Edição 248

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26 de junho de 2012 | terça-feira | a

cabra | 17

soltas somBra aCesa

miCro-Conto

Por nuno de figueiredo buscando manter entre os dedos a breve consolação, eu circulava os olhos e havia ali outra parede, e outra parede acolá, era um quarto com livros, uma cama quase sempre desfeita, e tu, abandonado às órbitas dos astros. Entre as quatro paredes, parece que ainda foi ontem, o verão parava no seu repouso merecido. Eu sei, não se explica, não faz sentido, mas não posso negar: às vezes uma lágrima rompia a custo como uma premonição e escorria-me pelos seios até morrerme no afago do ventre. Parece q u e ainda f o i

ontem. Aqui havia uma parede onde teimava acesa uma janela. Havia os livros, uma cama, o teu corpo. E, agora me lembro, chegava lá de fora, envolto no silêncio, o estrídulo incansável das cigarras. Tudo com o tempo se doura e molda, se continuo ainda te invento de novo, adormecido, nu, entre a penumbra e o branco dos lençóis. E me surpreendo no espelho, aberta ao prodígio. E,

quem sabe, altere a própria estação. Parece que ainda foi ontem: falo desse tempo ou falo de agora? Seria verão ou a pele sedosa, precoce da melancolia? Não sei. Vou ter de pensar melhor, parece que ainda foi ontem mas na verdade já atravessei tantos mares. E a única coisa que não mudou foi a solidão. Ah, sim, e o cantar estrídulo das cigarras envolto no silêncio das horas bordadas a mágoa e desalento.

Ilustração Por ana beatrIz marques

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arece que ainda foi ontem. Aqui havia uma parede onde se rasgava uma janela. Era a parede de um quarto mergulhado na penumbra, com a cama quase sempre desfeita. Eu punha-me à janela a olhar os prados verdes, o alargado crepúsculo dos sobreiros, via os pássaros sequiosos esquivando-se ao calor com seus voos súbitos e acidentados. Sentia nas veias o silêncio do sangue e o rumor surdo da terra, voltava-me de vez em quando mas os olhos não conseguiam ver mais que a mancha clara dos lençóis. Parece que ainda foi ontem. Ao lado da parede havia um espelho e nem a minha sombra o habitava, nem as minhas feições, o cintilar dos olhos, era tudo um fumo, uma barreira, e lá de fora subia, cheio de sossego, o canto das sementes e o esplendor das raízes. Tudo era vão e agia como se o fosse. As coisas, os objectos, constituíam um mundo irreal, uma atitude sem futuro, mortos para os meus dedos. O meu próprio corpo, algemado à nudez e satisfeito entre o suor e o cansaço, o meu próprio corpo sorria palidamente num prenúncio ominoso e no entanto afável. Parece que foi ontem. Voltavame, olhava as outras paredes, varria os livros de cor e, com desmedido esforço, desenhava os contornos da tua nudez adormecida. Eras um homem presente que dorme e sonha e eu viro as costas ao cântico das aves e medito no tempo de amanhã, no rolar das horas pela tarde adiante. Insegura, à beira da tristeza mais estúpida e

monumentais Panados soCiais

nuno de FIgueIredo Foi em Coimbra que nasceu e é em Coimbra que se mantém. mas foi também Coimbra e os escritores que por cá passaram que lhe valeram os prémios literários já conquistados. o mais recente foi o Prémio literário miguel torga, instituído pela Câmara municipal, com o romance “Vida e sombra”. entre outros, podem destacar-se a conquista de dois prémios Joaquim namorado e do Prémio José régio. ainda assim, não foi a escrita a primeira das opções. a engenharia civil parecia atrair mais e ingressou no Instituto superior técnico de lisboa. mas, a paixão pela literatura esteve sempre lá e falou mais alto. Primeiro umas colaborações em vários jornais regionais, depois um livro de poemas em 1985, e uns anos mais tarde começaram os romances. desde aí, as suas participações em revistas literárias foram recorrentes. É com o seu nome ou com os pseudónimos de miguel marão e alberto marques que assina as cerca de três dezenas de obras de poesia, contos e romances já publicados. Com uma loja na Praça do Comércio, continua a viver a história de Coimbra e a escrever nas entrelinhas de uma cidade rica em autores que querem ser lidos. nuno de Figueiredo é um desses autores. Ana Morais

and now the end is near

Por doutorando Paulo fernando • facebook.com/paulofernandophd

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aminhamos a passos rápidos para o fim do ano e para o fim do mundo. E como tenho de ir estudar para o exame de Primatologia, vou abordar aqui um tema ‘en passant’, porque vocês também têm de ir estudar e eu não quero ser responsável pelo insucesso escolar de ninguém. Parece que no âmbito das comemorações dos 125 anos da AAC, aos 125 dias antes do aniversário (ou seja na próxima quinta-feira… ouvi dizer, não sei se é verdade ou não), a comissão da DG para as comemorações está a organizar um jantar evocativo, com presença de um chef de renome. A ementa é da época e vai ser servida na defunta cantina das verdes: se não vos convidaram considerem-se convidados. O espaço vai ser decorado com umas múmias gentilmente cedidas pela Faculdade de Direito, a segurança do evento será assumida pelo corpo de archeiros da reitoria, e o transporte em charrete fica a cargo do Conselho de Veteranos por razões de obsolência.

Se ainda não está definido quem é o chef convidado queria deixar aqui três sugestões em jeito de sondagem: 1 – Chakall: anda sempre de toalha na cabeça cumprindo as regras da ASAE. Tem um fiel companheiro canino o que me recorda algumas personagens das secções mais teatrais da AAC. Como está habituado a andar com aquele traste na cabeça, em consonância com o espírito da época, podia levar o capelo e ficava já tratado mais um honoris causa. Devido às semelhanças onomáticas com um famoso revolucionário/mercenário de origem venezuelana, a sua escolha poderia conduzir a um apoio moderado das forças mais radicais da academia às comemorações dos 125 anos. Não sei o que é que ele cozinha mas deve meter caril. 2 – Jamie Oliver: confesso que não é o meu favorito, no entanto, advoga uma dieta mais saudável e tem um programa dedicado à poupança nas cozinhas escolares. Ambos os conselhos me parecem uteis para o trabalho dos nossos

D.R.

SASUC, podendo marcar o regresso da feijoada ao almoço de quarta-feira, e o fim das hamburguesas que fomentam a obesidade dos colegas da Sala de Estudo, e o regresso de um prato a preço social – a sério. Por razões orçamentais a ementa seria minimalista, confeccionada com produtos orgânicos adquiridos no mercado D. Pedro V e nabiças da horta da reitoria.

3 – O meu candidato do coração é Anthony Bourdain. Eu sei que ele agora anda mais arredado das lides da cozinha e que tem um programa em que finge ser um ‘connaisseur’ para poder andar pelo mundo a encher o bandulho à conta do orçamento, mas a verdade é que o seu espírito de ‘bon vivant’, boémio e pseudo-intelectual se coadunam perfeitamente com o espírito do es-

tudante de Coimbra. Acho que nos poderia patentear com uma ementa ao estilo do velho Pratas, que nos ficaria gravada para sempre no coração em colesterol do mau, contendo miúdos de várias espécies animais, e regada com vinho da casa cujas manchas de vinho se enxaguam com serradura. Para finalizar, quem esperar encontrar muitas moçoilas no referido repasto, tire daí o sentido se a coisa acontecer com fidelidade ao espírito da época… a primeira só chegou em 1891. Se no entanto simpatizar com valores conservadores e da monarquia creio que se sentirá em casa… não creio que será necessária grande aptidão teatral para a larga maioria dos convivas. * Quem descobrir quantos galicismos foram usados nesta crónica pode eventualmente ter o jantar dos 125 anos à la palix se por ventura fizer parte de uma determinada camarilha


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