Não lugares texto revisado

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OS “NÃO- LUGARES” EM MARC AUGÉ Como posso mudar de atitude e preservar minha cidade, minha escola, minha praça?

Hellen Barreto1 Rúbia Pimentel2 Walkyria dos Santos3

INTRODUÇÃO O objetivo deste texto é abordar de forma objetiva e clara a concepção de “nãolugares” de Marc Augé, numa linguagem acessível para alunos da educação básica no ensino da sociologia. Trata-se de uma proposta sociológica inserida no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência-PIBID com a finalidade de inserir o licenciando de Ciências Sociais da Universidade da Amazônia na prática pedagógica do ensino da sociologia na educação básica da escola pública. O texto compõe outras atividades, como pesquisas de música, literatura, charges, imagens da cidade que retratem o cotidiano da vida escolar e coletiva dos alunos. Pretende-se assim, mostrar que o olhar da cidade, da praça, da escola, da comunidade tem sempre componentes sociológicos. A concepção de “Não-lugares” possibilita a compreensão da vida contemporânea permeada de complexidades decorrentes das mudanças tecnológicas e da rapidez da circulação de informações e mercadorias na sociedade globalizada. É necessário então, que o aluno esteja munido das ferramentas teóricas para olhar a sociedade e compreende-la a partir de sua complexidade e pluralidade e assim, ao invés de olhar com estranhamento, olhar com senso crítico e ser também um agente de transformação social. 1. “NÃO-LUGARES” E A CONSTRUÇÃO DA CIDADE, DA SOCIEDADE E DAS RELAÇÕES SOCIAIS Marc Augé é um pensador francês do século XX. Seu enfoque sociológico é de cunho importantíssimo para a análise dos espaços sociais. Relaciona os espaços construídos e os espaços vividos pelos homens a partir da ideia de “não-lugares”, como sendo tudo o que for oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado; são espaços de passagem incapazes de

1 Aluna do Curso de Ciências Sociais. Bolsista do PIBID/Curso de Ciências Sociais da Universidade da Amazônia. Belém, 2015. 2 Mestre em Ciências Sociais. Coordenadora de área do PIBID/Curso de Ciências Sociais da Universidade da Amazônia. Belém, 2015. 3 Professora de Sociologia da Educação Básica e supervisora de campo do PIBID/Curso de Ciências Sociais da Universidade da Amazônia. Belém, 2015.


darem forma a qualquer tipo de identidade; são espaços de ninguém, não geradores de identidade. O conceito de “não-lugares” em oposição ao de lugares é importante porque nos permite compreender a construção de cidade, de sociedade e das relações sociais surgidas a partir do processo de urbanização. Para os estudiosos da geografia, lugar nada mais é do que uma localização; é a parte do espaço onde vivemos e interagimos com uma paisagem. Mas para os cientistas sociais, o termo ”lugar” vai além do paisagismo determinado pelos geógrafos e isto pode claramente ser enfatizado através de estudos do pensador Marc Augé, através de um conceito novo para o significado de lugar: o espaço onde se materializa a identidade dos indivíduos, onde existe uma obrigatoriedade de características comuns no aspecto identitário, relacional e histórico. As características do lugar são de natureza identitária por existir no mesmo lugar elementos diferentes e únicos. São relacionais por haver um compartilhamento deste lugar em comum, sugerindo assim que os elementos únicos possam relacionar-se partilhando uma identidade; e é uma característica histórica por se referir a um momento temporal. Trazendo os conceitos de lugares e “não-lugares” para uma realidade mais próxima de nós, podemos analisar o dia-a-dia da cidade de Belém e exemplificar a ideia de lugar através dos sentimentos de pertença que foram enraizados em nós, construídos e ensinados por nossas famílias, como também pelas escolas. É inegável que essas duas instituições são importantes na contribuição cotidiana do processo de ensino e aprendizagem. As praças do centro histórico da cidade de Belém poderiam ser caracterizadas como espaços quaisquer, simples e meramente transitórios, julgadas até como “não- lugares”. Mas não são, pelo fato de Belém ser uma cidade histórica, a capital e a maior cidade do Estado do Pará, construída por meio de grandes lutas e revoluções sociais. Foi exatamente por este motivo que o governo municipal transformou suas praças em patrimônio cultural, trazendolhes toda a importância por conta de sua identidade cultural, do seu compartilhamento artístico e de sua historicidade. Assim, como exemplo de lugar, baseando-se no conceito de Marc Augé, podemos citar a Praça da República de Belém, com sua natureza identitária por nela existir elementos diferentes e únicos reunidos num só espaço. Relacional por haver um compartilhamento entre


os membros que nela coexistem que, como os vendedores de artesanato que juntos dividem um espaço da praça destinado ao comércio para ganharem o seu próprio dinheiro, garantindo assim as suas respectivas sobrevivências. É possível observar também à ideia de lugar, de pertencimento e de afetividade criados pelos indivíduos que compõem a Praça da República, elementos aparentemente contraditórios, como os moradores de rua que veem naquele espaço uma alternativa de moradia. Para estes, a praça pode ser um lugar transitório – um “nãolugar”, mas pode também ser um lugar de permanência – um lugar de moradia, de afetividade entre seus membros. Portanto, o tripé fundamental do conceito de lugar – a natureza indentitária, relacional e histórica – explicita-se pelos monumentos erguidos que simbolizam um momento de comemoração do primeiro aniversário da implantação do regime republicano1* no Brasil, pela variedade de elementos que estão nela e pelo compartilhamento do espaço pelos seus membros. Para a ideia de “não-lugares” podemos determinar tudo que é oposto ao espaço afetivo. Os “não-lugares” são a negação dos lugares em decorrência da ausência da natureza identitária, relacional e histórica. São espaços que não possuem vínculos afetivos, símbolos e ícones determinantes. Sendo representados por espaços públicos de ligeira circulação, como shopping centers, aeroportos, rodoviária, vias expressas, metrôs, centros comerciais, supermercados, hotéis, etc., por onde circulam pessoas e bens. Nos espaços considerados como “não-lugares” os indivíduos não mantém entre si relações de afeto, e assim, trocam a afetividade pela rápida e imperceptível

relação,

tão bem

representada, pela

supermodernidade trazida pela globalização em oposição à modernidade e, é de certo modo, o resultado da aceleração do tempo, das transformações espaciais, do intenso fluxo de informações e de trocas de mercadorias, da mobilidade dos indivíduos, dos objetos, e das ideias. “[...] são espaços onde coexistimos ou coabitamos sem vivermos juntos, onde o estatuto de consumidor ou de passageiro solitário passa por uma relação contratual com a sociedade”. (AUGÉ, 1994, p.157). “Não-lugares” são espaços desenraizados, virtuais, que são apropriados por um conjunto de indivíduos, também desenraizados.

2. LUGARES E “NÃO-LUGARES”, EIS A QUESTÃO! Ao tratar do conceito de “não-lugares”, Marc Augé ressalta a importância de se pensar a


cidade hoje, para o perigo de transformá-la em um espaço desprovido de identidade, de relacionamentos e de história. Pensar a cidade hoje é pensar a escola onde estudamos, a praça onde passeamos, o bairro onde moramos, preservando sua identidade cultural, nossos relacionamentos construídos e os fatos vivenciados por toda a comunidade, visto que o “nãolugar” nos remeterá ao espaço desprovido de sentimento de pertença, de dissolução dos laços sociais e de ausência de historicidade. “O não-lugar é o espaço dos outros sem a presença dos outros”(p.169). E dificilmente o “não-lugar” poderá exprimir ao mesmo tempo “a liberdade e a identidade, a multiplicidade dos possíveis e a necessidade de existir’’(AUGÉ, 2000, p. 164). Para entender melhor o significado de “não-lugares” e de lugares usaremos o cancioneiro popular paraense por entender que a arte é expressão da vida. O artista, ao elaborar sua peça artística, ele se inspira na vida. Portanto, a arte se revela como um importante recurso pedagógico para explicar a vida social. Na letra da música dos compositores paraenses Paulo André e Rui Barata “Esse rio é minha rua” vemos a manifestação da natureza identitária, relacional e histórica à cidade de Belém e que os remete a outros espaços também, vejamos: Este rio é minha rua/Minha e tua mururé /Piso no peito da lua/Deito no chão da maré (bis). Pois é/ Pois é/Eu não sou de Ígarapé/Quem montou na cobra grande /Não se escancha em puraqué (bis)/Rio abaixo rio acima/minha sina cana é/Só em falar na mardita/ Me alembrei de Abaeté(bis)/Pois é, pois é/Eu não sou de igarapé/Quem montou na cobra grande/Não se escancha em puraqué/Me arresponda boto preto/Quem te deu esse pixé / Foi limo de maresia/ Ou inhaca de mulher(bis)/ Pois é, pois é/Eu não sou de Ígarapé/Quem montou na cobra grande/Não se escancha em puraqué (bis) ( http://www.vagalume.com.br/paulo-andre-barata/este-rioe-minha-rua.html. Acesso: 30/04/2015).

Ao tratarem o rio como “minha rua, minha e tua” remetem-nos ao sentimento de pertencimento à cidade e à rua. Ao se reportarem ao folclore paraense como: a “cobra grande”, “o puraqué”, “o boto preto”, o “mururé” e às expressões da regionalidade como: “pixé”, “limo de maresia”, “inhaca de mulher” remetem-nos à natureza identitária da cultura regional; e ao demarcarem um tempo passado e um tempo presente “Quem montou na cobra grande/não se escancha em puraqué” , remetem-nos aos elementos de natureza histórica; e finalmente, ao espaço da vivência, da pertença, do lugar, à natureza relacional: “Só em falar da mardita/Me alembrei de Abaeté”.


Na letra da música do compositor paraense Celso Viáfora, “Não vou sair” podemos identificar os conceitos de lugares e de “não lugares”, vejamos: A geração da gente/ Não teve muita chance /de se afirmar, de arrasar, de ser feliz /Sem nada pela frente/ Pintou aquele lance /de se mudar, de se mandar desse país / E aí, você partiu pro Canadá /Mas eu fiquei no já vou já/ pois quando tava me arrumando / Pra ir, bati com os olhos no luar /A lua foi bater no mar e eu fui que fui ficando/ E aí, você partiu pro Canadá/ Mas eu fiquei no já vou já, pois quando tava me arrumando/ Pra ir, bati com os olhos no luar /A lua foi bater no mar e eu fui que fui ficando/Distante tantas milhas/ são tristes os invernos /Não vou sair, tá mal aqui, mas vai mudar / Os donos de Brasília não podem ser eternos/ pior que foi, pior que tá, não vai ficar/ Não vou sair/ melhor você voltar pra cá /não vou deixar esse lugar /Pois quando tava me arrumando/ pra ir, bati com os olhos no luar/ A lua foi bater no mar e eu fui que fui ficando/Não vou sair/ melhor você voltar pra cá / não vou deixar esse lugar / Pois quando tava me arrumando /pra ir, bati com os olhos no luar /A lua foi bater no mar e eu fui que fui ficando/E aí, você partiu pro Canadá /Mas eu fiquei no já /vou já, pois quando tava me arrumando /Pra ir, bati com os olhos no luar/ A lua foi bater no mar e eu fui que fui ficando... (http://letras.mus.br/nilson-chaves/217028/. Acesso: 30/04/2015).

A letra da canção revela uma “falta de perspectiva” de futuro melhor da juventude belenense, decorrente das condições sócio-econômicas vivenciadas pelo país no período da ditadura militar, em cenário brasileiro de desemprego, baixo crescimento econômico e, sobretudo, falta de liberdade política. A saída é “partir para o Canadá”, onde se pode ganhar dinheiro, estudar; um espaço de “passagem” e de temporalidade previsível, um “não-lugar” que nega o lugar dos afetos, dos vínculos afetivos: “do luar, do mar”. Todavia, os elementos de natureza identitária, relacional e histórica são mais fortes: “mas quando estava me arrumando bati com os olhos no luar, a lua foi bater no mar, e eu fui que fui ficando”. Portanto, é necessário preservar o lugar de pertencimento, de afetos, de identidade: “não vou deixar esse lugar, melhor não ir”, pois há uma esperança no futuro, já que ele pode mudar: “os homens de Brasília não podem ser eternos”.

3. OS LUGARES DOS “NÃO-LUGARES” E OS “NÃO-LUGARES” DOS LUGARES Um dado importante é assinalado por Marc Augé em sua análise: a ideia de que há lugares e “não-lugares” por toda parte. Há lugares em “não-lugares” e há “não-lugares” em lugares, pois ambos os conceitos referem-se a “espaços muito concretos, mas também a atitudes e a posturas, à relação que os indivíduos mantém com os espaços onde vivem ou que eles percorrem” (p.167). Isto significa dizer que quando negligenciamos o cuidado com a


escola, quando depredamos a praça, quando jogamos lixo no canal, nosso comportamento em relação a esses espaços urbanos os transformam em “não-lugares” de ligeira circulação, sem afetos, sem pertencimento. Mas, se a partir de outro olhar, outro comportamento e outra postura, começamos a cuidar da escola, preservar a praça e manter limpo o canal de nossa cidade, esses espaços tornam-se lugares aprazíveis de se viver, de construir laços de afetividade, de identidade e de história. Portanto, são nossas práticas sociais que determinam os espaços em lugares e “não-lugares”. Pensar a escola como um lugar de aprendizagem e de convivência afetiva não significa apropriar-se dela; mas estudar os recursos urbanísticos que fazem parte da cidade, os equipamentos e serviços que permitem ao aluno

superar o

estranhamento de um espaço pouco familiar e se orientar em um universo de estranhos. Assim, entre os indivíduos existirá uma relativização à ideia de lugar e “não-lugar”, partindo do pressuposto que há em cada um de nós uma particularidade, uma postura, uma atitude e visões diferentes de mundo. O que para um indivíduo pode significar um lugar, para outro pode ser um “não-lugar”, e é exatamente por isso que se fundamentam as relações dos indivíduos dentro de uma sociedade, com a contribuição de ideias e pontos de vistas diferentes, que enriquecem grandiosamente a nossa formação social. A ideia de “nãolugares” pode também revelar os modos de vida que caracterizam a sociedade contemporânea: individualista, solitária, transitória e mutante. Através do “não-lugares” se descortina uma sociedade passageira, efêmera e solitária. Lugares e “não-lugares” também nos impõe a questão: como posso mudar de atitude e preservar minha cidade, minha escola, minha praça?

REFERÊNCIAS AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994. __________. Fictions fin de siècles. Paris: Fayard, 2000. FERREIRA, Vitor. Fascínio da Cidade. Lisboa: Ler Devagar, 2004.


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