeira tem a ver também com a revisão do orçamento e a viabilização da execução, porque, às vezes, há dotação orçamentária, mas não se consegue fazer execuções em razão de formarem ilegalidades. 122


A gestão deve ser colegiada para dividir responsabilidades e prover que os resultados sejam buscados em ação comum. A capacitação permanente é requisito óbvio. Há de haver controle pela avaliação da eficiência da gestão. Avaliam-se os resultados obtidos, o que foi atingido dentro do que se pretendeu realizar, os motivos das falhas nas execuções ou das não execuções.

AUDITÓRIO Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. Em relação ao problema dos acidentes de trânsito, poderíamos discutir sobre a importância do bom transporte público. Apesar de toda a propaganda que se fez em relação aos ônibus grandes, não se resolveu o problema do transporte coletivo. Além disso, há anos, não se constrói nenhuma estação de metrô. Há mais interesse no desenvolvimento da indústria de automóvel. É oportuno observar que vai se deixar de vender carros se houver otimização do transporte público. Além disso, deve ser considerado que os endividamentos das pessoas que compram e possuem carros são altos e permanentes com sua manutenção material e com a renovação periódica das compras de veículos. O dinheiro poupado com o uso do bom transporte público poderia ser investido pelo próprio cidadão em sua capacitação e aperfeiçoamento cultural e laboral. As sobrecargas de trabalho para cumprir pagamentos de carros aumentam o estresse e o número de doenças consequentes. Assim, esse problema de acidentes de trânsito não parece ter solução, e a tendência é agravar. Em relação às motocicletas, cada vez mais temos incentivos ao uso de motos sem que haja preparo adequado dos condutores. 123


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Ao usar as ruas em razão de meus afazeres diários, de vez em quando fico vendo a hora em que eles vão me levar um braço ou vão morrer em decorrência de suas falhas. A contribuição que deveríamos levar em conta para resolver esse problema da violência no trânsito é investir em transporte público. Às vezes, só a visão do tráfego atual nas ruas nos dá vontade de entrar em desespero. Como resolver a questão da hostilidade de pacientes contra os médicos, do atendimento precário por falta de profissionais para a adequada assistência à população?

Acad. Dr. Marcos Gutemberg. As medidas adequadas devem ser tomadas porque existe imposição legal. Mas não se tem o cuidado com os elementos envolvidos. Temos, como exemplo, a Lei da Transparência. Publicam o nome do médico servidor ao lado do valor de seu salário. Está tudo ali em uma publicação elaborada pela Secretaria da Transparência. Isso nos traz um problema grave porque qualquer cidadão sabe quanto o doutor ganha, quer dizer, não tiveram o cuidado, por mais que se pedisse, de não publicar o nome do médico servidor. Constar o nome do médico significa expô-lo à violência. Outros serviços fazem isso, mas publicam apenas o cargo e o salário do servidor. As normas têm que ser cumpridas, mas com o cuidado de proteger quem está envolvido para não fragilizá-lo, especialmente em um ambiente de violência.

Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. Em relação à última palestra, parece que não temos uma escola para formar gestores e que, assim, não temos verdadeiros gestores. As pessoas não 124


poderiam ocupar a direção de um hospital sem ter preparo administrativo adequado. Quando se assume a direção de qualquer unidade de assistência na área da saúde, é necessário ter feito um curso de administração específico para a função. É preciso exigir experiência, capacitação especial e vocação por parte das pessoas que pretendam assumir um cargo de direção no campo da saúde.

Acad. Dr. Simônides Bacelar. Faço um comentário a respeito do tema de Dr. Augusto César. No atendimento a paciente nervoso e agressivo, o médico fatigado é fonte de agressividades reacionais. Poderia haver promoção, por parte de gestores, de cursos a respeito de como os médicos poderiam lidar com pacientes agressivos, como parte da estrutura profissional do próprio médico com vistas a diminuir a possibilidade de agressões. Sabemos que o médico precisa ter essa formação, pois o doente não é paciente profissional. É importante que o médico tenha conhecimentos sobre o comportamento dos pacientes como seres humanos angustiados por suas doenças. Existem livros sobre como entender o paciente e seus comportamentos. Brian Bird, médico da Marinha norte-americana, em seu livro Conversando com o Paciente, recomenda não dizer a uma criança que a injeção não vai doer, pois ela sabe que vai sentir dor. Ele preconiza dizer à criança que vai doer, mas precisa tomar injeção porque é para o bem dela e que ela pode chorar à vontade, pode gritar, porque a criança não tem superego, e isso tem funcionado, porque a criança chora, grita, mas deixa o braço estendido para tomar injeção. Que poderíamos fazer a respeito de preparo médico do ponto de vista psicológico, psicanalítico e até psiquiátrico, diante do paciente agressivo? 125


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Acad. Dr. Augusto Cesar. Em referência a gestão, já passou da hora de termos uma escola de gestão em saúde. Talvez, a Escola de Ciências da Saúde da Fepecs pudesse abrir um curso pós-graduação, porque este tem que ser de nível superior. Seria uma escola de gestão que fosse destinada a todas as categorias da área da saúde, pois a gestão é exercida para o corpo dos servidores da saúde em sua perspectiva profissional. O gestor, na área de saúde pública ou privada, vai se fazendo no dia a dia, no acerto e no erro. Se for interessado, poderá fazer uma especialização na Fundação Getúlio Vargas ou em outra instituição dessa natureza. Sobre a questão da relação médico-paciente, sobretudo em relação a fatores de estresse no trabalho médico, tínhamos um princípio básico que antigamente diferenciava a saúde pública da saúde privada porque a relação não era igual, ou seja, antigamente, no âmbito privado, a pessoa tinha o que estava buscando. Todos querem ser ouvidos pacientemente e ser bem tratados não só do ponto de vista da saúde física e mental, mas do ponto de vista do respeito, da cidadania, da autonomia, da dignidade. O indivíduo que procura o médico, por causa de um sofrimento dele mesmo ou de um membro da família, quer ser bem acolhido. Os serviços privados também trabalham com a lógica da economia do número de funcionários. Às vezes, utilizam um só plantonista no pronto-socorro para atender uma sala superlotada de pessoas. Temos também a questão do uso dos órgãos de defesa do trabalho médico, como os sindicatos, os CRMs, o CFM, a Associação Médica Brasileira. Nesse contexto, esses órgãos poderiam contribuir amplamente e atuar mais intensamente no seio da população como fonte de pacientes. 126


Quanto ao paciente hostil, este vai agredir o médico esgotado, que não tenha disponibilidade para dedicar cinco minutos para ouvir o paciente. Se o médico não está tão preocupado em esgotar a fila, se quer ir logo aos finalmentes, fazer o exame clínico sempre sentado e finalizá-lo com prescrição de um analgésico, de um anti-inflamatório, certamente vai sofrer uma série de consequências, inclusive com o risco de cometer um erro médico. Se conseguir escutar o doente e lhe conceder bom tratamento, a relação tem cinquenta por cento de possibilidade de dar certo.

Acad. Dr. Etelvino Trindade. Em alusão à palestra sobre acidentes de trânsito, creio que uma das coisas que a Academia pode tirar dessa reunião é apresentar ao Governo mais soluções educativas. Já que os acidentes são muito mais danosos e graves com os transportes individuais do que com o público, esse seria um mote para que o transporte público fosse mais bem aquinhoado com investimentos e com melhores e mais condizentes meios de transporte. É oportuno que o médico seja menos apontado como autor das desavenças com os pacientes que ocorrem no seio da crise existente na área da saúde e mostrá-lo como pessoa que faz parte dos processos resolutivos e não como problema. Expor em painéis públicos o número inexato de plantonistas sem indicar alocações por especialidade não contribui para o bom funcionamento dos serviços assistenciais voltados ao doente. A publicação de salários médicos cria também vieses. Para pessoas que ganham bem menos tais salários podem parecer exageros. É preciso explanar as despesas que o médico tem com seus intensos e vitalícios estudos tendo em vista a elevada 127


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complexidade de suas tarefas e suas responsabilidades ao cuidar de vidas humanas. Não é com demandas advindas de insuficiências do sistema de assistência que se criam bem-estar e equilíbrio social. Eventualmente médicos também cometem falhas, sobretudo quando se submetem a condições laborais particularmente estressantes. Quanto à parte da gestão, ficou muito claro que não se pode montar um sistema assistencial adequado quando o gestor não é formado para ser gestor, que é escolhido por simpatias e mesmo apenas por competência técnica. O técnico em saúde não será necessariamente um bom gestor. Não que uma coisa seja excludente da outra, mas aquele que vai entrar nesse sistema tem de fazer face a demandas especialíssimas que tratam da vida humana. Talvez, isto seja algo que a Academia possa mostrar e ainda evitar a hipocrisia social em que se pode exigir que seja justo um gestor de hospital ganhar quinhentos reais a mais para estar quarenta horas por semana à disposição de cuidados exclusivamente administrativos e que tenha alta competência e elevado preparo para fazê-lo.

Acad. Dr. Augusto Cesar. Vamos encaminhar ao Governo a sugestão desta Academia de ser criado um curso superior de gestão em saúde e que a pós-graduação nessa área seja de cunho profissional. Oportuno acrescentar que é preciso o comissionado ter clara compreensão da quantidade de problemas que aparecerá durante sua gestão e do sacrifício do ponto de vista da sua vida profissional privada, familiar e social. A gestão está muito mais vinculada a um idealismo do que a uma questão remuneratória porque esta última não condiz com as dificuldades e as responsabilidades da função. 128


Acad. Dr. Marcos Gutemberg. Uma questão que não comentamos em relação ao trânsito é a qualidade do asfalto. As irregularidades são impressionantes. No Distrito Federal, existem acentuadas ondulações. Não se consegue sentir conforto no veículo que dirigimos por mais confortável que ele seja. Poderemos perder o controle da direção se não conhecermos bem o caminho e dirigir com pressa. É preciso conhecer levantamentos a respeito de acidentes causados pelas anormalidades do asfalto.

Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. Tais irregularidades nos chamam à atenção em todo o País. Em frente do prédio da Corregedoria Geral da União, observa-se uma via adequadamente asfaltada como resultado de cálculos e pesquisas há quinze anos. Conserva-se sem estragos até hoje, pois o asfalto foi feito com técnica de primeiríssima qualidade. Foi construída uma capa asfáltica muito espessa como ocorre em países desenvolvidos. Em geral, no Brasil, praticamente a capa asfáltica é uma película, que frequentemente se destrói no período das chuvas.

Acad. Dr. Marcos Gutemberg. Quanto à gestão, houve época em que se fez curso de formação de gestores, cursos de pós-graduação. Tenho colegas que participaram desses cursos. Desses gestores, não conheço nenhum que tenha sido aproveitado, porquanto ocorrem as indicações políticas. De vez em quando, fazemos cursos de imersão, como as do Conselho Nacional de Saúde, de suporte avançado de vida no trauma, de videolaparoscopia. Enquanto não se chega a uma escola de administração pública e de administração hospitalar, por que não se faz um curso de imersão em gestão? 129


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O cidadão que vai ser gerente de um centro de saúde por indicação política poderia passar previamente por um curso para gestores e aprender conceitos de gestão. Sabemos que, frequentemente, o pessoal indicado não tem conhecimentos básicos de relação humana com os servidores. Como gestores de centros de saúde ou de hospitais, não sabem lidar com o ser humano. É difícil compreender essa situação comum de despreparo. Tenho um exemplo interessante. O médico terminou seu curso de residência médica e fez várias histerectomias por meio de laparotomia em um hospital. Fomos conversar com o diretor porque vieram se queixar ao Sindicato a respeito dessa conduta. O diretor comentou que o médico não teria que fazer histerectomias por laparotomia, pois hoje essas operações são feitas por videolaparoscopia. Gostaria de saber o que vai acontecer quando o doutor precisar converter sua conduta de vídeo para laparotomia. Não julgo ser bastante fazer um curso de pequena carga horária para ser chefe na área de saúde. Há outros aspectos a considerar, o que importa ao sistema de gestão. O colega que passa em concurso público para ser médico entra para trabalhar no serviço de pronto-socorro. Antes, faz um curso de atendimento avançado em trauma (ATLS) para socorrer o cidadão porque sai da faculdade e não sabe ainda intubar um paciente. Não custa muito fazer cursos de imersão como medidas para seu aperfeiçoamento enquanto se implantam cursos definitivos sobre síndromes de insuficiência respiratória aguda, por exemplo. A medicina suplementar está diante de sérios problemas nos prontos-socorros de hospitais privados. A qualidade de assistência nesses atendimentos precisa melhorar. A medicina suplementar como ente de natureza privada não poderia representar 130


assistência suplementar às deficiências dos serviços públicos. O orçamento para a área da saúde tem diminuído ano após ano porque se utiliza o número de usuários da medicina suplementar com o conceito de que ele está bem atendido quando, na realidade, não está. Hoje se compra um plano de saúde, sobretudo, o que só dá direito a atendimentos de pronto-socorro. O médico está sendo vítima desse processo porque a mesma situação de fragilidade pela qual passam os colegas dos prontos-socorros e hospitais públicos e privados. Temos que avançar muito nesse campo. Fazemos duas paralizações por ano pelo Movimento Sindical com a Associação Médica e o Conselho Federal de Medicina. Denunciamos as deficiências assistenciais básicas e pleiteamos prontas melhorias necessárias a serem feitas com urgência. Não conseguimos avançar porque as reivindicações têm que passar pelo Congresso Nacional, e seus trâmites são lentos e complexos. Nesse âmbito legislativo, temos o caso das multas cobradas dos entes que operam os planos de seguro de saúde. Mas surge a emenda que cria dispensa do pagamento de mais de dois milhões de reais quanto a dívidas relativas a esses planos. Desse modo, o quadro é bem mais complexo e é objeto de outra discussão apresentada em plenária anterior nesta Academia.

Acad. Dra. Lucimar Cannon. Segundo evidências internacionais, a questão do trânsito no Brasil deve piorar porque o número de automóveis vai aumentar à medida que formos crescendo e nos tornando um país com maior poder econômico. É claro que se devem assegurar medidas para aprimoramento do sistema de transporte público. 131


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Como bons exemplos, nos Estados Unidos, existem os veículos de alta ocupação. Além disso, estimula-se a condução de dois ou mais ocupantes nos carros particulares e com isso estes têm direito a usar uma faixa de mais velocidade para chegarem antes daqueles que acolhem apenas um condutor. No Brasil, as pessoas têm receio de dar carona porque a polícia prende o condutor que ganha dinheiro ao fazer transporte viário. Desse modo, o transporte solidário no Brasil não se desenvolve. Parece que o futuro é sombrio quanto a isso. Com relação à violência contra médicos, declaro que já fui vítima de insultos e ameaças quando eu estava em fase avançada de gravidez. Quase apanhei dentro do Hospital de Sobradinho porque havia outra urgência muito mais séria em nossa frente, e o marido da senhora a ser atendida queria me agredir fisicamente. Com referência à questão do relacionamento médico-paciente, fiz uma palestra na Associação Médica de Brasília sobre judicialização. Afirmei haver forte competição entre a Justiça e a Saúde. A Justiça está ordenando a Saúde. Há que se refletir sobre a relação médico-paciente. Penso que os médicos mais consolidados na profissão não mudarão muito seu estilo de atenção. Mas é imprescindível constar obrigatoriamente sociologia e psicologia social na formação médica. É importante entender que o meio social e as condições psíquicas do doente têm profunda influência no tratamento de suas doenças. As orientações médicas precisam ser globais e não apenas voltadas à doença em si. No Rio de Janeiro, o professor Danilo Perestrello citava, em suas aulas, ensinamentos contidos em seu livro A Medicina da Pessoa, a respeito de como lidar com o paciente como ser humano. Um exemplo que deveria ser seguido pelos que ensinam e aprendem medicina. 132


Com relação à formação do gestor, não creio que ser médico signifique automaticamente e definitivamente ser gestor. Fui alçada ao cargo de gestora na área da Previdência Social e coordenadora dos programas de Saúde da Previdência Social. Ali, estava grande parte do dote orçamentário da área da saúde. Para isso, tive de fazer muitos esforços, com extensos e complexos estudos sobre saúde pública para atuar com eficiência nessa área, o que se sobrepôs à minha formação cirúrgica especializada. Nesse sistema, tem-se que especialmente refletir sobre como resolver o problema que ocorre quando há alternância de governo. Tudo muda em todos os escalões das secretarias e dos ministérios porque não há nenhuma carreira de gestão. Desse modo, não se aprende a fazer saúde pública. A carreira por mérito tem que ser instituída neste País. Acad. Dr. Edno Magalhães. Completamos hoje este ciclo de palestras. A diretoria acadêmica vai reunir os impressos com nossas palestras para formar uma posição da Academia de Medicina de Brasília. Obrigado.

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PALESTRA ECONOMIA E MEDICINA Sessão Plenária de 3-11-2014

Acad. Dr. Edno Magalhães. A Academia vem tratando de assuntos que têm propiciado debates, mas faltava saber como iríamos resolver problemas de economia e medicina. Dra. Flávia Poppe Munhoz é consultora em Economia da Saúde na OPAS e se encaixa exatamente no que estava nos faltando. PALESTRANTE DRA. FLÁVIA POPPE MUNHOZ. Muito obrigada. Recomendo verificar um filme de alguns minutos que ilustra esse tema, acessível em http://www.youtube.com/watch?v=jbkSRLYSojo. Um professor sueco, Hans Rosling, trabalha com múltiplos dados, metadados, estatísticas e começou a fazer umas animações de dados históricos sobre a evolução da humanidade no que diz respeito à esperança de vida. Essa perspectiva é muito positiva, embora tenhamos no dia a dia a sensação de que as coisas não melhoram. A humanidade tem melhorado muito graças à medicina e a uma série de políticas sociais desde 1810. Focaliza-se a fase final da Segunda Guerra Mundial com as questões da elevada taxa de óbitos, epidemias e do surgimento do estado de depressão econômica. Tudo isso se relaciona com a esperança de vida. 135


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Existe relação entre ciência, economia e medicina? Economia é um conjunto de atividades desenvolvidas com vistas à produção, à distribuição, ao consumo de bens e aos serviços necessários à sobrevivência e à qualidade de vida. A medicina é definida pela Organização Mundial da Saúde com um conceito da medicina tradicional, referindo-se a práticas, abordagens e conhecimentos, incorporando-se conceitos físicos e mentais, técnicas manuais e exercícios aplicados, individualmente ou combinados, a indivíduos ou a coletividades, para tratar, diagnosticar, prevenir doenças e visar à manutenção do bem-estar de todos. Quando nos referimos ao bem-estar, às políticas sociais e à economia, começamos a encontrar algum tipo de relação entre esses campos. Quando pensamos em economia da saúde das pessoas, cada parte desta fornece informações sobre um todo. É preciso olhar de um ângulo especifico para conseguir ver o todo. Para falar de economia e medicina precisamos usar determinados ângulos específicos de observação e encontrar proximidades entre esses dois campos do saber. Se o ângulo não for o melhor, vamos deixar de ver o todo e corrermos o risco de ver coisas não muito bem definidas. Existe a própria dificuldade de definir saúde porque esta é simultaneamente causa e consequência, um encontro mais complexo. Suas questões decorrem de fatores genéticos e ambientais, tipos de trabalho que podem ser nocivos à saúde, condições sociais, falta de saneamento, aglomeração de pessoas, estresse no seio da família. Tudo isso tem impacto direto na condição de vida e de saúde das pessoas. As condições de vida é um determinante do desenvolvimento das nações, um dos principais indicadores que permitem avaliar o quanto as nações são desenvolvidas. Ao mesmo tempo a saúde 136


determina também o grau de dependência entre as gerações e entre situações, como guerra, mutilações, terceira idade, deficiências. Se não cuidarmos adequadamente das pessoas, haverá consequências mais sérias. Haja vista a quantidade de doenças decorrentes de comportamentos não saudáveis. O desempenho profissional e a produtividade dos recursos humanos são um dos problemas econômicos de nosso país. Não ter população saudável com boas condições de bem-estar compromete o grau de produção na economia. Outro ângulo de interesse são os seguros de saúde e da gestão do risco à saúde. Aqui, temos as pessoas sadias que fazem medidas preventivas e promovem hábitos de educação profilática. A parte do doente sintomático junto às bases da detecção precoce de moléstias, da realização de exames complementares, enfim, é uma fase muito importante que exige cuidados especiais para diminuir o risco que vem da fase aguda. Temos os casos que passam a serem doenças crônicas com possibilidades de provocar estados de incapacidade. Estes são também ângulos de um todo. A medicina, a saúde e a economia criam a perspectiva de ganhar o máximo nessa fase inicial para podermos financiar mais tarde as doenças que costumam ser mais caras com a idade e a cronicidade. Outro ângulo é o da organização dos serviços de assistência à saúde, o que consome mais dinheiro, o ambiente em que há mais conflitos de interesses. Nesse ambiente, estão muito bem plantados interesses específicos, muitas vezes antagônicos. Aqui, o estado e as pessoas aplicam muito dinheiro. É onde os senhores, médicos, atuam diuturnamente. Essa parte é muito estudada pelos economistas. Dois autores franceses, Ariel Béresniak e Gérard Duru, fizeram uma 137


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simplificação por meio de uma visão mais compreensível das disciplinas não familiarizadas com as especificidades desse tema. Consideram que o sistema de saúde tem peças de demanda, ou seja, as pessoas que usam os serviços, a oferta de serviços, as pessoas e os profissionais que ali atuam, os fluxos financeiros, como pagamentos, remunerações, e como as pessoas chegam ao ambiente assistencial. Essa visão simplifica a compreensão do todo assistencial. Os sistemas alemão e o inglês apresentam um papel do estado muito diferente do nosso atualmente. Nesses sistemas, o estado define regras, mas não interage diretamente na organização dos serviços de assistência. Lá, existem seguros e associações de médicos intimamente ligadas aos seguros, no sentido de definir preços, de participar de toda a organização dos serviços. A população tem acesso direto a esses benefícios por uma entrada basicamente ordenada entre a atenção primária, com generalistas e especialistas, e os hospitais, sempre com a possibilidade de ter setor público e privado convivendo dentro da regulação por territórios feita pelo estado federativo. Na Inglaterra, é diferente. Conta-se com a autoridade distrital de saúde, e o estado entra diretamente na organização dos serviços. Ali, os serviços privados passam a ser complementares. Neste país, ocorre o National Health System, que se assemelha a nosso Sistema Único de Saúde. Aproxima-se do desenho em que governo e estado estão intimamente ligados à provisão de serviços médicos. No Brasil, é enorme a quantidade de pagamentos que, diretamente ou indiretamente, a população sofre para ter acesso à saúde. Os impostos financiam o SUS para todos. Apenas 25% de nossa população compra diretamente planos de saúde, mas o 138


dinheiro que se desembolsa e se paga diretamente ao provedor assistencial constitui apenas 30% do gasto total da saúde pública. O gasto privado chega a 55% do total, e o público, 45%. A população desembolsa muito dinheiro com o gasto privado, basicamente com os medicamentos. Segundo o Sistema de Informação do Orçamento Público da Saúde (SIOPS), do Ministério da Saúde, o governo dispende 4% do Produto Interno Bruto (PIB) com a área da saúde. A contribuição da área federal é de 43 a 44%. A área estadual contribui com 27% e, desde 1988, especialmente 1990, com a lei que regulamenta o SUS, os municípios vêm arcando com responsabilidade crescente com os gastos da atenção à saúde, e sua contribuição é de 0,82% a 1,24% para o PIB. Com 4.800 municípios no País e com essa responsabilidade delegada aos prefeitos pela assistência à população no campo da saúde, estamos diante de um tema que merece discussão do ponto de vista do sistema assistencial como um todo. Além disso, quase todas as empresas contratam serviços de seguros privados de saúde. Por meio de um prêmio especifico a população também compra planos de seguro de saúde. Por intermédio das empresas, os trabalhadores que têm carteira de trabalho assinada e os empregadores se cotizam para a manutenção do sistema de seguridade social, que os protege em caso de invalidez, acidente de trabalho e aposentadoria. Em economia, conseguimos ter um ângulo que inclui médicos, medicina, enfermeiros, recursos humanos, tecnologias, medicamentos, indústrias, governo, política, instituições, comportamentos e tudo que interfere no sistema de saúde. Com parte da minha experiência passada em atenção primária coordenamos todo um modelo assistencial em que 139


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buscávamos delinear um sistema de acompanhamento de doentes crônicos. Observamos que havia grande quantidade de pessoas que chegavam ao serviço médico. Isso me causou a sensação de que bons profissionais eram verdadeiros garimpeiros, pois as condições para conseguirem detectar um caso que efetivamente merecia ser tratado com mais cuidado em meio a tanta coisa que entram no serviço por falta de opção. De fato, a quantidade de dramas sociais, de problemas no ambiente de trabalho, de problemas familiares que coexistem no ambiente de atendimentos pouco tem a ver com doenças, mas com problemas sociais não passíveis de um diagnóstico médico, não próprios da ciência médica. Em nosso sistema de saúde, o SUS está fortemente apoiado no setor privado. Em alguns casos, há uma espécie de competição porque ambos fazem as mesmas coisas. Diferente da Inglaterra, por exemplo, em que os seguros privados estão ali para complementar ou dar algum tipo de conforto. Consideram-se a questão das filas e alguns tipos de situações em que o setor privado encontra oportunidades de atuar. Gostaria de declarar meu apoio ao SUS como política de Estado. É uma das políticas mais bem sucedidas em nossa sociedade, uma política universal de direitos que nosso país conquistou nos últimos anos. Outro passo que a economia vem dando em direção à medicina e à saúde é o fato de, desde 2000, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ter seu trabalho de contabilidade nacional absolutamente reconhecido. É um trabalho inconteste do ponto de vista das metodologias para fazer contabilidade, calcular o PIB e outras atividades de sua competência. Desde 2000, o IBGE trabalha com o que se chama Conta Satélite em 140


Saúde e, em seu contexto, a economia começou a contabilizar o aspecto positivo da saúde pela primeira vez. A área da saúde sempre foi vista como um item de gastos, motivo de tensão entre quem libera os recursos e quem atua nos serviços de atenção à saúde. Os economistas começaram a entender que não é bem assim, que a saúde também tem um fator extremamente positivo para a economia. Contabilizam tudo o que é produção associada. Por exemplo, o gás que a White Martins fabrica, os medicamentos, as vacinas, tudo entra como produção especifica e assinala a saúde como contributiva para o PIB. Segundo dados que vêm saindo há dez anos, a área da saúde contribui com algo em torno de 6% do PIB, e o nosso está em dois trilhões de reais. Isso é a força da saúde olhada por um aspecto que é, a meu ver, um bom tema para discussão, e esse discurso tem que ser em favor de melhores condições de saúde e não para favorecer a indústria da saúde. Do ponto de vista da proteção social, o Brasil não está tão mal em termos de sistema, pelo menos em concepção de seguridade social e recursos utilizados. Quando pensamos em destinar mais recursos à saúde, isso nos parece uma questão em que não cabe discussão. A maioria dos países que tem sistema público de saúde gasta, no mínimo, 6% do PIB como gasto público. O Brasil gasta quase 9%. Se temos um sistema universal, temos que ter mais verba. Não é possível pretender ter um sistema universal como o SUS com 4% do PIB. A questão é de onde se vai obter o dinheiro. A questão não é dos economistas, é de âmbito geral, porque quem vai abrir mão? Temos um teto de despesas e não podemos fabricar 141


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dinheiro, pois vamos sofrer mais adiante com a desestabilização. Este é um bom ponto para refletirmos. A quantidade de gasto público está fragmentada e distribuída entre muitas outras pastas, o que faz a questão de haver mais recursos para a área da saúde ficar cada vez mais difícil. Isso se compara a uma casa de horrores com muitos espelhos em que não se sabe por onde começar. Tivemos a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, CPMF, que depois caiu. Veio uma discussão para que se criasse um novo imposto para o sistema da saúde. Não sei se vale a pena. Outro ângulo que traz provocações é como podemos pensar em macroindicadores sem alterar os gastos. Para os economistas os macroindicadores permitem fazer relação entre as grandes variáveis da economia. É muito difícil medir quanto cada um deles contribui para o resultado geral da saúde, no aumento da expectativa de vida, na diminuição da mortalidade infantil. Nas determinantes sociais, existem muitos fatores que desembocam em saúde, ou seja, melhor grau de educação, melhor renda, saneamento adequado, água potável, isso tudo. Haverá tendência para que o sistema da saúde também melhore se o País melhorar nessas áreas. Agora, é aquela coisa de considerar a distância do teto. Se estamos falando de mortalidade infantil, sairmos de 60 por mil e chegar a 14 por mil é relativamente fácil porque com um pouco de ordem no entorno social conseguiremos reduzir a taxa de mortalidade. Todavia, chegando-se mais perto do teto, a margem de gastos vai diminuir, mas diminuir de 14 para 10 é mais complicado. De 10 para 8 é muito difícil e de 8 para 3 é mais ainda. Nosso país tem a cabeça no freezer e os pés no forno. A desigualdade social do País é enorme. Os dados apontam que 142


teremos de mergulhar em locais específicos de cada assunto. Por exemplo, no Rio de Janeiro, o bairro da Gávea é de classe média alta e convive com os diferentes aspectos da Rocinha, uma das maiores comunidades pobres da América Latina. A taxa de mortalidade infantil na Rocinha é bem mais elevada do que a da Gávea. Para calcular a média nacional nosso país tem como desafio o fato de que, a depender do lado da rua em que se nasce, há dez vezes mais possibilidade de óbito antes do primeiro ano de vida. Então, essas são as matérias que os economistas observam quanto à esfera da saúde. Tenta-se achar um bom ângulo para observar o todo, mas é difícil encontrar. Pela especificidade da área da saúde a considerar, sempre haverá um novo ângulo que desfaz a visão do todo, sobretudo quando se trata de uma vida. Diz-se que a história de uma vida pode não valer muito, mas nada tem o alto valor de uma vida. Isso é um dilema. Existe a discussão da equidade. Esta tem a ver não tanto mais com a economia e a medicina, mas com a economia e o direito. Equidade é um conceito que vem do direito. É o direito à oportunidade, é a falta de remediação das diferenças e não mais os aspectos da saúde da população e dos grupos populacionais definidos socialmente e economicamente. A questão é quais políticas implementar e quais maneiras temos para trabalhar para fazer o Brasil avançar no sentido da equidade. Podemos conversar sobre muitos dos outros elementos abordados.

AUDITÓRIO Acad. Dr. Etelvino Trindade. Se montarmos o modelo inglês com nossa abrangência universal de assistência que o estado garante, chamado Sistema Único de Saúde, e se a medicina 143


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fosse suplementada nos moldes ingleses, ela terminaria se tornando complementada e seria a maior sugadora de recursos do estado porque se gasta com medicina suplementada mais do que se paga ao SUS, pelos dados a que eu tive acesso. Como o gestor ou o pensador do assunto encara isso? Parece que o governo é avesso a dar mais recursos à saúde. A reivindicação dos médicos é que se aumente a dotação orçamentaria federal para 10%.

Dra. Flávia Poppe de Munhoz. Essa é uma questão que vem sendo discutida em muitas instâncias de nossa sociedade e não só por formuladores de políticas. A origem do sistema brasileiro explica em parte a aparente contradição entre termos um modelo inspirado no britânico e não conseguimos ter um padrão de equilíbrios quando se comparam todos os aspectos. No sistema inglês, cerca de 90% dos recursos são públicos e, no Brasil, são apenas 44%. Na história da medicina do País, sempre houve uma forte prática liberal nos consultórios médicos. No começo do século passado, os hospitais públicos eram basicamente caritativos. Depois, tivemos os institutos. Estes ainda são, na maior parte da América Latina, obras sociais ou institutos previdenciários. Ainda são aqueles modelos de seguro social em que só os empregados têm acesso a serviços públicos de saúde. No Brasil, ocorreu a fusão dos institutos nos anos 60. Temos esse legado histórico. Em 1988, na 8.ª Conferência Nacional, decidiu-se fazer uma reforma sanitária com vários conceitos políticos e teóricos, com um modelo bem delineado do ponto de vista da política do estado e da política social da saúde. Essa história é relativamente muito recente e está se movimentando. 144


Se observarmos alguns dados sobre os recursos públicos de uma série de liberações ocorridas muito atrás, os recursos de saúde vêm aumentando devagarzinho porque o governo tem dado prioridade à saúde de fato. Os leitos privados vêm diminuindo de número. Se quisermos fazer uma ponte entre economia e saúde, será preciso ter um ângulo específico para podermos ver o todo. Esse é nosso alvo, tanto para economistas como para médicos, psicólogos, enfermeiras e outros profissionais de assistência. O retrato da população pode ser um indivíduo, mas a soma dos indivíduos não é exatamente indicação de um sistema de saúde porque temos outros ângulos que incidem em múltiplos interesses. A saúde é um dos sistemas mais complexos que pode haver. É sistema dinâmico, com interesses divergentes, não entre pessoas de má fé e de boa-fé, mas interesses econômicos das indústrias. Quando falamos em exames diagnósticos, tecnologia é a ponta de um iceberg. Um farmacêutico e químico francês resolveu examinar mais de quatro mil medicamentos e concluiu que não havia mais do que 10% a 15% que teriam eficácia necessária para fazer tratamentos. Não tenho, então, resposta para sua pergunta, mas devemos continuar a refletir. Parte da dificuldade é a falta de visão do todo. Julgo que estamos falando da remuneração dos profissionais, que deveria ser mais justa. Aqui, ocorre outro jogo de interesses. Promove-se mais a privatização do serviço do que a estatização. Calculo que a discussão entre o público e o privado é outro assunto que está na agenda. Penso que é imprescindível essa conversa, pois não se pode ignorar que 55% dos gastos em sistemas de saúde neste País são dirigidos ao setor privado. 145


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O modelo do SUS é bom, correto e tecnicamente muito bem pensado. Ele se refere a graus de complexidade e traz princípios sociais muito importantes. São conquistas de que não deveríamos abrir mão. O fato de ser universal é importante, mas é novo ainda, pois 25 anos na história não é muito. A maioria dos países da América Latina está avançando também em suas esferas de saúde, mas não são sistemas universais. Ocorre, em geral, uma espécie de triagem da população que pode ter acesso ou não. Do ponto de vista dos direitos humanos isso é complicado.

Acad. Dr. Osório Rangel. Se há uma coisa que mais nos preocupa em sistema de saúde é sua economia, sobretudo se não houver um pensamento realista de gestão. Saúde não é despesa. Para mim é investimento. Nesses gastos correlatos à taxa de mortalidade infantil, eu acrescentaria investimento em avanço tecnológico, da ciência e do conhecimento na medicina. Nos anos 50, a vida média era de 50 anos. No presente, a vida média subiu para a plataforma de 70 anos etários. Em cardiologia, o óbito pré-hospitalar e intra-hospitalar era de 40% nos anos 60 e 70. Com o avanço do conhecimento técnico, não conseguimos mexer no óbito pré-hospitalar, mas o óbito intra-hospitalar passou para a faixa de 5% dos casos atendidos. Em cardiologia, atualmente, as mãos contribuem em apenas cerca de 5% da avaliação cardiológica. Nosso SUS é privilegiado, mas o programa de governo poderia melhorar, identificar perdas, aumentar investimentos, alçar essa atividade a um plano mais elevado. Como a senhora vê as dificuldades existentes no SUS no enfoque de uma política de curto prazo? No Distrito Federal, a medicina complementar 146


apresenta questões sociais que atingem quem paga. Faz parte da presente discussão considerar que sou ressarcido em apenas um quarto do que eu gasto dentro da medicina privada.

Dra. Flávia Poppe de Munhoz. Agradeço-o por lembrar a tecnologia. Tenho estudado essa questão nos últimos anos. A tecnologia beneficia nossa sociedade. A questão da tecnologia aparece, porém, como ponta de iceberg porque embaixo há problemas insuperados, isto é, de desigualdades sociais, de não acesso à tecnologia ou de quem pode usá-la. Sobre gestão sempre ocorrem linhas distintas de pensamento, mais para direita, mais para a esquerda, mais centro, desentendimentos entre colegas. Isso faz parte da vida. Em economia, a discussão sobre financiamento de saúde também tem diferentes escolas. O economista Bernardo Cotolengo, do Banco Mundial, escreveu um livro sobre eficiência nos hospitais, em que ele aborda o desperdício e contabiliza perdas que chegam a 20%. Gestão é um problema não só no domínio da saúde, mas da educação, das universidades e de qualquer área. A falta de produtividade por problemas de gestão encarece os processos, inclusive da área da saúde. No Canadá, há um mantra, isto é, as pessoas não deveriam adoecer. É preciso cuidar para que as pessoas não adoeçam. Em cardiologia, ocorreram avanços no tratamento hospitalar, mas os cardiopatas continuam a fumar, comer demais, a esquivar-se dos exercícios físicos, a sofrer estresses evitáveis e por aí além. É preciso cuidar do entorno, da atenção básica, para não adoecer e não entrar no hospital. Esses cuidados culturais não residem no DNA dos formuladores de política pública em nosso país. Essa trajetória ainda vai demorar. Nossa concepção de política ainda 147


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é muito focada em coisas imediatas e ainda enxugamos muito gelo porque com o tanto de tecnologia disponível, de tratamentos e de medicamentos funcionariam se estivéssemos a fazer o que evitaria uma série de problemas.

Acad. Dr. José Calegaro. Trabalho em medicina nuclear. Gostaria de complementar Dr. Osório quanto à gestão. Mantive-me em um regime de gestão sem interrupção da nossa assistência pública. Tínhamos um regime público, um sistema de fundação que propiciava maior número de opções administrativas para resolver os problemas. Retirou-se o sistema de fundação e houve um engessamento administrativo em educação e saúde e o caminho proposto é anacrônico. Automaticamente essa decisão nos reverte a um retrocesso.

Dra. Flávia Poppe de Munhoz. Essa é uma boa oportunidade para abordar o tema relação pública e privada. A fundação tem características e autonomias típicas, não privadas ou lucrativas. É gerida de uma forma não eminentemente pública e pelo governo, mas com interesse público. Requer agilidades em mecanismos e autonomia. Temos o exemplo do Instituto de Matemática Aplicada (Imap), no Rio de Janeiro, uma instituição pública com autonomia, que forma alunos sem nada cobrar. É um mix público-privado que consegue eficiência nas respostas porque administra os recursos com autonomia mínima necessária para tomar decisões, para melhorar a gestão e a eficiência. Concordo que há uma confusão em nosso país, um entendimento de que o SUS só vai ser universal e público se for gerido 148


publicamente, pelas instâncias de governo, com modalidades de administração, organização e pagamento que não são as melhores para certas práticas. Isso ainda é uma miopia. Existem processos que podem ser organizados de maneira que não haja esse engessamento público, governamental, imutável, porque aí estamos lidando com recursos humanos que não são avaliados. É como um pêndulo, uma combinação público-privada. Em São Paulo, as Organizações Sociais (OSs) administraram um hospital que virou panaceia. Não temos que fazer OSs em todo lugar porque certas instituições não podem ser privatizadas. Atividades-fim que dizem respeito a melhor qualidade dos resultados que se quer para a saúde não deveriam ser privatizadas. O princípio da combinação público-privado é exatamente terceirizar e privatizar o que é atividade-meio, jamais a atividade-fim. Há uma série de ferramentas em economia que podemos utilizar para discutir esse tipo de questão. As finanças funcionam como subsídio. A forma como se paga ou se remunera tem desdobramentos e simplificações, e as pessoas reagem a isso racionalmente e irracionalmente. Se pagarmos a um cidadão ou a uma empresa cada vez que estes forem fazer o capeamento de uma rua, pensa-se nas consequências. Cogita-se se a empresa está estimulada a fazer um capeamento de rua durável, de boa qualidade, que permaneça por dez anos ou que, dentro de seis meses, ela volte a ser contratada e receba mais um pouco para fazer outro recapeamento. Um grande tema em debate entre os economistas é a remuneração por serviço prestado. Existem vários estudos sobre qual é o melhor tipo de remuneração a depender do resultado que se deseja. 149


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Porque uma Organização Social deu certo em determinado hospital que tinha determinada vocação, todos os hospitais agora deveriam ser geridos por Organizações Sociais? Não! Porque não se paga por serviço prestado em certo tipo de especialidade, que pode ser interessante ter – agora está mais na moda – o pay for performance, que é pagar por resultado, mas há certas especialidades que não podem ser remuneradas dessa maneira, por sua especificidade, por sua hiperespecialidade. Como se vai pagar por resultado? O que mais me preocupa são os amálgamas.

Acad. Dr. Francisco Ginani. Gostaria de debater sobre o modelo do SUS. Particularmente, fico muito receoso de entrar nessa discussão porque a pessoa pode ser taxada de direita ou de esquerda. Queria me sentir acima disso para dizer que o grande problema da saúde no Brasil é gerido pelo SUS, pois este é o modelo. No SUS, pensou-se em uma solução para a área da saúde, que é assistência universal, que nos parece impraticável neste país. A origem desse pensamento é a Inglaterra. Conheço a medicina inglesa. Vejo, no Brasil, que o programa financiado pelo estado vai da medicina primária à medicina mais sofisticada. Existe toda uma metodologia aplicada que levou o estado a chegar agora à conclusão de que é inviável, do ponto de vista financeiro, manter toda aquela pretensão de assistência universal do Reino Unido. Sabemos que o mundo hodierno é plano, o que aparece acolá, aparece aqui também. A senhora citou dois belos exemplos de modelo e o da Alemanha é um bom exemplo, o que é adequado se discutir talvez para a realidade brasileira, em que o estado entra com a participação daquelas pessoas que não têm emprego. As pessoas 150


que têm um emprego são, muitas vezes, beneficiadas com um seguro de saúde que as empresas automaticamente lhes dão. No Brasil, temos vários problemas. A senhora disse que o SUS é apoiado no setor privado. Então, eu me lembrei de que a estatística que senhora mostrou realmente é correta, o governo federal entra com 43%, 27% do estadual, 30% municipal. Mas o resto é iniciativa privada. Talvez dizer que o SUS é apoiado no setor privado seja para refletir sobre isso. Gostaria de que a senhora nos desse, se puder, sua visão interdisciplinar da economia dentro dessa imagem de que o modelo do SUS no Brasil é impraticável. Não corresponde ao que se planejou porque se planejou para uma situação ideal, mas a prática está cada vez mais distanciando-se da realidade.

Dra. Flávia Poppe Munhoz. Vamos pelo mais específico. Apoiados no fato de que uma boa parte do financiamento da saúde está sobre a base de um equipamento público e que 55% dos recursos são privados, podemos considerar que temos um mau sistema global. Há outros elementos a considerar. O gasto out-of-pocket também está fora de propósito. Não sei se é só no Brasil que isso ocorre. Temos referências de países mais avançados. Trabalhei muitos anos na Opas, viajo muito, conheço bem a América Latina. Somos a região mais desigual do Planeta. Por outro lado, ela vem mostrando sinais para o resto do mundo que também tem esses jogos de enormes interesses. Pensando-se em economia e sociedade fica mais fácil pensar nos ricos e nos pobres assistidos. Os documentos que se produzem na OMS não são fáceis de elaborar, porque refletem a complexa realidade dos que possuem 151


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e dos que não possuem. Então vamos dar assistência humanitária aos pobres. Daí, temos uma jabuticaba, isto é, algo que só existe no Brasil. Mas estamos cada vez mais descobrindo que a jabuticaba não é ruim, é gostosa. O que aconteceu na Inglaterra foi um pacto social, um sistema nacional britânico, o National Health System, que nasceu de um acordo que acompanhou toda uma discussão da sociedade. Quando, em 1988, discutiu-se no Brasil a seguridade social, ocorreram discussões similares. Mas nossa história aponta o modelo bismarckiano como o mais próximo da nossa realidade. Tínhamos os institutos em que o seguro social, bem ou mal, estava funcionando, embora fosse desigual, porque para certos trabalhadores era melhor e para outros era pior. A decisão tomada pelo SUS foi forçada para uma sociedade que não estava madura naquele momento. Mas é interessante como modelo e aspiração. Pensamos na América Latina como uma região que não se desenvolve bem por ter fortes desigualdades entre ricos e pobres. Mas a discussão passa a ser outra ao vermos outros países emergentes com modelos distintos dos nossos. Não é uma discussão sobre países ricos e países pobres com a América Latina na posição intermediária. Os famosos tigres asiáticos, nos anos 80 e 90, que nos passaram batidos em certos indicadores, desenvolveram-se incrivelmente com outros modelos mais baseados em educação e em tecnologia. São países politicamente autoritários. São ditaduras em geral. Assim, não há casos perfeitos. A preocupação é maior do ponto de vista da sustentabilidade. A questão da sustentabilidade do sistema de saúde é hodiernamente um tema da agenda global. Nenhum sistema de saúde no mundo se sustentará da maneira como está organizado. 152


Os custos são ascendentes e a tecnologia é diferente nos vários setores da área da saúde. De modo geral, a tecnologia em outros setores incrementa processos e diminui custos. Isso não é verdade em medicina. A tecnologia incrementa e incorpora, mas ainda tem pouco uso global. As doenças sociais em que a economia se encontra se agravam. Pelo que eu ouvi, no colégio, sobre violência, a dinâmica das famílias e a falta de educação agravam a condição de saúde das pessoas. Muito vem se pensando a respeito, com muitas discussões interessantes, mas sem ainda muita perspectiva. As soluções vêm sendo provadas de forma experimental. Funcionou aqui, mas não ali. Eu tenho me tranquilizado para não ficar muito dependente de alguma especialidade médica ou de muitos remédios. Tenho me tranquilizado com a concepção prática de que temos muitos problemas de ordem global, cuja especificidade e arena têm que ser locais para realmente buscar soluções. Vamos lendo e aprendendo. Cada problema específico demanda solução específica. Esse arranjo da ciência, da tecnologia e do conhecimento tem que estar à disposição para resolver problemas específicos porque não existe o one size fits all. Tenho um exemplo ótimo de solução específica e local. Cito Piripiri, município no interior do Piauí com quase setenta mil habitantes. Conseguiu-se diminuir sua taxa de mortalidade infantil para oito por mil. O gasto per capita para a saúde praticamente não se alterou. Eles usaram uma ferramenta da OMS que faz uma síntese de evidências e com essa base vão negociar recursos com a assembleia legislativa. Temos ali um secretário de saúde que negocia mais recursos com seus parlamentares e certas medidas para o hospital e o ambulatório. É uma solução local. 153


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Acad. Dr. José Saraiva. A senhora comentou que o SUS teve implementação forçada. Acompanhei o SUS desde suas origens. Tem sido uma grande conquista da saúde brasileira e seu modelo foi teoricamente muito bem elaborado. Mas, no grupo de trabalho reunido antes da 8.ª Conferência, questionei que a lei 8.080/90 não poderia ser aplicada neste país. Temos dimensões continentais. Enfrentamos complicações quando falamos em descentralização, em equidade e em distribuição de recursos. Não existe apenas um SUS neste país como um sistema privado ou de seguro. Como implementar um sistema diante de grande diversidade étnica, de recursos humanos e financeiros, de educação e de cultura? Como implantar um bom sistema de saúde quando, no interior do Norte, na Amazônia Legal, nem todos os municípios têm secretarias de saúde? Como exigir boas respostas sem haver essa estrutura em uma localidade? Temos que privilegiar o local e seu órgão administrativo central, pois é convivendo ali que se conhecem as necessidades de quem vive naquele lugar. Como implantar um sistema de saúde único no grande sertão do Nordeste, onde há pouca estrutura de assistência? Quem vai fiscalizar o funcionamento desse sistema? Qual o gestor que tem ali recursos humanos necessários para tocar esse sistema de saúde? O sistema único de saúde poderia funcionar muito bem no Sudeste e no Sul porque têm bons recursos humanos, organização de serviços e recursos financeiros mais adequados. Pergunto ainda onde o SUS funciona bem neste país? Quem deixou de vir à capital da república de pires na mão para pedir recursos para a saúde? Pergunto a prefeitos e governadores onde está a descentralização? Descentralizou-se responsabilidade para os estados e para os municípios, mas não para os recursos financeiros de modo que cada município se adequasse à sua realidade local. 154


Estamos diante de uma fantasia que nunca se realizou de fato nem saiu da teoria para a vida. O sistema deveria ter sido implementado gradativamente. Os governos federal, estadual e municipal tinham de organizar primeiramente suas bases e, então, treinar recursos humanos, implementar recursos técnicos nas áreas difíceis de serem assistidas. Nada disso foi feito. Onde funciona o SUS aqui no Distrito Federal, quando sabemos que até o sistema Mais Médicos está também na capital da República? Precisamos ser mais coerentes e vivenciar nossa realidade brasileira. Devemos encarar a realidade com grande conhecimento de causa. Existem técnicos e até ministros de estado que não conhecem bem a realidade brasileira. Como, daqui de Brasília, apenas com caneta e papel poderiam determinar fazer isso ou aquilo? Mesmo que um governador fosse da oposição ao governo federal, não poderia ficar sem recursos para seus municípios. Como se faz concorrência decente? Se o governo federal não passou recursos para o estado, passou responsabilidades. Não acredito em sistema de saúde único em que o diagnóstico dessa realidade não é levado em consideração. O estado do Amazonas tem 1.560.000 km² e suas principais vias de comunicação ainda são os rios. Assim, temos municípios que distam 45 dias da capital do estado e não têm recursos suficientes. Na minha altura de idade, não tenho mais ilusões. Que tipo de saúde pública estamos prestando? No sertão do Nordeste, usamos o burrinho para locomoção. Qual a melhor técnica para aplicar no sistema de saúde naquela região? Tudo isso só funciona quando existe a peça principal – o ser humano, ou seja, as pessoas que vão tocar os serviços. 155


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Dra. Flávia Poppe de Munhoz. Eu faria alguns comentários somados aos seus. Quando me referi ao SUS como sistema forçado, eu me referi a uma situação social que, em alguns momentos históricos, é preciso forçar a implantação de soluções. Se colhermos certos episódios históricos, em países que deram saltos, as mudanças necessárias ocorreram sob situações de conflito. Atitudes suaves e naturais não funcionam para fazer sérias mudanças de padrão. Forçamos certos princípios que são legítimos e corretos. É nesse sentido que o SUS merece ser considerado. Diante da realidade na Região Norte a qual o senhor tão bem descreveu, era necessário haver uma forte determinação para que tivéssemos um sistema único de saúde. Esse sistema é defendido por verdadeiros abnegados. Era importante que o direito à saúde fosse universal e ainda é importante e continuará sendo. Que o direito seja universal e integral! Esses princípios do SUS estão corretos. Precisavam ser implantado para diminuir desigualdades. A estratégia da saúde da família justamente assiste mais esses lugares onde há tecnologia, mas não é solução para todos. Seria inadequado ter aparelhos de ressonância magnética em estabelecimentos de saúde preparados e técnicos que saibam fazê-lo funcionar. Mas uma série de situações incômodas estão sendo sanadas. O Brasil avançou em termos de equidade do ponto de vista do direito.

Acad. Dr. José Saraiva. Concordo com a senhora e entendo que foi feito um projeto e é irrevogável sua execução. Questionamos o modo da sua implantação e do seu funcionamento. 156


Estamos a trinta anos da implantação do SUS e sequer foi modificada uma vírgula nos princípios fundamentais que regulamentaram o sistema. Isso nos preocupa. Falta vontade política? Falta competência a quem deve resolver esse problema? O certo é que temos um sistema que não é realmente único e um resultado que até agora deixa a desejar. Nossa apelação é para que outros mecanismos de aperfeiçoamento preencham o quadro do SUS. É isso que está em questão e não a filosofia nem a criatividade que ocorreu com o Sistema Único de Saúde.

Acad. Dr. Osório Rangel. Gostaria de conhecer os resultados do SUS. Entendo que este é um problema de estado e não de governo. Estamos vulneráveis e entramos na seara dos aspectos de gestão política da saúde. Compreendo que o SUS requer a gestão da atividade-fim e da atividade-meio. O custo da medicina não é barato nem caro se consideramos o valor da vida. O valor da saúde é pétreo e não tem preço. Tem mérito um paciente paralítico que se recupera e volta a andar. É meritória uma cirurgia de implantação do núcleo olfativo na medula. Gostaria de conhecer e avaliar satisfações e resultados correlatos ao SUS e os recursos para produção de saúde.

Dra. Flávia Poppe de Munhoz. É difícil medir isso. Um dos resultados do SUS e de direitos sociais consolidados no País é que houve melhora da qualidade de vida das pessoas. Temos que tomar muito cuidado para não abrir mão de bons valores que existem em nosso país para sermos uma sociedade que realmente defende a ética. Como resultados do SUS há os números de transplantes, de cirurgias e de consultas. Resultados mesmo são as resultantes condições de vida das pessoas. 157


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A saúde não pode dar conta do problema social e econômico, mas é estratégica nesse contexto. Existe a falsa impressão de que a saúde depende apenas das pessoas que militam nessa área. As necessidades da população se avolumarão se não se alinharem outros setores como educação, saneamento, desigualdades entre regiões e distribuição de renda. Os resultados do SUS fazem parte de uma política social para forçar a barra por uma sociedade melhor. Existe um universo de armadilhas entre desejos e possibilidades. Essa preocupação sobre sustentabilidade do sistema de saúde é universal. Médicos, enfermeiras, economistas, matemáticos e engenheiros participam em grandes centros acadêmicos que se ocupam desse tema e todos estão com a mão na massa para verem como sair dessas dificuldades. É imprescindível discutir seriamente a relação público-privada. Descartar o setor privado é um sério erro tático.

Acad. Dr. Edno Magalhães. Há que se ter responsabilidade e se cobrar resultados sobre isso tudo que ouvimos aqui. Não ouvimos falar da chegada daqueles 43% e dos 4% do PIB aos municípios em nenhum momento. Temos ouvido a grande choradeira dos prefeitos a respeito desses recursos que não chegaram até eles durante estes últimos doze anos. Chegam apenas 10% do que deveria chegar e o resto permanece nas mãos do governo federal. Não sei se esses 33% entram nos mecanismos de transferência de renda ou para onde eles vão. Mas esse choro é comum em qualquer prefeitura do Brasil. Não sei se existe algum ângulo de onde possamos acompanhar os impostos que chegam aonde deveriam chegar. 158


Dra. Flávia Poppe de Munhoz. Certamente há um método para dissecar esse cadáver. Existe uma base de dados para averiguarmos caso a caso. Não sou do governo federal, nem prefeita ou secretária da saúde. Não tenho como responder. Sei que há fórmulas e dados com informações para verificar os processos de distribuição de recursos.

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PALESTRA DOENÇAS TRANSMITIDAS POR VETORES NO DISTRITO FEDERAL Sessão Plenária de 27-3-2015

Acad. Dr. Edno Magalhães. Agradeço a presença de todos. Vou passar a palavra ao professor Pedro Tauil, do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade de Brasília, para nos falar sobre doenças transmitidas por vetores no Distrito Federal como tema de importância nesta época.

PALESTRANTE ACAD. DR. PEDRO TAUIL. Começo por dizer que o Distrito Federal é mais ou menos poupado das doenças transmitidas por vetores em razão de suas condições geográficas e climáticas serem desfavoráveis à presença de certos vetores. Isso ocorre por ter essa região altitude de mais de mil metros acima do nível do mar, baixa umidade relativa do ar em boa parte do ano e reduzida taxa de pluviosidade. Mas há fatores importantes a considerar. Em 1982, o dengue chegou a Roraima. Achamos que o Distrito Federal estaria poupado dessa doença por causa dos fatores que mencionamos. Mas vimos que a capacidade de adaptação do mosquito transmissor 161


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Aedes aegypti é tão grande que foi encontrado a três mil metros de altitude na Colômbia. É verdade que o Distrito Federal não tem tido aquelas grandes epidemias do Nordeste e do Rio de Janeiro ou como agora ocorre em São Paulo. As condições naturais do DF não são tão favoráveis à proliferação do mosquito. Vamos comentar sobre dengue e um pouco a respeito de leishmaniose visceral e tegumentar, febre amarela e chikungunya, bem como de malária com algo importante para ser exposto. O dengue é a principal doença reemergente no mundo. Mais de dois e meio bilhões de pessoas estão expostas ao risco de sua transmissão na área tropical e subtropical da África, da Ásia e da América. O dengue tem a característica de ter sua transmissão fundamentalmente diurna e urbana como fato diferente das outras endemias. Doença reemergente é um conceito impreciso. Foi criada em razão daquelas doenças com baixa frequência que depois se elevou ou de baixa gravidade que posteriormente se agravou. Temos duas importantes enfermidades a considerar. A primeira no mundo é o dengue e a outra é a leishmaniose visceral, que aparecem no Brasil e em alguns lugares da Europa. O dengue passou a ser considerado também doença reemergente porque o número de ocorrências aumentou muito e as características de transmissão também progrediram. O principal vetor do dengue é o mosquito Aedes aegypti, o único elo vulnerável da cadeia epidemiológica de transmissão no momento. Quanto à redução do número de transmissões ainda não há tratamento epidemiológico que faria reduzir o número dos reservatórios, e inexiste vacina eficaz e segura contra a doença. 162


O A. aegypti tem a característica de seu dorso ser em forma de lira como fator importante para sua identificação. Não é só ele que transmite o vírus do dengue. Há também o Aedes albopictus, que também existe nas Américas. São outros vetores possíveis as espécies A. africanus, A. polynesiensis, A. scutellaris, A. taylori, A. luteocephalus, A. furcifer. O A. aegypti e o A. albopictus são os principais. Quanto à distribuição de dengue no mundo, a doença ocorre até no Sul dos Estados Unidos e um pouco do Sul da Europa. Já houve casos autóctones no Sul da França. O que se teme ou se pergunta é se o aquecimento global seja capaz de ampliar a área de transmissão de dengue pela expansão dos vetores. Queria chamar à atenção o fato de que se têm trabalhado muito com dengue no Norte da Austrália – e estão trazendo uma forma de controle vetorial, o que pode ser uma grande novidade como veremos adiante. Por que o dengue reemergiu? Não são conhecidos todos os fatores. Houve aumento da densidade de infestação pelo Aedes aegypti, um dos principais agentes de disseminação da doença. Por que sua densidade aumentou? Tivemos problemas no Sudeste da Ásia depois da Segunda Guerra porque houve sistemas de águas destruídos pelos aliados, que fizeram a capacidade de produção de água diminuir muito. Tinha-se que armazenar água. Equipamentos de guerra abandonados nos campos de batalha e movimentos populacionais de grande porte com migração rural-urbana foram os grandes fatores que permitiram o aumento da infestação pelo Aedes aegypti e a reemergência do dengue. Houve uma campanha de erradicação do Aedes aegypti nas Américas que eliminou esse vetor em dezoito de seus países. Foi eliminado ao fim dos anos 50 e princípio dos anos 60. Pensava-se 163


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nisso para evitar a febre amarela urbana naquela ocasião. Este era o objetivo. A partir de países que não lograram êxito naquela campanha todos os países estão infestados atualmente – com exceção do Canadá e do Chile em sua parte continental. Esses países foram reinfestados. Por que houve aumento dessa densidade nas Américas? Houve rápida e intensa migração rural-urbana depois da Segunda Guerra, com aumento da densidade populacional em áreas urbanas, sistemas inadequados de habitação, suprimento de água e destino de dejetos, aumento de recipientes não biodegradáveis e descarte inadequado de resíduos sólidos. O problema maior é que, segundo o IBGE, 20% da população brasileira em grandes cidades vive em condições precárias de habitação e saneamento em favelas, invasões e cortiços. Isso favorece a proliferação do mosquito. Houve aumento do número de viagens terrestres, marítimas e aéreas e, assim, o aumento da produção de veículos automotores com destino inadequado de pneus usados. Pensei que o uso desses pneus para fazer asfalto iria resolver o problema! É matéria-prima barata, mas a tecnologia para fazer asfalto com tais pneus é muito cara. Daí, não se pode destiná-los para esse fim. Mas seria razoavelmente bom esse uso. Observa-se ausência ou ineficácia dos programas de controle vetorial. Foi impressionante o fato de haver chegado agora, no período final de 2013 e início de 2014, a ocorrência de chikungunya na República Dominicana. A taxa de ataque dessa doença chegou a 60% da população. Não havia hospital nem serviço de saúde porque não havia profissional de assistência ao doente para trabalhar, pela incapacidade que dá a doença. Por quê? Porque era Aedes aegypti demais. Atualmente estamos vivendo 164


problemas graves na América Central, principalmente relacionados à área da ilha espanhola – o Haiti e a República Dominicana –, com problema sério de transmissão de dengue e chikungunya. A reinfestação ocorreu em 1970 e em 2002. Estava desse jeito a reinfestação do Aedes aegypti. A febre hemorrágica do dengue nas Américas não existia em 1981 quando houve uma doença diferente que chegou a Cuba com características de meningite meningocócica. Dela todo o mundo já ouvira falar, mas ninguém sabia bem o que era. Pensava-se tratar de meningite ou meningococcemia que surgira, mas era uma das formas hemorrágicas de dengue, verificada pela primeira vez nas Américas. Depois disso, eclodiram epidemias na Venezuela e no Brasil que, em seguida, se espalharam para todas as Américas. Por que houve aumento da densidade de infestação no Brasil? Além dos fatores citados, o País enfrenta uma situação grave em termos de urbanização. Em média, mais de 85%, da população é urbana, sendo esse percentual maior na Região Sudeste. Cerca de 20% da população em médias e grandes cidades vivem em favelas, invasões ou cortiços. Essa característica de vida urbana favoreceu a disseminação epidêmica porque o mosquito é urbano e atua durante o dia! A proporção da população residente nas áreas urbana e rural assinala que só 15% da população se estabelece em área rural. A complexidade da vida urbana é fator limitante na erradicação do Aedes aegypti no Brasil. Há problemas de segurança e de acesso às habitações. Observam-se lugares em que os agentes de saúde não podem inspecionar os prédios. Do Aeroporto do Galeão até a Fundação Oswaldo Cruz veem-se muitas casas sem telhado nas favelas, mas lajes. Estas formam lâminas de água estagnada. Nesses casos, quem as inspecionaria e drenaria? 165


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Isso é de controle muito difícil. Há dificuldade em atender às demandas de abastecimento regular de água e da coleta de lixo a serem cumpridas pelas prefeituras. O Aedes aegypti entrou no Distrito Federal quando se fazia a represa do Pipiripau na região de Planaltina. As pessoas tinham água só à noite. Armazenavam água durante a noite para tê-la durante o dia. Isso propiciou o surto de dengue no Distrito Federal. A dificuldade da prática da fiscalização sanitária foi dificultada pela multiplicidade de borracharias. Há uma borracharia em que, quando a fiscalização passa por ali, estendem um plástico protetor sobre os pneus para evitar que se acumule água e, quinze dias depois, aqueles pontos de água parada jazem novamente descobertos. Depósitos de ferro-velho e terrenos baldios ficam expostos. Honra seja feita. A única providência coletiva eficaz que já testemunhei ocorre no cemitério. Ultimamente, não mais se veem por ali potes com água, mas todos preenchidos com areia. Até outro dia, estive no Cemitério Campo da Esperança. Fui ali pesquisar um pouco e, realmente, não encontrei nenhum vaso com água. O problema de mão-de-obra é seriíssimo. Ouve-se de vez em quando: Chamem o Exército! Chamem o Corpo de Bombeiros! Mas o número insuficiente de profissionais e a instabilidade empregatícia nas instituições causam baixa cobertura domiciliar, alta rotatividade de pessoal e baixa qualidade de trabalho, além de não haver pessoas o suficiente para fazer as devidas inspeções três vezes por ano obrigatoriamente. Eu prestava atenção às pessoas que às vezes iam – e faz tempo que não vão – à minha casa inspecionar se temos reservatórios. É o mesmo que não irem porque não perguntaram se a 166


calha estava entupida nem sabiam a localização da minha caixa d’água. Olhavam tudo por cima. Parece ser o mesmo que não fazer um trabalho completo. O grande problema que temos são os terrenos baldios. Quem é dono de terreno baldio? Os vizinhos não se mexem e ninguém o limpa se o dono não for acionado. Acumulam-se ali reservatórios de água parada. Outro problema técnico operacional observa-se com a resistência do vetor aos larvicidas e inseticidas disponíveis. Isso é um problema crescente como adiante veremos. Por que o dengue é reemergente? De onde veio? O mosquito está presente entre nós. Não poderíamos conviver com o mosquito sem dengue? Infelizmente há o vírus. De onde veio esse agente? Seriam casos esporádicos silvestres ou com transmissão transovariana. Seria caso de mutação genética de um vírus que se tornou mais adaptado ao Aedes aegypti? Há várias hipóteses a contemplar. Sabemos que a rapidez do tráfego aéreo possibilita que uma pessoa contaminada hoje na Tailândia venha ao Brasil em menos de 24 horas e infectar mosquitos. O período de transmissibilidade vai a sete dias depois do início dos sinais e sintomas. Tivemos três casos de chikungunya em 2010. Foram dois em São Paulo e um no Rio de Janeiro. Algumas pessoas foram surfar em Bali e dois daqueles que retornaram mais uma missionária que veio da Índia tiveram a doença. Sabemos que a quantidade de gente que viaja e retorna ao País e pode transmitir o vírus do dengue é muito grande. O período de transmissibilidade do chikungunya é igual ao do dengue e nossa suspeita era de que eles teriam infectado mosquitos no Rio àquela época. Mas constatou-se que chegaram com uma fase mais avançada da doença e não houve transmissão. 167


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Sempre perguntamos por que há muitos casos de dengue e não temos febre amarela. Por que não há febre amarela urbana com tanto Aedes aegypti? Uma das razões é que o período de transmissibilidade da febre amarela é a metade do período de transmissibilidade do dengue. A quantidade de vírus por ano é bem menor na febre amarela do que no dengue. A complexidade dos centros urbanos com a intermitência do suprimento de água faz as pessoas armazenarem água. O lixo é ainda disposto de forma inadequada. E o que se faz? Durante uma epidemia, soube-se recentemente que o secretário de Saúde de Rio Claro, São Paulo, foi demitido pelo juiz da cidade porque não tomou providências contra o dengue naquela localidade. O que não se fez? O juiz alegou haver faltado aplicação espacial de inseticida, o que é algo discutível. Houve mais política do que eficácia. Mas por quê? Porque não há efeito residual se chover ou se ventar muito. Esses eventos dispersam o inseticida aplicado e resta apenas o efeito demonstrativo de que está se fazendo alguma coisa. Observa-se ocorrer um mínimo de impacto imediato sem efeito residual das aplicações feitas em rua por rua. Seria preciso fazer aplicação espacial constantemente. Isso redundaria em custo elevadíssimo. Há opções eficientes. O inseticida pode ser eficaz com ao menos seis meses de efeito residual se for aplicado dentro de casa. Cortinas e mosquiteiros impregnados com inseticida e casas teladas é outro meio que está em uso. O problema é que esse mosquito pica dentro de casa ou perto do domicílio. Capas protetoras tratadas com inseticida para reservatórios de água têm sido muito usadas no Nordeste. É um tipo de proteção de águas que precisam ficar acumuladas. Tivemos onze mil casos de dengue confirmados no Distrito Federal em 2013 e confirmou-se mais ou menos o mesmo número 168


em 2014. Em 2015, foram 1.226 casos até agora em março. Mas isolamos poucos vírus. Todos os isolamentos no Distrito Federal, em 2014 e 2015, foram de dengue 1. O que está circulando aqui atualmente é então o dengue 1. Foram quase sete mil casos (58%) autóctones em 2013. Em 2014, 83% foram autóctones. Em 2015, estamos com 71% de casos autóctones. Tivemos 48 casos graves de dengue em 2014 porque a terminologia clínica mudou atualmente. Tínhamos anteriormente dengue benigno, dengue hemorrágico, síndrome do choque hemorrágico. Temos hoje dengue e dengue grave. Com essa mudança tornou-se difícil a comparação entre as taxas de letalidade porque as taxas de letalidade aceitas pela OMS baseadas em casos graves seriam de 1%. Devido a essa mudança houve 24 óbitos e letalidade de 50% no Distrito Federal. O caso grave se caracteriza principalmente por ocorrer a evasão do líquido intravascular para o extravascular. Temos derrames peritoneais, derrames pericárdicos, derrames pleurais e hemorragia por lesão de plaqueta, por redução do número de plaquetas pelas citocinas. O problema que ocorre com a ação da citocina é aumento da perfusão capilar quando este fica mais passível à passagem do líquido intravascular para o extravascular. Tivemos três casos considerados graves e três óbitos quanto à taxa de letalidade em 2015. Os três pacientes morreram no DF. Isso é uma taxa altíssima e não resultante da complexidade da vida urbana. Ademais, o controle cabe ao serviço de saúde. A doença segue sua história natural pela baixa eficácia das medidas de controle. A doença tende ao padrão epidemiológico asiático em que começa a haver predomínio da incidência nos grupos etários mais baixos. Não são muitos os adultos que não morreram. Mas há a imunidade sérica adquirida. Quem teve 169


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dengue 1 não vai ter mais nenhum e quem teve dengue 2 não vai ter o 1. Ficará protegido quem teve os quatro. Há um trabalho que se refere a um vírus 5. O autor não conseguiu publicá-lo talvez por ter havido problemas metodológicos. Apenas o apresentou em um congresso em Singapura realizado em 2013. Todas as vacinas que existem nesse momento são tetravalentes. Mas os adultos que tiveram a doença ficaram protegidos. As crianças ficam vulneráveis depois de perderem os anticorpos maternos no sexto mês de idade. Por esse motivo o padrão asiático é um acúmulo de reincidência em grupos etários mais jovens. O primeiro objetivo de qualquer programa de controle de toda doença é reduzir sua letalidade e o número de suas formas graves sobretudo. Esses dois objetivos são buscados por meio do diagnóstico e do tratamento oportunos e dependem do setor saúde fundamentalmente. Os serviços de saúde podem reduzir a gravidade e restringir o número dos casos letais com a organização de suas atividades. Reduzir a dimensão das epidemias e a incidência da doença depende de uma articulação entre os diferentes setores da sociedade porque não é possível o setor saúde controlar esse problema isoladamente. Nesse caso, concorrem educação, abastecimento regular de água, coleta regular de resíduos sólidos, condições de habitação, controle da migração rural-urbana, participação social, controle de pontos estratégicos de proliferação do vetor (depósitos de ferro-velho, terrenos baldios, borracharias e similares), controle da produção e destino adequado de pneus e de embalagens descartáveis. Estes são fatos importantes e dependem de articulação intersetorial. Precisamos agora de um diagnóstico laboratorial rápido para aprimorar o controle. É necessário dispor de técnicas para 170


diagnósticos mais prontos porque a sorologia demora de dez a quinze dias para prover resultados. Às vezes, o doente sarou ou já morreu durante esse período. Se estamos trabalhando com isso, vejamos o que há de novo. Quanto ao tratamento etiológico, não existe uma droga antiviral para o vírus do dengue. Vacina protetora não está disponível ainda, e o uso de novos inseticidas ou larvicidas que superem a resistência dos atuais necessitam de indicadores de infestação mais apurados. Voltando-se aos índices de infestação predial – que é o mais usado –, considera-se que uma piscina mal tratada e sem cloro, comporta-se comparativamente como um elevado número de tampinhas de garrafas de cerveja e similares ou de plástico viradas para cima com água. É diferente, mas consideram-se também como reservatórios. O índice de infestação é de 1%, mas é de piscina ou de tampinhas? A dimensão é diferente. Não há ainda um método mais apurado de medir realmente a densidade de infestações. Já houve epidemias pelo Aedes aegypti com menos de 1% de infestação no Sudeste da Ásia. Com o diagnóstico de laboratório temos presentemente a detecção do antígeno NS1, uma glicoproteína não estrutural no soro. O sangue tem que ser colhido em até 72 horas desde o início dos sinais e sintomas, porque aí se detecta essa fração proteica do vírus. Alguns laboratórios, mesmo privados, fazem isso no Brasil. O método tem boa sensibilidade e boa especificidade e, assim, estamos melhorando nessa parte de diagnóstico oportuno. Quanto ao tratamento etiológico, estão sendo testadas várias drogas antivirais, porém ainda em fase pré-clínica. Inexiste droga geral para o dengue ainda em fase clínica. Todas estão na fase pré-clínica. Existem duas vacinas. A vacina disponibilizada pela Sanofi Pasteur, que é tetravalente. A respeito dessa vacina, 171


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foi publicado, no início do ano, um trabalho nas Américas, um ensaio clínico na fase 3. Dizem que a vacina está em via de registro na Anvisa. É um recurso que protege, de fato, contra os quatro diferentes tipos da doença, porém de forma diferente. Protege contra o dengue 2 apenas em 40% dos casos, e 70% a 80% orientam-se para outros sorotipos. Sua operacionalidade é muito complicada porque são três doses, ou seja, uma dose no dia zero, outra no 180.º dia e ainda outra no 360.o dia. Leva-se, desse modo, um ano para que um indivíduo seja efetivamente vacinado. Mas há avanços. O governador de São Paulo pediu recentemente que a Anvisa liberasse outra vacina, a do Instituto Butantã, que é tetravalente, porém ainda não se iniciou a fase 3 de experimentação clínica, só há a fase 2 e ainda não completada. Considera-se o apelo: Ah, mas nós estamos desesperados aqui no interior de São Paulo e tal, vamos lá..., e sabe-se que existem treze mil doses que sobraram da fase 2. Mas vai ser difícil essa liberação porque a imunologia-densidade não está detectada ainda. Alguns eventos adversos não estão muito claros. Então, não temos ainda essa vacina. É possível que o Ministério utilize a vacina da Sanofi Pasteur se esta for registrada. Embora possível, não acredito muito nele. Mas a vacina não impede que a gente tenha que continuar lutando contra o Aedes aegypti e o Aedes albopictus porque eles também podem transmitir outras agroviroses como o vírus da febre amarela, o da encefalia equina do leste, o da encefalia equina do oeste, os vírus mayaro, lacrosse e chikungunya, além da microfilária limite. Isto significa que a luta contra o Aedes aegypti vai continuar se só for considerada a vacina. Por isso, buscamos outras formas por exemplo. Com o vírus do chikungunya ocorre um quadro semelhante ao do dengue com menor letalidade e maior tempo de duração 172


das dores articulares porém. Estamos agora com uma epidemia em Feira de Santana, Bahia. Fomos informados que os doentes não conseguem se deitar na maca sozinhos tão intensa é a dor que sentem. Ficam imobilizados de sete a quinze dias por causa da doença. Os franceses descreveram isso em turistas que vieram das Ilhas de Reunión. Afirmaram que os doentes permaneciam com dores articulares por fatores ainda desconhecidos e tomavam corticosteroides por meses ou até anos em alguns casos. O chikungunya é mais incapacitante. Ocorre uma epidemia dessa doença nas Américas desde o período final de 2013. Começamos a ter sua entrada no Brasil. Tivemos duas cepas de chikungunya que chegaram diferentemente. Uma chegou pela Guiana Francesa e está no Oiapoque com mais de mil casos nessa região e ainda outra chegada à região de Feira de Santana. A cepa que entrou no Amapá é asiática. A que entrou em Feira de Santana é africana. Como fontes diferentes de infecção explica-se essa disparidade como formas diferentes de entrada. Tivemos três casos autóctones em 2014 no DF. Ninguém sabe explicar porque não ocorreu a densidade epidêmica que houve na República Dominicana. Seria falta de adaptação do vírus ao mosquito que encontrou aqui? Não sabemos ainda por que não se propagou a doença. Ocorreram mais de dois mil casos no ano passado em Feira de Santana, mas houve apenas três casos no DF. Estes foram considerados autóctones e ficamos nisso. Os atuais indicadores de infestação mais apurados são o índice de infestação predial e o índice de Breteau. Estes não medem a real manifestação de densidade de infestação conforme comentei. Novos indicadores estão sendo testados, como os que avaliam infestação por insetos adultos. São armadilhas em que 173


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se capta o inseto adulto para ver se há muitos, se há poucos e tal. Mas elas não estão padronizadas com relação à realidade da infestação ou para definir áreas de risco porque o Ministério da Saúde faz o que se chama de mira ou levantamento rápido de insetos por amostragem. Os riscos de propagação foram classificados de acordo com modos tradicionais, ou seja, indica-se estado de alerta quando há mais de um mosquito; mais de cinco torna-se ameaça de infecção; com mais aumento o risco é maior. Esse índice não é muito confiável, mas é o que se pode fazer atualmente. Recomendam-se aprimoramento do controle vetorial e da vigilância etimológica; parceria do setor privado para coletar e dispor adequadamente os pneus usados; estudos multicêntricos para avaliação de diferentes armadilhas. Vamos nos deter um pouco em vacinas como a grande esperança que tenho. É a aposta que estamos fazendo como forma de controlar o dengue. As expectativas da vacina são altas, mas ainda não estão disponíveis. Há necessidades diárias para o estudo integrado do impacto da vacina e mais o controle vetorial. Para testar uma vacina no campo é preciso que circulem os quatro sorotipos simultaneamente naquela região e isso nunca sucede. Tanto que os estudos foram multicêntricos. Isso permitiu observar que é diferente a proteção à longevidade da vacina no controle vetorial. O controle vetorial precisa ser continuado para ser eficaz também contra outras viroses, como febre amarela, chikungunya. Vamos ver novas linhas de pesquisa voltadas a novas tecnologias para haver ação combinada. São nossas esperanças para supressão de mosquitos adultos geneticamente modificados e infectados com a bactéria Wolbachia. Ainda se propõem novos inseticidas e larvicidas para superar a resistência dos atuais, 174


mosquitos transgênicos, mosquitos irradiados com raios gama e mosquitos infectados com aquela bactéria. Atualmente, há resistência total ou parcial a todos os inseticidas que usamos, como DDT, organoclorados, piretoides, carbamatos. O Malation e o Telefoz são larvicidas que foram muito útil no passado. São outros novos métodos que estão sendo testados, ou seja, o controle biológico, os peixes arbófobos, os larvicidas biológicos, o piriproxifen e os inseticidas químicos mais seguros e de mais longa duração. Quanto a mosquitos geneticamente modificados, sabe-se que os machos estéreis fecundam as fêmeas silvestres e selvagens e a prole morre na fase de larva ou de pulpa. Ambos suprimem a população de insetos. As fêmeas morrem depois de se infectarem com o vírus do dengue. É outra linha de vetores modificados geneticamente. As fêmeas modificadas geneticamente se infectam, mas não se tornam infectantes porque morrem antes. Todos esses vetores ainda estão em fase de estudos etiológicos e não há estudos de impacto para a transmissão de dengue. Na Bahia, existe aquele núcleo urbano em que de um lado do Rio São Francisco é Pernambuco e do outro é Bahia – Petrolina e Juazeiro! Em Juazeiro, temos uma fábrica chamada Moscamed. Essa fábrica produz mosquitos transgênicos, e a produção é de um instituto da Universidade de Oxford, Inglaterra. Eles produzem os mosquitos e os soltam. Nós estivemos lá, também os soltamos. Mas em impacto etiológico emitido por indicadores não muito precisos, não mostram redução da infestação e muito menos a redução do impacto na transmissão. No presente, eles conseguiram licença para produzir esses mosquitos transgênicos também para o interior de São Paulo, mas o impacto etiológico e o impacto epidemiológico ainda não estão avaliados para podermos dizer se são medidas eficazes. Os mosquitos Aedes aegypti machos irradiados com raios gama 175


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se tornam estéreis e competem com os machos selvagens para fecundação das fêmeas sem produzir prole. O resultado seria o desaparecimento gradual da população de mosquitos. Esse é outro esquema da Universidade de São Paulo, que tem realizado isso. Isso foi feito com o Anopheles da malária, por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Não foi sucesso porque os machos modificados não conseguiram competir com os silvestres. Mas se está tentando com o Aedes. Minha aposta está sendo feita com outro tipo de Aedes. É uma tecnologia australiana com bactéria intracelular que existe nos insetos e não é transmitida aos seres humanos. Transfere-se a infecção bacteriana para sua prole, isto é, a fêmea transfere a bactéria para o próprio ovo e todos os insetos nascem infectados. Daí, há sustentabilidade para a atividade com redução da esperança de vida dos mosquitos infectados e bloqueiam a replicação dos vírus nos mosquitos. Não é que o mosquito não se infecte. Ele se infecta, mas não vira infectante. Ele está sendo testado em campo. Esta é a novidade no Rio de Janeiro. Uma área do Rio está preparada e está sendo preparado o primeiro impacto etiológico para ver se, de fato, há redução da densidade de infestação. Depois, vai-se avaliar o impacto epidemiológico, se está havendo decréscimo da transmissão de dengue nessas áreas. Há várias fases. Chegamos, em muitos lugares, a essa fase descrita, como no Vietnã, na Malásia, na Tailândia e agora no Rio de Janeiro. Obtive alguns dados para mostrar que a leishmaniose no DF existe, mas não é de grande dimensão. Temos confirmados 40 casos em 2012, 49 em 2013 e 43 em 2014, sendo 6,7,2 e 1 autóctone, de calazar visceral, com quatro óbitos, cinco óbitos, dois óbitos e quatro óbitos respectivamente. É um problema, mas suas dimensões não são grandes. 176


Temos números semelhantes quanto à leishmaniose tegumentar. Foram 47, 55, 29 e 54 casos confirmados e 5,6,2 e 0 foram autóctones. Isso é muito. Grande parte dos casos vieram de Goiás. Em 2014, houve 54 casos confirmados e nenhum foi confirmado como autóctone. Esses são dados da Secretaria de Saúde. Tivemos transmissão de malária no DF. Ocorreu em algumas áreas nos baixões do Rio São Bartolomeu e usei GPS pela primeira vez na ocasião. Vimos que estávamos a oitocentos metros de altitude e havia Anopheles, mas não durante o ano todo, segundo estudo feito pela Secretaria de saúde por meio de sua Vigilância Ambiental. Predomina em certas áreas e desaparece depois. Encontramos Anopheles darlingi no Parque Olhos D’Água ao fim da Asa Norte. Aquela água quente, limpae de baixo fluxo é um criadouro ótimo para o A. darlingi. Tivemos os últimos casos autóctones difíceis de diagnosticar porque inicialmente nenhum médico sabia como. Perguntaram-me se não era maleita. Eu disse que não havia maleita aqui no DF. Uma doutora do HRAN me disse: Vamos fazer um tratamento aqui. E tratou. Os doentes não morreram e contaram claramente o que sentiam: Olhe, doutor, eu sentia um frio, depois me dava uma febre, suava, tinha muita dor de cabeça e uma fraqueza. Foi uma figura de livro da tríade malárica. Mesmo assim, foi difícil acreditar que havia transmissão de malária no DF. Mas um doente que veio de Rondônia infectou os mosquitos e, assim, processou-se a transmissão. Agora, o objetivo é evitar a morte. Tivemos casos tristes recentemente. Uma diplomata brasileira voltou com febre em sua primeira missão na Guiné Equatorial. Ficou em um hospital privado. Quando chegaram a fazer o diagnóstico, ela já estava com insuficiência renal e edema cerebral. Mesmo com lâmina negativa, ela faleceu 177


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depois. Outro caso, também em um hospital privado, é de uma senhora brasileira que veio da Nigéria e foi tratada como se fosse hepatite porque tinha icterícia. Essa paciente faleceu. Este ano tivemos uma senhora moçambicana, de 43 anos de idade, que veio fazer um curso na Embrapa. Chegou a Brasília com uma febre que durou sete dias. Foi atendido em um pronto-socorro privado. Não sabemos se ela procurou outro serviço antes. Tinha parasitemia altíssima quando chegou. Imaginem sete dias com falcíparo. Mesmo como pessoa de Moçambique que já teve malária e com alta resistência, essa senhora veio a falecer com insuficiência renal, edema cerebral e coma. Esses eventos são muito lamentáveis. Um amigo do Maranhão nos disse: Morte por malária é caso de polícia, é falha de diagnóstico, ou por culpa do serviço de atendimento ou da própria pessoa que adoeceu. Tivemos quatorze casos neste ano. Chegamos a ter cerca de setecentos casos por ano de malária no Distrito Federal no passado. Setecentos casos importados! Tivemos um caso de transmissão por hemotransfusão em Ceilândia antes de haver o Hemocentro. Mas, em verdade, está em declínio o número de casos de malária em todo o Brasil, bem como em todo o mundo, mas por outras razões. Finalmente, posso afirmar que temos transmissão vetorial da doença de Chagas no Distrito Federal, ou seja, não temos o Triatominae e a população rural do Distrito Federal é muito pequena. Não temos aquela quantidade de fatores que favorecem a transmissão do agente patógeno, que são as casas de pau-a-pique, que favorecem a proliferação do Triatominae.Era isso o que tínhamos para expor com uma visão panorâmica dessas doenças. 178


AUDITÓRIO Acad. Dra. Rosely de Oliveira. É muito oportuno conhecer esses fatos. Aprendo cada vez mais dentro do que a gente trabalha. Temos tanta epidemia de dengue no Brasil e poucos casos de chikungunya. Pergunto se certa imunidade contra o dengue não daria imunidade contra essa virose.

Acad. Dr. Pedro Tauil. Não se sabe. Temos um caso de dupla infecção – uma associação dengue-chikungunya ocorrido na República Dominicana, América Central.

Acad. Dra. Rosely de Oliveira. Uma das coisas que sinto faltar é investimento na área de controle de doenças transmitidas por vetores. Trabalhei na Secretaria da Saúde no ápice do surto de dengue quando se encontrou dengue pela primeira vez no DF. Fui também do Ministério da Saúde e não havia casos de leishmania na ocasião. Todos os estados, todas as secretarias, inclusive no DF, estavam voltados para o dengue. Pensa-se muito contratar gente para o controle do dengue. Em leishmania ninguém pensa, e o vetor está presente entre nós. Quando atuamos na Vigilância Ambiental, foi feito um levantamento no Lago Norte. O inquérito revelou ocorrência de um absurdo de infecções sobre a população canina, que existe até hoje.

Acad. Dr. Pedro Tauil. É oportuno realizar exames rotineiros nas pessoas com quadros suspeitos. Provavelmente muitos de nós nos infectamos e não adoecemos. 179


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Acad. Dra. Rosely de Oliveira. Imagino que um investimento está em cima de dengue e o resto fica meio desassistido. Mesmo quanto ao dengue, como o Prof. Tauil afirmou, não há tanto investimento. Faltam gente, qualidade e uma série de elementos básicos. Imaginemos o que se passa com as demais doenças.

Acad. Dr. Pedro Tauil. Realmente, se não houver novas tecnologias de controle vetorial, ficaremos atrás no cenário mundial. O dengue segue sua história natural porque as medidas que temos não são eficazes. Falta qualidade de empenho e as medidas são de pouca abrangência. Sabemos que é complicada a inspeção domiciliar. Em certas localidades, em casas de pessoas pobres ninguém entra porque os traficantes não permitem. Nas casas de indivíduos ricos não se permite a entrada porque já foram assaltadas. Na Ilha do Governador, meliantes se fantasiaram de guardas, entraram e assaltaram uma casa. Fica difícil a inspeção. Conseguimos eliminar o Aedes aegypti no passado quando as cidades não eram tão complexas como são no presente. Mudaram-se essas coisas nesses cinquenta ou sessenta anos que se passaram. Lutamos muito. Em termos de Organização Pan-Americana da Saúde, em reunião no México, pedimos apoio aos norte-americanos muito tempo antes da entrada do A. albopictus e do chikungunya. Afirmamos que precisávamos erradicar novamente o Aedes aegypti do território brasileiro e do território norte-americano. Mas eles afirmaram que não tinham condições, que era impossível. A luta foi inglória.

Acad. Dra. Lucimar Cannon. Lutou-se para conseguir atuação pela Opas. Ela esteve presente àquela reunião para conseguir fazer um plano integrado ainda naquela época. Mas os 180


Estados Unidos votaram contra e argumentaram que o problema levantado não existia.

Acad. Dr. Pedro Tauil. O México também votou contra. Não houve jeito. Mas a luta é inglória porque não se consegue controle definitivo, já que esse mosquito tem grande capacidade de adaptação.

Acad. Dra. Lucimar Cannon. E o que tem de água suja hoje por aí...

Acad. Dra. Izelda Maia Costa. Pergunto sobre os inseticidas. Parecem ser mais ineficazes do que eficazes. Mas são muito utilizados apesar disso talvez por motivos políticos. Fico preocupada com os organofosforados e com a toxidade que eles apresentam. Isso não seria grave também? Usar esses agentes em água para beber penso que pode produzir riscos, sobretudo onde há crianças. O uso de repelentes é eficaz?

Acad. Dr. Pedro Tauil. Existem dois tipos de organofosforados. Um, como larvicida – o Telefoz – o qual usamos. Pode-se ingerir esse agente com a água tratada sem nenhum problema segundo a OMS. Mas já apresentou resistência larvar também. Os organofosforados inibem a acetilcolinesterase e aumentam o teor de acetilcolina. Podem causar manifestações colinérgicas como crises convulsivas naqueles que estiverem a eles expostos. Sua eficácia é baixa e a toxidade é grande. Tem ocorrido morte de pássaros nos meios em que são aplicados. Importa que 181


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os operadores façam testes periódicos tendo em vista o controle de eventos desfavoráveis. Usar repelente o dia todo e todos os dias é um problema sério porque o A. aegypti pica durante o dia, sobretudo das 9 às 17 horas. Atuam quando damos aulas na UnB, pois lá os telhados de laje estão cheios deles. Ficamos incomodados com as coceiras. O mosquito é atraído por roupas escuras. Recomenda-se uso de roupas claras e um repelente nas partes exposta do nosso corpo e este tem que ser repassado cada três horas.

Acad. Dr. Francisco Pinheiro. Achei perfeita e esclarecedora sua exposição. Diante desse acervo e dessas repetidas infestações, não seria mais eficiente do que se fez até agora aplicar o fator propaganda educacional por órgãos públicos desde a escola primária até o grau superior?

Acad. Dr. Pedro Tauil. Temos algumas experiências exitosas que ocorreram em Belo Horizonte, Goiânia e Niterói. Foram três experiências que mostraram atividade, uma articulação intersetorial com ênfase na educação do comportamento populacional. Essas três cidades tiveram um momento de glória ao conseguirem controle epidêmico das infecções. O duro é sustentar essas providências porque o dengue começa a aparecer em novembro ou dezembro e vai até maio. De maio a novembro desaparece e relaxa-se tudo. Somente está lá o Guia Nacional do Controle do Dengue em novembro. Durante esse lapso de tempo, as pessoas têm outras prioridades e diminuem a transmissão educacional. Não é que esta desapareça, mas as pessoas deixam de falar sobre o tema. Soube que nesta semana foi suspensa a coleta 182


de lixo em alguns lugares. Entrevistaram as pessoas. Disseram que dá trabalho formar o lixo seletivo e têm outras coisas que fazer. Se selecionar o lixo é difícil, imagine-se ir atrás de outras fontes de água parada como plantinhas com água no vaso. As bromélias, por exemplo, acumulam água e larvas de mosquitos. Resolvi suprimir as bromélias em minha casa. Mas é um problema ter atitudes radicais. Em Boa Vista, em 1982, encontramos Aedes aegypti em grandes barris de gasolina de avião. Há uma tampinha em cima, com uma depressão para permitir sua abertura, o que acumulou água e ali havia o Aedes! Cascas de coco nas praias com fundo branco atraem o mosquito. A educação é ponto fundamental, mas é muito difícil de ser sustentada.

Acad. Dr. Francisco Pinheiro. Imaginei o que seria um método bem eficiente e ecologicamente possível. Penso que seria menos oneroso. O que se usa até o momento não se resolveu satisfatoriamente. No Distrito Federal, praticamente essas epidemias não existiam quando eu passei pela Secretaria de Saúde. Mas agora aparecem em toda a cidade. Observo, por exemplo, o problema dos pneus como reservatórios de água parada. Por que há tantos pneus jogados se puderem ser recolhidos e usados com outros objetivos?

Acad. Dr. Pedro Tauil. Tive uma aluna da graduação na UnB que falou com uma professora que a orientou e criaram uns assentos com dois pneus revestidos. Quem for à faculdade vai ver que existem muitos pufes ali em que os alunos se sentam. É uma ótima ideia porque se aproveita o pneu usado. Penso tais pneus poderiam ser úteisl para fabricar asfalto como solução ideal, Mas dizem que é muito cara essa tecnologia. 183


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Acad. Dr. Augusto Cesar. A questão que está chegando para mim depois dessa exposição é que vamos ter de conviver com o mosquito porque o ecossistema cria uma série de situações propícias à proliferação dele. Temos o aquecimento global e a população humana mundial com sete bilhões de pessoas. Urbanizam-se cada vez mais. A produção de lixo é fenomenal e não se implementou ainda a reciclagem do material descartável. Em um relatório da organização Os Oceanos Silenciosos, comenta-se que o lixo plástico se acumula na Oceania e verdadeiras ilhas de lixo flutuante se fazem. Sofre-se um problema ambiental gravíssimo em termos planetários e os mosquitos conseguem se disseminar facilmente em todas essas áreas propícias à reprodução.

Acad. Dr. Pedro Tauil. Poderíamos conviver com o Aedes aegypti. A proposta australiana é conviver com o Aedes sem que ele nos prejudique. É preciso evitar que ele não transmita agroviroses como dengue, febre amarela, chikungunya, febre equina do leste, febre equina do oeste, mayaro e outras. Seria possível o vírus crescer no mosquito sem chegar às glândulas salivares. Este é um ponto estratégico.

Acad. Dr. Augusto Cesar. Para acrescentar a respeito do repelente, observa-se que a pele vai absorvê-lo e haveria efeitos tóxicos dignos de nota se o utilizarmos durante longo tempo.

Acad. Dr. Pedro Tauil. De fato, é inviável o uso de repelentes por todos e perenemente. 184


Acad. Dr. Augusto Cesar. Ouvi esta semana uma notícia sobre porcos, bois e frangos que são alimentados com antibióticos adicionados às rações para evitar infecções bacterianas. Cria-se resistência bacteriana. Quando a pessoa chega ao hospital com infecções causadas por superbactérias resistentes, torna-se complicado conseguir sobreviver. É árduo conviver com essas alterações tecnobiológicas dentro de um ecossistema complicado.

Acad. Dr. Pedro Tauil. A doença da vaca louca desapareceu ou está desaparecendo. Mas o que foi essa doença? Transformaram o gado vacum, que é vegetariano, em gado onívoro em certas áreas. Ele começou a se alimentar de sangue e restos de animais com a doença na Inglaterra.

Acad. Dr. Roberto Ronald. Convivo com um sitiozinho que tenho. Os cavalos do sítio são atacados por morcegos hematófagos. Tentei eliminar esses incômodos. Mas meu filho, que trabalha no Ibama, informou-nos que é crime matar morcegos indistintamente. Meus cavalos estão se prejudicando e não sei distinguir os morcegos hematófagos dos que não são. Com formigas é a mesma coisa – não se mata formigas indiscriminadamente porque conta em trabalhos científicos que esses insetos fazem parte do contexto biológico que favorece o campo. A formiga Solenopsis ou lava-pé não pode ser morta por ser carnívora e fazer parte de um ciclo de regulação ecossistêmico Como temos de proteger árvores e plantações usamos limitadores de formigas. São uns vasinhos com borda revirada para evitar que a formiga suba na árvore. Pergunto como os mosquitos se situam dentro do ecossistema? A eliminação dos mosquitos poderia trazer problemas para o equilíbrio ambiental? 185


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Acad. Dr. Pedro Tauil. Osvaldo Forattini foi um professor de Parasitologia em São Paulo, afirmou que a erradicação da varíola não vai existir porque o sistema que abriga o vírus da doença seria ocupado por outro vírus. Receamos que o ortóptero ocupado pelo agente da doença de Chagas seja ocupado por outros. Foi apaixonante a experiência australiana que está avaliando essa experiência do Rio e eu participo da comissão. Melhor é a convivência inócua com o mosquito. Matar mosquitos é um problema. Os norte-americanos criaram a aplicação de inseticida por avião e não com o uso de bomba aspersora. Foram utilizados helicópteros no combate à epidemia por dengue que ocorreu na Venezuela em 1990. Os ecologistas ficaram arrepiados com a morte concomitante de pássaros e outros seres vivos. Muitas vezes não se conhece detalhadamente o papel de uma espécie dentro desse ecociclo natural. Tivemos problemas com morcegos em minha casa. Nosso quintal frequentemente ficava cheio de fezes deles pela manhã. Resolvemos instalar ali uma lâmpada LED que se acende à noite e se apaga durante o dia. Desapareceram os morcegos. Saber se é frugívoro, insetívoro ou hematófago pode ser secundário. Eles se lambem nas colônias em que vivem e a transmissão do vírus da raiva ou de outros é geral. O papel ecológico do mosquito no mundo eu não saberia dizer. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTN-Bio), do Ministério de Ciências e Tecnologia, aprovou um projeto da Bahia que prevê a supressão do Aedes aegypti. Suprime-se a prole que não passaria da fase de larva. Não sou tão favorável a essa linha de pesquisa e acredito mais na Wolbachia, uma bactéria que existe em outros insetos. Na agricultura, há vários insetos que são infectados com essa bactéria. Assim, já é algo existente na própria natureza. 186


Sua pergunta é procedente, mas não tenho respostas. Não sei se algum zoólogo ou entomólogo poderia dizer algo. O mosquito poderia ter papel relevante em nosso ecossistema que ainda não conhecemos suficientemente.

Acad. Dr. José Paranaguá. Pretendo comentar a respeito da resposta a essa pergunta porque se trata de questão fundamental. Ficamos muito à procura de comprovações específicas em medicina. Mas há alguns princípios gerais que se adotam para tirar deduções a partir deles e chegar a conclusões. Não há por que eliminar uma espécie no sistema ecológico universal. Para que eliminar se não sabemos qual a real função dela? Parece-me que tudo no mundo tem uma explicação. Louvo sua interpretação porque também sou partidário dessa visão. Está no centro dos problemas da saúde dizer que o mercado regula tudo. Considera-se o capital externo. O mercado é uma criação humana e, como tal, precisa de controle humano. Creio que o mercado nada regula independentemente dos seres humanos. Observa-se que o vírus do dengue usa um vetor de transmissão. Somos um montoeiro de vírus. Os mamíferos – o ser humano em particular – funcionam como colônias fantásticas de vírus. A mitocôndria tem estrutura de um vírus e é parte essencial de nossas células. Encontrar formas de extermínio radical de vírus poderia fatalizar estruturas idênticas vitais para os seres vivos.

Acad. Dr. Augusto Cesar. Lembro-me de um fato ocorrido na ilha Fernando de Noronha. Fiquei lá por alguns dias e vi um enorme grupo de lagartos chamados teiús. Contaram-nos que havia proliferação de cobras por ali. Para combate biológico trouxeram o teiú por ser predador daqueles répteis. A medida 187


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foi ineficaz. Observa-se que o teiú circula durante o dia e a cobra circula à noite e eles quase não se encontram.

Acad. Dr. Edno Magalhães. Fico muito agradecido a todos pelas modernidades que nos foram expostas. Muito obrigado.

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PALESTRA BRASÍLIA 55 ANOS. E A SAÚDE? Sessão Plenária de 27-4-2015

Acad. Dr. Edno Magalhães. Confrades e confreiras. Desde o ano passado, temos conversado sobre a medicina em Brasília do ponto de vista do ensino e do atendimento entre outros aspectos. Aguardamos a ocasião conveniente para levar nossos resultados ao atual Governo do Distrito Federal. Veio-nos a ideia de dar um fecho àqueles assuntos. Para esse fim, depois de obtermos consenso entre nós, convidamos nosso único membro honorário, o acadêmico Dr. Jofran Frejat, e criamos este título – Brasília, 55 Anos. E a Saúde? – especificamente para ele.

PALESTRANTE ACAD. DR. JOFRAN FREJAT. A provocação contida no título da palestra nos faz rir antes da resposta. Temos que avaliar toda a história para vermos o que se pode fazer. Estamos todos preocupados com o que ocorre no campo da saúde no Distrito Federal e no Brasil. Vou contar um episódio interessante para termos noção do que acontece nos grandes centros do País. Eu era sextanista de Medicina, acadêmico concursado do antigo Serviço de Assistência 189


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Médica Domiciliar e de Urgência (Samdu) e da Secretaria de Saúde. Os internos iam de ambulância atender pessoas nas residências, em eventuais urgências. Numa dessas, fui chamado e colocado numa ambulância para atender um paciente em um morro do Rio de Janeiro. Naquela época, era possível subir o morro sem pedir licença aos traficantes. Fomos lá e chegamos ao último barraco daquele lugar, onde havia uma pequena sala e ali moravam o marido, sua mulher e quatro filhos. A mulher do cidadão que nos tinha chamado estava com uma crise braba de asma. Cheguei, sentei, fiz uma aplicação de aminofilina e comecei a conversar. Perguntei: E o amigo, de onde é? Ele disse: Eu sou do Piauí. A conversa me interessou, pois sou do Piauí também. O assunto teve um pé para iniciar: Mas, meu amigo do Piauí, de que lugar do Piauí?. Ele disse: São Raimundo Nonato. Perguntei: Você veio fazer o quê aqui, rapaz? Morar aqui neste morro, na favela, aqui no último barraco... Ele comentou: Olhe, doutor, eu não morava bem em São Raimundo Nonato. Era numa fazenda. Todo o dinheiro que eu ganhava, eu entregava pro dono da fazenda na vendinha dele. Comprava arroz, feijão, etc. Ganhava o salário e gastava ali. Água? Minha mulher, naquela seca, andava quase uma légua com uma lata d’água na cabeça pra trazer água pra poder cozinhar, lavar roupa, etc. Pois bem, aqui embaixo temos uma bica d’água. Minha mulher podia lavar uma roupinha pra fora. Eu sou peão de obra, só venho pra cá no fim de semana e ela já juntou um dinheirinho pra gente. Luz? Eu só conhecia de lamparina. Eu vim pra cá, puxei uma gambiarra praqui. Escola? Nem pensar! Eu não vou deixar meus filhos analfabetos. Então, eu resolvi vir para cá. Tem uma escola lá embaixo. Pode não ser a melhor do mundo, mas tem! Eu, que nunca tinha visto um médico na minha vida, chamei e o senhor veio na minha casa 190


e aplicou uma injeção na minha mulher doente. Como é que o senhor quer que eu volte? Ele tinha razão. É o que acontece no País. Os governos não investiram nos lugares nos quais precisavam investir. Se o lugar não tem posto de saúde, não tem hospital, não tem escola, o cidadão não tem nada. As pessoas não ficam lá! Também, ali, não fica o médico! Como é que o médico vai para uma pequena cidade do interior se ele não tem o mínimo de condições para manter sua família, de dar educação a seus filhos? Ele não fica lá! Realmente, estamos com uma classe praticamente negligenciada nesse sentido. Querem nosso trabalho, mas não querem nos dar condições para que possamos ter uma vida mais digna. Brasília não foi uma questão diferente. Isso que aconteceu continua a acontecer. As pessoas estão vindo de fora para o centro de Brasília. Em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte ocorre o mesmo por faltar condições no lugar de origem. Eles acabam vindo para o Distrito Federal. Mas Brasília não cresceu em extensão de atendimento proporcionado ao crescimento da população, que praticamente dobrou. Quando fui secretário da primeira vez, tínhamos um milhão e duzentos mil habitantes e se podia construir hospitais, postos de saúde, etc., o que nos dava respostas positivas. Se agora não investirmos em melhores condições de vida, as pessoas vão continuar vindo de fora e intensificar a formação do entorno que está presente. A mesma coisa existe na Ásia e na África em outra proporção. As pessoas se aventuram em botes frágeis para ir a algum lugar da Europa porque foram exploradas durante tantos e tantos anos e agora querem correr do prejuízo. 191


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Brasília tinha muito melhor perspectiva para nós. Grande parte dos que estão aqui e dos que vieram para cá naquele início de Brasília tinha perspectivas diferentes. Vínhamos daquele processo de previdência social em instituições separadas – IAPC, IAPI, IAPB, que se unificaram depois. Houve tudo isso no DF, mas havia possibilidade de ocorrer centralização de todos esses atendimentos por meio de uma rede própria da Secretaria de Saúde – a Fundação Hospitalar – que foi um modelo. Muitos de nós vieram com essa expectativa. Quando estava no Rio de Janeiro, lembro-me de que, uma vez dentro do IAPI não se podia ir para o IAPC e, dentro do IAPC, não se podia ir para o IAPB e assim por diante. Havia a perspectiva diferente em Brasília de ver alguma coisa unificada, centralizada, universalizada. Foram nossos sonhos que trouxeram muitos de nós para cá. Diante de tantos desafios, acabou-se fazendo a primeira proposta de universalização, de regionalização e igualdade de atendimento a todos. Mas esta disposição foi depois desaparecendo aos poucos. Chegamos a uma situação em que é praticamente insustentável o que ocorre. As prefeituras de várias cidades encaminham pacientes para cá com frequência. São muitas ambulâncias que nos aparecem. Vivenciamos isso há anos. Vêm pessoas até do Paraguai. Tentamos algumas soluções. É inútil dizer ao prefeito que ele precisa construir um hospital, porque ele está indeciso, desestimulado em fazer um hospital lá. Hospital dá trabalho, doente dá trabalho, médico dá trabalho, enfermeira dá trabalho, tudo isso dá muito trabalho e despesas! É preferível ter uma ambulância dada pelo Ministério da Saúde, e os doentes podem ser transferidos para o DF, e isso é o que está ocorrendo. 192


Por várias oportunidades tentamos ver se o Ministério da Saúde – até o Presidente da República conversou sobre isso – conseguiria mudar esse sistema por meio daquele propalado cartão de saúde. Se o doente fosse transferido, o dinheiro também iria para a região que o atendesse. Estamos aguardando. Importa acrescentar que Brasília tem um generoso orçamento para o setor da saúde. São quase seis bilhões de reais. Temos orçamento maior do que tem vários Estados, e a coisa não progride. Por que? Qual é a dificuldade que temos? Será desorientação política? Será má gestão? Será algo dessa ordem? Grande parte do orçamento está, no presente, encaminhada para o pagamento de pessoal, que praticamente atingiu o limite previdêncial da Lei de Fiscalização do emprego de mais gente. O caminho para o qual estão nos acenando para seguir é usar a terceirização ou as organizações sociais. Isso é bom ou ruim? Vamos ver os exemplos. Já existem terceirização e organizações sociais em São Paulo, Goiânia, Recife. Deram bom resultado? Alguma organização social ou terceirização ou algum outro setor terceirizado iria administrar um hospital sem objetivo de lucro? Iria investir em medicina preventiva, fazer vacinações? Isso não produz dinheiro! Agora, investir em atenção terciária e em procedimentos de megacomplexidades todos querem! O próprio médico envolve-se numa situação complicada. Vai para a área em que atualmente há mais rentabilidade como diagnoses por imagem, laboratórios, fisioterapia e outros ramos. Lamento dizer que muitos de nós perderam o objetivo de ciência e abandonaram esse espaço. Brasília já foi uma grande oportunidade. Muitos de nós fomos para o exterior fazer cursos pagos pela rede hospitalar e trouxemos experiência de volta. 193


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Seria um modelo o que o Governo faz ultimamente ao mandar profissionais para o Médicos Sem Fronteiras e fazer treinamentos sobre o que aqui se faz há muito tempo. Foi exemplar até certo momento, mas o modelo foi abandonado. Reiteramos que iremos sofrer a mesma situação se não investirmos em atividades no interior e nas periferias urbanas. Temos de considerar que a medicina foi judicializada. O Ministério Público tem se ocupado de muitas coisas nos dias atuais. Elaborou um documento em que a pessoa só precisa preencher na internet em relação a medicamentos e outros atendimentos de que necessita. Parece que não nos preocupamos muito com esse tipo de procedimento. Mas somos culpados. Com relação à UTI, começamos a ter tanto trabalho e tanta dificuldade, que é muito mais fácil o médico operar um doente e, se ele tiver problemas, pode ser internado na UTI porque essa unidade pode controlar o quadro clínico o dia todo. O médico clínico ou o cirurgião não tem como ficar o dia inteiro no hospital para controlar o quadro clínico complicado do seu assistido. Então, o doente vai ficar na UTI. Ouvi uma notícia interessante – estão criando um hospital só com UTI. É a UTIzação. Gostaria de saber se vão conseguir fazer um bom trabalho. No presente, as pessoas acham que o doente vai ser salvo se for para a UTI e não vai conseguir sair daquele impasse se ficar na enfermaria. Com relação a medicamentos excepcionais, grande parte entre os básicos é encaminhada para uso em doenças incomuns. Muitos sequer estão aprovados pela Anvisa, mas existe interesse de laboratórios e de alguns profissionais de que constem esses remédios na praça e trabalham para isso. A razão é que os setores 194


de doenças especiais se organizaram em associações como a dos diabéticos, dos profissionais com doenças causadas pelo trabalho, de pessoas com doenças da tireoide e outras agregações. Mas não há associações dedicadas a muitas outras doenças. Muitos casos de atendimentos especializados permanecem à míngua de recursos e disso resultam importações de medicamentos. É preciso mudar esses desequilíbrios e levar essas questões àqueles que podem distinguir uma decisão razoável. A questão não é só salarial. A Secretaria de Saúde paga razoavelmente bem, mas quem de nós está seriamente envolvido com ciência? Quantos trabalhos têm saído do Distrito Federal para os congressos? Será que já foi como antes? Penso que não é mais. As pessoas estão preocupadas com o dia a dia delas. Estão se afastando da realidade. Alguns setores, naturalmente, até agora mantêm regularidade, mas são exceções. Presentemente o profissional só quer atuar em especialidades, sobretudo naquelas que não mexam com doentes. Vai se dedicar a fazer exames de imagens ou de laboratório. Existe dificuldade de conseguir pediatra e clínico geral. Como pedir ao colega para atender trinta ou quarenta doentes nos ambulatórios do hospital ou nos consultórios de uma clínica em tempo restrito? Esse caminho que seguimos na tentativa de implantar organizações sociais ou terceirizações será eficaz? Será que esse pessoal vai trabalhar sem lucro? De mais a mais, sabemos que os hospitais particulares estão sendo englobados e comprados por grupos estrangeiros. Seremos simples empregados desses serviços. Assim, abandonamos nossas posições sem lutar por elas. É uma pena porque o médico é uma figura exponencial, inteligente, passou em um vestibular difícil, complicado. Sua profissão dá muito trabalho para exercer. 195


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São seis anos de faculdade, mais dois a cinco anos de residência médica e especialização, frequentemente seguidos de mestrado, doutorado, pós-doutorado, além da permanente dedicação aos estudos de atualização. Realmente, estou preocupado com isso faz tempo. Só temos voz até certo momento. Algumas vezes, manifestamos isso quando estávamos na Câmara Federal, mas fazem ouvido de mercador. A maioria dos profissionais da saúde que ali estão não é militante como somos. São donos de casas de saúde, donos de plano de saúde e de outras instituições privadas. Observem o que os planos de saúde pagam a um profissional. A maioria dos facultativos mais jovens saem à busca de atendimentos para exercer seu trabalho em sua especialidade. Estamos nos especializando tanto que, em pouco tempo, vamos ter superespecialidades e até especialistas em determinada doença, em distúrbios de determinada estrutura de um órgão. Os dentistas estão do mesmo jeito. Dentro da rede pública do Distrito Federal, éramos líderes nacionais em transplante renal. Atualmente, a atividade está sendo feita fora em grande parte. Alguém, dentro de um hospital público, poderia recusar um paciente? Claro que não. Mas ele fica ali na maca, no colchonete. Os hospitais das organizações sociais e os terceirizados vão continuar arrumadinhos e aceitar aquele doente ou vão mandá-lo para o serviço público? Vão mandar o enfermo para o serviço público porque não querem filas. A fila está nas marcações de consultas feitas por telefone. Os profissionais de clínicas particulares aceitam o paciente quando este tem plano de saúde. Estou muito reticente. Dediquei minha vida ao que se poderia fazer, mas as dificuldades se transmudam e persistem. Cometemos 196


erros, mas só não comete erro quem nada faz! Aceitamos tudo isso candidamente. Ficamos docemente constrangidos. Se entra um rendimentozinho e tal, vamos tocando a vida e, daqui a pouco, vamos nos aposentar e não mais teríamos de afrontar essas questões. Temos um legado para deixar para a nossa população e para nossos jovens. Tentamos uma porção de coisas no sistema de saúde, tanto eu quanto os outros que militam nesse terreno. Agimos com seriedade, estudos, trabalho, correção, decência. Queremos fazer alguma coisa mais eficaz e corretamente. Uma faculdade de Medicina foi criada e está aí para formar gente com muito conhecimento médico generalista, mas, depois, o médico vai se especializar. O grande esteio da escola são os profissionais que trabalham nela, que fazem a orientação dos jovens. Sabemos que há tentativas para produzir mudanças, trazer profissionais de fora. Todavia, o programa vai ter seu fim no dia em que começarem a trazer professores que não sejam da rede. Não vejo no Ministério da Saúde ou nas Secretarias de Saúde movimentações no sentido de modificar e solucionar essas questões. É uma pena, porque poderíamos continuar como modelo, como exemplo. Para aplicar no sistema da saúde temos o orçamento de seis bilhões de reais! Não é pouco! Raros estados do País têm isso. Quase nenhum no Nordeste. O que podemos fazer? Qual é o caminho? É a pergunta do nosso tema: E a Saúde? Não podemos ficar com a Saúde em eterno processo de promoção eleitoral. Posso dizer isso à vontade porque, quando fui secretário pela primeira vez, não existiam perspectivas de eleição em Brasília. Havia o Governo Militar. As coisas mudaram muito depois disso. Se hoje forem usar a Secretaria de Saúde 197


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apenas como objetivo eleitoral, esqueçam! Vamos chegar ao fundo do poço. Viemos de uma posição extremamente difícil que foi toda a evolução da Saúde no Brasil, da época das tentativas de melhorar o comércio exterior quando vieram o Instituto Oswaldo Cruz, o Manguinhos e os demais itens de desenvolvimento. Depois, passamos pela Previdência Social, o que foi um grande avanço. No entanto, posteriormente, retirou-se o dinheiro da Previdência que era aplicado na área da saúde. A parte relacionada ao atendimento médico, que a Previdência transferia para a Saúde, era em torno de 25% do orçamento da Previdência Social ou Seguridade Social. Isso corresponderia agora a 173 bilhões. No ano passado, o Governo estabeleceu 108 bilhões orçamentários. Mas deixou de empregar dez bilhões. Observe-se a diferença. É quase metade da dotação anterior. O Governo vai retirando o que é possível. Criou-se a Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira, o CPMF, pelo qual Adib Jatene concorreu para conseguir aplicar mais recursos na área da saúde. Acreditei que o dinheiro seria esse fim, mas houve redirecionamento para outras áreas. No interesse de resolver as questões, é preciso conseguir recursos a serem utilizados de maneira racional de modo que possamos ver os Estados com alguma coisa para aplicar no campo da saúde. Não há como impedir que alguém do entorno ou de outras partes do País venham para cá. O sistema é para todos. Brasília era a grande possibilidade de ser o modelo permanente para copiarem, mas não está mais sendo. Com a judicialização, há algum tempo, uma médica foi presa porque a Justiça mandou internar um paciente, mas ela não tinha vaga. Vamos fazer o quê? A judicialização é complicada. 198


Na Secretaria, são despachados numerosos processos para obtenção de medicamentos por dia. Em um processo de compra de um quimioterápico para câncer de mama, uma empresa perdedora entrou com processo administrativo para derrubar outra. Não conseguiu, foi à Justiça. Se vem um medicamento lançado recentemente, o Ministério Público não demonstra saber que o laboratório produtor tem interesse e coopta certos profissionais para pedirem aquele medicamento. O médico diz ao doente que ele vai morrer se não tomar tal remédio. A pessoa vai à Justiça e o Secretário da Saúde fica à mercê desse procedimento. Conversei algumas vezes com o Ministério Público, mas ali é difícil convencer as pessoas porque respondem por orientação de assessorias médicas. Ficamos expostos a pareceres que podem ser questionados diante da nossa realidade. Vejo com pessimismo nossa evolução. Imaginar que o sistema norte-americano, por exemplo, resolveria os problemas que temos com serviços particulares no Brasil é engano. Cerca de quarenta milhões de pessoas nos Estados Unidos não têm atendimento médico em instituições privadas, e o serviço público apresenta-se análogo ao nosso quanto a filas nos prontos-socorros. Sabemos que os sistemas inglês e francês estão também com problemas. Em Paris, tem havido movimentos grevistas. Há serviços de altíssimo padrão em São Paulo, mas isso ocorre com um ou dois hospitais. Em Recife e na Bahia, a situação das pessoas que procuram atendimentos e análoga à nossa. É preciso começar a reagir e conversar com parlamentares, ministros, pessoas que conhecemos nessas áreas. Não se acredita mais nos médicos. Nós, que éramos semideuses, os conselheiros de família, que tínhamos autoridade sobre as pessoas doentes, não temos mais quase nenhuma! Como 199


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exemplo comum, se indicamos uma cirurgia para o paciente, em seguida, ele vai pedir uma segunda opinião. Perdemos contato com o doente. De certo modo, desagradamos o paciente, pois ele não tem mais nome. Muitas vezes, o nome dele é “o próximo”, já que dizemos: Entra o próximo! O próximo! Essa relação médico-paciente está decaindo tanto de um lado quanto de outro. Uma parte da população nos vê agora quase como inimigos. Às portas de alguns hospitais da rede pública, o pessoal reclama: Ah, eu não fui atendido, o médico não apareceu. Faltou remédio. Faltou vaga. Estamos assistindo a essa situação passivamente, sem reação efetiva. Temos nos ocupado com as questão salariais. Mas não podemos ser desvinculados da realidade nacional. Em algum lugar, alguém tem que reagir e acho que Brasília tem que estimular o País por estar mais perto do Poder. Nossa profissão exige o sentimento especial de compaixão, de compadecimento pelo sofrimento dos outros. Sem este, não vale a pena ser médico. Estou à disposição para os senhores, para reclamações, queixas e até elogios!

AUDITÓRIO Acad. Dr. José Ulisses Calegaro. Como especialista em Brasília, parece-me que há problemas com a gestão na Saúde. Enquanto tínhamos o regime de Fundação Hospitalar, o serviço nunca parou. Sempre conseguimos soluções para manter o serviço em operação constante. Quando houve a mudança do regime para a Secretaria de Estado, a média de estagnação passou a ser de quatro meses por ano. Não trabalhamos por haver pendências financeiras de várias ordens. 200


Pelo menos entre o que tínhamos e o que temos atualmente, observamos algo que embaraça a gestão – o engessamento dela, o que impõe dificuldades quase intransponíveis. O setor em que trabalho – não só o meu, mas todas as área mais diferenciadas –, termina estagnando por tempo variável no decurso do nosso funcionamento. A impressão que tenho é de que áreas como saúde e educação deveriam ter um regime que permitisse mais flexibilidade administrativa, gestão mais célere e mais apropriada.

Acad. Dr. Jofran Frejat. Dr. Calegaro tem inteira razão. Acabou-se a Fundação Hospitalar. Não só Hospitalar, mas Educacional, Zoobotânica e outras. Na época, eu era Secretário de Saúde e me insurgi contra essa extinção. O Governo queria reduzir os impostos que as Fundações pagavam. Procurei ser enérgico para tentar convencer os contrários, mas não foi possível. Eu disse: Diante disso, tenho que tentar ver o que posso fazer. Que aconteceu? Em lugar de a gestão estar na mão do Secretário da Saúde para definir o que deveria ser feito, passou a ser atribuição do Secretário da Fazenda. Tínhamos orçamento definido e publicado. Fazíamos solicitação da cota orçamentária à Secretaria de Fazenda para as despesas e esta não a liberava. Tenho até um processo por causa disso. Este decorreu de um grande equívoco que houve com relação à Fundação. Acabaram tomando essa providência a título de economia de certo imposto. Esse fato se configurou como um grande equívoco. Houve uma reportagem no Jornal de Brasília sobre o tema com referência a que eu estava contra o fim da Fundação Hospitalar. Esses fatos tiraram a autonomia do Secretário de Saúde. 201


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Ele veio a ter problemas com a falta de liberação de cotas e consequentes dificuldades para fazer licitações e compras.

Acad. Dr. Laércio Valença. Dr. Frejat conseguiu definir o quadro em questão de forma muito feliz e precisa. Ao fechar sua exposição ele nos deixou com o sentido de preocupação, de frustração e vontade de contribuir mais. Não podemos aceitar o que está aí ou não fazer nada e deixar as coisas piorarem. Por muitas vezes levantei a ideia de que a Academia seria o local adequado para elaborar propostas por ela ser desvinculada de interesses políticos mais imediatos ou de reivindicações classistas e contar com pessoas que tiveram experiência administrativa na Secretaria de Saúde em diversos níveis. É essencial que mandassem proposições para todos os candidatos e todos os partidos a cada período de eleições. Na ausência da alternativa de cruzar os braços e deixar as coisas fluírem, ainda está em tempo de tentarmos fazer e expor propostas. O que a Academia propõe, não no sentido de apresentar uma solução que seja a ideal, que seja completamente aceita e realizada, mas no sentido do que poderíamos fazer, sempre no plano da realidade, para melhorar as situações e reduzir os incômodos. É pertinente que a Academia ponha objetivamente no papel o que poderíamos fazer para melhorar esse panorama. O que conseguirmos melhorar será um ganho. Fui Secretário de Saúde, mas estou afastado do âmbito interno dessa atividade e o que eu vejo é pelos jornais em grande parte e tenho a sensação de que as coisas estão piores. O orçamento era também restrito em nosso tempo. Mas, mesmo com um orçamento bom vamos ter os frutos dessas ações dentro de 202


meses ou de anos se as coisas não acontecerem e não melhorarem ou não nos derem alento.

Acad. Dr. Jofran Frejat. O posicionamento de Dr. Laércio é pertinente. Existem caminhos realmente. Estão implantando terceirizações e organizações sociais no momento. Alguém acreditaria que o serviço terceirizado ou a organização social irá trabalhar e administrar no âmbito da saúde sem objetivos de lucro? Alguma organização social ou terceirizada investiu em vacinação ou em medicina preventiva? Não investiram e não investem! Que está acontecendo? Existe uma programação com relação ao Sistema Único de Saúde. Este é o maior sistema de inclusão social que se possa imaginar e é maior do que o bolsa-família porque a população inteira usa o SUS e não apenas o pessoal mais pobre. Mesmo pessoas que lutaram pelo Sistema Único de Saúde, hoje estão abandonando essa proposta e interessadas em terceirização e em organização social. Estão avançando com esse objetivo cada vez mais como tentativa permanente de desconstrução do Sistema Único de Saúde que, afinal, é um bom sistema! Alguma criança com leucemia conseguia receber transplante de medula ou de coração anteriormente ao SUS? Alguém foi atendido em um hospital terciário de altíssimo custo sem que o Sistema Único de Saúde o patrocinasse? Não havia atendimento com tais complexidades e muitos pacientes morriam! Viemos de uma época em que as pessoas se despediam da família ao serem internadas nos hospitais porque ali era quase uma antecâmara da morte. Atualmente temos condições muito melhores. Estão descontruindo essas melhorias no entanto. Alguns grupos estão 203


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interessados em tomar conta do espaço e nós estamos passivos! Há pessoas trabalhando para conseguir espaço e tomar conta dos hospitais. Como reagir? Como desfazer isso? Os senhores estão aqui e as grandes cabeças pensantes não poderiam parar ou apenas observar. Acabei de receber a notícia de que todo um hospital vai ser de UTIs. Sabemos que elas não salvam todo o mundo. Poderiam as terceirizações e as organizações sociais substituir todo o serviço de atendimento público? Qual é o profissional que está satisfeito com o que o plano de saúde paga atualmente? Descobre-se que pagam uma ninharia pela consulta médica. Não apoiamos a atual política da saúde. Vão ficar nossos netos subordinados a planos de saúde, a organizações sociais ou a terceirizações? A incorporação de grupos estrangeiros será benéfica? Não se pode misturar saúde com política. Política não serve para o território da saúde. Utilizar alguém o mecanismo dessa área para se promover politicamente é um equívoco! Fica-se dependente disso ou daquilo e fazemos concessões. Empregam-se não sei quantas pessoas porque isso é interessante politicamente. Reagi a tudo que eu podia, mas sei que não é fácil. Política e saúde não são mistura de ácido e base que possa produzir bom sal.

Acad. Dr. Iphis Campbell. Ficamos um pouco deprê porque a situação parece estar sem saída. O senhor afirmou que não se faz mistura da política com a saúde, mas uma possível iniciativa dessa Academia para reunir o pensamento ou a opinião de todas as entidades médicas de Brasília não teria de passar pela Câmara 204


Legislativa? Seria possível surgir bons resultados ou nossa iniciativa vai morrer ali? A Câmara Legislativa estaria efetivamente aberta para aceitar algo que poderia trazer modificações?

Acad. Dr. Jofran Frejat. Dr. Iphis tem razão. Dr. Laércio colocou o dedo na ferida. Estamos dando diagnósticos. Apresentei soluções pessoalmente, mas não consegui realizar tudo o que pretendi fazer. A questão da Câmara Legislativa na área de saúde vai depender de quem esteja governando. Fui secretário várias vezes e posso dizer com tranquilidade que, se nos deixarmos envolver pelos interesses políticos, podem esquecer! A saúde não vai funcionar como desejaríamos. Em muitos lugares, diretores de hospitais e chefes de serviço de vários lugares são indicados por deputados distritais sem dar satisfações ao Secretário. Precisamos reagir. Já fiz palestras aqui antes, já conversei em vários outros lugares e disse repetidamente que estamos deixando passar as coisas passivamente. Com organização social, terceirização e assim por diante vamos chegar ao fundo do poço! O Hospital Albert Einstein e o Sírio Libanês são exemplos em São Paulo. Todo o mundo vai ou quer ir para lá. Quando fui atuar na área de vesícula biliar, fui parar no Hospital de Base e eu era Secretário de Saúde e deputado federal. Eu poderia ir para aqueles hospitais sem nenhum problema, mas fui para o Hospital de Base. Aqueles dois hospitais têm tanta força e tanta promoção que até são considerados hospitais filantrópicos. Não pagam a parte do empregador à Previdência Social. Deixaram de atender pacientes do SUS. Fazem treinamento de pessoas que queiram ter carreira no SUS como gestores eventualmente. 205


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Começamos a pensar em modificar as situações. Mas é difícil. Temos que pugnar pelo menos para sobrevivermos como profissionais ou vamos ser renegados. Mas temos soluções! Querem ver outra saída? É financeira e fácil de resolver. Esse pessoal que vêm de outros Estados trazem um aspecto especial. O Ministério da Saúde paga aos municípios pela densidade populacional e por atendimento. A população tem tantos habitantes e uma estimação de consulta feita com base em habitante-ano. Paga-se para aquela cidade e para aquele Estado por meio dessa base e acabou-se. Então, o que se faz? Apresentamos soluções para resolver parte das questões. Poderíamos estabelecer o cartão de saúde ou qualquer outro mecanismo pelo qual o paciente transferido de uma certa cidade para o Distrito Federal, por exemplo, ou ao contrário, possibilitaria transferir o recurso correspondente ao pagamento dos procedimentos realizados para o hospital que atendeu o doente. Isso não é complicado. Existe mecanismos de compensação por banco que é facílimos de fazer. Quando se estabeleceu a possibilidade de fazer o cartão de saúde fui conversar com o Ministro da Saúde, mas este me explicou que mexer com prefeitos é complicado. Olhem aí a política! Fui ao escritório do Presidente Lula e lhe disse que a criação do cartão iria resolver muita coisa com relação aos entornos de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas, de Brasília, etc. Mas ele também me explicou que não se poderia mexer com prefeitos em épocas de eleição. Um dos grandes erros que cometemos dentro da própria Secretaria de Saúde foi acabar com a carreira hierárquica dos profissionais. Quem mandava, quem era chefe de serviço e deixava de ser chefe virou o quê? Daqui a pouco, teremos um 206


ex-residente mandando no seu ex-chefe. No presente, acabou-se a hierarquia, não é mais o chefe quem manda, é qualquer um politicamente indicado por não sei quem. Temos de crescer. A população cresceu, mas Brasília não cresceu na sua expansão de atendimento. A não ser por funcionamento das UPAs e tal, a expansão praticamente parou nos hospitais. Os centros de saúde praticamente se fecharam e, em vários lugares, não há mais médicos. É uma pena. Realmente, gostaria muito de ter uma solução pronta e acabada, mas sabemos que todo plano pronto e acabado envelhece precocemente. Não sou contra o setor privado, muito pelo contrário! Isso pode ser ótima opção, embora restrita a pequena parcela da população. Se quisermos ir a um hospital privado ou a uma clínica privada e receber um excelente atendimento é ótimo. Mas temos que dar o mínimo de dignidade ao paciente no sistema de saúde pública.

Acad. Dr. Augusto César. Eu me lembro, Dr. Frejat, que, na sua primeira gestão, a Comissão Assessora de Psiquiatria, coordenada pela doutora Vera Azevedo, elaborou o primeiro projeto da reestruturação da assistência médica no Distrito Federal. Durante sua gestão, treinávamos os recém-criados centros de saúde, tendo como referência o Hospital São Vicente de Paula e os centros de saúde de Ceilândia e Taguatinga. Estes tinham um sistema de assistência de cobertura e de complexidade que apoiava as equipes de atenção primária que atendiam nos novos centros de saúde. Esse desenho que o senhor estabeleceu ainda é absolutamente fidedigno. Estamos diante de uma cena mundial, na qual a globalização puxa e legitima, talvez em todos os setores, a tendência de 207


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não cuidar do ser humano e cuidar do lucro. A globalização traz inversão do sentido da existência e do trabalho e, em vez de servir ao sentido de transformar a sociedade e ajudar as pessoas a serem menos infelizes, acolhe a lógica do lucro e do pragmatismo, superpostos à ética em todos os setores. Na história do SUS e da saúde no Brasil, há vários exemplos de reações e de como poderíamos nos posicionar. A história é uma ciência viva e vai nos puxar sempre para a criação de novas soluções. O SUS, por exemplo. Qualquer sistema de saúde nunca permanecerá definitivamente implantado nem consumado porque a sociedade sempre conceberá novos modelos de conduta. As situações se transformam. No presente, temos a dengue. Ressuscitam-se pragas antigas e vêm novas pragas. Com as questões do envelhecimento, surgem novas demandas, novos desafios com as doenças próprias do idoso e temos que nos reposicionar o tempo todo. Em relação a essas complexidades que o senhor nos expôs, aparecem duas questões. Uma é sobre a profissionalização da gestão. Fui gestor da Secretaria na área da saúde mental. Ao longo dessa experiência, observei excessiva carência do sentido profissional da gestão. Temos arcado com todas essas incômodas influências aqui levantadas, com apadrinhamentos, indicações, etc., sem haver proteção voltada ao próprio gestor. Este é assediado não só pelo Ministério Público, mas pela Defensoria Pública, pelo Judiciário, com indícios de sentenças judiciais com multas de cinco a dez mil reais por dia caso não seja cumprida aquela decisão sob demanda. Nesse contexto, muda-se o foco da gerência voltada à saúde para a contingência de autodefesas. Está ficando cada vez mais difícil ser gestor em saúde com um cenário desses. Poderia haver Câmaras de Conciliação, vamos 208


dizer assim, entre o Judiciário e o Executivo. Vamos nos entender quanto aos assuntos da saúde. Não vejo como dissociar as questões técnicas e políticas daquilo que precisamos para fazer determinados investimentos e cumprir custeios. Ocorre interdependência dos Poderes. É o Legislativo que autoriza os repasses orçamentários para o Executivo. A segunda questão refere-se à necessidade de medidas estruturantes de impacto que deem direção não só para a categoria médica, mas para toda a sociedade. A complexidade dos problemas da saúde é tão grande que não vejo como sair dessas armadilhas se não nos focarmos nessas medidas. É essencial fazer das carreiras da saúde, carreiras de Estado. Enquanto não tivermos essa estrutura, não vamos fazer que o SUS seja mais protegido, sobretudo em relação às terceirizações e às organizações sociais. Não me refiro somente aos médicos, mas a todas as categorias profissionais da área da saúde. O que ocorreu recentemente com o Hospital Santa Maria seria um exemplo de dificuldades que podem se generalizar. Gostaria de ter sua apreciação sobre essas duas pendências.

Acad. Dr. Jofran Frejat. Com relação à profissionalização, é preciso haver um entendimento com o Judiciário, chamar o pessoal para sentar e conversar. Tememos o Judiciário. Receamos, sobretudo o pessoal administrativo, que amanhã chegue o oficial de justiça à nossa porta e diga: Você vai ter que pagar tanto. Eles não têm conhecimento a respeito de Saúde nem das dificuldades por que passamos como administradores. Houve reclamações há alguns anos em Alagoas. A Secretária de Saúde teria de atender às demandas da população. A ministra do 209


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Supremo Tribunal foi rigorosa e correta. Disse que, quando se estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, este se condicionou a agir mediante políticas sociais e econômicas que permitam realizações. Não se pode levar apenas para o individual aquilo que pode ser coletivo, pois este é mais representativo que o individual. O Ministério da Saúde tinha uma Portaria que estabelecia os procedimentos a serem obedecidos. Mas ninguém obedece! O próprio Ministério da Saúde não encontra saída para esse processo de atendimento. Nós, profissionais, e os gestores ficamos dependendo da decisão do juiz que, muitas vezes, não tem conhecimentos afetos a muitas particularidades no âmbito da saúde. Por vezes, o Ministério Público torna-se envolvido com questões políticas e partidárias e mesmo, às vezes, trabalham em desfavor dos que fazem alguma coisa. É fácil estar em um ambiente confortável, com ar condicionado, com assessores e tal, e determinar punições para quem está dando plantão no pronto-socorro atendendo cinquenta doentes ou mais em poucas horas. Essa questão da profissionalização parece grave e séria. Dentro dela, a hierarquização. Nesse tópico, não vislumbro outro caminho a não ser prestar respeito àqueles que conhecem mais, que têm experiência, que conhecem o problema e que podem ajudar a fazer, a realizar. Uma solução que poderia ser seguida é os Conselhos de Saúde deixarem de agir politicamente no interesse de algumas pessoas e se fazerem representativos da sociedade, dizerem o que deve ser feito, terem orientações específicas e objetivas nesse sentido. Se não, ficaremos sempre nesse mesmo tipo de 210


manejo, tentando escapar. É isso que estamos fazendo. Não tenho outras soluções. Estamos, agora, correndo para tentar desfazer prejuízos. Chegamos ao ponto em que as organizações sociais estão tomando conta do sistema e estamos só a olhar e perguntar: E agora? O que é que eu faço? Estou de pleno acordo em profissionalizar a gestão. Não há como indicar, manter ou afastar o gestor por meio de impulsos políticos. É essencial não agir apenas politicamente! Na minha época, eu dizia: Aqui quem manda sou eu! Se erro, pago pelo meu erro. Se eu estiver certo, vou tocar para frente. Tenho a impressão de que o atual governador esteja sofrendo uma barbaridade de pressão por diversas áreas, inclusive no domínio da Saúde, com muitos candidatos a Secretário da Saúde. Não estou pensando nisso! Estou longe dessa história! Tenho um projeto quanto à carreira de Estado. Mas parece que o Governo não a acolhe! Como o Governo vai contratar o cubano se ele tiver uma carreira de Estado a cumprir em nosso meio? Como ele vai ajudar outro país? Temos também um projeto do Ronaldo Caiado sobre a carreira de Estado. Mas é complicado o trâmite da aprovação. Podemos estabelecer prazos, mas estes podem ser mudados. Desde a época da Constituinte, eu já apresentava essa moção. O médico, formado em escola pública, precisa permanecer tanto tempo em tal local, vir pelo Governo e tal. Nunca foi usado, não deixaram, e não deixam porque há outros interesses nessa história. Como é que um político em uma cidade vai aceitar um médico ou um enfermeiro que chegou e tal, que poderia atrapalhar a vida dele? Então, está aí o caso estabelecido. É isso que queremos? Eu não vou entrar nesse mérito! 211


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Acad. Dr. Robert Ronald. Temos duas maneiras de olhar nossos problemas no campo da saúde. Para os problemas temos soluções de curto prazo e de longo prazo. Temos bons modelos para contemplar. Se o senhor for hoje à Dinamarca, por exemplo, e tiver uma doença infectocontagiosa qualquer, vai ter enorme dificuldade em encontrar um serviço que trate de sua doença porque eles não têm pacientes com doenças infectocontagiosas e quase todos os lugares que as tratavam foram fechados. No entanto, eles têm serviços maravilhosos de doenças degenerativas. O senhor nos disse que era do Piauí. Meses atrás, tive um paciente lúpico. Mas, como alergista, não trato esse paciente. Como o doente veio de Teresina, eu o encaminhei para lá. Em Teresina há um bom serviço onde tratam lúpus. O doente precisava de cuidados imediatos. Temos que contemplar resoluções de longo prazo. Nesse contexto, temos que pensar em cultura e educação. As escolas do Piauí, principalmente as de Teresina e de Parnaíba, são de excelente qualidade. Os meninos entram de manhã, saem à tarde. Vão ter aulas de música e de línguas. Sábados e domingos os garotos têm aulas. Então, o Estado é uma medalha de ouro no campo da educação. As situações que o senhor nos expôs a respeito da saúde, infelizmente, assemelham-se a uma operação tapa-buracos. Vai se montando um serviço tapa-buracos. Trabalhei durante 35 anos no Hospital de Base. Se formos ao serviço de pronto-socorro, vamos ter dificuldades para transitar nos corredores, porque estão ocupados com pacientes nas macas e até no chão. Vi, recentemente em reportagem de televisão, um indivíduo caído ao canto de um corredor. Mas esse quadro 212


está presente em outros hospitais do DF, de Goiás, do interior da Bahia, do interior de São Paulo. Falei do Piauí como exemplo do que fazer referente à educação. A coisa mais importante para fazer neste país chama-se educação. É imprescindível termos um bom sistema de ensino, em que um garoto fica no colégio de manhã, sai de tarde e vai para sua casa de barriguinha cheia e com seus estudos em dia. Nosso problema, doutor, chama-se insuficiência de educação e cultura. Quando investirmos em boas escolas, resolveremos o problema da área da saúde e das demais áreas, pois pessoas cultas, intelectualizadas e bem educadas sabem como evitar doenças e viver em âmbitos e condições saudáveis como cidadãos exemplares. Considerando-se esses aspectos, talvez a situação da saúde no Brasil melhore muito quando tivermos mais educação e cultura e, em consequência, menos doentes.

Acad. Dr. Jofran Frejat. Realmente, educação é fundamental. Em Brasília, construímos os centros de saúde, o hospital de Ceilândia, o Hemocentro, o Hospital de Apoio. Priorizamos essas realizações para dar prontas oportunidades ao atendimento médico porque não há como fazer um sistema educacional que resolva de imediato aquilo do que precisa a população. Publicamos um artigo no qual registramos que doença não é negócio. Considerar doenças como negócio, como investimento, implicaria reconhecer que quanto mais doentes houver, mais interessante seria para os setores de atendimento particulares. A educação é um recurso indispensável para alcançarmos melhor estado de saúde da população, mas depende de 213


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necessidades paralelas. Cuba tem um sistema educacional muito bom e um sistema de saúde razoável, mas sua situação econômica é precária. Temos que trabalhar parte por parte. Não podemos abandonar nossos programas correlatos à saúde. É relevante dar-lhes continuidade. Quando se criou um centro de saúde, criou-se um lugar onde as gestantes eram ensinadas a amamentar, a cuidar dos seus filhos. O objetivo era fazer que o pessoal aprendesse nesse setor e desse continuidade ao que lhe foi ensinado. Nos hospitais, também se fazia esse tipo de ensinamento. Grande parte desse trabalho teve continuidade em algumas administrações e desapareceu completamente em outras. Educar é fundamental porque não se vai realmente conseguir melhorar o País se não educarmos a população. Não adianta a gente orientar as pessoas, dizer alguma coisa no hospital, só naquele momento do atendimento. Elas têm que estar continuamente educadas para conscientemente permanecer cuidando da sua saúde preventivamente. Se o lucro for o objetivo, não acredito que a terceirização nem que a organização social façam o trabalho de orientar o paciente nesse sentido. Reitero que a politização do cenário administrativo tem causado entraves, porque o que começamos e desenvolvemos hoje muitas vezes torna-se desfeito com as mudanças de gestores da Secretaria. Mudam-se os diretores de hospitais, muda-se a orientação, muda-se tudo. O Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, tinha um grupo administrativo que o fazia funcionar bem. Era hospital-padrão, de referência. Em Brasília, vários hospitais foram também referências. Com as mudanças foram perdendo esse espaço. 214


Acad. Dra. Janice Lamas. Atuei como coordenadora da área de radiologia da Secretaria da Saúde e vi o quanto o senhor se empenhou para melhorar o Setor de Diagnóstico e Imagem, que estava tão pobre naquela época. Quando vejo movimentos contrários e fortalecimento das instituições privadas em detrimento do hospital público, eu me lembro do que o senhor fez. A questão é que falta planejamento estratégico. Não há continuidade dos planos. Importa que os vários governantes possibilitem a continuidade dos planejamento sem que as mudanças de gestões modifiquem tudo posteriormente como se fosse necessário mudar o que foi feito. Naquela época, o senhor quis instalar dez ecógrafos na rede hospitalar para melhorar a resolubilidade dos casos apresentados pelos pacientes. Aquilo permitiu haver muito boa resolubilidade nos casos de abdome agudo e de muitos outros quadros. Houve certa resistência das clínicas privadas porque achavam que a medida iria esvaziar o atendimento dos pacientes particulares com indicação de ultrassonografias. No entanto, ocorreu o contrário, quer dizer, o ultrassom mostrou-se como método maravilhoso, simples, barato e de baixíssimo custo. Melhorou muito os resultados dos diagnósticos. Não podemos perder esses avanços. As clínicas privadas podem conviver perfeitamente com o serviço público e seus avanços técnicos. Há muito espaço para isso, e o hospital público não poderia perder sua característica principal –, a de melhorar sua assistência à população.

Acad. Dr. Jofran Frejat. Minha paixão é o centro cirúrgico. Tive que sublimar essa paixão para me envolver com a saúde pública. Ficamos frustrados ao perceber que, depois de tanto tempo de esforço, tudo o que foi feito – os centros de saúde, os 215


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hospitais, o treinamento de profissionais e tal – está realmente descambando para uma situação lamentável. Foram quase quarenta anos da minha vida passados com essa dedicação. Eu poderia estar sempre como cirurgião, um cirurgião respeitado, fazendo meu trabalho, ganhando minha vida sem todas essas preocupações. Mas isso é vocação. Não temos como voltar.

Acad. Dr. Edno Magalhães. Pelo tempo que levamos para discutir aqui todos esses temas, mostramos ao senhor que, com certeza, tudo valeu a pena. Obrigado.

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PALESTRA SITUAÇÃO POLÍTICA ATUAL DO BRASIL: UMA VISÃO IMPARCIAL Sessão Plenária de 25-5-2015

Acad. Dr. Edno Magalhães. Boa noite. Conversamos muito ultimamente a respeito das dificuldades que orbitam em torno da medicina. A Academia de Medicina de Brasília, assim como as demais do gênero no Brasil, tem obrigações com a sociedade, sobre como zelar e contribuir pela tranquilidade geral. A sociedade está preocupada com a situação política do nosso país. Em Brasília, onde a concentração de embates políticos é caracteristicamente maior do que em outras regiões do Brasil, a população está particularmente apreensiva. Tendo em vista esses aspectos, programamos para hoje uma palestra com o título A Situação Política Atual no Brasil: Uma Visão Imparcial. Buscamos um conferencista com visão imparcial a respeito do tema. Foi-nos indicado o jornalista Sílvio Costa, mestre em comunicações pela Universidade de Westminster, trabalhou na BBC de Londres, em vários jornais do Brasil, foi oficial de comunicação e mobilização do Sistema ONU em Brasília, criou a Agência Oficina da Palavra pela qual se afastou de sua principal atividade, a criação do site Congresso em Foco. Também é analista legislativo e atua como redator da Agência Senado. O métier habitual dele é a situação nacional. Conversará conosco a respeito de questões políticas nacionais e do Distrito Federal. 217


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PALESTRANTE JORNALISTA SÍLVIO COSTA. Boa noite. Espero contribuir para todos no sentido de compreender alguns elementos que parecem fundamentais em relação ao que se passa ultimamente no plano político, especialmente na esfera nacional. Vamos entrar na situação de Brasília, mas imagino que os senhores tenham mais conhecimento do que eu sobre a questão dos médicos e da saúde pública no Distrito Federal. Gostaria também de dar uma ideia do trabalho que fazemos no portal Congresso em Foco, um recurso de mídia independente que existe há onze anos. Temos depoimentos de relevantes usuários do portal gravados em nossos vídeos com o intuito de esclarecer nossa pauta. Quase todos os veículos de comunicação brasileiros e muitos dentre os internacionais usaram ou usam o conteúdo do portal como pauta para suas matérias. Nele publicamos depoimentos e distinções com o prêmio Congresso em Foco para destacar os melhores representantes dos brasileiros no Congresso Nacional. Às vezes, temos furos jornalísticos com exposições de temas provocadores de comentários sobre o Parlamento. O prêmio e a ousada pauta jornalística do Congresso em Foco são duas pontas da missão de fazer jornalismo independente e apartidário com objetivo de estimular a sociedade a acompanhar de perto os fatos nacionais e contribuir para melhorar a qualidade da representação política no Brasil. Esse duplo compromisso com o bom jornalismo e a mudança dos hábitos políticos levou o Congresso em Foco a conquistar vários prêmios jornalísticos e a se firmar como fonte de informações para sua audiência influente e altamente qualificada. 218


Em relação ao que se passa no Brasil, em especial em Brasília, gravamos imagens e declarações de presidentes e diretores de grandes empreiteiras do País. Nem todas elas entraram na História, mas grande parte delas entrou e isso representa algo expressivo em termos de reflexos políticos e de administração. Boa parte das turbulências no campo político está relacionada com a operação Lava-Jato. No Congresso atual, costumo dizer que esta é mencionada de modo disfarçado, como algo a não ser citado. Analogamente, comparamos esse particular com o que ocorre na casa de muitas pessoas quando alguém ali tem câncer. Não se fala a palavra câncer, mas se diz “aquela doença”, “fulano está com aquela doença”, com a voz em tom baixinho, em segredo. A gente vê manifestações de diferentes atores políticos fazendo certas irregularidades, em especial os presidentes da Câmara e do Senado, que são réus por ação da Lava-Jato. Muitas coisas da agitação em que o Congresso Nacional vive agora estão diretamente relacionadas com a operação policial. Costumam estabelecer outras pautas no noticiário com o objetivo de desviar esse foco. Praticamente todos os partidos importantes foram chamuscados com a atuação da Lava-Jato quando desnudou esquemas que envolvem a maior empresa do País, bem como boa parte das grandes lideranças políticas vigentes. No momento, vive-se uma crise que, no meu entender, vai muito além da crise do governo Dilma e do PT. É um conflito que envolve a forma de fazer política, hoje fortemente questionada na sociedade. Paralelamente, em razão da Lava-Jato e da questão política que ela envolve, temos um quadro de crise econômica e social profunda com aumento do desemprego e diminuição da renda pública. 219


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Muito do que aconteceu naqueles anos de PT está deixando de acontecer. O nó político, em minha visão, está exatamente relacionado com a Lava-Jato e a queda de popularidade da Presidente Dilma. Seu governo está extremamente frágil politicamente e está relacionado com o desgaste do relacionamento entre o governo e sua base no Congresso Nacional. Tal questão mistura ressentimentos e queixas antigas. O estilo Dilma em não ouvir o estilo mais autoritário e o jeito de ela lidar com o Congresso lembra-nos um filme sobre Margaret Thatcher. Nele, há um momento em que um dos seus ministros mais importantes é por ela censurado diante de tantos outros por causa de algo banal, de um pequeno erro que ele cometeu. Ele se sente absolutamente humilhado diante de todo o ministério e começa a dar o troco, torna-se a primeira pessoa a sair do campo de Thatcher e começa a miná-la. Enquanto Thatcher foi uma Primeira Ministra popular e não precisou de apoio unânime do partido conservador, que era o seu partido, não houve problemas. A partir do momento em que ela se enfraqueceu politicamente, teve problemas de popularidade. Nesse caso, cada pessoa, cada líder, passou a contar muito. Dilma está vivendo esse drama. As pessoas que deixaram de conquistar um ministro aqui e outro acolá deixaram de ser recebidos, quer dizer, todo o mundo está mais ou menos dando o troco. Há uma questão que, segundo creio, raramente é identificada com clareza nos grandes veículos de comunicação. Ocorre que a crise está hoje praticamente presente em todos os partidos políticos. Mesmo o PT demonstra contrariedades afetas aos planos que a Presidente Dilma Roussef apresentou para sair da crise econômica. Há também e inegavelmente certo desgaste no relacionamento entre Dilma e Luíz Inácio Lula. 220


Agora, há uma crise entre todos os outros partidos. O PSDB não se entende em relação a como lidar com esse cenário atual. Em determinado momento, Aécio Neves fez um gesto em direção ao impeachment, mas recuou. O PMDB está dividido e enfrenta uma refrega entre suas principais lideranças, em especial Renan Calheiros, Eduardo Cunha e Michel Temer. Cada um tem perfil próprio, bandeiras e conveniências próprias. O PSB também vive um problema de identidade, pois há uma turma que agora defende distanciamento do governo petista. Está com uma atitude mais oposicionista e outra atitude que defende maior cautela e não jogar em favor da crise para não fortalecer o campo mais conservador – a direita. A gente vê isso no Senado, por exemplo. Em um dia os senadores do PSB assinam o requerimento do BNDES, mas retiram a assinatura no dia seguinte. Márcio França, vice-governador de São Paulo, tem uma posição muito próxima à do governador Geraldo Alckmin e à do PSDB. Outras lideranças do partido, como Luiz Roberto Albuquerque, defende uma linha mais oposicionista. O pessoal do Rio de Janeiro defende um rumo mais prudente. Creio que o próprio governador Rodrigo Rollemberg, do DF, está em posição de maior prudência em relação ao governo federal. O fato é que o nó político se torna mais grave e mais difícil de desatar porque temos um problema desgastante na economia, com inflação acima da média desejada. O próprio governo anunciou que a inflação deve chegar a algo como 8% ou 8,5% até o fim do ano, quase o dobro da meta anual de 4,5%. Estamos com economia parada, sem perspectiva de retomada do crescimento econômico em curto prazo. A Petrobras vive uma sucessão de pesadelos inesperados e a situação pela qual passa virou um capítulo próprio na crise econômica, com situação fiscal muito grave. 221


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Com esses aspectos, surge a perda de confiança na Presidente Dilma. A série de intervenções que ela fez no setor elétrico, o fato de ela ter sido uma técnica da área de energia no período em que ela presidiu o País, o colapso do Proálcool e da Petrobras, o desmantelamento do setor elétrico em que, depois de promessas de contas baixas, houve aumentos altos na energia elétrica – tudo isso tirou a credibilidade dela. Quem tem dinheiro acha que não é momento de investir, que vai jogar dinheiro fora e quer ter mais segurança em relação ao cenário econômico. O governo fez propostas de ajuste fiscal que trouxeram algum alívio aos cofres federais. Houve as medidas provisórias da exoneração, em que a Presidente Dilma iria ser considerada pelos equívocos que ela cometeu. Ela dispensou cinquenta e seis setores da economia de pagar contribuição previdenciária e deu isenções parciais muito generosas a vários setores da economia. Esses setores não tiveram crescimento expressivo, o que suprimiu dinheiro da previdência. O governo fez uma medida provisória, e o Senador Renan Calheiros, em guerra com a Presidente Dilma, sequer aceitou a medida ao alegar que a medida não era urgente, que deveria ser um projeto de lei. O governo, de fato, transformou a medida provisória em projeto de lei. Foi outra decisão importante do Congresso. A Câmara de Deputados já votou, e o senado deverá votar em breve. Vai perder sua validade se essa medida não for votada dentro de uma semana. O governo incluiu, em uma das medidas do ajuste fiscal, uma fórmula nova de aposentadoria que acaba com o fator previdenciário, mas essa moção traz forte impacto financeiro à previdência, na casa de bilhões. Há muitas controvérsias em relação ao tamanho exato das perdas. Ligadas a essa medida estão pessoas 222


da área sindical que afirmam ter havido exagero em relação a esses números, mas o governo calculou o prejuízo de trezentos bilhões em dez anos. O setor sindical pondera que o fator previdenciário sempre foi considerado um negócio estranho, algo que deprecia o valor da aposentadoria, sobretudo para quem se aposenta pelo setor privado. Afirma-se que foram feitas mudanças sem conversas e de forma inesperada. Há riscos fiscais a serem contemplados nesse contexto. Outra medida recente foi a redução do prazo para concessão do abono salarial, do seguro desemprego e do seguro defesa. Creio não ser necessário trazer detalhes, mas o governo anunciou que o empregado agora só vai usufruir do seguro desemprego se comprovar ter tido dezoito meses de contratação. Contudo, reduziram a doze meses o período mínimo. O abono, que teria de ser por seis meses pela regra do governo, foi reduzido para três. Houve rejeição da norma que ampliava o prazo para pagar auxilio doença por motivo de pressão das empresas, pois estas passariam a arcar com custo maior do auxílio doença. O congresso não aceitou, e ocorreu a declaração de que os Ministros da Fazenda e do Planejamento anunciariam corte no orçamento federal. Mas o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, não apareceu. Talvez ele quisesse mandar um recado, que não estaria confortável porque ele vinha falando num corte mínimo de setenta ou oitenta bilhões. A Presidente Dilma decidiu que teria de ser 69,9 bilhões. Quem sabe, ela quisesse determinar sua autoridade. Creio que tal dissenção tenha produzido mais nervosismo e tensão aos rumos da economia. Se o Ministro Levy deixasse o governo, seria péssimo para a Presidente. Para chegar a Levy ela bateu em portas que lhe 223


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ficaram fechadas. Ela teria outros candidatos, em especial, Luiz Carlos Trabuco Cappi, Presidente do Bradesco, mas ele não aceitou. Joaquim Levy, que era presidente da Bradesco Seguros, com alto valor de salário, se tornou Ministro da Fazenda. Aparentemente, ele está determinado a levar sua missão até o fim. Outro aspecto desastroso é a hipótese de perda do controle da economia. Vemos parlamentares do PT a fustigar o governo, e a economia tem sido pauta dia e noite no Congresso. Os aliados são ultimamente os que mais vociferam dentro do Congresso. O Senador Paulo Roberto Paim e vários deputados do PT votarão contra o ajuste. O senador Lindberg Faria fez um discurso superviolento para anunciar que vai votar contra todas as medidas provisórias do ajuste. A situação é de descontrole. Embora seja um cenário de hipóteses, é o que está no universo dos eventos possíveis. Isso levaria a um quadro de aumento da insatisfação e se tornaria possível voltar a se falar em impeachment, algo que, no momento, está fora do cenário das possibilidades mais concretas. O melhor cenário do ponto de vista da economia seria o Ministro Levy sobreviver com sua força. A aprovação do ajuste parece que vai ocorrer. O Senado deve aprová-lo. Um senador me disse que Renan Calheiros não quer para ele o peso de ser quem enterrou o ajuste. Além disso, contar com o Palácio do Planalto é interessante. Assim, é possível que o ajuste seja aprovado no Senado como veio da Câmara dos Deputados. Se o Senado não aprovar o ajuste agora, as medidas provisórias só terão validade por mais uma semana. Se elas caírem, realmente será um deus-nos-acuda. Há um pedaço que talvez não fique muito claro no noticiário econômico. Circula no Congresso como o menor pedaço mate224


mático do ajuste fiscal, algo em torno de dezoito bilhões. Em verdade, a batalha no Congresso é simbólica, mensagem para investidor, para o mercado. A capacidade do governo de aprovar no Congresso algo impopular é considerada importante para a economia voltar a crescer. Dilma e Temer conseguem levar adiante a situação política. Há melhoras nos indicadores econômicos, mas não é possível ocorrer avanços rapidamente. Anuncia-se que, neste segundo trimestre de 2015, haverá números piores do que houve no primeiro trimestre, quando o PIB decresceu 0,8%. O Ministério do Trabalho e o Ministério da Fazenda estudam um projeto para autorizar excepcionalmente as grandes indústrias a amortizarem salários com redução de jornadas, como forma de evitar demissões. Antes de começar a melhorar, o panorama vai se complicar um pouco mais. Mas, enfim, em melhor cenário, haveria ascensão gradativa dos indicadores de a economia retomar crescimento em 2017, o que seria um ano de recessão. Comenta-se que a projeção oficial do governo é que, neste ano, haverá declínio de 1,2% a 2% do PIB e, no ano que vem, haverá crescimento zero ou um pouquinho acima de zero. Mas, em 2017, a economia voltaria a crescer. O pedaço que vou passar a título ilustrativo é que o Brasil tem grande quantidade de partidos políticos com assento no Congresso. Nas últimas eleições, tivemos um processo de avantajada fragmentação nas grandes bancadas e perda de parlamentares. O PT é hoje minoria. No Congresso, quem rege é o deputado Eduardo Cunha com o apoio da coalizão com o PMDB de vários partidos pequenos e nacos dos outros partidos, grandes e médios. 225


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É questão marcante do nosso congresso e da nossa representação política haver absoluta desigualdade entre o mundo real e o mundo político. O Congresso tem uma população política mais educada, mais rica, mais masculina e mais branca do que a do Brasil real. Temos uma das menores taxas de representação feminina na política. Nenhum país grande ou importante tem tão poucas mulheres a exercer cargos políticos como o Brasil. Com acentuados traços de legislaturas anteriores, temos um Congresso com representação altamente expressiva de empresários, de fazendeiros, de evangélicos. Temos proporcionalmente uma representação muito grande dos agentes policiais no Congresso. Em vários estados, o deputado mais votado foi um policial, um delegado. Houve redução do número de sindicalistas, o que também tem a ver com a redução da bancada do PT. Houve redução das bancadas de esquerda e de centro-esquerda. Há relativa queda da taxa de representatividade eleitoral. Que é essa taxa? É um indicador que estima a votação dos eleitos de um determinado estado em relação ao número de votantes. No exemplo de São Paulo, os setenta deputados eleitos tiveram, no total, 33% dos votos, ou seja, dois terços da população de São Paulo não votaram em nenhum deles. Em Brasília, a situação é semelhante, mas até um pouco menos. Em Brasília, é de 31% esse índice. Esse é um dos argumentos que se usa contra o distritão, defendido ultimamente pelo PMDB, quer dizer, ele vai dar voz exclusivamente a pessoas bem votadas. Está acontecendo expressiva tensão entre o congresso ou o sistema político e a sociedade. Em verdade, a decepção com a Presidente Dilma Roussef, motivada pelo teor do seu discurso de campanha em relação às providências que ela tomou depois de eleita e empossada. Observa-se desorganização do PT neste momento de crise. O PSDB, por seu lado, não sabe ao certo 226


para onde vai. Age para definir seu candidato de 2018. Vários partidos discutem possíveis fusões entre eles. Esse quadro criou desorientações na sociedade, que está em fase de expectativa e menos ativa. A previsão é de forte mobilização social além do que tem ocorrido. Segundo parece, um aspecto interessante que ocorre em Brasília é haver pressão contrária à administração do governador Rodrigo Rollemberg. Alega-se que ele não tomou certos cuidados no sentido de negociar e procurar estabelecer suas primeiras medidas antes de fazer gestões. De um lado surge o ex-Governador Joaquim Roriz e, do outro, aparece o PT como ventos antagônicos. Mas, nenhum desses grupos tem agora a força que teve no passado. O PP, se eu não estiver enganado, mesmo que discretamente, tem dado apoio ao governo Rollemberg e pelo menos uma parte do PT o apoia. No contexto complicado do governo federal, a gestão do Governador Rollemberg não foi muito feliz no que diz respeito à questão do diálogo com a sociedade, do convencimento da sociedade. De outro lado, uma oposição se organiza em torno de figuras como Alberto Fraga, José Roberto Arruda e Gim Argello. Há uma situação de crise fiscal, de crise política, de desmantelamento das forças hegemônicas do Distrito Federal. É o que se fala. Encerro aqui nossa parte de exposição e fico ao dispor de todos para esclarecimentos sobre o conteúdo exposto.

AUDITÓRIO Acad. Dr. José Calegaro. Sua exposição teve um foco objetivo apesar de o tema ser complexo. Mas um aspecto me 227


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preocupa. Boa parte dos problemas que afetam a economia vem dessa operação Lava-Jato que envolve uma das empresas mais importantes do País. Segundo rumores, isso ocorreria também em outras instituições de peso, como os Correios e o Banco do Brasil, que conseguiram até certo ponto frenar a eclosão de problemas nos noticiários. Se assim for, creio que iremos para um cenário pior. Não sei se esse receio tem fundamento.

Jornalista Sílvio Costa. Um pedaço da história é público, quer dizer, há várias testemunhas, inclusive Paulo Roberto Costa, testemunha importantíssima. A delação premiada dele foi um elemento supervalioso para o que o Ministério Público levasse o caso para o Judiciário e que agora está sendo investigado. Falou desse caso na Justiça e no Congresso, em depoimento à CPI, que a Petrobras era uma das empresas a serem investigadas. Na verdade, esse modo de administrar contratos por via de um cartel, pelo pagamento feito com propinas, pela cumplicidade, pela promiscuidade entre políticos e gestores públicos é modo de operar disseminado no País. Vindo esse depoimento de quem veio, a possibilidade de ser verdadeiro parece ser bem alta. Precisamos ponderar também a respeito da corrupção. A imagem atual desta é absolutamente inédita. Alguns avanços importantes têm ocorrido entretanto. Tive um professor, não me lembro de seu nome, que fez estudos em sua tese de doutorado e de pós-doutorado a respeito da gênese das empreiteiras no Brasil. Foi feita uma pesquisa cuidadosa sobre como isso aconteceu durante o regime militar. Como empresas de vários estados do País, incialmente regionais, tornaram-se nacionais. Como foi feita a legislação por meio de decretos-lei, como todo um conjunto de leis foi executado por meio de artifícios de que 228


os governos militares lançaram mão para concentrar a execução de obras públicas em poucas empresas para favorecer programas políticos. Sabemos que os desvios acarretam corrupção, que é tratada com absoluto descaso. Assim, a Lava-Jato virou inimiga de corruptos e corruptores. É uma fase de agonia. Estamos vivendo exacerbação de conflitos políticos. Temos motivos para nos preocupar. Mas, apesar da magnitude dos problemas, há passos dados para frente.

Acad. Dr. Marcos Vinicius. Em nossa última reunião, um dos nossos colegas palestrantes nos mostrou alguns aspectos graves em relação ao setor da saúde no Distrito Fereral. Estamos com receio de que o Congresso não nos represente conforme esperamos. Até que ponto movimentos à margem dos partidos poderiam representar renovações ou apenas funcionariam como linha auxiliar de grupos específicos políticos interessados em determinados objetivos?

Jornalista Sílvio Costa. O senhor está se referindo ao Movimento Brasil Livre, da marcha pelo impeachment. O grupo hoje tem uns revoltados on-line. Para mim também é um aprendizado constante. Acredito que aprendi alguma coisa, mas se aparece um nome novo, temos que pesquisar outra vez. No meu sentir, esses grupos que estão à frente do pedido de impeachment mostram-se muito insatisfeitos com a posição do PSDB. Este partido encomendou um estudo sobre o referido impeachment e entendeu que não há elementos fáticos ou jurídicos capazes de embasar um pedido de desinvestidura hoje. Calculo que esses grupos têm vida, autonomia e voo próprios. Em boa parte, representam aflições, expectativas e decepções de uma geração 229


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que nunca viu o PT na oposição. Por ser pessoal naturalmente mais novo, não presenciaram o discurso do PT contra a ditadura, contra os patrões. Quando atingiram a maioridade, viram o PT no poder e o PT é agora autoridade. Não penso que tenham vínculos orgânicos com partidos políticos, mas têm ligações com o que está se armando na sociedade, o que alguns chamam de Nova Direita. Os grupos mais empenhados na defesa do impeachment são os que claramente perfilam num campo ideológico mais conservador. Alguns deles fazem a defesa do liberalismo econômico, outros defendem a privatização imediata da Petrobras e de estatais como forma de prevenir corrupção. Eles têm vultos pensantes mais conservadores como ídolos, mas não parece que tenham vínculos com partidos. Estes estão mais longe desses grupos.

Acad. Dr. Simônides Bacelar. Como passo relevante para o combate à corrupção, comenta-se que existe, no País, certo movimento de apelo à melhora da educação e da cultura do povo. Talvez falte interesse das próprias pessoas. São cerca de onze milhões de analfabetos em nosso meio. Falta estimulo a respeito dos programas de estudo básico no País, já que grande número de estudantes abandonam os estudos muito precocemente. Em um artigo publicado hoje no jornal Correio Braziliense, soube de uma organização internacional, com sede na França, que preconiza incluir educação orientada a problemas econômicos em programas sistemáticos voltados a alunos adolescentes, pois tais programas poderiam, dentro de vinte anos ou bem menos, aumentar o PIB do país. O senhor acredita que o desenvolvimento educacional e cultural das pessoas poderia realmente influenciar o desenvolvimento 230


econômico brasileiro e, assim evitar o aparecimento das graves crises que ultimamente incomodam o País?

Jornalista Sílvio Costa. Não sou especialista em educação. Também não sou economista. Sou um jornalista que trabalha mais na área política. Gosto muito de estudar, acompanhar, ler muito sobre esse tema. Mas gostaria de citar um amigo que morou algum tempo em Singapura, um brasileiro que agora está em uma posição muito boa como executivo de uma grande multinacional. Ele nos conta a experiência pessoal que tem a respeito do tema, que me parece muito interessante, em um livro que publicou a respeito. Conta que, em Singapura, nos anos 70 e 80, a situação social, o nível de renda e os indicadores social e econômico eram muitos mais baixos que no Brasil, mas o país tinha um governo forte que resolveu investir na educação. Em Singapura, na Coreia do Sul, quer dizer, nos países que chamamos de tigres asiáticos, houve um processo semelhante. Eles começaram a fazer uma coisa lá que, no Brasil, seria impensável. Quem mais ganha para dar aulas não é professor do ensino superior, é o do ensino básico. Eles aproveitam os bambambans, as pessoas mais cultas, os cientistas, para ensinar os meninos da quinta série, quer dizer, desenvolver uma criança, logo no comecinho, o prazer pelo conhecimento, pela pesquisa, pelo estudo, curiosidade de aprender naquele momento, um momento-chave. Então, eles deram o salto lá assim. É tão diferente essa situação daquela em que vivemos neste País. Assim como o senhor, também espero que nossa situação se resolva. Infelizmente a gente vive, há algumas décadas, em uma economia que gasta muito dinheiro com juros. Temos os bancos mais lucrativos do mundo, isso não e novidade para ninguém. Mas se investe pouquíssimo em educação. 231


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Acad. Dr. Augusto César. Sua exposição foi imprecisa no sentido de fazer um balanceamento do que poderíamos desenvolver aqui. Essa questão da nossa cultura é importante. Se lermos Sérgio Buarque de Holanda, veremos a raiz do Brasil, como é que fomos formados. Estamos no gargalo de uma cultura escravista, algo intolerável que não suportaríamos contemplar à exceção das pessoas menos favorecidas, necessitadas. Em referências de Gilberto Freire, observa-se o termo “elite branca” do livro Soldados e Mucamas, de 1936. Esse termo foi recuperado e passado à atualidade como se fosse recente, mas é uma expressão antiga, do próprio Gilberto Freire. Ao ouvir sua fala, lembrei-me de eventos que cobrem nossa cultura, uma cultura de favores, cartorial enfim, uma sociedade profundamente contraditória. Alerta-se que o terceiro ator da corrupção veio afinal à mostra, que é o setor privado. Até então, o político executivo e o legislativo foram os apontados, mas agora veio também o setor privado como grande beneficiado do esquema de corrupção porque oferece 0,5% ou 1% de comissão pelos contratos bilionários, superfaturados, e fica com a maior parte. Este terceiro estava oculto, mas deve ocupar o espaço que também lhe cabe na responsabilidade pela corrupção. Só para finalizar, quanto ao Congresso não representar a sociedade brasileira no capítulo das mulheres, sabe-se que apenas 10% das cadeiras no Parlamento são ocupadas por mulheres. Agora, é preciso notificar que Dilma Roussef é a primeira mulher a ser Presidente do País.

Jornalista Sílvio Costa. Não parece ocorrer rejeição às mulheres, porque Dilma Roussef foi recordista de popularidade. 232


Não esqueçamos que seu pico de aceitação foi maior do que qualquer presidente na História brasileira. Dilma teve, durante seu primeiro governo, popularidade que nem o Lula teve em seus melhores momentos. Segundo creio, o que realmente afetou a Presidente foi o discurso que fez durante a campanha quando disse: Vamos proteger os empregos, não vamos cortar orçamentos. Declarou que iriam investir nisso, fazer aquilo. Entretanto, durante sua gestão, cortou recursos e investimentos dos programas Minha Casa, Minha Vida, bem como do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, o FIES. Os programas mais vistosos do governo e que embalaram a campanha eleitoral da Presidente foram cortados, e a guinada que ela deu na política econômica foi algo que certamente o PT não esperava. Deputados e senadores petistas revelaram perplexidade porque entendiam que o discurso de campanha era para valer. Esse tipo de política econômica não poderia vir dela. Creio que sua queda de popularidade tem a ver com essa mudança abrupta, que não foi devidamente ou atempadamente informada. Houve apenas uma sucessão de anúncios, e outros ainda poderão vir. O governo está também preparando boas noticias à frente. Pretende anunciar recursos para a agricultura e nova fase de reforma agrária. A sociedade brasileira tem sido machista. Esse preconceito se voltou contra Dilma em muitos momentos, em especial na sua campanha de 2010. Mas não frutificou no fim das contas, pois ela teve grande popularidade. Esta é a verdade. Mas as críticas feitas ao governo foram verdadeiras. Acredito que a população compreendeu assim. 233


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Acad. Dr. Osório Rangel. Parabenizo o senhor por sua palestra, principalmente por ter sido imparcial. Percebi que 70% a 80% dos parlamentares são universitários e isso me alegra muito. Temos ouvido, em várias manifestações de vários parlamentares, de vários administradores, de vários gestores que os problemas do nosso país resultam de educação desestruturada. O País precisa investir em educação. Pátria educadora tem juízo de valor. Agora, 80% dos legisladores são universitários. Temos presidentes e ex-presidentes da República formados na Sorbonne. Há quem ocupou cargo na Academia Brasileira de Letras, advogado endossado pela OAB, economistas, professores, reitores universitários. Nossa Presidente da República é economista com mestrado e doutorado. Será que a educação do pobre é que vai mudar a cabeça desses aculturados que estão na gestão do nosso país? Onde entraria a educação? Entendo que a educação, como foi citado aqui, é fator de crescimento econômico do País. Melhora-se a capacidade produtiva e o País deixaria de viver de commodities, começaria a trabalhar em material fabricado, sem precisar vender matérias-primas e comprar itens fabricados. Gostaria de saber sua opinião. Isso é o maior engano, ao meu modo de ver. Entendo que o problema não é de educação. Um dos nossos ex-presidentes é membro da Academia Brasileira de Letras, nosso presidente da Câmara de Deputados é economista e advogado, nosso presidente do Senado é advogado. Muitos advogados e médicos. Vários médicos foram gestores de instituições públicas e agora estão condenados ou mesmo correndo da polícia. Eu sou médico, mas não endosso certas atitudes. O problema seria mesmo a educação? Se eu for ao interior, como já tive 234


oportunidades de ir, a pessoa que come rapadura com farinha vai dividir a rapadura comigo, ele vai me dar uma cadeira para sentar, a cama dele para dormir. E esses nossos economistas, advogados, engenheiros, médicos, latifundiários, reitores, pastores? É educação que falta neste país? Temos outra pergunta: Que democracia é esta? Que representatividade é esta? Vai mudar o País este processo democrático que está aqui? Com quanto tempo vamos conseguir mudanças? Com os aculturados que estão aí? Essa democracia agora presente e que estamos vivendo agora vai ser capaz de mudar este país ou precisaríamos educar os que estão crescendo agora e esperar de dez a vinte anos para mudar o curso deste país? Eles vão ser capazes ou vão ser contaminados por esses políticos que estão sendo presos? Ocorreu o mensalão como exemplo. Há ainda os que temem averiguações no BNDS. Então, reitero essa pergunta para o senhor: Que significa educação para este país? Se essa educação vai mudar o PIB ou vai mudar a consciência, se o brasileiro vai passar a ser brasileiro e deixar de ser entregador do País a fazer vista grossa nas fronteiras. Precisamos de um processo de restabelecimento da ordem neste País. Esse é um aspecto. Há um segundo problema. Este processo democrático que estamos vivendo aqui hoje vai ser capaz de mudar a situação atual? Essas são as duas questões que eu tenho discutido intensamente e até escrevendo a respeito, porque o problema não é educação. Eu queria conversar com o ilustre ex-Ministro da Educação, Cristóvão Buarque, hoje um senador que defende a educação como solução para o País. A educação neste país vai formar, vai educar e vai continuar formando economistas, advogados, médicos e engenheiros como os que estão corrompendo este país, entregando nosso país para poucos. Conseguimos discutir 235


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nesse nível de conhecimentos porque somos 5% da população mais aculturada. Mas os outros 95% da população não sabem onde a coruja pia. Quinze milhões usados no programa de Bolsa Família resultam em sessenta milhões de votos. Então, gostaria de saber o que realmente o senhor vê, como homem de labuta, o que significa educação para o senhor e o que é o processo democrático que esse país vive e que precisa fazer mudanças e esperar que iremos conseguir essas mudanças com esses líderes que estão aí, fazendo o que estão fazendo com meu dinheiro do imposto que pago e pelo qual trabalho quatro meses por ano para subvencionar Petrobras e outras empresas estatais, cobrir rombos de pessoal que anda de jatinho para cima e para baixo. Eu tenho essas dúvidas.

Jornalista Sílvio Costa. Pegaria aquela parte em que o senhor se referiu à coruja que pia por quase 100%, por todos. A educação para mim é o esforço que deveríamos fazer para a coruja piar por todos. Vejo a educação como um processo não apenas de conhecimento, de transmissão de informações, de ensinamentos, mas como um processo de o povo tomar consciência do seu potencial, quer dizer, ao invés de simplesmente ser consumidor e exportador de matéria-prima, poderíamos ser produtores de práticas culturais, de criadores. Temos um povo absurdamente criativo, incrivelmente trabalhador, mas sem técnica. Vemos problemas evitáveis em quase todas as áreas. Planejamos pouco, não temos conhecimentos de técnicas que, em outros lugares, as pessoas dominam há muito mais tempo. A educação para mim é fazer a coruja piar para todo o mundo. 236


Com relação aos caminhos para mudanças, creio que é muito complexo. Para começar do jeito mais simples, citarei um filósofo popular chamado Lulu Santos, cantor e compositor. Ele tem algo interessante que tirou de um ensinamento budista: Tudo muda o tempo todo no mundo. Em verdade, a água que passa no rio – outro ensinamento budista – nunca é a mesma. Estamos em estado permanente de mudança. Os senhores como médicos, cientistas, profissionais da saúde conhecem isso com detalhes em relação ao que se passa com o corpo humano. Ocorrem mudanças desde o momento em que se nasce até o instante em que se morre. Mesmo depois da morte, o corpo continua a se transformar. Somos uma sociedade que vive momentos interessantes quanto a mudanças. Se olharmos para trás, viveremos um período em que nos víamos como reféns da inflação. Quem não se lembra disso? Achávamos que inflação era uma característica inerente à nossa formação econômica. Sempre iria haver inflação. Não planejávamos nada com prazos mais longos porque a inflação seria algo absolutamente inescapável da nossa formação econômica e social. Vimos que não é bem assim. Fazendo-se determinadas ações, tudo pode ser diferente. Vivemos um momento em que a inflação voltou a sair do controle. Durante muito tempo, observou-se que o Brasil tem sido um país condicionado à concentração de rendas. Existem mil teorias à direita e à esquerda e, no campo esquerdo, temos a vulgarização dessa teoria do socialismo ou barbárie, isto é, ou se faria a revolução socialista no Brasil com o modelo marxista, ou a concentração de problemas iria se agravar de forma tal que chegaríamos a uma sociedade bárbara, com os pobres absolutamente dominados por classes dominantes perversas. Temos toda uma construção ideológica voltada a essas indicações. 237


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Mas vimos que não é assim. Em verdade, boa parte da força do PT, nos últimos anos, deveu-se ao fato de que muitas pessoas melhoraram de vida no Brasil. A pobreza diminuiu, ainda que se possam questionar os métodos usados pelo PT na sua luta política. Esta partiu daquilo que mais prometia ética, mas passou a ter uma relação completamente cínica com a questão da corrupção, ou seja, o discurso que se passou a fazer com o tema: Os outros fazem, por que não se cobra dos outros? Isso é coisa da imprensa golpista. Com essas questões graves e complexas tivemos problemas seriíssimos em áreas como saúde, educação, segurança pública. São questões que foram enfrentadas com sucesso em vários momentos da humanidade e em diferentes lugares. Não acredito que a situação esteja ruim e vá sempre piorar. Vejo que temos algumas razões para acreditarmos que é possível melhorar em relação especificamente ao tema da corrupção. A melhora vai ser muito grande se a população, por exemplo, descobrir a existência do Supremo Tribunal Federal. O Supremo trabalha com toda uma multidão de processos contra políticos, processos que sequer são divulgados. Esses processos teriam que ser de domínio público. Todo o mundo teria que saber daqueles que defraudaram o governo, a prefeitura ou o estado, que cometeram crimes tributários e financeiros, que há casos de homicídio, de envolvimento parlamentar com o narcotráfico. Não poderia o Supremo manter esses processos sob sigilo. A sociedade tem papel fundamental a respeito. Acredito que a educação nos ajudaria muito, em seu sentido mais amplo, não apenas de formação profissional, usada para se habilitar a exercer um ofício, mas também no sentido de comunhão real com os conhecimentos que possibilitem tomarmos 238


posse de uma nação, dessa ampla comunidade ou conjuntos de comunidades que é o Brasil. Observo que temos um sistema político absolutamente injusto e disfuncional. Sabemos o que é enfrentar um candidato rico. Basicamente, a pessoa que tem muito dinheiro é eleita. Com corrupção, compraria muitos cabos eleitorais. Temos vários problemas a enfrentar. Acredito que são problemas superáveis. Teremos força para enfrentá-los? Bem, poderíamos não ter força agora. Há países que dão certos e outros não. A Alemanha e a Itália já foram colossos. A Argentina já foi um dos países mais ricos do mundo. Temos situações complexas a enfrentar. Nenhuma delas será superada sem envolvimento e mobilização social. Sabemos que o comando do Congresso está nas mãos de pessoas que realmente estão muito bem no Brasil como está no presente.

Acad. Dra. Janice Lamas. Realmente nós, que vivemos em Brasília, constantemente falamos de política. É um assunto de que todos gostam. Vemos que o País está em um regime de presidencialismo, não de coalizão, mas de computação de propinas por cargos e vai sempre ocorrer essa troca sem-vergonha. Vejo que a corrupção, para que seja reprimida, exige maior transparência nas empresas estatais, como poderia ser a questão da transparência do BNDES e que foi vetada pela Presidente Dilma. Se houver mais transparência, para o que a educação é fundamental, a população, diante dos mecanismos de transparência, vai questionar as instituições e as empresas e ver o que está sendo aplicado e realmente feito. Vejo que o mensalão serviu para revelar muitas coisas. Os próprios empresários estão agora pensando melhor, baseados 239


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no que aconteceu no mensalão com Marcos Valério, que o levou à condenação de quarenta anos de prisão. Vamos fazer a delação premiada e isso vai viver as proporções que ainda não se consegue estender bem. Foi publicado na revista Veja que Delcídio Amaral, líder do PT, em 2005, recebeu Marcos Valério que, por questões familiares e jurídicas, queria dinheiro para deixar Lula sem envolvimento público no mensalão. O que o senhor vê no Congresso, diante dessa avalanche de pessoas que denunciam irregularidades publicamente. Como está essa situação? Qual é a perspectiva desses fatos no Congresso?

Jornalista Sílvio Costa. Minha percepção é que, agora, o Congresso Nacional tem, provavelmente, uma força que jamais teve na História brasileira. É verdade que é circunstancial o que ocorre em razão da fragilidade da Presidente Dilma e da forte liderança que os dois presidentes exercem, um em cada casa, isto é, Eduardo Cunha com habilidade e um discurso mais consistente, conservador, e Renan Calheiros, mais errático, mas com grande influência no Senado. Há demandas para avaliações, percebidas pelos parlamentares, que compreendem não estarem afinados com o desejo da sociedade por renovações. Parece que se vive um salve-se quem puder, que o barco está afundando, e cada um busca seu caminho de saída. Esse material da edição da Veja deve ser entendido à luz da luta vivida no momento. No presente, a grande luta política é que se trava pelas eleições de 2018, para salvar Lula, que permanece forte, mas desgastado. O PT com todo o desgaste ainda é uma liderança carismática, mas inspira temores. Do lado dos opositores 240


tradicionais, enfrentar um Lula enfraquecido favorece Aécio Neves ou Geraldo Alckmin como opções mais fortes do PSDB. Muitos petistas defendem opções diferentes para o PT em 2018. Tarso Genro, por exemplo, está nessa linha de que é hora de o PT fechar para balanço. Ele é muito crítico com as medidas do governo Dilma e afirmou que seria um temor se Lula voltasse e, em uma eventual vitória sua em 2018, o País não lhe daria suporte na presidência. Seria uma espécie de Getúlio Vargas. Voltar ele voltou, mas não conseguiu governar. Muitos no campo do PT acham que não seria bom que Lula ganhasse a eleição. Existe todo um conjunto de coisas acontecendo que tem a ver com as investigações das quais Lula é alvo. Se ele aparecer de corpo inteiro, correrá sério risco porque ele não tem mais o foro por prerrogativa de função. Além disso, vê-se muita gente nova anti-PT na sociedade. A turma mais novata do Ministério Público não é e nunca foi petista. O Ministério Público paranaense é visceralmente antipetista. No entanto, no Ministério Público, os mais velhos são pessoas que, no passado, votaram, confiaram no PT, e alguns mantêm certa simpatia. Estamos vivendo uma situação absolutamente inédita. Os empresários tiveram punições mais amargas do que os políticos, o que sugere, talvez, que a gente viva no Brasil um quadro que, na Itália, tem sido muito analisado. Existe muita gente que faz formulação teórica sobre a Itália como sociedade de castas e, coincidentemente com o Brasil, tem um parlamento caríssimo. O único lugar do mundo em que o Poder Legislativo é mais caro do que o Brasil é a Itália. As castas políticas se protegem e vão criando um escudo. Renan Calheiros renunciou à presidência do Senado para manter seu mandato de senador. Evidentemente, estou falando como jornalista, mas não há como se conformar com essas situações como cidadão. 241


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Acad. José Paranaguá. Gostei do caráter ponderado do seu discurso inicial e das suas respostas. Quando o Presidente da Academia nos disse que iria buscar uma pessoa capaz de fazer uma análise neutra, a palavra ponderada talvez fosse mais adequada. Neutralidade é um conceito questionável, principalmente quando se fala de política. Faço uma pergunta com referência ao passado. Quando o senhor disse que gosta de estudar, imaginei que gosta de estudar aquilo que está próximo da sua área de trabalho, da sua competência porque, em sua fala e em suas respostas, demonstrou tão bem a história da atualidade, e quem gosta de estudar a história da atualidade gosta de olhar também para o passado e contextualizar a história do presente na história do passado e ver, assim, se as projeções para o futuro fazem sentido. Falamos das infelicidades ocorridas e de Getúlio Vargas. O senhor acha mesmo que algo de grave está para vir, que há um cenário negativo a acontecer em razão do que tem sido a História não só do mundo inteiro, mas do Brasil? Em Minas Gerais, havia um banco inexpressivo que teve seu proprietário eleito governador pela União Democrática Nacional (UDN) e se tornou o chamado líder civil do golpe militar. Esse banco tornou-se o maior entre os bancos do Brasil na época porque a compensação para a adesão desse líder político, como governador de Minas – o Estado que fez o equilíbrio da política no Brasil durante todo o século passado –, foi ganhar o seguro do maior projeto empresarial brasileiro, que foi Itaipu. Não precisou gastar um tostão do dinheiro que recebeu desse seguro e seu banco se transformou no mais poderoso do País durante muito tempo. 242


Entretanto, foi tão mal administrado que foi extinto dentro de um projeto de saneamento do sistema bancário brasileiro feito pelo governo do PSDB e foi um dos processos mais desconhecidos, muito pouco divulgado, tantos quantos esses processos que estão hoje no Supremo. A História está pontilhada de eventos denunciadores. Se observarmos, por exemplo, alguns discursos de Carlos Lacerda desde que ele virou a casaca e deixou de ser comunista radical para se tornar reacionário, acharemos que o Brasil iria cair em um abismo e ficar em situação catastrófica durante pelo menos duas décadas, segundo ele pontilhou em relação à política brasileira em seus discursos incandescentes. Pergunto se o senhor acha que iremos piorar, continuar sendo este país cheio de contradições e, a despeito de tudo, tem se transformado em uma das economias mais fortes do mundo, um país que tem um grau de cultura ou de multiculturalidade espantosa em relação à maioria dos países. Se o senhor citar dez países que tenham características multiculturais tão fortes, provavelmente o Brasil estará entre eles. O líder nessa área são os Estados Unidos, mas o Brasil está próximo com essa heterogeneidade cultural que temos. Não quero pedir que deixe a posição de ponderado, mas, sinceramente, o senhor acha que precisamos ficar apavorados ou podemos ficar tranquilos, que vamos continuar sendo um Brasil que vai para frente?

Jornalista Sílvio Costa. Sem querer reprisar Carlos Lacerda, penso que temos de estar vigilantes. Um colega jornalista inglês, que mora no Rio há muito tempo, disse: O Brasil é engraçado. Converso com um empresário e este me diz que para ele está tudo muito ruim. Converso com um político que também 243


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me diz que tudo está péssimo para ele. Acordo, no dia seguinte, e está todo mundo na praia, passeando, tomando banho. Vou à padaria para um lanche e ninguém fala em nenhum daqueles assuntos sobre os quais eu conversei na véspera. E o País continua com tudo igual. Vivemos tudo isso. Muitas vezes vivemos experiências. Não sei se abeiramos um abismo, mas o quase faz parte da nossa História. O golpe militar teve tentativas anteriores para impedir a posse do Juscelino, bem como a do Jango. É claro que outros eventos ocorreram, como os que discutimos agora. Realmente, o Brasil teve grandes avanços. Em perspectiva histórica mais longa, do Brasil de cem anos atrás comparado com o atual, houve desenvolvimento no País que superou em muito o desenvolvimento médio do mundo. Sem dúvida, desperdiçamos muitas oportunidades, o que não é exclusividade de nenhum grupo político, de nenhuma força política. Os militares fizeram terror no campo político, violentaram o que deve ser mais sagrado em um país como o nosso, que é a democracia. A despeito de toda crueldade, em várias áreas, eles acertaram. Ainda que as moções sejam discutíveis, aprofundou-se a opção pelo automóvel, pelo rodoviarismo, algo que também foi interessante. No início dos anos 70, as estruturas de comunicação no País, mesmo se comparadas internacionalmente, eram muito modernas. Comparado com outras nações, o Brasil já esteve em posição muito melhor do que nos dias atuais na área de comunicação. Dilma desperdiçou várias oportunidades em seu governo. Fenando Henrique Cardoso também desperdiçou, segundo creio, mas foi um grande Ministro da Fazenda. Foi um bom presidente no primeiro mandato, mas teve atuação complicada no segundo. 244


Vivemos, antes, um período de populismo cambial. Correntemente, o PSDB critica o PT por populismo econômico, mas ele também incorreu no populismo com o câmbio na época e quase levou o País à bancarrota. A eleição de 2014 curiosamente guarda uma estranha semelhança com a reeleição de Fernando Henrique em 1998. Quem estivesse bem informado saberia que o País estava quebrado. Ele se reelegeu e recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) Dilma se reelegeu em 2014. Quem tinha um pouco mais de informação sabia que ela dizia na campanha o que não era verdadeiro. Ganhou a eleição e recorreu ao Bradesco para salvar o ajuste, o contrato a que ela se referia. O grande problema é que, infelizmente, e aqui entra a educação, temos uma sociedade em que a força do marketing, da imagem, ainda elege candidatos, e a mentira muito bem embalada ganha eleições. Quem sinceramente diria que ela ganhou por seus méritos? Afirmo que não acredito nem desacredito a respeito de nada. Tudo pode acontecer, como, de certa forma, aconteceu. Acredito que nós, como nação, estamos muito distantes do papel que poderíamos ter. Vivemos momentos em nossa história de uma sociedade ativa se manifestando, momentos em que a sociedade acorda, faz alguma coisa, mas depois silencia.

Acad. Dr. José Paranaguá. A Ordem dos Advogados do Brasil está sofrendo da mesma carência de lideranças de que estão investidos todos os setores da sociedade brasileira. Há alguns anos, tínhamos alguns bispos e líderes religiosos que realmente eram de se tirar o chapéu. Atualmente não temos essas lideranças. Existe algum cardeal que vale a pena ser louvado como pessoa que defende o futuro do Brasil? O que nos apresenta 245


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hoje a Associação Médica Brasileira em termos dessa questão? O Movimento de Renovação do Movimento Médico tinha lideranças há trinta anos, mas agora amarga uma crise total sem dispor de líderes. A OAB veio de lideranças importantes, que realmente influenciaram a classe, mas está com representação debilitada no presente. O presidente da OAB é um advogado da ala do ex-Presidente Sarney. Não se pode crucificar ninguém. Estão todos juntos nesse contexto carencial de lideranças. Nos Estados Unidos, também há essa crise. Quem apostaria afirmar quem vai ser Presidente ou como vai ser a eleição nos Estados Unidos? O Partido Republicano nunca teve isso no passado histórico de cem a cento e cinquenta atrás. Está em ascendência a maior crise do mundo em representação ideológica. Parece que estamos em um cenário no Brasil em que simplesmente não há figuras carismáticas, e o espectro de Lula ainda nos assombra.

Acad. Dr. Marcos Gutemberg. Falar sobre política é empolgante. As competições são numerosas. Quer-se melhorar a qualidade de vida da população, mas, quando se dão benefícios sem controle, sem aumentar a arrecadação tributária e aumentar a base contributiva, quebram-se o estado e o contribuinte. Não temos outra equação a aplicar. Mas quero fazer uma pergunta pertinente à reforma da previdência, a respeito do polêmico fator previdenciário. Esse fator foi criado em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso. Foi criticado, e Dilma agora o defende. Interesso-me pela previdência, pela aposentadoria. Para falar sobre a aposentadoria temos que começar da infância e não quando o cidadão está com cinquenta anos de idade. 246


O fator previdenciário, em minha concepção, é algo imperfeito porque contribuimos para receber o benefício até os 60 anos de idade, mas a média de vida está chegando aos 80 anos etários. Quando se aplica o fator beneficiário para o aposentado sobreviver, pagar seu pão, seu café com leite, vamos recebê-lo até os 60 anos de idade. Daí aos 80, vamos ficar sem recursos para sobreviver. Mas o fator previdenciário vem permitir que as pessoas continuem a receber o beneficio dentro da atual expectativa de vida. Houve mudanças na idade das viúvas aptas a receber pensões porque um cidadão com 70 anos de idade, que já estava na média de vida e próximo de parar de receber o benefício, casa-se com uma moça de 20 anos. Não está no cálculo da previdência aquela viúva viver até os 70, istó é, permanecer cinquenta anos recebendo o benefício sem nunca ter contribuído para a previdência. O governo não consegue explicar isso à população e dificilmente se consegue conversar com alguém que seja a favor do fator previdenciário, algo que, em minha visão, é simples. Em resumo, por que há tanta dificuldade do governo em adotar um instrumento que acho valiosíssimo para manter o rendimento do segurado da previdência social?

Jornalista Sílvio Costa. Imagino que, em relação ao setor previdenciário, o problema é que o governo não tem pensamento homogêneo porque muitos técnicos da área previdenciária condenam o fator previdenciário. Fernando Henrique propôs ao Congresso o limite mínimo de idade. Se não me engano, eram 65 anos para homem e 60 para mulher. Aliás, esse limite é o que ocorre em diversos países. A Europa toda é assim. Nos Estados Unidos, não existe uma previdência pública como na Europa ou 247


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como no Brasil. Houve tentativa de estipular, no Brasil, a aposentadoria por idade, mas o Congresso rejeitou. O fator previdenciário foi a saída encontrada pelo governo, na época, para ter recursos necessários e tornar a previdência sustentável por mais alguns anos. Nunca se imaginou, ao se criar na época o fator previdenciário, que aquilo fosse solução definitiva. Foi mais uma tentativa de resolver problemas de caixa. Agora, há muita gente que questiona o fator previdenciário porque, na prática, causa muita injustiça. Na aposentadoria, ao fazer o cálculo de ganhos por meio do fator, muitos ficam profundamente injustiçados em relação, por exemplo, a quem começou a trabalhar mais tarde. O cidadão tem muitos anos a mais de contribuição, mas tem a aposentadoria depreciada porque com a aplicação do fator previdenciário quem se aposenta por este não se aposenta mais pelo teto. Na previdência privada, o teto é pouco mais de R$ 4 mil. Então, há muita crítica em relação ao fator previdenciário, tanto dos técnicos, quanto do pessoal do PT, que não gostam do fator previdenciário. O próprio Lula criticou esse fator. Fazer previsões no Brasil é sempre um horror. Mas penso que, no Congresso, provavelmente o Senado vai manter a regra aprovada pela Câmara. Dilma vai vetar e propor de novo o fator previdenciário com a regra, segundo dizem, dos 85-95 ou 100-105. Essa regra finge dar alternativa, mas, na prática, quando o cidadão fizer as contas, vai continuar se aposentando pelo fator previdenciário. A margem de manobra do governo é tão pequena que talvez não enfrente a questão da previdência com essa profundidade a que o senhor se referiu. É um ponto fundamental que diz respeito ao futuro do País, mas o governo não vai querer fazer isso. 248


Acad. Dr. Marcos Gutemberg. Só há uma forma de acabar com o fator previdenciário ou criar outro instrumento semelhante. É atualizar as alíquotas de contribuição com a média de vida. A partir do momento que a expectativa de vida aumenta, tem-se que aumentar a alíquota. Só que não fazem isso. Mas não existe outra fórmula.

Jornalista Sílvio Costa. Uma coisa curiosa sobre esse assunto é que Edimar Bastos, um dos principais economistas e pensadores do PSDB, em uma entrevista para o jornal Valor Econômico, afirmou que se queria mesmo acabar com o fator previdenciário e aplicar a aposentadoria por idade porque aí se evitaria a distorção nos cálculos do benefício que o fator realmente comprime e estabelece alguma folga de caixa para ter a aposentadoria por idade. Agora, quem aprova aposentadoria por idade no Congresso? Quanto à segunda parte da pergunta em relação à comunicação, de fato, o governo se comunicou e se comunica muito mal. Parece que o PT é bom em marketing, mas ruim em comunicação. No início da formação do partido, o diretor da TV Globo em São Paulo, petista, fazia as campanhas de graça, fazia as coisas de coração e, daí, ele fazia aquela coisa de “experimente PT”. Era uma estrelinha bonitinha e animada. Era diferente de todos os outros marketings. Chegada a hora da propaganda do PT, mesmo a pessoa que não gostasse do partido, queria ver o marketing porque foi tudo feito com graça e talento. Desde cedo, o PT entendeu as manhas da publicidade e do marketing. No entanto, nunca compreendeu tópicos como comunicação e jornalismo e faz uma confusão enorme. A pessoa que faz algo que não o agrada é golpista. 249


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Não que inexistam, evidentemente, veículos interesseiros e maus profissionais. O fato é que há pouca sofisticação na forma com que o PT lida com a comunicação, com o jornalista e com a imprensa, o que nem sempre dá certo porque muitos dizem que, se quiserem fazer publicidade, tudo bem, mas não significa necessariamente que implique parcialidade. O governo gastou carradas de dinheiro em publicidade. A imprensa que o PT diz ser golpista recebeu cerca de três milhões por ano do governo como pagamento de publicidades, mas ela não deixou de publicar, por causa disso, as coisas que deveria publicar como jornalismo.

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PALESTRA BRASIL, 2015. PARA ONDE VAMOS? Sessão Plenária de 29-9-2015

Acad. Dr. Edno Magalhães. Boa noite. Confreiras e confrades, senhores convidados, amigos, esta é uma noite particularmente feliz para nós porque temos o privilégio e a honra de, pela segunda vez na história desta Academia, receber o Ministro Carlos Ayres Britto. Suas referências abordam o tema Brasil 2015, Para Onde Vamos? Ministro, por favor, fique à vontade.

PALESTRANTE MINISTRO AYRES BRITTO. Muito obrigado, boa noite. Volto com muita honra e muito gosto a esta Academia de Medicina e falar num tom coloquial, como quem convence ao pé do ouvido, com positividade, mais em tom de diálogo do que de monólogo, com o intuito de abrirmos um debate. No presente, a gente se convence de que Nietzsche estava certo. Nada nos aprisiona mais do que as próprias convicções, pois toda convicção é uma prisão. Ele chegava a dizer que o contrário da verdade não era a mentira, mas nossas convicções. Quando Cristo disse: Conhecei a verdade e ela vos libertará, quem sabe, ele não quisesse dizer: Conhecei a verdade e ela vos libertará 251


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de vós mesmos, das vossas convicções. Seria como dizer que o grande desafio existencial é a permanente abertura para o novo, ou seja, minha única questão fechada é a abertura para o novo. Creio que, se disséssemos assim todos os dias, teríamos a ganhar mais com isso e viver melhor. O tema é falar sobre o Brasil dos dias correntes na perspectiva de encontrar algum caminho, o que nos espera, se há saída para essa crise que parece dúplice – política e econômica, agravada pelo fato de que não temos uma eleição próxima para Presidente da República porque, quando a crise política e econômica se dá num ano de eleição há expectativas de mudança, como que essa perspectiva de eleição absolva a crise e os responsáveis por ela. Esta crise é política porque é de governabilidade. Vamos convir, ninguém está aqui para fazer oposição nem para agravar as feridas da situação partidária, mas para conversar sobre o Brasil e sentir profundamente o País. Temos de pensar grande e, quem sabe, ajudar na formulação de uma agenda que nos tire dessa enrascada. Outro dia, eu estava em Aracaju conversando com um comerciante muito famoso na cidade, vendedor de móveis. Perguntei a ele: Então, como está a situação, o movimento? Ele disse que estava sem movimento, que tudo estava parado. Perguntei por quê. Ele respondeu: Porque quem comprava e tinha o hábito de comprar fiado sem pagar não está comprando. Então, a situação está realmente difícil e não se pode tapar o sol com a peneira. A crise é de governabilidade. O Poder Executivo de fato e de direito é constituído de três chefias. O Presidente da República é o chefe da administração pública, das políticas públicas e do governo. Elabora o plano das relações com o Congresso Naciona, 252


com a edição de medidas provisórias, com veto e sanção dos projetos de lei. O Poder Executivo compreende chefia da administração, de governo e de estado. Se o estado brasileiro, em suas relações internacionais com outros estados, se a Presidente da República não vai bem nas três dimensões do Poder Executivo, a crise é de governabilidade, de mal desempenho do exercício do cargo de Presidente da República. Se a época é de colheita escassa, quem é responsável pelo plantio do roçado? Estamos no segundo mandato da Presidente e ela está colhendo o que plantou nos últimos quatro anos. Claro que se pode dizer que há uma crise internacional desde 2008 e que o mundo atravessa uma crise econômica bem mais séria. Mas houve países que fizeram bem o dever de casa, como a Alemanha, por exemplo, e estão enfrentando essa crise com certa sobranceria. Ao que parece, não fizemos bem o dever de casa. Agora, é uma crise de governabilidade que se caracteriza como crise política porque a governabilidade, assim precária e de má qualidade, reflete-se na precariedade também do teor de representatividade da Presidente da República. Falo com toda a frieza, como penso. Posso estar equivocado, mas tenho que ser honesto intelectualmente, tenho que dar minha opinião. Pessoalmente eu me simpatizo muito com a Presidente. Fui presidente do Supremo Tribunal Federal e todas as vezes que eu despachei com ela, longamente até, colhi a melhor impressão dela, de uma pessoa comunicativa, sensível, educada, atualizada. Mas o fato é que o tempo passou e o desempenho da Presidente, como governante, caiu. Os indicadores estão aí. São o câmbio, a inflação, o nível de desemprego, de investimento. A avaliação do Brasil por agências internacionais fornece dados objetivos e indicam um período crítico para a vida do País nesse 253


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plano da governabilidade. Então, ninguém ou, pelo menos, o grosso da população já não nutre pela Presidente da República uma admiração, um bem-querer ou uma confiança. Há outro fato objetivo. No último dia 7 de setembro, fiquei perplexo ao perceber que a Presidente da República não teve condições de fazer seu discurso para o País e não fez seu pronunciamento. Então, a crise é política, é de governabilidade, reflete déficit de representatividade e tem produzido uma crise econômica, uma coisa puxando a outra, ou seja, crise econômica, desemprego crescente, falta de investimentos. A crise econômica causada pela crise política parece que se vinga da crise política, e as duas ficam se estapeando no tablado do Palácio do Planalto. Como parece, o point da crise é o Palácio do Planalto. É preciso também ver luz no fim do túnel. Creio que há luz no fim do túnel e vou explicar. Com calma, imparcialidade e toda a sobranceria importa ver que, no plano governamental, o fundo do poço é como no plano pessoal. É difícil a gente não conhecer o fundo do poço quando enfrentamos crises mais sérias, por exemplos, de amor, de família, de saúde, de finanças ou de ordem profissional. O problema não é crise de existência, mas existência de crise porque esta a gente encara, analisa e tenta superar. Assim é no plano coletivo também. Que quero dizer com isso? Acredito que a Presidente não despencou para o fundo do poço. O buraco é longo, ela está em queda livre, mas ainda julgo que não é o fundo do poço. Ainda que fosse, o fundo do poço, convenhamos, pode ser de areia movediça, mas pode ser de molas ejetoras a depender de quem despenca. Temos molas ejetoras para a hipótese de a Presidente continuar em queda livre e bater no fundo do poço. Haveria esperança de sua sobrevivência se, antes de submergir no areal 254


movediço, fossem acionadas as molas ejetoras? Eu diria que sim. As molas têm nome – elas se chamam Constituição. Brinco com meus alunos ao dizer que há uma propaganda televisiva de um posto de combustível de gasolina com respostas para tudo. Chega um garoto ou um adulto e pergunta a um homem parado diante das bombas, e as perguntas são as mais díspares e insólitas, convenhamos, de parto de onça a atracação de navio. O indivíduo pergunta: Onde é que eu encontro isso e isso? O sujeito do posto responde: No posto tal. Eu não vou dizer o nome do posto para não fazer propagandas, mas esta Constituição tem respostas para tudo. Por que é a Lei Maior do País? Não é só pelas respostas, mas porque ela tem duas características. A primeira é que é materialmente expansiva, regula muitas matérias. Foi chamada até de Constituição Prolixa porque, quando foi promulgada, tinha 245 artigos na parte permanente e 70 artigos na parte transitória. Nunca se viu uma Constituição assim tão próxima ao estilo obeso, uma Constituição que não fez regime de emagrecimento. Pelo contrário, açambarcou matérias que tradicionalmente eram de outros âmbitos jurídicos, do Direito Penal, do Direito Administrativo, dos âmbitos eleitoral, trabalhista e ambiental. Ela trouxe muita coisa para seu corpo normativo, o que, de início, parecia desvantagem. Mas, com o tempo, percebemos que não é ruim. A gente pode tirar partido disso porque é só perguntar à Constituição que teremos uma resposta sobre qualquer tema. Por exemplo, sobre financiamento empresarial de campanha, pergunte à Constituição. Redução da maioridade penal pode ou não pode haver? Pergunte à Constituição. Sobre impeachment, pergunte à Constituição. Então é ótimo, porque se a Constituição é a lei maior do País e é observada e consultada a todo instante, 255


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é nela que vamos buscar os antídotos para debelar crises, os caminhos para novos rumos, a possibilidade de viver com o máximo de segurança jurídica. A Lei Máxima, se observada, tem a propriedade de nos assegurar um estado de máxima segurança jurídica, chamado estado democrático e constitucional de direito. Outra característica desponta como a principal, principiológica porque é copiosa de princípios como dignidade da pessoa humana, cidadania, soberania, pluralismo político, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, desenvolvimento, redução das desigualdades regionais e sociais, legalidade, publicidade, impessoalidade, moralidade, eficiência. É uma Constituição cheia de preceitos jurídicos de valor. Podemos nos orientar por valores e não praticar, digamos, a ética da conveniência, da circunstância, do fisiologismo, do politicamente correto, dos valores, que dá à sociedade coesão e ao indivíduo, centralidade. Os indivíduos que gravitam na órbita dos valores têm a possibilidade de caminhar na direção de si mesmos, de buscar seu ponto de centralidade, de colocar sua autoestima no ponto certo. Em torno dos valores, a sociedade tem possibilidade de buscar o consenso, a coesão, de transformar-se até de sociedade em comunidade, o que constitui uma diferença de qualidade. Por exemplo, não há modelo maior de comunidade do que uma família. Esta é igualzinha a uma nação. Rui Barbosa escreveu que a nação é a família amplificada porque, tal como uma família, uma nação é mais do que uma população, que é uma categoria demográfica e econômica. É mais do que o povo, pois este é uma categoria jurídico-político e nação é uma categoria exclusivamente política, tem todo o direito à sua mercê. É a nação que elabora uma Constituição, estalando de nova, novinha em folha. Zera a contabilidade jurídica anterior e parte para a epopeia do 256


começar tudo de novo juridicamente. A nação, instância deliberativa e normativa, é maior e mais importante do que o povo, do que a população. Ernest Renan, historiador francês, afirmou que a nação é uma alma, um princípio espiritual. Fernando Pessoa afirmou que as nações são mistérios e cada uma é um mundo todo à parte porque nenhuma nação é como certa linha imaginária entre o passado, o presente e o futuro de um povo. É um povo, porém tridimensionalmente considerado. Numa família, temos a perspectiva, o visual, ainda que simbólico e mental, não físico, da ancestralidade e da posteridade. Exatamente, essa linha imaginária em ter a ancestralidade e a posteridade é o que se tem com a ideia de nação. A Constituição é nosso grande patrimônio objetivo, que nos torna um país juridicamente primeiro-mundista. Se o Brasil é primeiro-mundista em alguma coisa, ele o é juridicamente. Como observou Nelson Rodrigues, temos certo complexo de vira-lata. Somos um pouco mais masoquistas, sentimo-nos mal quando estamos bem e sentimo-nos bem quando estamos mal. Estou falando juridicamente. É como afirmou Milan Kundera no livro A Insustentável Leveza do Ser, em que conta a história de uma mulher que tudo o que queria na vida era ser liberada do companheiro. Antigamente dizíamos amante, mas esta ficou uma palavra carregada de preconceito. Mas ela receava a reação do companheiro, que poderia ser violenta. De repente, ela propõe a ele a separação e ele aceita pacificamente, civilizadamente, e ela começa a se sentir mal, porque estava bem. Então, a insustentável leveza do ser significa que, muitas vezes, pesam em nossos ombros não as dificuldades da vida, os percalços, mas a leveza. Quando a gente se encontra sem problemas começa a se sentir mal. A gente diz: De que me queixo eu? Se fizermos a pergunta com sinceridade, vamos responder: Olha, de nada, 257


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minha vida corre tão bem, resolvi tudo. De que me queixo eu se não de mim mesmo. Não é assim? A Constituição é nosso maior patrimônio objetivo e não é só porque é a Lei Maior do País, mas porque ela é boa, intrinsecamente de boa qualidade, porque é consagradora daquela democracia de todo povo civilizado, de todo povo de democracia consolidada e de desenvolvimento também assegurado e sustentável. Ela é uma Constituição que consagra a democracia liberal, a social e a fraternal e, como eu disse, a diferença que existe entre casa e lar. Alguém já viu na porta de uma residência: Vende-se esse lar, ou Casa Doce Casa? Não, porque o lar é um plus de qualidade em relação à casa. A comunidade é um plus em relação à sociedade. Numa comunidade, as pessoas se querem bem, as pessoas se admiram, têm confiança umas nas outras, sabem que partilham da mesma sorte, experimentam a agradabilíssima sensação de pertencimento. Dizem: Olha, se eu pertenço a essa comunidade, aqui é o meu chão. Na vida, isso aqui é o meu mais seguro chão, sólido chão. Então, temos essa Constituição que nos habilita a compreender que ela criou dois blocos de instituições públicas. Primeiro bloco, o das instituições que governam, ou seja, o Legislativo e o Executivo. O segundo bloco é o das instituições que não governam, mas impedem o desgoverno, a saber, Polícia Federal, Ministério Público teoricamente, Tribunais de Contas e Poder Judiciário. A Constituição hipotetiza a possibilidade de disfunção de desvios no âmbito do primeiro bloco, das instituições que governam, mas não hipotetiza a possibilidade de disfunção do âmbito do segundo bloco, que é o das instituições impeditivas do desgoverno porque, se este segundo bloco entrar em disfunção, a nação sofre, o povo, o País, todos sofrem de colapso cardíaco, um mortal ataque do coração. 258


O que fazer se nenhuma instituição prestar? As instituições vão deixar de ser locomotivas sociais. Aí, tem-se que começar a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para começar tudo de novo. Não é o caso do Brasil. Que quero dizer com isso? Que não estamos, a meu sentir, experimentando uma crise das instituições. Experimentamos algo ruim, mas não é tão catastrófico assim, já que é uma crise de governabilidade centrada no Palácio do Planalto e, mais de perto, na figura da Presidente da República, que perde a olhos vistos condições de liderança, de confiança, de admiração e compromete a pureza da sua representatividade política. Ela pode se recuperar? Ainda há tempo? Eu responderia sim. Se a crise é de governabilidade, é preciso radicalizar a compreensão de que é necessário mudar radicalmente os métodos de governo com toda coragem e audácia. Goethe afirmou que, na audácia, há poder, gênio, mágica e magia. É preciso romper com esse modelo de estado caracterizado por uma substituição do que é válido. O que é válido? O presidencialismo de coalisão programática. Acontece que esse modelo de coalisão no âmbito do Executivo foi danosamente substituído por um modelo de cooptação fisiológica e até a gentalha, uma espécie de ovo da serpente, o que se poderia chamar de feudalização, aparelhamento do estado, grilagem das verbas orçamentárias distribuídas fisiologicamente. Houve ocupação, em torno de 29 mil cargos em comissão só no âmbito federal, não pelo critério meritocrático, mas dos acordos partidários fisiológicos. Ovo da serpente, do assalto sistemático ao erário, como, por exemplo, o mensalão. Então, de um lado, temos desalento por ver essa crise de governabilidade que, no fundo, deitou raízes com uma crise ética 259


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que abandona os padrões de comportamento moral previstos na Constituição, os padrões para engendrar um projeto de poder. O projeto de governo é lícito e válido porque tem duração de quatro anos e é exposto com toda a explicitude em campanhas eleitoral. Os candidatos dizem quem são eles, quais são suas ideias, qual sua trajetória de vida, o que pretendem e, se eleitos, o que irão fazer no exercício dos cargos políticos. Isso é projeto de governo. Projeto de poder, porém, é diferente porque ele visa à perpetuação do exercício dos cargos a qualquer preço e ter governabilidade a qualquer preço. Isso é antirrepublicano porque impossibilita a renovação dos quadros de dirigentes. Outro tremendo ovo de serpente é a parceria público-privada em matéria eleitoral, campanhas eleitorais financiadas pelo poder econômico. Em muito boa hora, o Supremo Tribunal Federal, na semana passada, exorcizou essa influência do poder econômico no processo eleitoral, ao estabelecer que não pode mais haver financiamento empresarial de companha porque, vamos convir, o empresário não doa recursos para nenhum candidato, ele faz um empréstimo, um investimento, vai buscar adiante o que aplicou. Depois, deveríamos praticar no Brasil uma espécie de jus litteratura, quer dizer, é preciso atentar para o significante elementar, gramatical, semântico, das palavras do Direito. Que é eleição? É uma disputa entre políticos registrados como candidatos a cargos públicos, periodicamente ocupados. É uma forma de investidura eletiva popular dos cargos eminentemente políticos no Parlamento e nas chefias do Poder Executivo. Mas ainda não estou satisfeito. O que é eleição? Pode-se dizer que eleição é uma competição, um concurso público, tipificado pelo fato de que seus candidatos são políticos, registrados por partidos políticos, em coligações, na Justiça Eleitoral. Os examinadores desses concursos e dos candidatos são os eleitores. São 260


eles que vão dar nota e dizer quem vai ser eleito e quem não vai ser eleito, quem vai governar e quem não vai governar. É a soberania do voto, artigo 14, cabeça da Constituição. Mas, na prática, a empresa não tem voto, mas é quem elege. Como é que a gente aceita, durante anos a fio, essa contratação, esse embuste, essa mistificação das coisas? Empresa não tem voto, mas é quem elege! Que é candidato? A Constituição define candidato com todas as letras. Vamos ao dicionário. Encontramos candidato como cândido, puro, limpo eticamente. O que é candidatura? A Constituição a estabelece como candura, pureza, limpeza ética. O que é partido político? Partido é parte, parcela, facção de opinião pública política, ideológica. Um grupo de pessoas na sociedade se identifica com siglas partidárias, a ponto de, muita gente, filiar-se a esse partido ou candidatar-se por ele, ou tornar-se dirigente dele. São esses simpatizantes, militantes, dirigentes, filiados, que deveriam financiar o partido. Mas não aqui. Os partidos nem se interessam mais pelo financiamento natural e legítimo das suas despesas e campanhas, feito por filiados candidatos, dirigentes, simpatizantes. Vão atrás de financiamento público e, como se fosse pouco, vão atrás do erário. Agora, é curiosa e profundamente desalentadora, a renitência com que esse mau hábito de sangrar o erário é antigo no Brasil. O padre Antônio Vieira, num trocadilho muito bem formado, dizia que os governadores chegam pobres às Índias ricas e retornam ricos das Índias pobres. Eles não apenas se enriqueciam, mas saqueavam as províncias, deixando-as no casco. Isso é explicado. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, quem chegou primeiro foi o Estado, que se preocupou com o território para colonizar, para ali implantar instituições, escolas, igrejas, 261


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família, empresas. Quem chegou primeiro aos Estados Unidos foi a sociedade civil, um grupo de religiosos, tangidos por dissidências religiosas. Esse grupo migrou da Inglaterra para a América do Norte a fim de fundar uma nova e definitiva pátria. No Brasil, até hoje, somos sequelados juridicamente e politicamente porque foi o Estado que chegou primeiro. Tudo é estatal, liderança, propriedade. Todas as terras brasileiras foram proclamadas como públicas, pertencentes à Colônia Portuguesa. Daí em diante, a gente sabe como as coisas funcionam. Os norte-americanos, na hora de proclamar sua independência, fizeram tudo de modo corretíssimo. Adotaram, em 1776, uma forma confederativa de Estado. Entre as treze primeiras colônias, cada uma era um estado independente. Onze anos depois, em 1787, transformaram a Confederação em Federação, mas distribuíram o poder político geograficamente, por pessoas jurídicas, chamados estados, com Poder Legislativo, Poder Executivo, Poder Judiciário, com população própria e divisão geográfica de poder político. O que fizemos em 1822? Constituímos um Estado unitário e centralizador geograficamente. Então, os norte-americanos proclamaram a República como forma de governo e a Federação como forma de Estado. Que é República? Coisa pública, res publicae. Que visão do poder temos entre órgãos equilibrados, harmônicos, independentes, dois deles, Executivo e Legislativo, com a eletividade popular como forma de investidura nos cargos, desconcentração da autoridade política? Que fizemos como forma de governo? Monarquia, governo de um só, com tudo o que cerca uma monarquia. Uma elite, um estamento aristocrático de condes, barões, marqueses, duques e por aí vai. A monarquia clonou os maus hábitos da colônia, e a república, identicamente, clonou os maus hábitos da monarquia. 262


Uma vez, em uma roda de amigos no Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade, o poeta, estava presente e as pessoas começaram a falar mal da República. Como é possível? Estamos há tantos anos de República e parece que estamos em uma monarquia. Nos Estados Unidos, quando alguém se mete a arroz com casca, sempre aparece alguém para dizer: Quem você pensa que é? Aqui, no Brasil, não. A tônica, é: Sabe com quem está falando? Drummond observou: Caiu a corte, não os cortesãos. A história institucional do Brasil é ruinzinha e temos que admitir. Por isso, estamos sequelados, politicamente, juridicamente, eticamente. O Brasil está perdido? Não, absolutamente. Temos vicissitudes e muitas. Somos criativos, improvisadores, alegres, abertos. Somos artisticamente, principalmente musicalmente bem dotados. Nosso musicalismo até que supera o da a América do Norte em muitos aspectos. Somos países que dispõem de música com ótima qualidade. Mas temos, no Brasil, maior variedade de ritmos, somos exímios em percussão e as letras de nossas músicas são bem estruturadas. São relíquias poéticas como: Toda a gente homenageia Januária na janela. Até o mar faz maré cheia para chegar mais perto dela, de Chico Buarque. De Paulinho da Viola e Hermínio de Carvalho: Não sou eu quem me navego, quem me navega é o mar. Ainda Djavan, nos versos sociais mais lindos da língua portuguesa: Sabe lá o que é não ter, e ter que ter para dar, na música Esquinas. Também Caetano Veloso ao dizer: Oh, bruta flor do querer, coisas assim. Temos Ivan Lins. Olhem que hipérbole: Oh, Madalena, o meu peito percebeu que o mar é uma gota comparado ao pranto meu. Quando à música A Travessia, um jovem, que morreu meses atrás com 68 anos, parceiro de Milton Nascimento, Fernando Brant, cunhou os versos líricos talvez mais bonitos da língua portuguesa: Sonho feito de brisa, vento vem terminar. 263


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Antes, Orestes Barbosa com Silvio Caldas compuseram a canção Chão de Estrelas: A porta do barraco era sem trinco, mas a lua, furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão, e veio o arremate: Tu pisavas nos astros, distraída. Não há como não dizer que este país tem jeito. Agora, é preciso muita seriedade. Muitos pares de olhos são necessários para enfrentar esta crise. Uma vez, eu estava lendo um livro daquele uruguaio genial, Eduardo Galeano. Ele escreveu que um garoto morava no interior e tinha um pai que era representante comercial, um caixeiro viajante. O sonho do filho era conhecer o mar e pedia sempre ao pai para conhecer o mar. Um belo dia, no aniversário do garoto, de 8 ou 9 anos, o pai disse: Chegou seu presente. Entre aqui no carro porque você vai conhecer o mar. E seguiu. Três ou quatro horas depois, desceu à praia, pegou a mão do garoto, procurou a duna mais alta. Venceu o areal e, quando chegou lá em cima e o garoto viu aquela monumental estrutura líquida, o mar, com aquela cambiância de cores, ora verde, ora prata, ora azul, ora escandalosamente azul, verde e prata, – o garoto tremendo de cima abaixo disse ao pai: Pai, ajude-me a ver. Aquilo era beleza demais para seus dois pequenos olhos apenas. É o que está acontecendo com o Brasil, e o problema é grave e difícil demais para ser resumido por dois pares de olhos, quatro ou cinco. É preciso um projeto coletivo nosso, de uma agenda para o Brasil. Vamos ser propositivos. Claro que as pessoas dizem: Se a Presidente não dá mostras de cooperar quanto aos rumos do País e muda radicalmente sua concepção de estado, de governo e de governabilidade, a gente tem que tirar isso de todo jeito. A saída é o impeachment. É preciso cuidado com o que se vai pedir a Deus, pois que ele pode atender. Não se pode pular a cerca da Constituição. 264


Impeachment, ao meu sentir, não cabe senão por ato praticado com crime de responsabilidade, na fluência de um mandato corrente, atual, presente. Aí, diz-se: Mas, o que ela fez no passado está imune? Não, ela pode responder penalmente junto às instâncias penais, às instâncias eleitorais, às instâncias de contas, às instâncias civis. Ela pode até perder o mandato penalmente porque, quando há condenação penal transitada em julgado, o condenado tem seus direitos políticos automaticamente suspensos. Ela não pode continuar no exercício do cargo. Agora, não se leva de roldão o vice-presidente. Se ela for condenada pelos Tribunais de Contas por uma pedalada fiscal, ela pode receber multa, receber imputação de indébito, ser considerada inelegível por tantos anos, mas isso não é crime de responsabilidade. Pior do que pedalada fiscal é pedalada constitucional. Ela responde a uma ação dura e difícil na Justiça Eleitoral. Uma ação de impugnação de mandato eletivo por atos praticados no exercício, no mandato passado. Pode perder o cargo? Pode, mas não é crime de responsabilidade. Daí, indagamos: Mas o que é crime de responsabilidade? É outro tipo crime. Há infrações penais, infrações civis, infrações de contas, infrações eleitorais e infrações político-administrativas funcionais, infrações funcionais chamadas de crime de responsabilidade, artigos 85 e 86. O crime de responsabilidade é muito grave porque implica a desinvestidura do cargo de Presidente da República por uma decisão, não do Poder Judiciário, não do Tribunal de Contas, mas do Parlamento, atuando num momento de receber acusação pela Câmara dos Deputados, no momento da condução do processo e julgamento pelo Senado Federal. O crime de responsabilidade ocorre porque não temos o recall. O que é recall? Certos países têm isso. Quem elege pode deseleger. Quando o presidente é 265


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muito ruim, pode-se convocar uma espécie de plebiscito do povo, caso se queira deseleger, desinvestir o presidente. Mas, o fato é que não temos recall nem temos parlamentarismo no Brasil e, assim, não se pode, com o voto de desconfiança de todo o gabinete, cair todo o mundo. Então, não podemos dar à Constituição uma interpretação que conduza o que, no fundo, seja o mal disfarçado voto de desconfiança parlamentar, seja um mal disfarçado de recall. Não podemos fazer isso, somos um povo civilizado, temos que respeitar a Constituição. Crime de responsabilidade é um crime tão grave que implica irresponsabilidade do Presidente da República governar de costas para a Constituição. É uma peremptória recusa dessa ideia civilizada, jurídica, democrática, de que a Constituição governa quem governa, que governa permanentemente quem governa transitoriamente. Crime de responsabilidade é um atestado de inadaptabilidade do Presidente da República à ordem constitucional. O bem jurídico a preservar é a Constituição. Contra quem? Contra um Presidente da República tão arredio à ordem constitucional que passe a praticar atos caracterizadores de um estilo de governo afrontoso, insultuoso, acintoso à Constituição, a ponto de levar o parlamento a esse terrível dilema de ter que escolher entre sua Constituição e o Presidente da República. Isso é crime de responsabilidade. Aqui eu termino. Vamos abrir o debate e sou todo ouvidos. Estou à disposição de todos.

PALESTRANTE Acad. Dr. Leonardo Lima. Ministro, considero-me um simples cidadão que vê o correr dos dias preocupado com nossa 266


crise, que não é política apenas, mas jurídica, há muitos anos, e por herança, como o senhor observou. Temos um Poder Jurídico moroso. Não julgo confortável ver o Terceiro Poder, o Supremo Tribunal, sendo eleito pelo Presidente da República. O concurso da Presidência da República está perfeito, assim como para os deputados e os senadores, como representantes do povo. Para os ministros do Superior Tribunal e outros do Poder Judiciário, os concursos não poderiam ser feitos senão passando por provas reais, como temos na Academia e em várias outras instituições. Isso não ocorre no Brasil. Então, a partir desse princípio, vislumbro um desconforto que paira sobre nossos juristas. Sabemos que, graças a Deus, todos desejam atuar condignamente. Todavia, essa eleição efetuada pelo chefe do Poder Executivo acarreta influência política direta e partidária. Tal ocorrência pode deixar nossos juristas vulneráveis perante os poderes Executivo e Legislativo. Gostaria de que o senhor nos avaliasse essa questão. Outra pergunta simples: Tem o STF o poder de encaminhar uma investigação sobre ex-presidentes sem, no entanto, nada acontecer? Em minha interpretação como leigo, poderia ocorrer influência política superposta a juízes, ex-juristas e policiais, enfim, a toda a parte jurídica do País, e ser esta tão expressiva que a barreira à realização da justiça seria muito grande. Vemos que a governabilidade é uma crise. Mas não haveria um problema crônico, não apenas oriundo do governo, mas de sua má posição? O parlamentarismo não poderia ajudar nesse aspecto e em outros? Penso que o problema é muito mais grave do que pensamos. Gostaria de que o senhor falasse também sobre isso.

Ministro Ayres Britto. Excelente intervenção e boa análise. O modelo de investidura dos ministros do Supremo nos 267


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respectivos cargos é o norte-americano. Seguimos a Constituição norte-americana. Lá, o presidente da República indica o ministro da Suprema Corte, e a indicação passa pelo crivo do Legislativo, volta para o Executivo, e este não interfere. A mesma coisa ocorre no Brasil. O Presidente da República indica ao Congresso Nacional um nome para Ministro do Supremo, que é submetido a duas instâncias, ou seja, primeiramente à Comissão de Justiça, para a chamada sabatina ou arguição pública. Depois, o plenário do Senado se pronuncia. Se houver rejeição, acaba-se tudo. Se não, o nome aprovado volta ao Presidente da República, que, em Sessão Ordinária, expede um decreto para a nomeação em referência. Então, entra em cena o Terceiro Poder. O próprio Supremo vai marcar a data da posse e conferir o exercício ao novo Ministro. É, assim, um processo político, puramente e eminentemente político. Por que é assim? A única resposta lógica possível é que os Poderes, em uma República, relacionam-se ora por independência, ora por harmonia. A harmonia dos Poderes tem de considerar o Parlamento, o Presidente da República, que pode iniciar um processo de lei, e o próprio Supremo, que pode também iniciar um processo de lei em certos assuntos. O processo do Supremo vai para o Parlamento. Se o Parlamento aprovar, vai para o Executivo sancionar ou vetar. Os três poderes funcionam no âmbito do que se poderiam chamar atos expressionais da harmonia dos Poderes. Essa categoria da harmonia precisa de atos que a concretizem e a viabilizem. No caso do Supremo, é preciso entender que o processo é político. Consumada, porém, a investidura com a posse e o exercício judiciário do nomeado, o que tem de fazer o empossado? Cortar o cordão umbilical com as instâncias políticas precedentes. Por 268


quê? Porque agora sai do palco a harmonia do rito processual da investidura e entra em cena a independência do Poder Judiciário. É como uma obrigação de ser ingrato em relação às autoridades políticas, condutoras dos processos iniciais. Não é artificializar a independência, não é para o Ministro mostrar à sociedade que é independente e, para dar demonstração de independência, começar a fazer oposição ao Parlamento ou ao chefe do Poder Executivo. Não é isso. Mas é, a partir dali, posicionar-se com isenção, com imparcialidade, com altanaria. Na prática, sabemos que é preciso certa coragem para assumir a independência porque, no Brasil de tradição colonial, monárquica como a nossa, os vínculos de subalternidade entre os poderes são muito fortes. Mas há antídotos. Estamos vivendo sob uma Constituição que cria esses antídotos, obriga, empodera o Judiciário. Mas cria antídotos. Obriga as exceções dos Tribunais e as audiências dos juízes serem públicas, divulgadas, como sabemos, até por televisão, internet, rádio, jornal. Depois, todas as decisões têm de ser fundamentadas tecnicamente. Mais do que isso, ela se expõe a um sistema recursal. Não há Tribunal nem juiz que não opere sob o olho vigilante não só do corpo de cidadãos como também do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia Privada, da Advocacia Pública. É mais um sistema de Justiça do que um Poder Judiciário. Ainda temos o Conselho Nacional de Justiça, que exerce poder de correição administrativa e financeira sobre os magistrados diante do Supremo Tribunal Federal. O CNJ não tem jurisdição nem atuação junto ao Supremo Tribunal Federal. Teoricamente, eu apenas substituiria a investidura vitalícia por um mandato de oito ou nove anos para não coincidir com o de senador. Desse modo, o Ministro já saberia que, ao entrar e 269


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ter exercício por pouco tempo, iria voltar às bases depois sem se perenizar. Se ele tivesse um rei na barriga, a possibilidade de perecer de parto iria ser grande por ser permanentemente cobrado pela sociedade. Teríamos, então, um equilíbrio entre empoderamento e antídotos. O direito procura livrar o juiz de si mesmo, salvá-lo de suas fraquezas, de suas morosidades, de seu autoritarismo, de sua pose ou de sua desatualização cognitiva. No âmbito do Judiciário, a venalidade é um dos crimes que dão embrulhos ao próprio Lúcifer, porque o juiz que faz de sua caneta um-pé-de-cabra, permitam-me a excessiva coloquialidade da metáfora, é o bandido no meio do mundo. Ultimamente, com as redes sociais e as plataformas abertas sem controle de conteúdo e fornecidas pelos provedores de conteúdos da internet, por exemplo, as autoridades, inclusive as do Judiciário, estão vigiadas, policiadas e cobradas o tempo inteiro. O Brasil evoluiu a ponto de podermos dizer que não se pode impedir a imprensa de ser a primeira entre os recursos usados para divulgações, nem o Judiciário de se expressar por último. Mas, sobrepairando o Judiciário e a própria imprensa, temos a internet, a comunicação internetizada, que é planetária, on-line, interativa, transmitida em tempo real. Não quero ser romântico, quixotesco ou otimista demais, entanto penso que a desonestidade individual, tópica, vai prosseguir porque há tantas pessoas com vocação para a delinquência que é algo impressionante. Mas o enquadrilhamento, o crime de colarinho branco, é planejado por organizações cada vez mais sofisticadas e até cosmopolitas. Não vou dizer que esse tipo de crime esteja com os dias contados, mas vai experimentar muita dificuldade. O cruzamento de dados eletrônicos no âmbito das instituições impeditivas do desgoverno é uma realidade 270


poderosíssima, imperiosa, e a possibilidade de descobrir tudo é muito grande. A operação Lava-Jato conta com mais de trezentas pessoas envolvidas na operação, ou seja, polícia, Ministério Público e Judiciário apuram tudo. Vale a pena ser honesto. Aliás, a forma mais inteligente de proceder é ser honesto. Quem é honesto não teme nada. Não teme a polícia, a imprensa, o Ministério Público nem a Justiça. Vou terminar lembrando que morei por 33 anos em Aracaju, na Avenida Beira Mar, 15.º andar. Eu ficava ali, como fiquei anteontem, vendo aquela lua escarlate. Uma poetisa, amiga minha do Rio Grande do Sul, Elvira de Macedo do Nascimento, disse-me: Viste a lua ontem? Uma gama de cores. Monet estava lá. Bonito isso, não? Sobretudo em fins de semana, poeta que sou, eu permanecia ali, às dezoito horas, para ver as garças voltando para seu ninhal, um manguezal muito bonito, encorpado entre o asfalto, a maré, o rio e o mar. Assim, três lâminas d´água, lindas, uma atrás da outra, formam uma paisagem belíssima. Eu via aquelas garças voltando, aos bandos, para o ninhal ao cair da noite. Antes do pouso, executavam um passo de dança, como algum tipo de coreografia, uma levitação, um cuidado especial na hora do pouso. Na manhã seguinte, eu acordava cedo para ver a decolagem. Elas batiam em retirada do manguezal que é um lameado como todos sabem. Quando elas levantavam um voo cuidadoso, meio levitacional, antes propriamente de bater de asas em direção ao céu, elas passavam rentes ao meu apartamento e eu as olhava. Nenhuma delas tinha a menor mancha negra de lama no alvor das penas. Eu dizia para mim: Essas garças fazem esse pouso tão cuidadoso, esse subir quando o dia amanhece também tão cuidadoso, não é por preocupação asséptica, é ética, como que mandassem 271


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uma mensagem para nós, seres humanos: Vivemos aqui, neste lamaçal, mas não nos contaminamos. Não é esse o desafio de todos nós? Até porque, se a gente não rezar pela cartilha da decência, mais cedo ou mais tarde o cruzamento eletrônico de dados vai nos pegar. É conversar com o travesseiro e perguntar: Qual é o melhor modo de ser honesto, de ser inteligente? O travesseiro vai dizer: Só há um modo de ser mais inteligente – é ser honesto e decente. Estamos caminhando para isso? Eu diria: Olhe bem! É um salto quântico. Significa a pessoa mudar, não de comportamento apenas, mas como pessoa. Mais do que mudar como pessoa, significa se transformar de uma pessoa em outra muito mais bem qualificada. Este é um salto quântico que o indivíduo experimenta com certa dificuldade. Mas, eu até diria, pode experimentar com rapidez. Em Hamlet, Shakespeare escreveu: Transformação é uma porta que se abre por dentro. Muito bem. Mas, para o corpo coletivo, que é muito mais pesado, para a coletividade, para o espírito coletivo experimentar um salto de dimensão quântica é muito mais difícil. É preciso tempo, pois é um fenômeno cultural. Dr. Leonardo falou sobre a cultura do Direito, que não é das melhores, e acertou – não é das melhores. Mas nosso problema seria de normatividade ou de prática? Será que não temos uma normatividade palatável? De fato, não é tão ruim assim. Quase sempre ela é boa. Creio que nosso grande desafio é sair da melhor normatividade para melhor experiência, sair do sistema para a efetividade. A imprensa, a democracia, a internet, os novos tempos, acredito que tudo isso vai nos levar a dias melhores. Espero estar vivo para assistir a irrupção. Aliás, não é irrupção, mas a consubstanciação desse processo de qualificação da vida coletiva. Acredito muito nisso. Tenho aqui minha resposta. 272


Acad. Dr. José Ulisses Calegaro. É alentador ouvir suas palavras. Preocupo-me com duas questões que me parecem fundamentais para o desenvolvimento do País. Educação de base e saúde com estruturas fortalecidas. A qualidade do ensino teve grande degradação nesses últimos decênios. Ouvimos próceres da República dizer que estudo não importa tanto e basta ser esperto neste país. Ao observar mandatários com esse tipo de postura, pergunto: Para onde estamos indo? Uma das pontas da área da saúde, não diria toda ela, está na classe médica, que procura, ao menos, apontar caminhos. Por iniciativa até do governo, observamos a multiplicação de novas escolas médicas sem haver sustentação básica de formação com, digamos assim, argumentos de que formamos poucos médicos. Sabemos que, nos Estados Unidos, forma-se apenas metade do número de médicos de que necessitam. Os outros eles importam por sistema de seleção pelo qual oferecem bolsa para complementação de estudo. Frequentemente, os indivíduos que vão para lá terminam permanecendo no país por convite do próprio governo norte-americano, que seleciona os melhores entre aqueles. Por isso, a medicina estadunidense é a uma das melhores do mundo, não por atuação dos médicos norte-americanos apenas, mas dos que vieram de fora. Gostaria de que o senhor comentasse um pouco quanto às duas dificuldades a que nos referimos e que não nos apresentam soluções no horizonte.

Ministro Ayres Britto. Eu disse que nosso desafio é sair de melhor normatividade para melhor experiência. Sair do sistema parece boa atividade, sair da teoria para a prática, da abstração para o concreto. Somos tão sequelados pelo fato de o Estado, 273


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desde os períodos coloniais, ter chegado antes da sociedade civil aqui no Brasil, que nossa sociedade prestigia e preza muito mais o direito que o Estado faz para ela do que o direito que ela faz para o Estado. O direito que ela faz para o Estado é a Constituição, que é muito menos prezado do que o direito que o Estado faz para a sociedade. Mas, paciência! Esse é o desafio de cada um, de cada povo. O que nos cabe é estudar a natureza dos nossos problemas e encará-los com a perspectiva de sua superação. Deveríamos ser denunciativos? Sim, mas propositivos também. Deveríamos indicar os problemas, sim, mas também as soluções. A Constituição, artigo 6º, estabelece que são direitos sociais – educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, ou seja, melhor impossível. Santo Agostinho disse que, sem o mínimo de bem-estar material, não se poderia sequer servir a Deus. Vamos ao artigo 205 da Constituição, que retoma o discurso sobre educação, para dizer que esta é direito de todos e dever do Estado e da família e que será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando a três finalidades, ou seja, pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. A Constituição concebe um corpo, um discurso normativo primoroso em torno da educação. Cria um sistema com universalização de acesso à educação infantil, à educação de base, ao ensino médio, ao ensino fundamental, um sistema gratuito, com vinculação a receitas tributárias que penaliza até os estados com intervenção federal se, por acaso, o mínimo de recursos tributários não for aplicado na educação, e mesmo os municípios se sujeitam à intervenção se não houver a observância desse mínimo. A saúde é como se a Constituição assentasse que “saúde é o que interessa, o resto não tem pressa”, tal a prioridade, a 274


precisão, o cuidado com que a Constituição trata o sistema de saúde, ao determinar que a seguridade social compreende saúde, previdência e assistência social. Nosso desafio é cobrar dos governantes o irrestrito cumprimento da Constituição. Nós, cidadãos, temos que ativar nossa cidadania, fazendo denúncias e cobranças. É encarar mesmo essa cultura que nos desfavorece institucionalmente juridicamente, politicamente, mas não nos desfalece. Não podemos entregar a toalha. O espírito é o seguinte – certa feita, um amigo me disse: Você não percebe que está nadando contra a maré? Respondi: Pois a maré que se cuide porque vou continuar nadando contra ela. Em outras palavras, digo que o ser humano, assim como é parte de um todo, é também um todo à parte. Se ele está imerso em um macrocosmo, é um mundo todo à parte. Ao se referir àqueles que desertam dos seus valores, que abandonam sua luta, seus sonhos, seus ideais, suas utopias, Thomas S. Eliot escreveu: Num mundo de fugitivos, quem toma direção contrária parece estar fugindo. Cada povo e cada pessoa têm sua história. A gente se desalenta, mas também se alenta e vai tocando esse barco que nos compete. Immanuel Kant, filósofo e físico, disse que duas coisas o impulsionavam na vida mais do que tudo: O céu estrelado sobre mim, e a lei moral dentro de mim. Audácia é o que falta aos nossos governantes. Todos somos influenciados pela zona de conforto e dela não queremos sair. Goethe dizia que há gênio, poder e magia na audácia, na disposição para superar dificuldades, por maiores que sejam, nessa coragem de fazer experimentos no barco, vazio de pré-compreensões, de pré-interpretações, de pré-conceitos. É como 275


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o acordar. Hoje, acordamos com chuva e faz um pouco de frio. Às vezes, não está chovendo, mas está frio. Em outras ocasiões, acorda-se com o sol brilhante lá fora, mas a cama é confortável, os lençóis são macios e, às vezes, a companhia ao lado é ótima. Quem sabe, o dia comece pelo lado da cama em que dorme a amada ou o amado. A gente não quer sair da zona de conforto dos nossos hábitos. Na área jurídica –, das nossas petições antigas, das nossas decisões judiciais, dos nossos acórdãos, dos nossos livros, dos nossos conceitos, das nossas teorias –, ninguém quer sair dessa zona de conforto e não percebe que há um novo sol teórico, conceitual, cognitivo, lá fora, e a gente não quer fazer a experiência do barco vazio de conhecimentos. Bem, o sol está lá fora, mas, se não abrimos as cortinas, como iríamos saber que o sol está lá fora? A gente quer permanecer na zona de conforto, mas sabemos que a zona de conforto intelectual é terrível. Nietzsche disse que toda convicção é uma prisão. Assim, a gente se levanta, abre as cortinas e dá de cara com o sol. O sol inunda o quarto e nos clareja a mente e nos anima a pular fora. Assim, por analogia, o sol seria a Constituição. Outro dia, fiz um poema. Vou dizer o conteúdo. Eu evoluo quando pego meu armário, que é o meu ser, e jogo fora desse armário tudo o que nele eu acumulei. Jogo tudo fora. Fico alegre quando vejo vazio todo o armário. Mas eu evoluo ainda mais quando jogo fora o próprio armário. Aí, fica o vazio sem armário nenhum. Essa é a experiência do barco vazio de conhecimentos. Somos cheios de mantras e influenciados por eles. São coisas repetitivas que ficamos inoculando, introduzindo, reproduzindo, batendo o carimbo sem perceber que os mantras levam à estagnação, à estratificação, à inércia no plano do conhecimento. 276


Certa feita, um discípulo perguntou ao Mestre zen: O que fazer para ter calma, visão das coisas, nervos no ponto, compreensão de que derramamento de bílis não combina com as produções dos neurônios? O mestre o viu, apanhou uma chaleira e derramou um chá na xícara dele próprio, encheu a xícara do outro até o conteúdo transbordar e continuou a derramar o chá enquanto o discípulo conversava, e esparramou tudo. O discípulo não aguentou e disse: Mestre, o senhor não está percebendo que o chá está transbordando? O mestre disse: Estou, e assim é sua mente, seu ego, sua subjetividade. Tudo está transbordante de conhecimentos, de pré-compreensões, de pré-interpretações, para não dizer de preconceitos. Aí, disse para o discípulo o Mestre: Agora você vai fazer um estágio. Tenho uma casa no Tibet, uma fornilha de alimentos e a provisão é boa, dá para dois anos. Você passa seis meses lá e volta. Assim o discípulo fez. Seis meses depois, ele voltou, bateu à porta do Mestre, e este perguntou: Quem é? Disse o discípulo: Seu discípulo que estava ocupando sua casa. Disse o Mestre: Volte e passe mais seis meses. Ele foi. Seis meses depois, voltou e fez o mesmo ritual. Quem é? perguntou o Mestre. Seu discípulo. Estou voltando e já é a segunda vez. O Mestre disse: Volte e passe mais seis meses. Ele voltou obedientemente. Seis meses depois, fez a repetição. O Mestre: Quem é? O discípulo respondeu: Ninguém. O Mestre disse: Pode entrar. Então, vamos relembrar a experiência do barco vazio, enxotar o ego de tudo o que temos de planos para o futuro, de lembranças do passado, dizer em pensamento presente como disse Vinícius de Moraes: A vida só se dá para quem se deu. Quem se deu à vida por inteiro, vivendo o eterno agora, vivendo com intensidade cada instante de vida, porque a vida se constitui de instantes e cada momento de vida é uma imensidão de 277


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possibilidades. Para que viver no passado ou no futuro, se cada instante é uma imensidão de possibilidades, transformadora no plano qualitativo? No entanto, quem tem coragem de fazer essa experiência do barco vazio e dizer: Minha única questão fechada é a abertura para o novo, o tempo inteiro! Eu estava dizendo que os mantras são terríveis. Quer ver um mantra horroroso, danoso a mais não poder? É um dito popular: Cabeça vazia é casa do diabo. Pelo contrário, nesse vácuo, intencionalmente criado por nós, cabeça vazia é a condição para o universo chegar e nos preencher. Como o universo vai nos preencher se não houver um vácuo dentro da gente, se não houver espaço vago? Quando o universo nos preenche, ele traz o que é próprio dele, uma mensagem, um recado, uma ideia, um sentimento novinho em folha, estalando de novo. É a experiência do barco vazio. Individualmente isso é mais fácil de fazer do que coletivamente. Mas, no Brasil, temos alento superando o desalento. A coletividade já está reprogramando seu DNA numa velocidade muito maior do que aquela com a qual a Presidente Dilma está reprogramando o DNA dela, e igualmente isso ocorre com seu Ministério. Ali, há um descompasso entre o DNA da coletividade, muito mais comprometido com ideias atualizadas, do que o DNA dos dirigentes das supremas instâncias do País. O bom não é que a política seja feita sem políticos, mas que não só os políticos façam política, visto que esta significa administração dos negócios da pólis, identificação com tudo o que é de todos, abertura para o coletivo, espírito público. É a mais nobre de todas as atividades humanas. A política é séria demais para ser entregue exclusivamente aos políticos. É preciso que a cidadania chegue junto e protagonize também ações 278


que signifiquem a assunção da autoria do seu destino ou, pelo menos, da coautoria do próprio destino. Estaríamos no limiar dessa nova era de compreensão das coisas? Eu responderia que sim. Permitam-me o alongamento da resposta. Passei dez anos no Supremo. Fui autor dos seguintes votos vencedores: Raposa Serra do Sol, que reconhece o direito dos índios brasileiros, das etnias indígenas, de terem demarcação de suas terras em formato contínuo e não o de um queijo suíço, para que haja sustentação econômica e reprodução cultural segura. Liberação das células-tronco embrionárias para pesquisas científicas médicas e uso em terapia humana. Cotas raciais e cotas sociais. Obrigação de publicar folhas de pagamento, todos os meses, obrigação dos Três Poderes de publicar suas folhas de pagamento. Proibição de nepotismos. Liberação da marcha da maconha, porque nenhum tema na vida pode se blindar quanto à sua discussão em público. Homoafetividade, direito dos pares homoafetivos em igualdade de condições com os casais heteroafetivos. Possibilidade de um trabalhador se aposentar perante o INSS e continuar trabalhando sem romper seu vínculo de emprego e acumular os ganhos de aposentadoria com o salário ganho como empregado. Só isso beneficiou oito milhões de pessoas. Eu ficaria listando aqui uns vinte casos ou mais. Para além dos meus votos, eu votei, mas não fui o relator dos seguintes eventos: autorização das mulheres para interrupção de gravidez com feto anencefálico porque não se pode torturar uma mulher ao ponto de obrigá-la a levar às últimas consequências uma gravidez prometida ao túmulo, o que não é senão preparar a mulher para o mais doloroso dos estádios, que é se preparar psicologicamente para ver seu bebê involucrado numa mortalha, pois isso é muito pior do que versa a música de Chico 279


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Buarque: Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto de um filho que já morreu. Na gravidez com feto anencefálico não vai haver quarto, enxoval, sonho, nem plano algum. O Supremo estabeleceu em muito boa hora que a mulher tem o direito sim, de querendo, levar a gravidez adiante e, não querendo, pode interrompê-la porque não será aborto se não houver viabilidade de gerar uma vida não apenas biologicamente, mas biograficamente e culturalmente considerada. Comecei meu voto nestes termos: Senhores ministros, se nós, homens, engravidássemos, não discutiríamos autorização para interromper a gravidez. Esta já existiria desde sempre. A mulher, que coisa curiosa, é tão única, tão superior, digamos honestamente, que a obra-prima da Criação é a mulher. Deus não terceirizou nada quando fez o molde da primeira mulher. Ele percebeu que ali estava o marco da Sua superação. A mulher consegue, com lógica própria, ter fisiologia e anatomia própria. A mulher consegue quebrar a lei da Física, segundo a qual dois corpos não podem ocupar ao mesmo tempo o mesmo espaço. No útero, existem dois corpos nesse trabalho de transformação, de metamorfose, de uma estrutura celular pré-humana para toda uma estrutura celular humana. Por fim, em referência ao nosso tema, acredito que a coletividade brasileira não vai sucumbir. No plano pessoal, saímos bem melhor das crises. O Brasil sairá muito melhor dessa crise e vamos fazer como disse Fernando Sabino: É preciso fazer da queda um passo de dança. Muito obrigado.

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Bons registros, como esses Anais, abrangem mais do que apenas dados de pesquisa: incluem descrições de planejamentos, interpretações de resultados, gerenciamento e planejamento de outras pesquisas, além de replicar resultados e documentar eventuais colaborações. Os temas incluídos nesse volume correspondem aos debatidos nas sessões plenárias realizadas no biênio 2014-2015. Boa leitura!


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