Villa da feira 19

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AS ALCUNHAS DOS OLEIRENSES Anthero Monteiro* 1. Algumas histórias pessoais, a título de introdução Isto das alcunhas foi sempre algo que me causou alguma perturbação, umas vezes porque fui vítima, outras porque saí beneficiado. A mim, quando andava na escola primária, cá em S. Paio de Oleiros, os colegas, naquela idade em que se começa a aprender a crueldade por auto-afirmação, atiravamme com o apodo de “Matéria”. Ainda que semelhante epíteto adviesse da mera analogia fonética com o meu nome e o vocábulo pudesse significar tanta coisa, nomeadamente no campo da física e da filosofia, eu embirrava com aquela nauseabunda alcunha que, na linguagem popular, cheirava a pus e defendia-me à pedrada, isto é, atirava aos responsáveis por tais abusos calhaus minúsculos, que propositadamente falhavam sempre o alvo. Quando estudava em Braga no seminário, nem a compostura do lugar nem o permanente controlo evitavam que se exercesse ainda mais requintadamente aquela tendência juvenil para a impiedade. Porque, entretanto, caíra de um muro e quebrara a cana do nariz que se me tornara ligeiramente adunco, os bonifrates promoveram-me a “Papagaio”. Ia aos arames e, noite fechada, no segredo do travesseiro, com a

alma inundada de acrimónia, ruminava terríveis vinganças que, todavia, nunca poderia cumprir. Bem diferente era o diminutivo hipocorístico “Terinho” com que muitos me tratavam ou ainda tratam algumas pessoas geralmente mais velhas – e oxalá me acompanhe o resto da vida, por ser muito mais saboroso do que o nome antecedido de qualquer grau académico. Outro tratamento com que, desde que comecei a rimar ali pelos 13 anos, alguns poucos me mimoseiam, desde o seminário, é o de “Poeta”, espécie de cognome bem saboroso, por corresponder, não certamente aos méritos dos meus versos, mas aos sonhos e ideais que sempre me acompanharam. Um dia, porém, também eu sofri as consequências do uso das alcunhas. Frequentava a 3.ª classe na escola do arraial. Estávamos no recreio, a jogar à bola e a esfacelar, como de costume, os dedos dos pés descalços nas raízes nodosas das tílias, quando, na rua adjacente, vindo dos lados de Nogueira, ia passando um ciclista. Mal viu aquela figura curvada sobre o guiador da bicicleta de corrida, a pequenada desatou a gritar: — Talaborda! Talaborda! Eu nunca ouvira aquela apodadura, nem lhe sabia (e ainda hoje não sei) o significado, nem conhecia o homem, mas, muito inocentemente, juntei a minha voz àquela saudação em coro. O ciclista parece que não gostou, porque entrou, desarvorado e a toda a brida, pelo arraial dentro, apanhando-

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros, autor, entre muitas outras obras, de O Misticismo Laico de Manuel Laranjeira (Roma Editora), um ensaio sobre o genial escritor nascido na Vergada. Organizador de várias tertúlias poéticas, começou recentemente a coordenar as Quartas Mal - ditas do Clube Literário do Porto

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