Villa da feira 19

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Ficha Técnica Título: Villa da Feira - Terra de Santa Maria Propriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ® Director: Celestino Portela Director Adjunto: Fernando Sampaio Maia Colectivo Editorial - Fundadores LAF: Alberto Rodrigues Camboa; António Luís Carneiro; Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim Carneiro Processamento de Texto: Carla Maria Costa Ferreira Coordenação Científica: J. M. Costa e Silva Supervisão Editorial e Gráfica: Anthero Monteiro Colaboração do TOC, Belmiro da Silva Resende Periodicidade: Quadrimestral Assinatura anual: 30 euros Assinatura auxiliar: 50 euros Este número: 15 euros Pagamentos por: Transferência bancária NIB 007900001127152910124 Cheque à ordem de LAF - Liga dos Amigos da Feira Capa: D. Sebastião Soares de Resende. Escultura de Irene Vilar. Fotografias: Óscar Maia, Câmara Municipal, LAF, Miguel Costa (Milheirós de Poiares) e Fotos Web por José Correia Redacção e Administração: Apartado 230 • 4524-909 Feira

Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604 Fax: 256 379 607 Tiragem: 500 exemplares Edição: N.º 19 - Junho de 2008 Pré-impressão, Impressão e Acabamento: Empresa Gráfica Feirense, S. A. Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da Feira Sede Social: Edifício Clube Feirense - Associação Cultural Vila Boa 4520-283 - Santa Maria da Feira Email: villadafeira@portugalmail.pt Depósito Legal: 180748/02 ISSN: 1645-4480 Reg. ICS: 124038 Depositária: Livraria Vício das Letras Rua Dr. José Correia de Sá, 59 Telef.: 256 364 627 4520-208 Santa Maria da Feira Apoios: Câmara Municipal Santa Maria da Feira Irmãos Cavaco S.A. Zoo Lourosa - Parque Ornitológico Rohde - Sociedade Industrial de Calçado Luso-Alemã, Lda Termas das Caldas de S. Jorge Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira Patrícios, S.A.


PÓRTICO Manuel Joaquim Santos Conceição* Sinto-me muito honrado com o convite formulado pelo director da revista “Villa da Feira” para redigir o pórtico deste número. Faço-o com humildade e com prazer, já que o assunto é D. Sebastião Soares de Resende, ilustre milheiroense, que conheci vagamente, enquanto vivo. Confesso que foi, sobretudo, depois da sua morte que tive a oportunidade de ler a obra e ouvir falar deste bispo missionário exemplar, cuja voz ecoou em Portugal, no Vaticano e em África e que ainda hoje continua a ser recordado como bom pastor e venerado, principalmente pelos povos nativos da Beira. Para eles, D. Sebastião é um santo. A sua acção, os seus ensinamentos e o seu projecto continuam actuantes, a germinar e a frutificar. Já em Fevereiro de 2006, no número 12 desta revista, foram publicados vários artigos sobre a figura em apreço. Agora, neste número, são transcritas as intervenções dos oradores que participaram activamente, a 17 de Junho de 2006, no colóquio, na inauguração da estátua e na concelebração, por ocasião da comemoração do I centenário de nascimento de D. Sebastião Soares de Resende, a saber: * Natural de Milheirós de Poiares. Licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e Professor da Escola Secundária João da Silva Correia de S. João da Madeira.

D. Carlos A. Moreira Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, que abriu e apresentou o colóquio; D. Augusto César Ferreira da Silva, que recordou atitudes, comportamentos e acontecimentos do homenageado por si testemunhados; Professor Doutor Adriano Moreira, que destacou o contexto sócio-político de Portugal no início do bispado de D. Sebastião e a influência que dele recebera enquanto governante; Eugénio Resende Bastos, que apresentou a medalha comemoratitva da autoria da escultora Irene Vilar (falecida recentemente a 12 de Maio do ano em curso); Dr. David Simões Rodrigues, que falou da obra publicada; D. Jaime Gonçalves, bispo da Beira, que centrou a sua alocução em dois vértices fundamentais – a obra realizada e o eco que ainda perdura na diocese da Beira e em todo o país de Moçambique; Alfredo Henriques, presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, que inaugurou a estátua de D. Sebastião, também da autoria de Irene Vilar, expressando o respeito dos feirenses pela obra, inteligência e humildade de D. Sebastião; D. Armindo Lopes Coelho, bispo do Porto, que presidiu à concelebração, e realçou os acontecimentos importantes da vida de D. Sebastião e as suas qualidades.

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Fotografia de Flávia Pedrosa Reis*

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Praia de Espinho É natural de S. João de Ver, mas reside em Santa Maria da Feira (Avenida Sá Carneiro). É estudante na Escola Secundária Artística Soares dos Reis, no Porto. Tem 6 anos de Formação Musical incluindo aulas de piano. Também tem estudos em Pintura e Desenho. Mas uma grande paixão sua é a fotografia. Participou na exposição de fotografia na galeria Servartes. Já viu publicada uma fotografia sua na revista Super Foto Prática. Tem colaborado em alguns trabalhos de montagens de montras.


D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE NOTA INTRODUTÓRIA D. Manuel Clemente * Um país, como uma terra, pode fazer muito por si, mas apenas se fizer alguma coisa pelos outros. E, quando se fala num país ou numa terra, fala-se sobretudo nos seus naturais e melhores pessoas. Quanto a esta qualidade de ser “melhor”, é geralmente o tempo a apurá-la. O tempo na memória dos homens, como se vai decantando. Tudo isto a propósito do ilustre homenageado nas páginas agora publicadas. Em Milheirós de Poiares, os seus mais próximos de há um século já notariam o brilho da criança que crescia; um quarto de século depois, notariam também as suas primícias sacerdotais; continuaram os êxitos discentes e docentes, em Itália os primeiros, no Porto os segundos; a nomeação para Moçambique, inaugurando a imensa diocese da Beira; a intervenção pastoral, na doutrinação catequética e social, na promoção educativa e cultural; veio a presença activa no Concílio Ecuménico; veio o martírio da saúde e de incompreensões várias, de quem não lhe percebia a intenção evangélica, e social porque evangélica. Bem andou a sua terra e muito especialmente o Revo Pároco de Milheirós de Poiares, Pe. Fernando Correia Gonçalves, na realização da justíssima homenagem a D. Sebastião Soares * Bispo do Porto.

de Resende. Tudo demonstrando o que vai dito, que é o tempo a decantar e realçar o futuro do passado, unicamente do passado com futuro. Em Portugal ou em Moçambique, D. Sebastião é hoje um nome inquestionável. E, porque partiu para ser com os outros, aceitando-os como tais e servindo-os na humanidade comum, ele é hoje uma igual referência para duas pátrias irmãs. Nisto mesmo se revelou discípulo do Filho de Deus que, sendo único, se fez de nós todos. Esta verdade, sendo evangélica, não era tão comum assim na Europa colonial de meados do século passado. O “fardo do homem branco” recaía demais sobre o nãobranco; e as fronteiras entre “civilizar” e explorar eram facilmente ultrapassadas. Sem maniqueísmos, claro, e sem diminuir um milímetro em tudo o que se fez ou tentou de realmente solidário e promotor. D. Sebastião era português em Moçambique, e o que queria dos seus compatriotas de origem era coincidência entre os valores que referiam e as acções que praticavam. D. Sebastião era bispo da Beira, renascendo ali enquanto o Evangelho só é fermento na concretíssima massa, desfazendo-se naquilo mesmo que leveda. Parabéns aos que escreveram os textos agora publicados. Parabéns a quem levou por diante a homenagem. Gente que não esquece os valores e a história de D. Sebastião Soares de Resende é verdadeiramente da sua “terra”.

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SUMÁRIO

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Pórtico Manuel Joaquim Santos Conceição Fotografia de Flávia Pedrosa Reis - Praia de Espinho D. Sebastião Soares de Resende - Nota Introdutória D. Manuel Clemente Centenário do Nascimento de D. Sebastião Soares de Resende - Sessão de Abertura D. Carlos A. Moreira Azevedo D. Sebastião Soares de Resende - O Meu Testemunho D. Augusto César Fotografia de Flávia Pedrosa Reis - Jardins de Santa Maria da Feira Em Memória de D. Sebastião Resende Adriano Moreira D. Sebastião Saores de Resende - O Investigador David Simões Rodrigues Fotografia de Flávia Pedrosa Reis - Santa Maria da Feira Celebração do 1º Centenário do Nascimento de D. Sebastião - Primeiro Bispo da Beira D. Jaime Pedro Gonçalves Centenário de Nascimento de D. Sebastião Soares de Resende Alfredo Oliveira Henriques Fotografia de Flávia Pedrosa Reis - Casa da Música - Porto Concelebração da Eucaristia - Homilia . D. Armindo Lopes Coelho Escultura de João Rodrigues - Jarra Manual Os Pinhos de Milheirós Padre Manuel Leão Escultura de João Rodrigues - Mão Celebral Epopeia Angolana Serafim Guimarães D. Carlos - Cem Anos Depois António Ramalho de Almeida Poesia Costa Silva A Epistolografia Vieiriana e as Terras da Feira (1608-1697) - No 4º Centenário do Nascimento do Padre António Vieira Carlos Maduro Brasão de Fornos e Outrora... Fornos António Sousa Santos Poesia João Pedro Mésseder Brasão de Fornos... Fornos Rosa Maria Santos Poesia Manuela Correia Padre José Alves de Pinho Celestino Portela Outrora... Fornos Cândido Augusto Dias dos Santos Poesia Anthero Monteiro Intervenção de Pe. José Alves de Pinho Poesia José Pedro Mésseder Intervenção do Presidente da Câmara Municipal da Santa Maria da Feira Alfredo Henriques Poesia Manuela Correia D. Sebastião Soares de Resende nas Celebrações da Morte e Centenário de Nascimento, S. Paroquial de Milheirós de Poiares** David Simões Rodrigues As Alcunhas dos Oleirenses Anthero Monteiro Poesia Anthero Monteiro Ainda à Mesa com Mestre Aquilino Conversando sobre Comeres Vários Manuel Lima Bastos Dicionário Biográfico de Personalidades Feirenses Francisco de Azevedo Brandão Vexames e Razões do Colonialismo Ibérico no Brasil António Mesquita Poesia Fernanda Calheiros Lobo Espinho - De Lugar a Freguesia e Concelho - A Instalação da Câmara Municipal de Espinho Francisco de Azevedo Brandão Poesia Sérgio Pereira Antologia Prática de um Devocionário Popular - Devoções Semanais Padre Domingos A. Moreira Poesia Judite Lopes Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria Augusto Telmo Granada, Alhambra e o Sacramento Augustos Santos A Loja do Mago de Vitor Belém Orlando Silva Jogo e Literatura Maria da Conceição Vilhena Poesia Ilda Maria Lobolo Jorge Augusto Pais de Amaral Poesia H. Veiga de Macedo Furacão Mitch Joaquim Máximo Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo

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CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE SESSÃO DE ABERTURA D. Carlos A. Moreira Azevedo* Promove esta terra de Milheirós de Poiares uma homenagem a um dos seus filhos mais ilustres. As iniciativas tiveram uma Comissão Organizadora, chefiada pelo Pároco, Padre Fernando Gonçalves, o grande impulsionador deste evento. A Comissão era ainda constituída pelos Senhores: Casimiro Loureiro Dias de Pinho, Presidente da Junta, Eugénio Resende de Bastos, Francisco Barbosa de Oliveira Maia, Professor Manuel Joaquim Santos Conceição, Professora Maria Lúcia Azevedo Lima de Pinho e Engenheiro Tomás Carvalho Araújo Moreira. Quiseram que fosse eu a dar as boas vindas a todos, a agradecer aos que prontamente aceitaram participar neste colóquio e animar esta sessão. Faço com muito gosto. Não é possível levar por diante esta homenagem sem acordos e queria, desde já, em nome da Comissão, agradecer à Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, à Junta de Freguesia de Milheirós de Poiares, ao Conselho Paroquial de Milheirós de Poiares, à família Moreira da Quinta do Seixal, à Fundação Manuel Leão, à Rittus – Associação Cultural de Milheiros de Poiares e tantos anónimos. * Bispo Auxiliar de Lisboa. Natural de Milheirós de Poiares.

Sr. D. Armindo, a alegria com que acolheu esta homenagem foi bem sentida pela equipa que inicialmente o contactou, o facto de ter visitado a Beira e ter acompanhado atentamente as dificuldades de D.Sebastião quando Bispo da Beira, são motivos particulares para o Bispo do Porto estar aqui a presidir à abertura desta sessão e a usar da palavra na Celebração Eucarística que encerrará esta tarde festiva. A sua presença é a garantia e testemunho do carácter diocesano desta homenagem. Ao actual Bispo da Beira, D. Jaime Gonçalves, acolhemos com muito carinho e gratidão por nos dar a honra da sua presença. Certamente visitar as raízes simples da terra Natal do grande Bispo, seu antecessor, é itinerário pela memória de alguém que nos é caro e por isso estamos-lhe muito reconhecidos. Será com muito agrado que o escutaremos na segunda parte desta sessão Ao Senhor D. Eurico Nogueira, Arcebispo Emérito de Braga, ao Senhor D. Augusto César que usará da palavra agora e que também foi Bispo em Tete e por isso conheceu o Senhor D. Sebastião, ao Senhor Professor Adriano Moreira, Dr. David Simões que vai também usar da palavra na segunda parte, a todos, às autoridades presentes, ao Senhor Presidente da Câmara, Alfredo Henriques, que saudamos e agradecemos o interesse que esta iniciativa lhe mereceu. A todos os familiares do Senhor D.Sebastião dizemos da nossa alegria por se irmanarem na realização deste evento.

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Alguém poderá perguntar, mas será D.Sebastião merecedor da primeira estátua erguida nesta freguesia? Não haveria beneméritos mais generosos, políticos mais intervenientes, ou empreendedores mais eficazes? A ideia de erguer uma estátua partiu de Rui Moreira e a Comissão acolheu-a porque a memória grata não visa mero reconhecimento interesseiro. Mal andaria um país, uma Igreja, uma terra que não fosse capaz de ser grata a quem se notabilizou por feitos de grandeza moral, a quem deu voz pelos Direitos Humanos, a quem soube ler os sinais do seu tempo com visão do futuro. São raros os profetas coerentes na âncora dos princípios, são raros os sábios determinados na condução da Justiça e da autêntica paz. Não somos beneficiários de nenhum bem económico que D.Sebastião tivesse legado à sua terra, não somos beneficiários de uma sua acção concreta que renovasse algum sector da Indústria, promovesse as artes, interviesse na política ou na acção social, mas trata-se de alguém que interferiu em todos os recantos, mas a partir da mais difícil das atitudes que é a firmeza de carácter, a verticalidade da razão, a virtude do bem, a sabedoria do Evangelho. Um dos maiores Bispos Missionários do século XX, nasceu aqui, há cem anos. O que pensou? O que fez? Como fez? Para isso temos este colóquio. O colóquio que agora tem início, pretende exercer esta pedagogia que traga à memória e avive o reconhecimento desta figura ilustre. 10

Muito obrigado a todos por aqui estarem. Milheiros de Poiares, 17 de Junho de 2006.


D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE O MEU TESTEMUNHO D. Augusto César * Gostava de saber muitas coisas sobre o Senhor D.Sebastião Soares de Resende, primeiro bispo da Diocese da Beira (Moçambique), e de as dizer, aqui, em voz alta. Pois, a sua estatura moral era falada e admirada em todo o Moçambique. Mesmo assim, vou alinhavar algumas características que ajudem a desenhar o seu perfil, valendome dos meus contactos pessoais, que tivesse com ele na Casa Episcopal da Beira e no Seminário Interdiocesano de Lourenço Marques (actual Maputo). 1. O seu porte, alto e desembaraçado, revelava alguma austeridade e um comportamento disciplinado. Acolhia com abertura toda a gente, mas não aturava conversas superficiais ou de mero entretenimento. Durante as refeições, conseguia manter um ambiente agradável e uma conversa sem dispersão (assim o pude verificar, nas vezes em que fui seu hóspede!). E, pastoralmente (segundo o testemunho de um seu directo colaborador e meu saudoso amigo, Senhor D. Francisco Nunes Teixeira, bispo de Quelimane), não se contentava com ver, ouvir e apoiar; orientava mesmo! Apraz-me, ainda, sublinhar o sentido crítico da vida social, que ele mantinha “modo * Ex-Bispo de Tete. Bispo Emérito de Portalegre e Castelo Branco

habituali” e de que se valia, para se situar pastoralmente e, também, para sugerir procedimentos adequados aos seus colaboradores e missionários. Agora reconheço que não resultaria cómodo, para todos os feitios, moldar-se a esta linha de procedimento. Mas a Diocese apreciava a seriedade posta nas análises e nas propostas e confiava no seu Pastor. 2. Quando se deslocava à capital, para visitar os seus seminaristas e participar nas diversas reuniões episcopais, mostrava-se sóbrio e sempre satisfeito com os aposentos que lhe eram destinados. A virtude, nele, era um hábito. Por isso, quando a doença lhe bateu à porta e se afirmou implacável, não mudou de procedimento, antes mostrou-se conformado, até ao fim. Tratava-se dum carcinoma, localizado na garganta, que requeria tratamentos especializados.E, segundo o nome que conservei no ouvido, foi aconselhado a deslocar-se à Suécia; mas manifestou uma certa relutância, decerto por causa do incómodo e, sobretudo, pela despesa que ia causar à Diocese; e só por insistência do médico e dos seus colaboradores, se decidiu a aceitar a deslocação e o internamento. De facto, na vida do Senhor D. Sebastião, notava-se uma coerência que vale a pena referir. 3. Quanto à imprensa diária, acho de mencionar estes dois aspectos: logo pela manhã, e antes de se entregar às actividades próprias da sua missão de pastor, lia os jornais e

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sublinhava aquilo que lhe merecia reparo (mais em pormenor, naturalmente, o Diário da Beira que era da responsabilidade da Diocese); depois, como a “censura” era muito zelosa e, a cada passo, exageradamente rigorosa, o Senhor D.Sebastião sentia ter de se deslocar ao Governo-Geral, para defender a isenção do seu Jornal e alguns pontos de vista que reflectiam o seu pensamento. Naturalmente, também justificava algumas afoitezas de um ou outro colaborador mais ousado, que dizia para além do conveniente. Em todo o caso, o Governo de Moçambique ouvia e respeitava o Senhor D. Sebastião.

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4. Doutrinalmente, esmerava-se com a formação dos seus colaboradores (missionários e fiéis), através de sessões de estudo e de visitas pastorais. Mas era, sobretudo, nas Cartas Pastorais que ele expunha sistematicamente o seu pensamento. Isto, de molde a despertar, na Diocese, uma consciência crítica, bem mais além do que era comum. Assim, cada ano, a Carta Pastoral do Senhor D.Sebastião era esperada e lida com atenção. E constituía um “volumezinho” de páginas, que ocupava tempo e estante. Os temas – cada um para seu ano – reflectiam os problemas pastorais da Igreja, e eram desenvolvidos ao gosto da sua formação académica e da sua sensibilidade: sempre à luz da Doutrina Social da Igreja. Isto influenciava também os seminaristas daquela Diocese, no conjunto dos demais, que vinham de todo o Moçambique, excepto de Porto Amélia (actual Pemba). E, às vezes, dava lugar a diálogos muito vivos, seguidos naturalmente de discernimento; outras vezes era algum missionário entusiasmado com o debate político que escrevia e causava alguma efervescência Mas o equilíbrio do Seminário decidia-se pelo bem comum dos seminaristas e pelo serviço à Igreja E quando os Senhores Bispos chegavam, para os encontros habituais, falavam destes assuntos, pediam informações e davam as suas orientações. As Cartas Pastorais do Senhor D.Sebastião estavam, naturalmente, em cima da mesa. 5. Um dia, tive uma experiência diferente: desloquei-me à Beira, também para falar com o Senhor D. Sebastião, e fui convidado a visitar o Centro Catequético de Inhaminga orientado pelos Padres Brancos. No carro, iam os Senhores D.Sebastião e D. Francisco. Eram muito amigos: o Senhor D.Sebastião tinha sugerido ao Santo Padre aquele nome, para Bispo de Quelimane; o Senhor D. Francisco havia sido Director

do seu Jornal, tinha morado com ele, na Diocese (como habitualmente se dizia da Casa Episcopal), e falava sempre com entusiasmo do Senhor D. Sebastião. Tudo razões para haver espontaneidade nas conversas, durante o caminho. Nos bancos da frente, ia o Alli, motorista da Diocese, muçulmano de religião, e merecedor de grande confiança, e ia eu. A dado momento, já fora da cidade, surge um cão, disposto a correr à frente do carro, para se desviar, em tempo oportuno, como acabou por acontecer. E o Senhor D.Sebastião não resistiu: “ataca, Alli, ataca”!... E vai de contar algumas peripécias da sua juventude e uma certa alergia natural aos cães, que já vinha de criança. E acrescentava: “a minha irmã era, ainda, mais primária”... Ora, se por um lado, o Senhor D.Sebastião soube despir-se daquela formalidade que lhe era habitual, para amenizar o ambiente, por outro, o cão soube, também, revestir-se de agilidade suficiente, para escapar à cilada. Dois gestos que, decerto, parecem de louvar! Depois, a viagem continuou, dando lugar aos assuntos mais diversos. Mas, sempre, neste tom: interesse pelos missionários, dedicação à Igreja, atenção pelos mais pobres e uma pontinha alongada de crítica à política do tempo, rematando deste jeito: tudo o que eu puder obter do Estado, faço-o sem escrúpulo; pois, ele gere os nossos impostos, a favor do bem comum, e a Igreja emprega tempo, esforço e muita generosidade gratuita, à conta do mesmo bem comum e dos mais pobres… Por isso, nunca fica a dever nada! (Claro: isto foi dito, há muitos anos, a caminho de Thaminga. Que o Estado, hoje, não se escandalize com esta verdade!). 6. Vou terminar, até para me remir um bocadinho destas inconfidências. Mas faço votos para que a memória do Senhor D.Sebastião continue a despertar, em muitos, o interesse pela Doutrina Social da Igreja e o entusiasmo pela vida missionária. E uma vez que aludi a dois bispos de Moçambique, já falecidos, quero lembrar os seus sucessores, com afecto e como estímulo. e se alguma predilecção tivesse de acrescentar, seria para os cinco que tive como alunos, enquanto Reitor do Seminário Maior, e que pastoreiam as Dioceses da Beira e Quelimane, já referidas, mais as de Tete, Chimoio e Nacala. E, se me permitem, ainda vou referir, mais estas duas atitudes que bem dizem do Senhor D. Sebastião, e ajudam a completar o seu perfil de pastor (foram, também, ouvidas da boca do Senhor D. Francisco): primeiramente, quando ia pelas missões (em Visita Pastoral e não só), destinava sempre


um tempo adequado, para dialogar com os missionários (padres e/ou irmãs), procurando saber dos seus projectos e dificuldades. E, consoante ouvia, assim dava as suas orientações. Depois, fazia questão de dedicar, igualmente, um tempo à oração pelo povo (a sós e demoradamente), como exigência do seu ministério e como edificação do mesmo povo. E se isto é próprio dos pastores, fica bem não ser esquecido, pois pode sugerir algum símbolo concreto de homenagem, a quem tanto trabalhou na Diocese da Beira e por Moçambique. Quanto a mim, dou graças a Deus por ter conhecido o Senhor D.Sebastião e saúdo com afecto os seus familiares e a terra que o viu nascer. Porto, 17 de Junho de 2006

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Fotografia de Flรกvia Pedrosa Reis

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Jardins de S. Maria da Feira


EM MEMÓRIA DE D. SEBASTIÃO RESENDE Adriano Moreira* Mais de uma vez tive oportunidade de lembrar a acção de D.Sebastião de Resende, primeiro Bispo da Diocese da Beira, em Moçambique, para a qual foi nomeado em 21 de Abril de 1943. Poucos anos antes, em 1940, tinha sido inaugurada em Lisboa a Exposição do Mundo Português, para celebrar o duplo centenário, da independência e da restauração, um apelo dirigido aos valores históricos mais identificadores da nacionalidade, e também da missão que dava sentido mundial ao conceito estratégico nacional, que fora o de deitar o Reino a longe em busca de “cristãos e especiarias” segundo o conceito do anónimo marinheiro do Roteiro de Vasco da Gama. Este último desígnio receberia consagração pontifícia com a assinatura, na mesma data, da Concordata e do Acordo Missionário, que foram documentos consagradores da passada intervenção portuguesa no Ultramar, e testemunho da esperança colocada na futura acção do país. Nesse ano de 1940 era já tarde para pressentir e anunciar os ventos da história que destruiriam o Império Euromundista, porque a derrocada estava em progresso: as invasões germânicas sucedem-se, os governos europeus são derrubados, a queda de Paris lança um alarme geral, a designação de Winston Churchill para Primeiro-Ministro de * Ministro do Ultramar – 1961/1963 Vice-Presidente da Assembleia da República 1991/1995

Inglaterra fica célebre pela sua declaração programática, em 10 de Maio: “não tenho outra coisa a oferecer-vos senão sofrimento, sangue, suor e lágrimas”. Viveríamos até 1945 uma das maiores tragédias militares da história, cujo ponto final seria a demonstração, feita com o bombardeamento do Japão, de que o homem tinha adquirido a capacidade de destruir a Humanidade desde que conseguira domesticar a energia atómica. Dos países ocidentais europeus apenas Portugal e Espanha, neutrais, e a Inglaterra que liderou a resistência, não foram invadidos pelas tropas nazis. O balanço das perdas humanas é aterrador: foram mortas entre 40 a 50 milhões de pessoas, entre elas milhões de deportados. A experiência marcou esta síntese feita algures: “la mort est mon métier”. Os intelectuais, tal como os responsáveis políticos e militares, viveram um período de traições bivalentes, como De Gaulle e Pétain, afrontando-se em nome da França, como Drieu de La Rochelle e Brasillach alinhados com o inimigo, enquanto Eluard, Aragon, Mauriac resistem, e Sartre, como outros, fica na expectativa. Vista à distância, a serenidade de 1940, quer do governo português, quer do Vaticano, proclamando juntos a devoção e a confiança na acção futura da Nação missionária, não parece hoje corresponder a uma perspectiva bem informada, e tem uma dramática expressão na angústia de Bento XVI quando, neste ano de 2006, visitando Auschwitz, disse: “neste lugar

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ficamos sem voz. Apenas o silêncio terrível, um silêncio que interpela Deus: Senhor por que ficaste em silêncio?”. Na história da Igreja do Século XX, esta pergunta que recorda um sermão do Padre António Vieira, continua a inspirar a pergunta de Jean d’Hospital, feita no Le Monde de 10 de Outubro de 1958: “Pie XII a-t-il donné sa mesure?”; “a-t-il eu connaissance de certaines horreurs de la guerre voulue et conduite par Hitler?”; “qui jugera? Peut-on juger? Qui se permettrait de censurer les attitudes du pape dont le cœur attristé vient de cesser de battre et qui, sous les illuminations de la grâce et du savoir, mesurait les événements et les hommes sous un jour qui nous est inconnu?’” No ambiente público de confiança na habitualidade que, não obstante a tremenda guerra, reinava quando D.Sebastião tomou posse do governo da sua diocese, e que inclinava ao imobilismo das estruturas e dos conceitos de governo, o novo Bispo certamente se inspirou mais no Padre António Vieira, quando este pronunciou o famoso Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, pregado na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda na cidade da Baía, no ano de 1640, um dos anos celebrados pela lembrada Exposição do Mundo Português. O Padre não esperava pelo silêncio de Deus, ao lembrar as glórias passadas dos portugueses, que atribuía “à virtude de vossa dextra omnipotente”, porque, diz, “agora, Senhor, vem tudo isto tão trocado, que já parece que nos deixastes de todo, e nos lançastes de vós... “; e acrescenta que “não heide pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor senão justiça”. D.Sebastião fez a leitura do tempo, ele que seria padre Conciliar, e não hesitou em assumir que a justiça dos Evangelhos andava arredada de muitas das circunstâncias que marcaram o tecido social e político da relação entre o poder político e as populações, entre as populações nativas e os interesses económicos dominantes, entre a submissão ao saber tradicional e o acesso à sociedade da informação e do saber, entre o amor à terra nativa, e a perda da terra, entre o dever do trabalho em liberdade e o trabalho forçado pelo condicionamento das culturas agrícolas obrigatórias, ou pelo recrutamento abusivo da força de trabalho. Por isso claramente foi enunciando as premissas da sua intervenção, destacando-se a Pastoral sobre a nova Missão Colonizadora, de 1 de Dezembro de 1946. Ali escreveu que “se a colonização fosse uma obra desinteressada, não se encontrariam em

África senão os missionários. É certo que nem o direito nem o dever de colonização excluem os interesses materiais de entre os objectivos que, porventura, hão-de atrair os países colonizadores para as suas vastas e difíceis empresas, mas se não podem elevar até aos altos domínios duma rigorosa e desinteressada ascética o trabalho de colonização desenvolvido pelo Estado, não devemos também fazê-lo baixar ao nível da simples exploração da terra e dos seus homens”; depois, afirmou que “os países que assumiram o pesado encargo de edificar a civilização entre populações atrasadas hão-de deixar-se absorver por elevado ideal de mística que os inspire e mantenha à altura da sua nobilíssima missão, se quiserem corresponder à sublime e histórica vocação de construtores de novas nacionalidades”. Foi muito apoiado na sua doutrinação que procedi à revogação do Estatuto do Indígenato, à publicação do Código do Trabalho que o BIT considerou o mais avançado de África, que suprimi as culturas agrícolas obrigatórias, que multipliquei os liceus, que instituí os Institutos de Serviço Social, que criei, depois de ultrapassar severas dificuldades, os Estudos Gerais Universitários, dificuldades que os executores e beneficiários da lei não conheceram ou esqueceram. Se refiro estas circunstâncias é para tornar claro que a intervenção de D.Sebastião se deu num tempo em que não havia apelo aos princípios sem cólera de interesses feridos, nem crise de valores que não despertasse um conflito de entendimentos sobre a sua hierarquia e as suas exigências. Talvez o Ocidente esteja hoje a sofrer uma dessas crises com precedentes pouco equivalentes no passado, relativizando todos os valores, ignorando aquele imperativo que Ortega pregava sobre a necessidade de “eligir”, e não apenas essa necessidade mas também a de persistir na salvaguarda da escolha. Homem de fé e de visão, com uma inteligência pronta para a identificação das situações de conflito, um desassombro profético para assumir as exigências de emenda, e uma aceitação consciente das reacções e seus efeitos, D.Sebastião tinha o amparo sólido e confiante dos valores cristãos, que são o eixo da roda do missionário. A roda passa por todas as mudanças, e o eixo acompanha a roda, mas não anda. Ele podia serenamente professar aquilo que mais pode desejar um Bispo: que, depois da morte, se diga que Cristo passou por aqui. Conseguiu.


D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE O INVESTIGADOR David Simões Rodrigues* 1. Senhor Presidente da Câmara, Rev.mos Srs. D. Jaime, Arcebispo da Beira, D. Cleto, emérito de Portalegre, Ilustríssima mesa, Minhas Senhoras e meus Senhores: Apanhado de surpresa, há que prosseguir caminho. Não é fácil esta posição de alvo dos disparos dos vosso olhares atentos aos vossos ouvidos. Conta-se das dificuldades de certo aprendiz de orador ao enfrentar os ouvintes de olhos pregados na sua pessoa. Era-lhe verdadeiro patíbulo sempre que insistia, e logo voltava costas descendo lesto a tribuna. Bem o velho mestre de oratória insistia em vencer a timidez do discípulo. Até que um dia, o velho mestre o leva a um extenso campo de bem criados repolhos: - «Faz de conta que são as cabeças dos teus ouvintes e pronuncia o teu discurso». - Disse. Assim fez e o velho mestre, encantado com o desempenho, teceu-lhe os maiores elogios, até para mais e melhor o descomplexar. E de novo surge a oportunidade. E de novo subiu à tribuna. Quando do alto contempla as cabeças movendo-se e os olhos fixando-o, olha estático, treme e diz - «não, isto não são repolhos». E, descendo, remete-se para sempre ao silêncio.

2. Ilustríssimo Senhor Professor Dr. Adriano Moreira: há mais de cinco décadas que pela primeira vez tive o prazer de o escutar perdido entre centenas de participantes numa conferência sobre os problemas sociais e económicos emergentes da Região Vinhateira do Douro. Hoje cumpre-se a segunda vez. Na brilhante conferência, brilhante como tudo quanto em qualquer parte profere, com toda a verdade e propriedade, V. Ex.cia acaba de dizer que D. Sebastião foi ainda mais extraordinário em toda a sua acção de Bispo da Beira, até porque não conhecia a África, com o conhecimento de quem tenha estado. Permita-me V. Ex.cia que complete a asserção. Aliás, na linha do tema que me foi proposto, -D. Sebastião, Investigador . Pelo que me foi dado aperceber, D. Sebastião antes de lá chegar o corpo e o navio, já por lá andava o seu espírito, diria que desde os bancos do Seminário, e até ainda antes, quando na casa dos pais chegavam de várias formas as notícias das missões e dos pretinhos da África. Falamos da nossa experiência de criança desse tempo e da aldeia em que nascemos, cuja realidade seria paralela. Às famílias cristãs das nossas aldeias desses tempos África chegava mais fácil e intensamente que hoje. E até, nesses tempos de criança, anos 30-40, era vulgar, entre as quinquilharias das feiras e bazares, encontrarem-se à venda «pretinhos» articulados, em baquelite, ou outro plástico

* Licenciado em Filologia e Literatura Grega e Latina, Clássicas, com as variantes de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Diplomado em Histórico e Filosófica. Curso de Teologia. Dedica-se à investigação Histórico-Científica.

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parecido, que também a nossa saudosa mãe comprava e, na mesa da casa de fora, faziam companhia aos «santinhos» da sua devoção, entre solitários com duas ou três flores. Nos próprios Seminários Diocesanos, se cultivavam intensamente o espírito, o conhecimento, a informação sobre as Missões Ultramarinas e estas, nesses tempos, eram África. Na formação intelectual dos Seminários, como disciplina curricular, entrava a História Geral a par da Eclesiástica, e nesta, constavam muitas e ilustres figuras de Bispos Missionários Portugueses. E, por coincidência, destes, na diocese do Porto, do tempo do seminarista Sebastião Soares de Resende, ainda pairava a grande e lendária figura de bispo missionário, D. António Barroso. Na sua passagem de estudante em Roma onde convergiam alunos de todos os continentes, encontrou, contactou, «investigou», satisfez curiosidades missionárias, e necessariamente a África, e desta a chamada «África Portuguesa». Como se não bastasse, e curiosamente, no Seminário Missionário de Cucujães, fez os retiros de preparação espiritual para a ordenação de presbítero e de bispo. Coincidências? Premonições? Fiquemos apenas com o histórico de ele, nesse tempo, ter estado nesse espaço. O segundo é óbvio, não assim o primeiro. Assinalamos o facto. Não tiramos ilações.

Também a História tem razões que a razão humana desconhece. 3. Se com tudo tivermos presente na mesma pessoa o Filósofo, o Teólogo e o Sociólogo, Investigador e Profeta, ficaremos com a ideia de que a sua presença física em termos de aquisição de conhecimento da realidade africana, seria meramente subsidiária, importante, todavia. Por isso, quando este Bispo da Beira zarpa de Lisboa, enfrentando o espectro dos oceanos, levava :a) - na sua Alma de Investigador não já vestígios a seguir, mas respostas a executar; b)- na sua Alma de Profeta, não já um futuro por vir, mas o presente desse futuro; c) na sua Alma de Português o espírito dos assumidos riscos da aventura de Bispo Missionário na Beira de África. E assim, nos mesmos caminhos do Oceano de África, em 1943, de certo se cruzaram claros no seu pensamento os caminhos dos primeiros missionários das primeiras descobertas, de que se sentia continuador. E assim, neste trajecto azul do oceano, neste trajecto negro de África, outro trajecto se junta, o da luz que lhe advém de Investigador e Profeta. 4. Na verdade, bordejando as costas desta África profunda, aportando aqui e além, foi-se-lhe esta entranhando mais na alma de evangelizador com tudo o que a África dos


anos 40 comportava ainda de pureza e profundidade da sua Negritude e Africanidade, adicionadas dos ares próprios, inóspitos, misteriosos, que só melhor entende quem alguma vez os sorveu, como este filho desta pequena Milheirós de Poiares, que lhe ia também no coração Podem as terras ser pequenas. Mas por pequenas que sejam revelam-se grandes na grandeza das almas que produzem. Para cada um de nós, a grandeza da Pátria medese pela proximidade do conhecimento. Sendo assim, a terra em que nascemos será pequena, mas para nós é a pátria maior. A chamada grande Pátria para cada um de nós que vivemos longe das grandes metrópoles, onde todos se perdem e se desconhecem, será para nós a mais pequena. É por isso grande Pátria a nossa pequena aldeia que pelo conhecimento recíproco se torna grande. Para D. Sebastião, por estranho que pareça Milheiros de Poiares era a sua grande Pátria, ainda que Bispo da Beira, falado para Lourenço Marques e meio indigitado para arcebispo de Braga. Podemos observar o labor das suas investigações de particular utilidade social na quantidade e diversidade dos seus escritos, como nas polémicas sustentadas com intelectuais de que se pode destacar Aquilino Ribeiro. E com tanta elevação intelectual e profundidade se houve que mereceu do seu antagonista os maiores elogios e reconhecimento de saber. 5. Minhas senhoras, meus senhores, estes considerandos não constavam dos nossos planos. Todavia neles ficou subjacente o Homem arguto e atento às suas circunstâncias e ao mundo que o rodeia. Continuemos com D. Sebastião Soares de Resende, o Investigador. Todo o intelectual honesto se interroga continuamente sobre o objecto do conhecimento de qualquer natureza que ele seja, sobre os meios adequados à sua aquisição e à sua finalidade. Todo o agente age por causa de um fim. Tudo quanto escreveu revela de forma clara e notória este seu permanente estado de espírito e sobretudo no que concerne aos da sua actividade episcopal, principalmente desde o momento em que, embarcado, todo se direccionou nesse específico sentido. Mas também esta atitude mental se revela própria e um ser frente a um complexo universo,

cósmico e humano, que o rodeia e continuamente o interpela, aceitando o desafio. E isto é próprio de quem se sente capaz de enfrentar com êxito essa complexidade, porque apetrechado dos instrumentos próprios e liberto do síndrome de avestruz. Esta foi a postura consciente e consentânea com a própria consciência e resposta aos desafios do mundo intelectual que se lhe colocavam. Atitude filosófica natural ao espírito de investigador, potenciado pelo saber universitário, no profundo sentido da palavra. 6. O nosso Investigador fez o Doutoramento em Filosofia, a Licenciatura em Teologia, a formação em Ciências Sociais. Poderá dizer-se que em teologia só não fizera formalmente o doutoramento, porque concluiu todo o trabalho investigatório com que construiu a sua tese, faltava-lhe apenas a sua defesa, para as formalidades burocráticas. É claro que para todos estes Cursos desenvolveu aturados labores de investigação por arquivos, bibliotecas e centenas de Autores. A quantidade, diversidade e profundidade dos trabalhos que constituem a sua vasta obra de doutrinação perfilamse como os mais visíveis testemunhos do seu espírito de investigador que procura dar consistência, rigor e toda a sustentabilidade às doutrinas e aceitabilidade duradoira por parte do mais exigente público, variado e heterogéneo, desde a Metrópole à sua diocese da Beira. Na verdade, o maior elogio e demonstração desta realidade é que ainda hoje, em todo o território de Moçambique, e até de Angola, a diocese da Beira se apresenta como aquela que mais resistiu à erosão que se abateu sobre estes territórios nos embates e clivagens ideológicos e das convulsões políticas no período das guerras civis da chamada independência. Testemunho de que o investigador, apesar de morto, ainda fala, é o seu túmulo continuar objecto de romagem de saudade, gratidão profunda pela sábia acção doutrinadora do incansável investigador, D. Sebastião Soares de Resende. 7. «Defunctus adhuc loquitur». É exactamente também por isso que o investigador marcou quanto escreveu com as marcas da eternidade do bronze mercê da consistência científica resultante da investigação que sempre marcou os seus escritos com esse carácter que os torna indeléveis. Aí encontramos sinais do trabalho exaustivo do exigente Investigador:

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a) – As Sagradas Escrituras constantemente citadas, desde o Livro do Géneses ao Apocalipse; b) A Patrística antiga e medieval; c) Os grandes Filósofos da Grécia Clássica, nomeadamente Aristóteles, Platão e Sócrates, que elevaram a dignidade e sumidade do pensamento ao seu máximo grau, esgotando a Filosofia, como Homero a Epopeia. d) Os muitos autores consagrados pela elevada craveira intelectual e segurança do seu pensamento; e) O pensamento moderno na sua globalidade com os seus autores mais variados, como demonstram as suas criteriosas análises. E aqui é notório ao leitor avisado.

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8. Eis a razão por que, em D. Sebastião, é fácil encontrar coabitando em paridade o Homem, o Filósofo, o Sociólogo, o Teólogo e o Investigador fazendo dele o Homem de saber Universal, capaz de, à luz da Intelectualidade cristã, conduzir à formação de uma Universidade Católica e nesta à criação de uma Faculdade de Teologia porque a vocação verdadeira das Universidades é a Investigação, na plena acção do que dela concebia e fazia D. Sebastião Soares de Resende. E esse espírito de Investigador revelava-se também no sonho da fundação dessa Universidade em terras de Moçambique. Aliás dessa missão encarregou ele o Sr. Prof. Dr. Adriano Moreira. D. Sebastião Soares de Resende, Investigador e Profeta, tinha a clara consciência de «… o Homem valer o que valerem as suas ideias e estas valerem o que valer a sua ciência.» E nada disto poderá acontecer senão houver um trabalho aturado de profunda investigação. Daí a importância prática da inteligência na sua função iluminativa e o seu papel na avaliação dos destinos humanos, tendo em conta as ideias que professa e a doutrina que possui em património. E esta realidade criava-lhe na consciência a preocupação em fundar uma Faculdade de Teologia, até porque ele Investigador e Profeta, concebia a Teologia como vida integral do pensamento e vida integral da Nação. E por isso justificava plenamente a sua fundação ao escrever: «Isto quer dizer que na investigação da causa dos males do nosso tempo, por detrás dos acontecimentos políticos, económicos e sociais devemos procurar o maior de todos, a decadência da Teologia.»

Já em 1943, (que diria se vivesse em 2007), olhando à sua volta, julga-se regressado aos bárbaros tempos de Santo Agostinho, tempos ameaçados por duas ordens de hecatombe: - as heresias cristológicas por um lado e por outro a invasão dos bárbaros. D. Sebastião faz a analogia possível entre os dois momentos históricos. Urge denunciar as afinidades das barbáries e das heresias modernas. 9. As Obras Fruto e densas de investigação: - «Portugal e a Doutrina Dogmática da Comunhão» - «O Sacrifício da Missa em D. Frei Gaspar do Casal». - «As Pastorais» em Moçambique, ocupando 1.300 páginas. - «Doutrinação Moçambicana», onde Teologia, Filosofia, Sociologia se conjugam. - As conferências na «Rádio Pax», - os artigos doutrinários no « Diário de Moçambique» fundado por ele próprio. E o seu realismo levava-o a afirmar que o considerava mais útil às causas em defesa que três Missões juntas. A importância que assumiu logo de início, as camadas populacionais que atingia, a doutrinação em profundidade, a aceitação da sua forma de fazer jornalismo sério tornaram-no popular em todas as camadas sociais, excepto na política e financeira. Fácil é de entender que tal jornal, o «Diário de Moçambique» fundado por D. Sebastião Soares de Resende constituía logo à nascença, um alvo a abater pela política vigente e pela finança dominadora. O próprio Concílio Vaticano II, de cujas comissões fazia parte D. Sebastião, bispo da Beira, beneficiou das suas investigações, que lhe deram suporte científico e sociológico para que as suas intervenções dessem brado internacional, acirrando assim a polícia política que lhe apertou o cerco temendo-se até a sua prisão, que se não terá dado para evitar abertura de mais ofensivas diplomáticas na cena internacional, Nações Unidas inclusas. Para se ficar com uma ideia aproximada da vastidão e profundidade do Investigador na construção das suas obras de intelectual, vejamos estes simples apontamentos: 1. Para a sua tese de doutoramento em Teologia, «O Sacrifício da Missa em D. Frei Gaspar do Casal», Tavares


Martins, 1941, 260 obras de 205 autores. D. Frei Gaspar foi Bispo de Leiria e figura cimeira no Concílio de Trento. 2. Para a obra « Portugal e a Doutrina Dogmática da Comunhão», Porto, 1942, 40 obras de 38 autores. 3. Para as «Questões de História da Filosofia – Notas Críticas…», 1935, 40 obras de 40 autores. 4. Para a «Filosofia Tomista e sua actualidade», 1937, 23 autores, para além das muitas obras de Santo Tomás de Aquino, pois este o fundo do tratado. 5. Para a «Ordem Comunista», pastoral de 1948, foram 60 as obras de 40 autores. 6. Para a «Ordem Anticomunista», pastoral de 1949, 60 obras de 40 autores. 7. Para «A Verdadeira Internacional», pastoral de 1950, 30 obras de 24 autores. 8. Para «O Problema da Educação em África», «Páginas de Doutrinação Moçambicana», a «Consciencialização do que somos», «Consciencialização do que devemos fazer», e muitos outros trabalhos de fundo doutrinário, nem contabilizámos as obras e autores. Ora somando, corrigindo por deduções advindas da própria experiência, são muitas obras e muitos autores. Mais de 600 obras, é já uma boa biblioteca, tendo sobretudo em conta tratar-se de áreas do domínio do saber em que os livros são volumosos. Mais de 500 autores, é muita massa cerebral debitando saber que a sua investigação procurou. 9. O que fica sumariamente apresentado diz bem do espírito meticuloso do Homem de Ciência que procura na Investigação profunda e aturada a honesta fundamentação do seu saber em comunicação aos outros. Ilustríssimos ouvintes: não terminemos, sem trazer aqui a ilustre personagem pública da cultura e das letras nacionais, sobejamente conhecida, Aquilino Ribeiro. Que melhor e mais isento testemunho?

Sustentaram entre si aceso debate na secção «Letras e Artes» do diário católico «Novidades». Finda a contenda, Aquilino, honesta e publicamente, muito elogiou o seu antagonista, o Rev Dr. Sebastião Soares de Resende, nele reconhecendo, com muita admiração: a) A honestidade Intelectual b) A profundidade científica no tratamento da matéria c) A correcção e polidez do adversário senhor do seu saber. d) A nobreza do seu carácter de Investigador Que outras qualidades para testar o trabalho do Homem e sobretudo do esclarecido Investigador que foi D. Sebastião Soares de Resende, glória de Milheiros de Poiares que o celebra? Mas também que outro melhor e mais convincente testemunho que o de Aquilino Ribeiro, dada a sua estatura de homem da Cultura Nacional e a experiência directa com o pensamento do Investigador D. Sebastião Soares de Resende? Mortuus adhuc loquitur. Pode estar morto, mas este morto continua e continuará falando do que investigou ao legar-nos o que deixou escrito. Obrigado. Tenho dito. Milheiros de Poiares, 17 de Junho de 2006.

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Fotografia de Flรกvia Pedrosa Reis

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Cruz - S. Maria da Feira


CELEBRAÇÃO DO 1º. CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE D. SEBASTIÃO – PRIMEIRO BISPO DA BEIRA D. Jaime Pedro Gonçalves* PERMANÊNCIA VIVA DA OBRA DE D.SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE Ao tomar a palavra nesta sessão em honra de D.Sebastião Soares de Resende quero antes de tudo agradecer o amável convite que a comissão organizadora me dirigiu para cá vir. Com agrado cá vim e com as gentes da Paróquia de Milheirós de Poiares, quero admirar a obra que D.Sebastião Soares de Resende soube erguer na Beira e em Moçambique e agradecer-lhe a doação duma vida heróica. Vim também testemunhar-vos que esta obra continua viva. Quando vemos o que luz, lemos o que escreveu e recordamos suas palavras ganhamos mais inspiração e motivação para seguirmos os seus ideais de um fervoroso bispo missionário, educador esclarecido, comunicador convicto e promotor destemido de Justiça Social lá na Beira e em todo Moçambique.

* Arcebispo da Beira.

FOI UM MISSIONÁRIO FERVEROSO Foi grande a acção missionária de D.Sebastião Soares de Resende na fundação da nossa Diocese, de 1943 a 1967. Para compreendermos o ardor missionário de D.Sebastião recordo que ele foi grande admirador do Papa Pio XII que publicou a Encíclica Evangelii Praecones e proclamou à Igreja que tinha soado a hora da África. D.Sebastião escutou as palavras do Papa com os dois ouvidos e o coração ardente. Toda a região centro do país (335.394km2), era a sua Diocese. O jovem Bispo arregaçou as mangas e percorreu toda a extensa região, reanimou as missões que encontrara, fundou outras, com humildade procurou missionários aqui em Portugal e noutros países da Europa. A Diocese da Beira tomou-se um cenáculo de Pentecostes no qual os missionários falavam as línguas mais desencontradas. Pela Europa e América buscou subsídio para as missões. Fundou 55 novas missões, o que foi muito para aquele tempo. Iniciou a divisão da Diocese. Deixou-nos a Diocese de Quelimane e a Diocese de Tete. Muito cedo viu que era necessário criar o clero diocesano Moçambicano. Para isso fundou o seminário menor do Zóbuè e deixou-nos os dois primeiros sacerdotes diocesanos moçambicanos.

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O QUE FOI FEITO DESTA OBRA MISSIONÁRIA? Com muita satisfação podemos comunicar que todas as missões estão recuperadas da ocupação ou nacionalização pela Revolução Moçambicana ou do cativeiro da guerra civil. Estão reabilitadas, melhoradas e em pleno funcionamento. Passamos a chamá-las paróquias e continuam a ser centros de evangelização e desenvolvi-mento social.

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A própria sucessão a D. Sebastião teve a preocupação de nomear bispos julgados capazes de continuar a obra iniciada. D. Manuel Ferreira Cabral teve a visão de que só um bispo nativo podia herdar melhor a obra de D. Sebastião. Para isso mandou estudar em Roma os dois sacerdotes nativos aí existentes. Pediu resignação como sacrifício pessoal para não prejudicar a vida da diocese. D. Altino de Santana tinha experiência de bispo em Angola. A situação da diocese agravou-se com a expulsão dos missionários e ataques de políticos. Não conseguiu resistir e faleceu depois de um ano. D. Ernesto Gonçalves Costa teve o grande mérito de passar dioceses a bispos africanos: Maputo, Ilhambane e Beira e foi para a diocese do Algarve. O clero diocesano da Beira é uma realidade muito consoladora. Temos 26 sacerdotes diocesanos e ordenaremos mais 5 este ano. Temos também uma congregação feminina local, destinada à obra de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo e à promoção social dos irmãos. Trabalham em 6 paróquias para além das 3 casas de formação. Está nos inícios. Foi preocupação de D.Sebastião ter tais irmãs. D. Manuel Ferreira Cabral decidiu concretizar a ideia mas o tempo não permitiu. Hoje é a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Anunciação. A região centro deu 5 Dioceses – Beira, Quelimane, Tete, Chimoio (que foi Vila Pery) e Gurué. Está nos planos da nossa Conferência Episcopal criar mais uma Diocese desmembrando-a da actual Beira. A diocese da Beira de D.Sebastião é hoje arquidiocese da Beira. Do seminário de Zóbuè saíram 6 bispos africanos. Conscientes que herdámos de D.Sebastião uma Igreja

que deve continuar a sua missão, perguntámo-nos: que vamos fazer para consolidar o que os nossos maiores na fé nos legaram? Então convocamos o I Sínodo Diocesano da Beira. Depois de 4 anos de preparação iniciou as suas sessões de trabalho a 31 de Outubro de 2004 e terminou no dia 6 de Maio passado. Produzimos 4 livros com doutrina e programa de acção pastoral. 1. A Igreja que vive - teologia da igreja Diocesana e sua organização. 2. A Igreja que evangeliza - quem evangeliza, como evangelizar e preparação de seminaristas. 3. A Igreja que celebra - liturgia inculturada. 4. A Igreja que serve - intervenção da igreja na construção da Justiça, Paz, reconciliação, educação, saúde, novas pobrezas entre nós. Vede com que são orgulho conservamos a obra de D.Sebastião e com que fidelidade queremos desenvolver os frutos da sua acção missionária. D.SEBASTIÃO, EDUCADOR ESCLARECIDO Promoveu muito a educação dos indígenas nas missões criando dezenas e dezenas de escolas primárias. Fundou escolas de artes e ofícios. Ousou criar o ciclo preparatório para os indígenas. Fundou colégios liceais nas cidades da Beira e Chimoio. Propôs a criação de universidade em Moçambique. Construiu escolas de preparação de professores de Posto Escolar. Nós que estamos na Beira e em Moçambique queremos continuar o ideal de educar o cristão, o cidadão Moçambicano. As missões recuperadas reactivaram os internatos masculinos e femininos. Fomentamos o ensino secundário e préuniversitário (12ª.classe) nas sedes das missões. Temos 10 escolas católicas com ensino pré-universitário. A nossa Conferência Episcopal fundou a Universidade Católica de Moçambique com sede na Beira, depois que os leigos e mais pessoas da Beira estiveram já organizados para criar uma Universidade Católica da Beira. A Universidade Católica de Moçambique tem 6 faculdades a funcionar. Em reconhecimento dos esforços de D.Sebastião na educação e particularmente no ensino superior a Conferência Episcopal de Moçambique deu o seu nome à Fundação que cuida desta nossa Universidade, ficando assim:


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Fundação Internacional D.Sebastião Soares de Resende. O primeiro capital foi um donativo generoso da Conferência Episcopal Portuguesa. A quem mais urna vez agradecemos tamanho favor. Outra actividade de relevo realizada nas missões foi a criação de postos de saúde, até mesmo centros de saúde, com os serviços mais imediatos nas áreas rurais, por exemplo, as maternidades. Hoje alguns estão tão desenvolvidos que quatro delas criaram 9 departamentos da análise e tratamento de HIV/SIDA com laboratórios moleculares, em sintonia com a Comunidade de S.Egídio. Na faculdade de medicina da Universidade Católica de Moçambique queremos ver consagrados os esforços das Dioceses no campo da saúde. Em muito boa hora a nossa Diocese criou a Fundação D.Sebastião Soares de Resende com o produto da venda do Diário de Moçambique. A finalidade era perpetuar a obra de D.Sebastião na educação e promoção social, com pequenas bolsas de estudo, construindo pequenos lares para estudantes provenientes das missões. A Revolução Moçambicana baralhou tudo, ficamos só com os estatutos. Todos me perguntam se a Fundação

morreu. Respondo que morrer de morte não morreu, mas não está a funcionar. Não nos falta o desejo de pô-la de novo em pé. D.SEBASTIÃO, COMUNICADOR CONVICTO Apesar de a comunicação social no seu tempo não ser tão perfeita como é hoje, ele acreditou na sua importância na evangelização, na educação e na informação. Por isso lançou mão delas. Editou a Voz Africana, a revista de economia e fundou o famoso Diário de Moçambique. Enriquecia esta imprensa com artigos de fundo, comentários, o que mais tarde se chamaram páginas de doutrinação. Ainda no campo da comunicação D.Sebastião muito valorizou a Rádio Pax, emissora católica da Beira. Era dos franciscanos, mas D.Sebastião serviu-se dela nas palestras quaresmais e transmissão de homilias na Catedral. Chegou a ser uma Rádio alternativa à Rádio do governo no país. A Revolução Moçambicana, porém, desfez e esvaziou a Rádio Pax. Hoje a Rádio Pax é da Arquidiocese e está a funcionar


minimamente porque não tem estúdios próprios e faltam-lhe apoios importantes para o seu pleno funcionamento. O povo a considera Rádio da verdade e não deve morrer. Há uma outra iniciativa muito importante em que estamos empenhados: a criação de uma livraria católica. Faz-nos muita falta. Temos já o espaço necessário, o passo seguinte é a sua transformação em livraria com a reabilitação das estruturas. PROMOTOR DESTEMIDO DA JUSTIÇA SOCIAL

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D.Sebastião Soares de Resende é insigne pelas suas corajosas intervenções nas questões sociais de Moçambique de então. Ele encontrou um Moçambique que era uma colónia com todo um labirinto de problemas sociais, tais como, o trabalho forçado dos indígenas, a cultura de algodão mal paga, salários baixíssimos, mentalidade esclavagista para com os indígenas, exploradores de riquezas, políticas mais de domínio que de governo. Havia discriminação social, que às vezes tinham sabor rácico. Nos anos sessenta as colónias africanas clamavam pela independência nacional e por ela organizavam movimentos e guerras de libertação. Esta situação de Moçambique feriu a alma de D.Sebastião que começou a sua revolução. Denunciou estas injustiças e foi propondo soluções. Porque esta sua acção tocava os poderosos e os governantes de então, D.Sebastião engoliu amarguras e suportou perseguição humildemente. Ao início do seu pensamento idealizou uma sociedade de cidadãos iguais perante a lei e dignidade. Fazia a integração racial. Então se evocava o modelo do Brasil. Depois do Vaticano II viu claramente que era muito tarde para iniciar tal sociedade. O QUE É QUE RESTA DE TUDO ISTO? Resta muito. Na Beira somos muito sensíveis às questões sociais e aos ordenamentos políticos da Nação. Desde D.Sebastião até hoje a Beira é considerada como fornecedora de ideias que passam a liderar a vida do País. Perante o problema da Independência Nacional de Moçambique muitos sacerdotes e missionários tomaram posição a favor.

Quando a Revolução Moçambicana chegou tivemos de denunciar os males que causava à alma e ao corpo do povo moçambicano. A guerra civil piorou o sofrimento do povo. Então buscámos a paz, reconciliação e o perdão mútuo entre as partes em presença e no seio do povo. Conseguimos o acordo geral de Paz de Moçambique em Roma, em 1992. A nossa Conferência Episcopal fez seu programa defender os Direitos Humanos, a democracia, a paz, a reconciliação, o perdão mútuo, o diálogo como meio pacífico para o perdão mútuo, para resolver diferendos. CONCLUSÃO Este é o testemunho que damos da obra e vida de D.Sebastião Soares de Resende, nosso primeiro Bispo. A sua memória é-nos muito querida e inapagável. Dedicamos-lhe o nosso Centro-Social D.Sebastião Soares de Resende, que foi centro da Acção Católica. Hoje estamos a reabilitá-lo. Estamos nos acabamentos. Queremos agradecer com muita amizade às Dioceses do Porto, Portalegre e ao Arcebispo de Braga que nos apoiaram nesta obra. Queremos igualmente exprimir a nossa gratidão à Diocese do Porto que nos deu tão grande Bispo e sacerdotes que o acompanharam e com ele trabalharam na Beira. Muito obrigado ao Senhor D. Armindo Lopes Coelho, digníssimo Bispo do Porto, pela sua calorosa hospitalidade. A maior e a melhor obra que permanece viva é a presença de D.Sebatião no nosso meio. Ele continua na nossa cidade. Fica no meio de nós, segundo suas palavras, até à Ressurreição Final. Muito obrigado, D.Sebastião, e muito obrigado a todos vós aqui presentes. Muito obrigado à Paróquia e ao Pároco de Milheirós de Poiares pela vossa amável hospitalidade. Ficou bem saber que o Padre Fernando Gonçalves conheceu a Diocese de D.Sebastião. Milheirós de Poiares, 17 de Junho de 2006.


CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE INAUGURAÇÃO DE ESTÁTUA Alfredo Oliveira Henriques* Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo do Porto, Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Arcebispo da Beira, Senhores Bispos aqui presentes, Senhor Presidente da Assembleia Municipal, Autarcas, Senhor Presidente da Junta de Freguesia, minhas Senhoras e meus Senhores: É naturalmente com uma grande honra, como Presidente da Câmara, que me encontro aqui neste momento e é com muita honra que a Câmara Municipal se associa às festividades e à homenagem, neste primeiro Centenário do nascimento de D.Sebastião Soares de Resende. A Comissão de homenagem está de parabéns, está de parabéns pela forma cuidada e dedicada como preparou esta homenagem. Hoje como outrora, Santa Maria da Feira orgulha-se do espírito empreendedor originário das suas gentes. E são muitas as personalidades Feirenses que têm marcado o curso da nossa História local, nacional e internacional e que naturalmente fazem parte do nosso património que fazemos questão de preservar e enaltecer. * Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira

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Hoje como outrora, a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira presta uma merecida homenagem a D.Sebastião Soares de Resende. Em 1943, após a sua Sagração, o Primeiro Bispo da Beira foi recebido com fortes aplausos e muitos cumprimentos numa imponente e calorosa cerimónia na recepção nos Paços do Concelho em Santa Maria da Feira, durante a qual, D.Sebastião Soares de Resende benzeu a primeira bandeira, da então Vila da Feira, que foi hasteada na sua presença. A notícia da sua morte em 1967 causou grande consternação entre os Feirenses, que muito o respeitavam e admiravam a sua obra, a sua inteligência e a sua humildade. Santa Maria da Feira e Portugal perdiam um homem de vasta cultura e grande grandeza de carácter. Hoje ao inaugurarmos esta estátua de homenagem ao Primeiro Bispo da Beira, estamos a dar mais um importante contributo para a preservação da nossa história e das nossas memórias. Acima de tudo, queremos perpetuar a obra inestimável deste filho da terra que muito honrou, orgulhou e continua a orgulhar as gentes de Milheirós de Poiares e de Santa Maria da Feira. No final deste ciclo de comemorações será importante que os mais velhos mantenham vivo o exemplo de vida que foi D.Sebastião Soares de Resende e será fundamental que os mais novos descubram as riquezas da vida e da obra do primeiro Bispo da Beira. Muito obrigado. Milheirós de Poiares, 17 de Junho de 2006


CASA NATAL

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Fotografia de Flávia Pedrosa Reis

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Casa da Música - Porto


CONCELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA HOMILIA D. Armindo Lopes Coelho* Senhor Presidente da Assembleia Municipal, Senhor Presidente da Junta da freguesia de Milheirós de Poiares, Senhor Arcebispo da Beira, Senhor Arcebispo Emérito de Braga, Senhor Bispo Emérito de Portalegre e Castelo Branco, Senhor Bispo Auxiliar do Patriarcado, Reverendos Sacerdotes, Senhor Abade, Senhores Membros da Comissão Promotora da Celebração em honra do Senhor D.Sebastião Soares de Resende, Senhores familiares do Senhor D.Sebastião, meus caros fiéis: Ao ouvirmos proclamar a palavra de Deus nesta celebração, fica-nos a ideia de que esta palavra de Deus foi escolhida propositadamente para falar da vida e da obra do Senhor D.Sebastião Soares de Resende. No colóquio realizado esta tarde, ouvimos falar do Senhor D.Sebastião na sua terra, ouvimos falar do Senhor D.Sebastião como Bispo da Beira, desde 1943 a 1967. Permitia-me evocar a figura do Senhor D.Sebastião no seu relacionamento com a Diocese do Porto, desde os anos 1922/1923 em que entrou no período de formação na casa, Seminário da Torre da Marca, no Seminário de Vilar e depois no Seminário de Nossa Senhora da Conceição, Seminário Maior. * Bispo do Porto, hoje Bispo Emérito do Porto.

Terminado o seu Curso Teológico, ordenado Sacerdote em 1928, pelo Sr. D. António Augusto de Castro Meireles, então Bispo Auxiliar, o Senhor D.Sebastião foi enviado para Roma. Como é do vosso conhecimento, fez os Cursos de Filosofia e Teologia da Gregoriana e o curso de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Sociais de Bérgamo. Regressado a Portugal em 1933, foi nomeado professor do Seminário, para logo em 1934 ser nomeado Vice-Reitor do mesmo Seminário e em 1936 ser nomeado Cónego da Sé do Porto. Este relacionamento com a Diocese, através do Seminário, como aluno, através do Seminário, como Professor e Vice-Reitor, através de uma instituição prestigiada, como era, é o Cabido da Catedral, constituíram como que as primícias da vida e da obra do grande Bispo que ele foi a partir da sua nomeação, sendo ainda jovem e, quando ouvimos falar da sua obra, como Bispo da Beira, nós recordamos como foram também recordadas pelo Senhor Arcebispo da Beira, as suas Cartas Pastorais. Recordamos a sua acção Missionária na fundação de Missões, hoje paróquias, a sua acção no domínio da educação, pela criação de escolas, a sua acção a favor da justiça social e da igualdade e dos direitos humanos em geral e recordamos a figura do Senhor D.Sebastião como membro do Concílio Vaticano II, onde fez intervenções que foram notadas, não apenas na sua Diocese da Beira, não apenas em Moçambique, mas também aqui no

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Continente, além do eco internacional, sobretudo no domínio da Igreja. De facto, ao pensarmos na obra do Senhor D. Sebastião, enquanto Bispo da Beira, nós não podemos deixar de associar essa obra à imagem que encontramos no Profeta Ezequiel sobre a árvore alta que Deus plantou e também no Evangelho de S. Marcos, onde há parábolas que nos falam do Reino do Céu, comparados ao agricultor que cultiva o seu terreno, os seus campos e vê a semente germinar, vê o fruto crescer, vê inclusivamente a produção e a expansão e a multiplicação dos frutos como tivemos ocasião de ouvir da boca do Senhor Arcebispo da Beira, mas também, quando ouvimos falar da outra parábola pela qual Cristo nos dizia que o Reino dos Céus pode comparar-se a uma pequena semente, à mais pequena

das sementes que é lançada à terra, germina, cresce e se transforma numa árvore frondosa à sombra da qual vêm abrigar-se as aves do Céu. Meus caros fiéis. Esta parábola do Evangelista é uma parábola que Cristo tirou, certissimamente, do texto do Profeta Ezequiel. Aliás quando recordamos a Encíclica emblemática do Papa João Paulo II, Ecclesiam Suam, sobre a Igreja, também parece não restarem dúvidas de que o próprio texto da Encíclica do Papa Paulo VI reflecte o teor, a letra e o próprio espírito do Profeta e do Evangelista, porque Paulo VI adverte-nos de que a Igreja teve um início na simplicidade da vida da semente, mas depois, cresce, transforma-se numa árvore frondosa, à sombra da qual vêm abrigar-se as aves do Céu. São palavras da Encíclica emblemática de Paulo VI, são


palavras textuais do Profeta que se refere depois também na parábola do Evangelista. De facto a obra do Senhor D.Sebastião Soares de Resende, como Bispo da Beira, pode comparar-se à árvore que fala de Deus, através do Profeta Ezequiel, quando diz que abaterá um dia a árvore alta, frondosa ou orgulhosa e exaltará a árvore modesta. Estas palavras do Profeta dizem-nos do temperamento, dizem-nos da personalidade realizadora, mas humilde, do Senhor D.Sebastião. Aliás quando reflectimos sobre a sua obra, quando reflectimos sobre os ecos da sua obra, fica-nos a impressão de que o Senhor D.Sebastião viveu como poucos, aquele pensamento, que vem na Lumen Gentium, na Constituição da Lumen Gentium sobre a Igreja. O Senhor D.Sebastião foi um Bispo que conciliava e pelo nosso pensamento passa a ideia de que o Senhor D.Sebastião não só conheceu aquele texto sobre a caridade e a excelência e a supremacia do testemunho da caridade, fica-nos a impressão de que o conheceu, certamente que terá contribuído para a sua formulação. De facto a Constituição Lumen Gentium do Vaticano II diz-nos que o martírio é a prova maior da caridade que um membro da Igreja, que um cristão, uma pessoa pode dar e se este dom do martírio não é concedido a todos, todos, no entanto, devem estar preparados para o aceitar no meio das imensas tribulações que nunca faltarão à Igreja. Este texto dá-nos a impressão de ser uma reflexão do Senhor Bispo da Beira, uma reflexão do senhor D.Sebastião que exerceu toda a sua actividade Pastoral no meio destas tribulações que já então não faltavam à Igreja, sobretudo circunstancialmente à Igreja da qual ele era um Pastor tão dedicado, tão activo, tão inteligente, tão realizador. A Obra Missionária que o Senhor D.Sebastião realizou na Beira é um motivo de legítimo orgulho, a palavra orgulho é uma palavra discutível, mas de facto, a obra, a personalidade, a actividade, a acção do Senhor D.Sebastião é um motivo de muita alegria, é um motivo de muita satisfação, como sabemos que, oriundo desta vossa terra, ele foi também um produto do Seminário da nossa Diocese, além de professor, além de mestre de disciplina, que gerações sucessivas de sacerdotes nunca esqueceram. Tive oportunidade ontem de falar com um sacerdote que anda na casa dos 80 anos, disse-lhe que hoje viria aqui, participar numa homenagem ao Senhor D.Sebastião e esse

sacerdote dizia-me: - “esse foi o melhor professor que eu tive no Seminário”. Meus caros fiéis. Este é um nome, esses são os traços da obra do Senhor D. Sebastião, traços que estão marcados na inteligência e no coração de todos aqueles que o conheceram. Voltando à palavra da Escritura que aqui vos foi proclamada, dá-me também a impressão de que aquele texto da 2ª Carta aos Coríntios, foi o texto da palavra de Deus que inspirou o testamento do Senhor D. Sebastião. Quando lemos a riqueza daquela pobreza, quando lemos a dimensão sobrenatural, de confiança, de fé, de abandono e ao mesmo tempo de paixão que se conserva pelo facto da saúde não lhe permitir dar mais à sua Diocese da Beira, dar mais a Moçambique, dar mais à Igreja, mas ele entrega-se nas mãos de Deus, oferecendo o seu sofrimento, oferecendo a sua agonia, oferecendo as suas dores, por si mesmo e pela sua Diocese, são palavras que constam da letra do seu Testamento e que nos revelam o espírito de dedicação, de entrega à Igreja, em terras da Beira, em terras de Moçambique. O Senhor Arcebispo da Beira lembrava há momentos, que eu também estive um dia diante da campa simples de D. Sebastião, fui acompanhado pelo Senhor Arcebispo e tive a dita, tive a graça de viver aquele momento inesquecível, de olhar para a campa, onde se diz: “Sebastião 1º Bispo da Beira”. No seu testamento o Senhor D.Sebastião deixou dito que queria a sua campa na avenida mais larga e que dá para a entrada para a capela, para que assim pudesse ser calcado por todas as pessoas, que assim haviam de pôr em contraste a sua humildade, com a sua obra, com a sua abnegação. Senhor Arcebispo, meus caros fiéis, Senhores Bispos. Meus caros fiéis, de facto quando o Senhor D.Sebastião entregou os restos do seu corpo às terras de Moçambique dizendo que ali queria permanecer até à eternidade, o Senhor D.Sebastião deixou automaticamente escrita uma página indelével de ligação entre os nossos dois povos: o povo de Portugal e o povo de Moçambique. Tantas vezes ouvimos falar de uma cultura comum de séculos, do maligno comum, a partir do Senhor D. Sebastião, 1º Bispo da Beira, temos de facto toda a razão para falarmos desta história comum, para falarmos deste laço indelével que o Senhor D.Sebastião deixou escrito na nossa memória. Assim seja.

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Ao finalizar a Eucaristia

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Em honra da celebração do Centenário do nascimento de D.Sebastião e ao dizer-vos a minha palavra de agradecimento pela vossa delicadeza, quero também garantir-vos que não podia deixar de estar presente de alguma maneira. Permiti que vos recorde aquilo que tem passado pela minha mente, a propósito do Senhor D. Sebastião, ele foi professor e vice-reitor do Seminário Maior do Porto, ele até passados bastantes anos foi professor do mesmo Seminário e vice-reitor, antes de ser Reitor e neste ano em que passa o Centenário do seu nascimento, decorrido em 14 de Junho de 1906, passou também o Centenário do nascimento do Senhor D. António Ferreira Gomes que nasceu em 10 de Maio do mesmo ano de 1906 e recordo-vos que o Senhor D. António e o Senhor D.Sebastião foram não só colegas, vizinhos, próximos da idade dos colegas, como professores dos Seminários do Porto, como membros do mesmo Cabido, mas também colegas e comparticipantes daquilo que a Constituição Gaudium et Spes chama as alegrias e esperanças e tristezas, porque comungaram e trocaram correspondência e conversaram sobre problemas que os atingiam gravemente, e permiti que vos recorde ainda uma palavra do Evangelho quando fala das Parábolas do Reino, o Evangelista diz que Jesus falava assim em parábolas, mas aos discípulos falava directamente e o Senhor D.Sebastião e o Senhor D. António foram destes discípulos de Cristo, Apóstolos que não falaram em parábolas e sobretudo tiveram de sentir a amargura da ousadia quando em vez de falarem em parábolas, falaram directamente. Recordando o Centenário destes dois Bispos, eu queria também lembrar que passa este ano o Centenário do Monsenhor Moreira das Neves que foi uma ilustre figura da Igreja em Portugal e que é também e foi originário desta Diocese do Porto. Ao agradecer-vos a gentileza do Vosso convite, quero congratular-me, convosco, nesta festa que, repito mais uma vez, nos mantém unidos às terras da Beira, às terras de Moçambique. “O Senhor Esteja convosco”. Igreja de Milheirós de Poiares, 17 de Junho de 2006


D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE** D. Serafim Ferreira da Silva* 1. Sebastião de Resende, 1906, em Milheirós de Poiares principiou a ser gente, incorporado nas leis, unidade entre pares.

7. Mas o seu corpo ficou, acervo de um povo grato da Beira e arredores, que quase o canonizou, sem lei e sem aparato, e recorda com amor.

2. Estudou Filosofia, lógica do pensamento, para bem comunicar. E cursou Teologia, no grau do doutoramento, para saber ensinar.

8. Senhor D. Sebastião, bom cidadão e cristão, nunca foi oportunista. Bispo em terras de missão, com o ‘báculo’ na mão, não foi colonialista.

3. Partiu das Terras da Feira, por ordem de Pio XII, para as terras africanas. Primeiro Bispo da Beira, foi Pastor zeloso e doce das gentes moçambicanas.

9. No Jubileu centenário faremos festa e memória (oxalá que assim seja). Foi grande Missionário, elo de ouro na História, um luminar da Igreja.

4. Construiu um seminário, escola de educadores, que era o seu coração. Criou um jornal diário, ao serviço dos leitores, sempre a mesma missão.

Leiria, 26 de Fevereiro 2006. Ferreira da Silva.

5. Foi mestre e foi profeta, escrevendo pastorais e visitando missões. De consciência recta agitava os ‘maiorais’ das tribus e das nações. 6. Mil, 9 e 67, 25 de Janeiro, 50 e 6 anos, D. Sebastião enceta o caminho derradeiro nas veredas dos arcanos. * Bispo Emérito de Leiria - Fátima.

** Publicado na Síntese, nº. 181/2006

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Escultura de João Rodrigues*

Jarra Manual 36

A mão que sustenta a natureza

* João Rodrigues explora os diversos métodos de pintura e processos artísticos, através dos quais cria vários Mundos Antagónicos, mas semelhantes na sua carga artística transmitindo uma intensa criatividade. A multifacetada faceta do João Rodrigues leva-o a ter obras com diferentes padrões e estilos artísticos, que vão desde o surrealismo tridimensional, abstractos, esculturas de cerâmica. www.jrartistaplastico.com


OS PINHOS DE MILHEIRÓS Padre Manuel Leão* Os apelidos não são de molde a atrair a atenção de qualquer curioso, porque eram bastante vulgares. Localmente seria evidente a notoriedade deste apelido, na transição do século XIX para a século XX. Não tem sido possível a publicação dum estudo monográfico razoavelmente inclusivo de Milheirós de Poiares. Este estudo é mais memorialista do que fruto de investigação, mesmo genealógica. A este propósito, foi possível ir, em linha recta, até ao século XVI. Os lavradores proprietários raras vezes se ausentavam da sua terra natal, a não ser por casamento. Familiares meus, que ainda vivem nas pegadas dos que os precederam pediram-me que passasse ao papel conhecimentos que se foram sedimentando numa memória que fixou décadas de vivências. Neste aspecto, há franjas que nem sempre se apresentam com total clareza, mas esta falta de pormenores, quer em datas quer em lugares, não frustra a autenticidade dos factos. Numa fase da minha vida, enquanto tive mais disponibilidade de deslocar-me a Milheirós sem pressa, especialmente em vida de meus bons pais, não deixei de ouvir, mesmo sem inquirir, a evolução de factos em que a

família teve influência. Na adolescência, embora um tanto rebelde e personalista, tinha sempre mais interesse em ouvir do que em falar. A minha avó materna, Bernardina Rosa de Pinho, casada com Manuel Pereira Valente, do Parrinho, era irmã dos Pinhos de Milheirós. Todos tinham nascido no lugar da Corujeira, extremidade da freguesia e do concelho da Feira. Minha avó tinha ficado viúva bastante cedo. Deixou uma imagem de tristeza, porventura tradicional fisionomia das viúvas. Tinha três filhas: Ana, Lucinda e Laura, minha mãe. Vivia na sua casa, no fundo do lugar do Parrinho, com terrenos agrícolas, a maioria unidos, embora cortados por caminho pedestre que começava no largo junto da ponte sobre o rio Ul. Vinha à nossa casa no Outeiro, com frequência. No seu aspecto soturno, era carinhosa connosco. Fui muitas vezes dormir a casa dela, para quebrar a solidão. Meu tio-avô, Manuel José de Pinho, irmão de minha avó, deixou vasta fama de grandeza económica e magnanimidade moral. A minha mãe era a mais nova das irmãs. A tia Ana tinha casado, embora viesse a viuvar cedo, mas voltou a casar com Maximino, duma família do mesmo lugar. Não sei por que razão minha mãe não escondia a antipatia criada perante este cunhado. O convívio com a tia Ana, por parte das irmãs, era apenas ocasional ou de rua. A tia Lucinda acompanhou o seu tio Manuel Pinho tanto no Brasil como em Portugal. Conheci-a, no Parrinho, em casa da viúva de Manuel José de

* Natural de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, fez os seus estudos no Porto, tendo concluído o curso de Teologia e sido ordenado presbítero, na Sé do Porto, em 1943. Dedicou-se à educação e ensino, dirigindo o Colégio de Gaia, durante décadas. Esteve ligado à Fundação do Instituto Superior Politécnico de Gaia e Escola Profissional de Gaia, a cujas direcções pertence. Tem publicado numerosos estudos sobre história cultural do Porto e Vila Nova de Gaia, com incidência nos domínios da arte, da actividade livreira e do teatro portuense antigo. Tem promovido várias iniciativas de carácter social. Criou, em 1996, a Fundação Manuel Leão, com fins culturais e sociocaritativos.

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Pinho, D. Balbina Crespo de Pinho. Esta era natural do Brasil. A tia Lucinda era estimadíssima tanto por sobrinhos como por primos. Fazia deliciosas sobremesas. Servia-nos um café forte com leite, quando aparecíamos, ou em férias ou em visitas. O primo Jorge saía para caçar no Chão da Serra, no fundo do lugar. A tia Lucinda cozinhou-me uma perdiz com todo o esmero. A minha mãe fazia visitas sempre que podia para se encontrar tanto com D. Balbina ou Bibi como com a tia Lucinda. A tia Bibi era a madrinha do Parrinho. Desta família, saiu minha mãe para casar em Milheirós. Minha tia Lucinda assumiu a educação do meu irmão mais velho, Joaquim. Daqui partiu para Angola, onde constituiu família. Manuel José de Pinho e seus irmãos estabeleceram-se no Pará, em Belém. A casa dos Pinhos em Belém é actualmente a Casa da Cultura do Estado. Já estive na cidade, mas não visitei a casa por ignorar a sua Importância histórica e arquitectónica, dentro do estilo colonial. Foi visitada pelo engenheiro Correia de Pinho, neto de Manuel António de Pinho. Manuel José de Pinho e mais alguns dos irmãos liquidaram os seus negócios no Brasil e regressaram à Pátria, em princípios do século XX. Manuel era tão afeiçoado à sua terra pátria que, tendo morrido um seu filho ainda criança, trouxe-o para sepultar em Milheirós. Construiu a sua casa apalaçada no Parrinho, lugar sobranceiro à Corujeira, mas pertencente a S. João da Madeira. Por compra, adquiriu quase a totalidade do lugar. A moeda brasileira forte encontrava mais-valia na economia portuguesa que ia de mal a pior – situação que viria a agravarse desde 1910, com a implantação do regime republicano. A casa estava situada no topo duma colina, com a fachada principal voltada a sul, onde tinha a estrada municipal que ligava Milheirós a S. João da Madeira. O edifício estava recuado em posição superior à entrada do portão seguida por um cuidado jardim. Uma escadaria dava acesso à porta principal, por onde entravam os hóspedes mais dignos de cerimónia. Aliás era junto desta fachada que estavam as salas de visitas. A fachada posterior, a norte, encontrava acesso facilitado pelo declive do terreno. Deixando o prédio desafogado, o terreno tinha sido cortado por muros de suporte do patamar onde tinham sido construídas instalações vastas que começavam,

junto da estrada que ia para a Fontanheira, pela cozinha do pessoal, onde semanalmente era cozinhado o pão de milho, naquele tempo fundamental nas refeições populares. A porta de serviço, aliás, acessível a todo o movimento tanto da parte onde se centrava o trabalho agrícola como onde entrava a actividade externa à volta da cocheira, estava no topo norte. Era uma porta de duas folhas, envidraçada. No piso térreo, que tinha acesso pelo lado nascente, funcionava a adega, o celeiro e arrecadações, que comunicavam com o segundo piso, através duma escada que passava pela despensa, no segundo piso, onde decorria a vida normal da casa. A entrada de peões estava facilitada por um portão duma folha, de metal, que abria da estrada que ia para a Fontanheira, a sul do edifício central, para um espaço cimentado, através de poucos degraus, por se situar a um nível inferior ao da estrada. Quem entrasse por este portão pedonal subia alguns degraus para o patamar amplo onde se encontrava a entrada de serviço. Um amplo corredor estendia-se a partir da entrada de serviço até à entrada nobre. A dimensão deste corredor era impressionante, por ser invulgar na região, onde vigorava o ditado que se ouvia repetir com frequência: “casa quanta caibas, terra quanta vejas”. Isto significa que os maiores lavradores tinham pouco tempo para estar em casa. Por isso, as casas não tinham espaços supérfluos. A distribuição do espaço estava bem tratada porque, a meia distância, havia uma sala de jogo; mais tarde, já com D. Bibi viúva e próxima da sua morte, servia para sala de estar. Fica próxima do centro de ordens: a cozinha. Nesse corredor, a partir da porta de entrada de serviço, havia, à direita, um sector de rouparia, para reparação e tratamento de roupas e ainda uma secção de sanitários. Em seguida, estava a cozinha, dominada por um grande fogão a lenha, porque a casa tinha arvoredo nas matas que sustentava o fornecimento do combustível. À esquerda, havia um salão de jantar enorme, no espaço que lhe foi destinado, este ocupado por uma extensa mesa de madeira exótica e ladeada por altos guardalouças. As dimensões dos móveis tornaram impossível encontrar comprador, quando a venda do prédio foi combinada e feita com a Câmara, sendo necessário entregar a casa vazia.


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Manuel JosĂŠ de Pinho e Esposa


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A sala de jogo ou, mais tarde, de estar, tinha umas cadeiras certamente substituindo com vantagem a conhecida rede das regiões tropicais. Eram cadeiras de baloiço, que, como adolescente, achava cómodas, embora me contivesse facilmente, porque éramos educados em casa de forma a que o nosso comportamento no exterior não envergonhasse os nossos pais. No lado oposto a esta sala de jogo, havia uma ampla despensa, com descida para a adega. Na continuidade do corredor, distribuíam-se, em ambos os lados, quartos amplos, embora houvesse mais quartos no piso superior, com acesso de escada sobre o espaço da despensa. Havia duas salas de piano: a primeira, próxima da entrada nobre, e outra no piso superior ou terceiro piso do prédio. As famílias reuniam-se, em certos dias da semana, alternadamente, para jogar e para assistir a recitais de piano executados pelas senhoras. A imprensa concelhia registou ecos das recepções oferecidas às figuras gradas do concelho não só por Manuel José de Pinho como por Manuel António, na Corujeira. A sala de visitas, junto à entrada nobre, tinha uma estante com livros, tendo eu sido leitor dessa reserva literária. Manuel Pinho era apaixonado pela agricultura e pecuária. Meu pai contava tê-lo acompanhado em feiras, algumas distantes, como a de S. Mateus, em Viseu. Assim se explica a extensão das instalações agro-pecuárias do Parrinho, que não se encontram em mais nenhuma propriedade dos Pinhos. Estavam todas situadas num plano superior e independente, com abundância de água de mina, escavada no terreno de mata, que tinha vários hectares. Além dos amplos estábulos e cavalariça, tinha alojamento para pessoal agrícola, espaçosos galinheiros, cada um próprio para cada espécie de aves. Espigueiro e eira estavam situados, na extremidade, tendo na proximidade um vasto tanque onde caía a água da mina. Havia um longo terreno vedado, em frente aos galinheiros, mas confinante com a superfície agricultada, onde havia um pujante pomar. Muita fruta que aí era produzida e também nos foi favorecida a partilha dela. Não eram vulgares araçás nem romãzeiras, nem determinados cozinhados com origem brasileira. Havia trabalhadores internos ou criados e jornaleiros, além de trabalhadores eventuais, quando havia necessidade de obras, porque os desaterros eram feitos à giga com tamanho apropriado. As nitreiras eram um sinal de progresso

que substituía com vantagem os quinteiros dos lavradores ou os estrumes compactos dos currais, cuja extracção era o serviço mais duro que esperava o pessoal no activo. A propriedade que constituía a Quinta do Parrinho estava no limite com Arrifana e com Milheirós. Neste lado, na Fonte Boa, havia um mato cujo nome não é fácil de esquecer: mato do Piu-Piu. Algumas das famílias que trabalhavam na exploração agro-pecuária de Manuel Pinho puderam construir casa, em terrenos situados fora da Quinta, na parte alta do lugar, em frente aos edifícios da exploração agrícola. A propósito de fruta, em casa dos meus pais não havia necessidade de comprar fruta durante todo o ano, porque, quer na casa dos meus avós, na Herdade, quer no Parrinho, havia fruta para distribuir. Na Herdade eram famosas duas enormes cerejeiras, em frente à porta da cozinha, e uma figueira desenvolvida que produzia os célebres figos pingo-demel. A Quinta do Parrinho estava cercada de sólido muro de alvenaria, com frente de estradas por três lados. Na Fonte Boa, a nascente, além da água da mina que enchia a presa de consortes, um regato trazia alguma água da Fontanheira ou Rego do Vale, criando, a partir daqui, a fronteira húmida entre a Feira e S. João da Madeira. Desaguava no rio Ul, afluente do Vouga. Manuel Pinho comprou muitos terrenos nesta área. Houve mesmo propriedades que, no tempo, prolongaram o nome dos antepossuidores. O Campo do Alfaiate era uma propriedade plana, situada entre a estrada e o caminho estreito que conduzia ao fundo do lugar do Parrinho. Os lugares mais produtivos, no aspecto agrícola, situavamse na margem do rio Ul, na outra margem, para este ramo Pinho. Era o chão da Serra. A primeira ribeira, pertencente à minha avó Bernardina Pinho, irmã de Manuel, continhase entre o rio e um caminho público que liga essa margem com o fundo do lugar do Parrinho. Os trabalhos camarários liquidaram esse caminho. A restante área, do lado oposto do caminho, era muito extensa, tendo parte bravia, na Serra, hoje dividida por uma estrada que liga Dentazes, Milheirós, à zona industrial de S. João da Madeira. Tratava-se dum terreno agrícola de eleição, de origem sedimentar, excelente para produção de forragem, mesmo durante o Inverno, e de cereal na época própria. Quando Manuel Pinho morreu, a viúva, D. Balbina, fez


partilha com os filhos. Manuel Pinho faleceu de cancro na língua, pois teria fumado cachimbo, cujo calo teria degenerado. As propriedades começaram a mudar de dono. Havia quatro filhos vivos: Joaquim, Jorge, D. Judite e D. Josefina. Joaquim, meu padrinho de baptismo, desorientou-se, depois de um médico lhe anunciar uma vida que duraria pouco tempo. Assim, começou a vender ao desbarato a sua parte da herança paterna. Afinal, durou até alta idade, valendo-lhe os bens da esposa que tinha escolhido no Brasil. Jorge, fracassando o seu casamento, manteve-se ao lado da mãe. Fez algumas idas ao Brasil e chegou a ser vicepresidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira. Teve vida breve, após o falecimento da mãe. D. Judite veio a casar com João Carlos Toscano, numa fase avançada da sua vida. D. Josefina, casada com Joaquim Grijó, despachante oficial da Alfândega, viveu no Porto, embora se deslocasse com frequência ao Parrinho, numa ligação afectiva bastante sólida, pois vendeu bastante tarde as suas propriedades. O Dr. Carlos Grijó é actualmente o único neto vivo de Manuel José de Pinho, seu único descendente em linha recta. A Quinta e alguns terrenos tinham feito parte do quinhão de D. Judite, que comprou a parte do irmão Jorge. A Câmara de S. João comprou todo esse bloco ao casal Judite-Toscano. A vasta fortuna de Manuel Pinho não chegou à terceira geração, sumiu-se na segunda. No entanto, a memória dos Pinhos não desapareceu totalmente nesta voragem que liquidou os lugares aprazíveis onde tinham passado a sua infância e onde investiram o esforço das suas vidas. Não ficaram alheios ao ambiente físico e moral da sua terra. Na época da vivência dos Pinhos, Milheirós tinha carências que os locais não podiam resolver por si, devido às dificuldades de vária ordem que afectavam o país. A primeira que adquiria, para a época, o maior relevo ou urgência era a construção duma nova igreja que viesse substituir a antiga, sem dimensões para o crescimento demográfico. Os habitantes locais, vivendo da agricultura, pouco mais dariam senão alguma mão-de-obra e transportes de materiais. O terreno para construir a igreja teria sido trocado pela cedência da área anteriormente ocupada pela igreja velha. A tradição oral que permaneceu aponta para que os Pinhos tenham completado o terreno, para adro, cemitério e o tenham mandado vedar, tal qual se encontra actualmente. Restou ainda que do dinheiro angariado havia algumas sobras

que serviram para oferecer, ao P. Serafim, um fato, coco e bengala, como se usava então. Minha tia Balbina Pinho, que tinha acompanhado de perto a evolução dos factos, testemunhava mais tarde como aconteceram as situações referidas. O P. Serafim foi até convidado por Manuel Pinho a ir a Lisboa. Em festas no Parrinho, havia recitais de canto acompanhado a piano, colaborando parte da assistência com ouvido musical. Por vezes, os acompanhantes vocais calavamse para deixar ouvir a voz de tenor do P. Serafim, a quem todos estimavam muito. O nível da educação das filhas preocupou os pais, que, para aprendizagem do Francês, contrataram mestras estrangeiras. As famílias visitavam-se em dias escolhidos na semana, para jogar, tomar café e ouvir recitais de piano. Os irmãos mais constantes eram Manuel José e Manuel António, cada um com seu feitio e alcunha: Manuel José de Pinho era o “Tromba”; Manuel António era o “Carapaná”: a minha mãe referia-se ao Tio Carapaná, seu padrinho de baptismo, que a presenteou, no casamento, com um estojo de colheres de prata. Carapaná foi nome tirado de insecto brasileiro insuportável. Manuel António era muito exigente com pessoal em obras suas, mas também caprichava na qualidade. Na quinta que construiu na Corujeira, ainda existe um canastro cujas aduelas são metálicas, quando os dos lavradores são de madeira. Manuel António mandou construir uma capela mortuária no cemitério de Milheirós, que está revestida de azulejo holandês. Como consegui apurar este pormenor? Numa visita ao neto, Eng.º Manuel António Correia de Pinho, elogiei um acabamento que tinha na cozinha, objecto recente de remodelação. O revestimento da cozinha era de azulejo Delft. Manuel António respondeu-me que tinha uns caixotes de azulejo que tinham sobrado da capela do cemitério. Era mesmo autêntico Delft dos princípios do século XX. A Quinta da Corujeira não é comparável à Quinta do Parrinho. Bastante mais pequena, com categoria medíocre quanto ao terreno. É urbanizável, porque o terreno é levemente inclinado a poente, com uma extensa frente de estrada. A parte agrícola estava, na maioria, distante, situada ao fundo das propriedades dos meus avós maternos. Na margem do rio UI, no fundo do Parrinho, onde se chamava Fojo, era terreno de origem sedimentar, com um moinho de que eram consortes os meus avós maternos. Dos filhos que sobreviveram à morte do Pai, ficaram

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Lila, casada com Augusto da Rocha Romariz, natural de Mafamude e comerciante em Lisboa; e António José de Pinho Sobrinho, conhecido familiarmente como Antonico. Este casou com uma senhora de Lisboa, evidenciada pela sua beleza e educação, que não teve vida longa. Antonico foi bastante perdulário. Em jovem, esteve na Suiça, tratando-se de tuberculose pulmonar, ainda em vida do Pai. Era pessoa de bom trato, embora prepotente com pessoas que ele julgasse inferiores a ele. Num dos encontros que tive com ele, porque eu já não morava em Milheirós, depois de concluir o Curso, falei-Ihe duma recente viagem minha à Suiça, de carro. Fiquei admirado como ele tinha fixado o ambiente de Interlaken, cinquenta anos antes. A verdade é que Antonico gastou a parte herdada do pai, depois a da mãe. A irmã, prima Lila, como a tratávamos, tinha fortuna, reforçada na morte do marido, um pouco mais velho do que ela, de quem foi herdeira universal. Costumava vir para a Corujeira durante algum tempo no verão. Durante um encontro que tivemos, numa visita comum ao Parrinho, disse-me que iria fazer testamento ao sobrinho Manuel António, filho do seu irmão António. Infelizmente, uma doença súbita que a levou ao hospital, conduziu-a à morte inesperada. Mais uma vez, o irmão desbaratou forte reserva mobiliária e até um palacete, na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. A Quinta foi hipotecada. O meu irmão Carlos, a quem o primo António recorria, alertou o Eng.º. Manuel António C. de Pinho para o risco de não pagar os juros à empresa que concedeu o empréstimo. Como o filho era afeiçoado à Corujeira, onde todos os vizinhos o estimavam, resolveu assumir a situação negativa do pai. Pagou a hipoteca contraída pelo pai e começou a dar a este uma pensão mensal. O Eng.º Correia de Pinho era, então, Director do Instituto de Algodão de Angola. Mais tarde dizia que não tinha herdado nada: tinha comprado. O engenheiro Correia de Pinho tinha em estima a tradição familiar, chegando mesmo a pedir-me que estudasse a linha genealógica dos Pinhos, seus avós, o que fiz no Arquivo Distrital de Aveiro. Tinha uma propriedade a mato e pinhal com mais de cinco hectares, na Espinheira, em Milheirós. Tinha sido circuitada pelo avô com esteios e arame farpado, ainda visíveis. Pediu-me que a comprasse, visto que eu tinha propriedades confinantes. Foi fácil chegarmos a acordo na compra. A propriedade é parcialmente limitada pelo rio Uima, afluente do Douro.

DADOS BIOGRÁFICOS Estes elementos biográficos foram colhidos de vários jornais publicados na Vila da Feira. António José de Pinho da Silveira faleceu em 1900. Tinha vivos os seguintes irmãos: António José de Pinho, ausente Manuel António de Pinho José António de Pinho Manuel José de Pinho, ausente Fulgêncio José de Pinho Comendador António José de Pinho estava no Pará, em 1902. Foi nomeado conselheiro, morando na Corujeira, em 1906. Em 1908, ofereceu o portão para entrada no adro. José António de Pinho foi convidado para chefe local do partido regenerador, em 1905,embora não tenha aceitado. Faleceu em 1914. O diário portuense O Comércio do Porto noticiou largamente o falecimento e funeral de José António de Pinho, na Corujeira. Focou a sua dedicação na ajuda aos amigos que promoveram a sua terra natal, considerando-o um “português de lei”. Tinha ido muito novo para o Pará. Manuel José de Pinho, filho legítimo de Manuel António de Pinho e Joaquina Rosa Pereira, nasceu em 1861. Eram avós paternos: Manuel António de Pinho e Ana Maria, todos moradores na Corujeira. Foram avós maternos Manuel Ferreira de Pinho Campos e Ana Maria de Magalhães, moradores no lugar de Milheirós, da mesma freguesia de Milheirós de Poiares. As gémeas Ana e Cristina nasceram em 1864. Ana veio a casar no lugar do Pereiro, tendo vivido até perto dos cem anos. A maior parte da sua numerosa prole viveu e morreu no Brasil. Manuel José de Pinho veio do Pará em 29 de Junho de 1901, saindo do comboio em Ovar. Aí, foi-lhe feita uma brilhante recepção com muita gente de família e outra com projecção social. Entre os familiares, estava Manuel Pereira Valente, seu cunhado e meu avô materno. Em 1902, voltou ao Pará, em Março, e regressou ao Parrinho em Maio do mesmo ano.


Em 1903, era noticiada a inauguração da iluminação a acetileno nas casas de José António e Manuel António. Em Abril de 1903, os Pinhos José António, Manuel António e Manuel José foram, com as esposas, a Lisboa. Ainda em 1903, Manuel José de Pinho, na sua imponente casa de Vila Balbina, recebe uma numerosa comitiva feirense, a quem dá uma abundante recepção. A última viagem ao Pará deve ter sido em Novembro de 1903. Em Agosto de 1906, veio de Paris, onde tinha sido operado à doença que o vitimaria, um cancro provocado pelo seu costume de fumador de cachimbo. Assim, em 1919, foi operado, em Lisboa, aos lábios. A sogra, D. Mundica, nome que me lembro de ser mencionado na família, faleceu em 1920. Manuel José de Pinho faleceu em 3 de Setembro de 1921. O elogio fúnebre pronunciado pelo Dr. Crispim foi publicado integralmente na imprensa concelhia. Manuel António de Pinho ainda fez viagem ao Pará, em 1902. Em Maio de 1903, recebeu, na Corujeira, a comitiva feirense de pessoas gradas, a quem ofereceu um copo de água. Em Junho desse ano, convida pessoas com estatuto representativo para um banquete em sua casa. Em 1906, regressou duma viagem ao Pará, tendo sido objecto de recepção festiva à saída do comboio, em Ovar. Faleceu em 1919. Maria de Belém Pinho, Mariquinhas, manteve a sua fala brasileira, embora fosse natural de Guimarães, e punha em fuga os miúdos a quem costumava obrigar a beijar a mão e a quem acarinhava chamando-lhes caboucos. Fulgêncio José de Pinho nasceu em 1867. Casou com uma filha do médico Manuel Maciel Leite de Araújo, de S. João da Madeira. Aí construiu o seu palacete, que estava concluído em 1903, merecendo honras de notícia de jornal. Em 1907, Fulgêncio era vereador da Câmara de Oliveira de Azeméis, porque S. João ainda não era concelho. O Dr. Maciel morreu em 1907. Fulgêncio protegeu Ramiro Leão, um jovem inteligente que veio a afirmar-se um notável homem de negócios. Fulgêncio morreu em Espinho, onde residiu na parte final da sua vida. Quando morreu, em 1915, foi sepultado em Milheirós, tendo sido dados como vivos, na imprensa,

os irmãos Manuel José, Manuel António e o comendador António José. A ÉPOCA DOS PINHOS O Padre Serafim José dos Reis, natural de Escapães, no concelho da Feira, veio para Milheirós, em 1902, como encomendado, assim era classificada uma situação provisória no provimento da igreja. Ficou definitivo ou colado em 1905. O P. Serafim ofereceu um jantar de 14 pratos, conforme me contou o primo Jorge Pinho, que foi um dos convidados. Em 1903, houve vários melhoramentos nas comunicações por estrada, 4 impulsionados por Manuel José de Pinho. Como se pensava no lançamento da igreja, houve um anónimo que ofereceu dois altares... A primeira pedra foi lançada em Agosto de 1903, tendo lido o respectivo pergaminho o conselheiro Costa, naquele tempo ainda abade Costa, de Arrifana. Foi apontada a iniciativa que iria avançar com o apoio da família Pinho e de Domingos Alves Moreira, da casa do Seixal. Domingos Alves Moreira viria a falecer em Março de 1910, no Porto, onde tinha residência. Foi educado pelo Tio, P. António Alves Moreira, Reitor da paróquia de Milheirós. Começou a trabalhar no Porto, esteve no Brasil e mereceu um farto elogio fúnebre feito pelo Abade Costa. A igreja nova de Milheirós teve solene inauguração em 18, 19 e 20 de Maio de 1907. Os Pinhos não quiseram entrar nas lutas políticas da sua pátria. Já na República, constou que José António de Pinho iria ser convidado para a comissão republicana paroquial, porque o irmão Manuel António tinha recusado o convite. Em Maio de 1911, veio a Portugal o Comendador António José de Pinho, senador estadual do Pará. Em 1913, o Comendador Cipriano Oliveira Costa, irmão do Abade Costa, foi homenageado no Rio de Janeiro, como presidente da Sociedade Portuguesa de Beneficência. Veio a falecer em 1915.

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Escultura de João Rodrigues

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Mão Cerebral “Quando a Arte existe no sangue há uma entrega de corpo e alma”


EPOPEIA ANGOLANA Serafim Guimarães* Depois de uma viagem de comboio até Lisboa e de uma noite passada em casa da tia Ábia, uma pequena habitação na Rua da Marquesa de Alorna, 111-1º esqº , onde o palratório de dois aparelhos de rádio e um de televisão, em competição permanente, procuravam vencer a inércia da nossa distracção, o tio Rui Pimenta compareceu, também, para me trazer na sua voz rouca, uma presença amiga. Além do mais veio, também, para dar notícias sobre um amigo que vivia em Luanda, onde tinha sido agente da polícia judiciária. Ao sair do barco, em Luanda, soube que esse indivíduo magro e a cheirar a cigarro, tinha sido, em tempos muito idos, pretendente da tia Rosinha de Valença. No dia seguinte, levando comigo os elementos mais preciosos da minha circunstância (onde se incluía a guitarra) e acompanhado pela tia Ábia e pela madrinha Fernanda Mella dirigi-me ao já meu conhecido cais da Rocha do Conde de Óbidos, onde o paquete Império me aguardava. A partida foi a 8 de Novembro de 1963 e a viagem até Luanda teria sido vulgar, como a dos passageiros em viagens de negócios, se não fosse a amarga perspectiva de dois anos às ordens do poder discricionário de quem manda nos militares em guerra. * Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Chegado a Luanda no dia 18 de Novembro apresenteime no Hospital Militar a 19 e aí me colocaram, na Enfermaria de Infecto-Contagiosas, dirigida pelo Xico Maia e Castro. Depressa me familiarizei com o ambiente militar hospitalar e com as patologias infecciosas tropicais endémicas e o hospital comigo. Era sub-director do Hospital um capitão-médico que gostou de mim. Era uma pessoa estranhamente interessante. Passámos a ter um convívio científico-técnico reciprocamente muito útil e um convívio humano excelente. Fiquei alojado, uns dias, numa pensão na rua General Carmona. Nunca entendi a razão pela qual esse nosso expresidente, nessa rua, nunca chegou a Marechal! Lembro-me bem da “inveja raivosa” que me inspiravam dois camaradas prestes a terminar a sua comissão e que se preparavam para iniciar ali, em Luanda, uma caminhada civil. De aí transitei para a rua Dr. Luís Carriço, para um quarto que aluguei ao pai da Alice Cruz e, soube-o 42 anos depois, do Carlos Cruz. Tanto quanto me era dado ver, o senhor vivia sozinho e era visitado, regularmente, pela filha. Lembro-me, também, de por lá ver um miúdo que, só há pouco vim a ligar ao conhecido locutor da nossa televisão. Os dias passavam na normalidade quente e húmida dos trópicos e a situação era propícia a um enraizamento sem acidentes e seguia, já, em bom andamento: havia bons amigos (Cadete, Castro Ribeiro, Rui Abrunhosa, Zé Pinto e Conceição, Fausto e Marta, Dr. Baptista, Melo Vieira, Madalena e

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Melícias) e havia, ainda, os fins de semanas da ilha de Luanda quando, um mês exacto após a minha chegada, veio ter comigo a ordem de partida para a zona de Zala, de onde nos chegavam, frequente e regularmente, as notícias carimbadas com o sofrimento de quem vivia numa das áreas malditas da zona de intervenção norte. Sabíamo-lo bem, porque o hospital militar de Luanda era um indicador mais sensível que o próprio quartel-general. Nos dias que se seguiram ao conhecimento da ordem que me despachava mais para norte, passei a sentir-me acarinhado por proximidades afectivas que eu desconhecia e que talvez traduzissem mais o alívio por ter sido eu a “vítima”, do que qualquer sentimento de verdadeira solidariedade. Foi a 18 de Dezembro, um mês após a minha chegada a Luanda, que parti para a Bela Vista dos Dembos, um lindo nome para um sítio onde não se vislumbrava o mais leve sinal de presença humana indígena ou colonizadora, actual ou antiga, totalmente desprovido da mais discreta beleza. Inóspito e perigoso, era, sim, uma necessidade estratégica, por onde, dois anos antes tinha passado, apressado, um batalhão comandado pelo tenente-coronel Spínola, a caminho de Zala, centro daquele império do mal, que já existia nessa altura! Na mesma camioneta de carga que seguiu integrada num comboio que transportava os materiais com que se iria montar o aquartelamento, anunciado como provisório, o que, em bom português, significa definitivo, foi meu companheiro de viagem um rapaz magro, falsamente corado e de barba rara, oriundo de uma freguesia do concelho da Feira que, como eu, ia render alguém em falta na companhia de caçadores 448. Caminho longo e medonho através de uma zona de floresta cerrada, de cujo escuro eu esperava a todo o momento a rajada traiçoeira ou a emboscada cobarde que viesse alterar o andamento lento e receoso dos camiões de carga em que seguíamos. À estrada asfaltada e segura até cerca de 20 quilómetros antes de Ambriz sucedeu a picada larga, de piso irregular e poeirento, propício às minas, até ao Quimbumbe. Aí houve paragem. Quimbumbe era uma espécie de átrio de um imprevisível temido. Num pequeno edifício semi-destruído, não sei quem, vendia cervejas. Os únicos sons audíveis era o ritmado bufar bolhoso do arrancar das tampas das garrafas e o da queda das caricas num chão cimentado. De resto, silêncios densos, máscaras expressivas de ansiedade em

rostos duros. Num amplo espaço despovoado de vegetação, situado em frente, descansavam alguns helicópteros. Há dias que os paraquedistas participavam numa operação de limpeza naquela área, densamente infestada de terrorismo. A próxima estação seria a Bela Vista, a cerca de 100 quilómetros dali e a 200 a nordeste da capital. No mapa, a distância era pequena; na mente de quem tinha de os percorrer, a distância não se media em metros, mas em receios! Ao fim de um dia inteiro de viagem, alimentado com uma descomunal banana – de um tamanho nunca visto; em Angola é tudo grande, abundante, numeroso, multiplicado, desde o tamanho das bananas ao incontável número das sementes dos mamões ou das papaias - lá chegamos. Não houve surpresas, nem cumprimentos. Como também não havia qualquer construção, cada um dormia onde podia. O colega que eu ia substituir (Pombo Costa, de Castelo Branco), fez questão de me informar do local onde passava as noites e que, segundo os seus medos, era o lugar mais seguro da Bela Vista: um apertado espaço atrás de uma enorme máquina de engenharia que, de dia e nas horas de trabalho servia para abrir picadas, através do capim e, nas horas de folga, oferecia, gratuitamente, esse amparo seguro. Como achei indigno mostrar os receios que também tinha, escolhi dormir na tenda dos Cifra (homens da Rádio e comunicações), numa enxerga de palha, rente ao chão. O sítio Bela Vista correspondia a um pequeno planalto, sem vistas. Ao longe e creio que para leste, viam-se as árvores típicas do Quanza Norte, raras e de pequeno porte. Era nessa direcção que a picada, vinda de Quimbumbe, seguia para Zala; era para esse lado que ficava a pista de aterragem e era por aí que, de dois em dois ou de três em três dias o camião cisterna da companhia avançava para buscar a água de que vivíamos e que era retirada de uma pequena lagoa situada a norte do aquartelamento.

O acampamento da Bela Vista.


Apesar de situada, a menos de um quilómetro, a viagem ao longo dessa curta ligação umbilical tinha de ser rigorosamente protegida por soldados armados, porque a vegetação era aí já densa e era desse lado que, irregularmente, partiam tiros de desassossego que, com o decorrer do tempo, foram rareando. Várias vezes os nossos soldados foram atacados durante esta operação simples e inadiável de procurar água. Era, também, daí que, pela cenoite, subia ao ar o fumo de alguma cubata, vazia de dia! Do lado sul era o céu que se via; do poente, muito longe, seria o mar. Com as madeiras, que foram as nossas companheiras de viagem, a rapaziada construiu, num ápice, sem derrapagens nos preços, nem nos prazos, seis alpendres, onde passámos a viver. Aproveitando as habilitações profissionais de cada um, - onde houver um português há sempre um carpinteiro, um trolha, um electricista ou alguém que lhes faz a vez, e o milagre consumou-se. É esta prodigiosa capacidade de desenrascanço que distingue o soldado português e que muito

contribui para a incontestável realidade dos seus êxitos, nas condições mais desfavoráveis. Cada um dos quatro maiores alpendres foi destinado a cada um dos quatro grupos de combate; um quinto ficou a servir de armazém de viaturas e o último a funcionar como cozinha e dispensa. Coube-me ficar a pertencer ao grupo de combate do alferes Zaro, um rapaz simpático de origem goesa. Os outros grupos eram comandados pelos alferes Moreira, Franco e Lopes. O comando da companhia era do capitão Nunes, ex-militar que vivia em Angola, quando eclodiu o terrorismo. Duro e de poucas palavras, tratou-me sempre com deferência, máximo de generosidade afectiva que se podia pedir a um indivíduo revoltado, que se tinha oferecido como voluntário. Foi-me atribuído, também, um guarda-costas, o 88, o alentejano. Um rapaz de pequena estatura e infeliz, mas sólido na sua dedicação e lealdade. Durante meses não recebeu uma única notícia de ninguém. Só tarde me apercebi da sua solidão. Foi fácil encontrar várias madrinhas de guerra que vieram, entretanto, tornar menos penoso esse abandono! À roda do sítio cavaram-se trincheiras fundas que delimitavam o quartel e nos defendiam de eventuais ataques. A uns 200 metros do acampamento construiu-se uma pista, onde, num período de 6 meses, só uma vez aterrou uma Dornier com alguns oficiais que, da sede do batalhão, vieram inaugurar “um monumento” que os nossos soldados construíram no meio do aquartelamento, como cereja a coroar a bolo do acampamento. Apesar da ridícula distância a que ficava, foi necessário montar segurança quando isso aconteceu. Foi um dia que, só por ser diferente, foi de festa! Atraídos pelo cheiro de gente e pelos restos de comida, recebíamos, frequentemente, a visita nocturna da bicharada local: as pacaças e as hienas eram as espécies indígenas que mais insistentemente procuravam esse convívio cristão. Mas, mais do que isso e até do que os tiros dos inimigos, incomodava-nos o arrastar penoso do tempo e a monotonia daquele sítio vazio e triste. Durante as muitas horas de

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quase todos os dias a nossa única companhia era a solidão dos outros! Sete dias após a minha chegada à Bela Vista foi dia de Natal. Engana-se quem sobrestimar o sofrimento moral de quem teve de viver essa data, nas condições em nós que as vivemos. A rudeza da circunstância não deixa que vinguem os afloramentos de saudade trazidos pela lembrança das pessoas que nos querem, da ternura que nos inspiram, do conforto que nos dão, toda essa doce melodia que a vida concede a quem é feliz nesses dias festivos. Nem demos por ela. Para sentir o Natal, um português tem de ter perto um presépio, sentir frio, experimentar cheiros, pressentir movimentos familiares, viver uma circunstância própria de rabanadas, bacalhau cozido e vinho quente. Ali tudo nos distraía dessas bemaventuranças natalícias: ter de estar atento ao inimigo, ser obrigado a suportar um calor de purgatório, ter à sua volta tanta gente igual em calções e tronco nu! Tudo afastava da memória essa passagem de uma data tão marcante no calendário de um português! Na véspera uma pequena operação, feita nas imediações do quartel, tinha rendido a captura de um porco fugido aos “turras”. Os cozinheiros da companhia eram bons para coser grão-de-bico e os outros monótonos alimentos de todos os dias, mas não para preparar de forma saborosa carne de porco fresca! Cortado aos bocados, sem qualquer respeito pelas particularidades anatómicas o porco, assim destroçado, foi lançado para o grande panelão, sem condimentos, sem molhos, sem truques e saiu de lá misturado com batatas. Não sei se foi o porco que deu o paladar às batatas ou se foram as batatas que deram o paladar ao porco. Sei que ficou tudo a saber à mesma coisa!

Como é que se podia pensar em Natal! Mas houve fado, houve festa! Para quem, como eu e o sargento Martins da CCS não participava nas operações de vigilância ou em acções de combate, a nossa missão era estar ali, figuras passivas de uma natureza morta, coisas numa aguarela desbotada, sempre com o mesmo horizonte, impotentes para derrubar as comportas do tempo, suspensos entre a chegada de um aerograma e a do seguinte, quase sempre nenhum ou muitos, quase sempre recebidos por uma ordem diferente daquela com que tinham sido escritos. A chuva subtropical, que frequentemente nos fustigava, era o imenso e benvindo chuveiro que dava para banhar toda a gente, ao mesmo tempo. Despidos e aos pulos no meio da parada, não havia vergonhas que resistissem ao apelo, primeiro, porque não se podia perder aquele bem tão escasso de uma água sem parasitas nem tiros, segundo porque a densidade das gotas era tal que protegia os mais púdicos das visões obscenas daqueles nus homossexuais. E no fim destas chuvadas ciclónicas era lindo ver surgir da terra, nuvens de borboletas envolvidas por fumo, como se fossem almas libertadas de um qualquer purgatório, para subir àquele céu local. A alternativa a este meio colectivo e seguro de tomar banho era entrar na fila para uma chuveirada individual vertida por um ralo aparafusado num pipo de 3 almudes, pendurado num suporte tosco, construído a uns bons 100 metros do acampamento, semi-aberto a tudo, incluindo uma eventual rajada vinda da vizinhança norte, que nos ameaçava a uns 200 metros!

... Mas houve fado, houve festa...

... um ralo aparafusado num pipo de 3 almudes...


A comida que se ia buscar longe – Ambriz, situava-se a duzentos e tal quilómetros de distância -, ficava do lado de lá do risco de emboscadas, de minas, de ataques. O tenebroso percurso entre a Bela Vista e o Quimbumbe era como uma roda de lotaria a marcar destinos. Era assim que, prosaicamente, as viagens de reabastecimento eram espaçadas ao máximo e ninguém protestava por ter como refeição, às vezes, durante mais de uma semana, uma sopa de cascas de grão de bico, seguida do grão de bico sem cascas! Os dias na esperança de um só dia iam, assim, decorrendo a ver nada cheio de mistérios. Até que um dia, havia que reabrir a picada que outrora ligara a Bela Vista a Zala, através da mais perigosa área de toda a zona de intervenção norte picada que, devorada pelo capim, tinha sido eliminada dos mapas. Ao acampamento tinha chegado uma nova companhia para render a nossa, mas os comandos de Luanda só autorizavam a nossa partida depois dessa derradeira operação, uma vez que a tarefa não podia ser entregue a uma companhia de maçaricos desconhecedores da zona e sem experiência de combate. Além disso, dada a delicadeza da operação, teria de ser uma companhia inteira a realizá-la. Ora, havendo duas companhias disponíveis, decidiu-se constituir uma mista, composta por metade de cada uma das duas. Nestas condições, cabia ao médico da companhia recémchegada, mais moderno e menos graduado, a tarefa de acompanhar os operacionais. Porém, pela solidariedade que me mereciam os cerca de 60 companheiros que iriam participar nessa jornada, antecipadamente reconhecida como arriscada, ofereci-me, para ser eu a acompanhar as tropas. No dia 26 de Fevereiro de 1964 partimos da Bela Vista sabendo para onde íamos, mas sem saber por onde iríamos. No mais bem guardado dos segredos para não oferecer oportunidades fáceis aos numerosos grupos de guerrilheiros que operavam na zona, saímos, ainda de noite, nessa madrugada de expectativa. Poucos quilómetros havíamos percorridos quando vimos surgir e a avolumar-se no céu já límpido de um dia de primavera africana, uma nuvem de fumo ameaçadoramente crescente. Surpreendidos e inquietos por aquela visão inesperada e nada

tranquilizante, parámos para tentar ver o que se passava. Não foi difícil o diagnóstico da causa daquele fumo de queimada! Um dos “maçaricos” que integrava o pelotão de protecção que, seguia na frente do grosso das tropas e das máquinas de engenharia, para bater o terreno, não tinha resistido ao apetite de pôr fogo àquele mar amarelo de capim seco! Claro, lá se foi o secretismo da operação e a hipótese, já de si muito pouco provável, de uma viagem turística! Umas centenas de metros mais à frente “elas começaram a cantar”. Na minha ignorância marcial e ingenuidade natural, interpretei o matraquear da metralhadora pesada de que éramos alvo, como um motor de rega. O ruído que produzia cavo e próximo, era semelhante ao que a memória retinha dos tempos da infância, quando, no verão, na minha aldeia, era tempo de regar o milho! Fiquei espantado quando o meu querido amigo alentejano e inesquecível guarda-costas me veio arrancar, violentamente, da GMC em que, serenamente, me mantive sentado, gritando-me que aquilo era uma emboscada! A resposta foi imediata. Os canos das nossas cerca de cento e vinte G3S – incluindo a minha - apontados para tudo que mexia começaram a disparar. A aragem que corria e fazia mover as folhas das árvores, também levou tiros! Sob o ruído do estampido dos disparos e do assobiar das balas tive de socorrer dois dos nossos soldados que seguiam nas posições mais vulneráveis e que ficaram feridos neste primeiro ataque: o que seguia à frente de uma das filas de vigilância, o 1078, de quem nunca soube o nome, tinha

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sido vítima de uma rajada que lhe atingiu uma das pernas e o Espinho, condutor do primeiro veículo da coluna, tinha sido ferido por duas balas numa das mãos. Apesar de tudo, a sorte que protege os audazes, não faltou aqui com o conforto da sua presença! Uns pensos aplicados à pressa e umas injecções de analgésicos foi tudo o que se pode fazer! Mais uma vez, infringi as regras de segurança ao deslocarme, de corpo feito, no meio daquela trapalhada ruidosa e arriscada! E a noite chegou e, com ela, a necessidade de procurar um local resguardado, que nos defendesse das más intenções dos nossos sorrateiros inimigos. Numa pequena colina

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despovoada de árvores, dispusemos as viaturas, em círculo, como primeira protecção do espaço que iríamos ocupar e, por dentro deste primeiro resguardo, cavámos umas semitrincheiras onde passámos a noite. Dentro dos sacos-cama que cada um transportava na sua mochila, só a cabeça era vulnerável ao cacimbo habitual das noites de Angola. Guardo como recordação inesquecível a sensação de frio que as pestanas molhadas me davam quando fachava os olhos! Já que não dormia, passei a noite a testar este efeito! O segundo dia começou sem novidades de monta, com cada um a cumprir o seu papel. Sempre com a protecção de duas filas longas de soldados seguia, à frente, uma poderosa máquina de engenharia que cortava o capim e desfazia as rugas do caminho; um pouco atrás seguiam dois jipes ligeiros e um jipão munido de breda, e várias GMCs; um pouco mais atrás outra breda montada em jipão protegia a cauda da coluna.

Entretanto, o exame breve que fizemos ao caminho percorrido e ao que faltava percorrer revelou que tínhamos deixado, há muito, o rumo verdadeiro e que estávamos perdidos no meio daquela selva brava, o que não era nada difícil de acontecer, porque há muito que a picada antiga tinha desaparecido e não havia chão batido, nem marcos, nem tabuletas que nos indicassem o caminho. Foi, então decidido lançar um very light que, se tivéssemos sorte, poderia ser visto no quartel de Zala. Esperámos, toda a noite pela resposta que não apareceu. Na manhã seguinte, qual não foi o nosso espanto e alívio, quando vimos a subir, no ar, um fumo longínquo ainda, mas que, pela forma e pela localização, não podia deixar de ser a resposta ao nosso very light da véspera e que nos vinha dar uma informação segura sobre a direcção a seguir. Animados com este sinal e reorientados em relação ao destino da jornada, retomamos a marcha, com mais cautela do que na véspera. E tínhamos razões para redobrar os cuidados, porque um patinhado fresco bem visível no terreno molhado pelo cacimbo da noite, não deixava dúvidas de que a malta inimiga andava por ali, sem se esquecer de nós. E a visita, fácil de prognosticar, não se fez esperar. Surgiu e ficou para nos fazer companhia por várias horas e para nos fazer mais um ferido. O medo, o cheiro a pólvora, o assobio das balas, o cansaço de várias horas de “trote”, o peso de uma G3, e a sede que era já difícil de suportar – o camião cisterna que nos acompanhava estava vazio desde a noite da véspera – fizeram do resto da operação uma antecâmara do intolerável. Valeu-nos que nem eles, nem nós, atirávamos para alvos definidos. Eles, que sabiam bem onde nós estávamos, não ousavam levantar as cabeças para afinar a pontaria, porque nos davam o alvo que nos faltava; nós, porque não tendo um alvo conhecido, disparávamos em todos os sentidos, mais para fazer barulho e criar pânico do que para acertar fosse no que fosse. E assim fomos andando, num passo a passo cauteloso, disparando sempre, sem dar tréguas às armas que, em alguns casos, como aconteceu aos canos das duas bredas que seguiam nos jipões, chegaram a ficar em brasa. A nossa capacidade militar era, em muitos aspectos, flagrantemente inferior: eles, que eram de ali ou de ali perto, tinham quase tudo a seu favor: conheciam o terreno, palmo a palmo, deslocavam-se com a leveza e o silêncio de quem anda a pé por trilhos familiares, não carregavam


mantimentos, porque tinham fontes de abastecimento próximas, podiam escolher os sítios mais propícios e seguros para as suas acções e, além disso, possuíam armas que, em 1964, já não eram inferiores às nossas. Era assim que, um pequeno grupo, podia colocar em sobressalto um batalhão inteiro. Numa picada a subir e aos ziguezagues, como aquela por onde agora seguíamos, era-lhes fácil montar sucessivas emboscadas num mínimo de espaço, sem correr riscos e quase sem se deslocarem, enquanto que nós, descobertos e previsíveis, tínhamos de passar por eles várias vezes. Foi tal o tiroteio, que o barulho se ouviu em Zala, a cerca de 20 quilómetros e, a meio da manhã, uma companhia inteira de comandos saiu desse aquartelamento para nos vir socorrer. E foi muito útil esse apoio! Cerca do meio dia, continuávamos, ainda, sem vislumbrar saída para esta ensarilhada situação - que seria difícil de ultrapassar sem sofrer baixas sérias -, quando começámos a descortinar, nas cumeadas dos montes próximos, figuras de gente que se deslocavam em pequenos grupos. As nossas armas estavam já apontadas nessa direcção, quando alguém conseguiu destacar dos contornos dessas imagens longínquas, os cachecóis vermelhos típicos dos comandos. E eram eles de facto. Nesta altura já eram só as nossas armas que faziam a despesa dos tiros. Os “turras”, que se aperceberam da presença dos comandos muito antes de nós, já se tinham sumido! Era tal a sede no fim dessa manhã, que a água que bebi de um cantil, irmãmente cedido por um comando, só me

soube a alho quando o entreguei vazio ao seu dono! Não me lembro de ter experimentado na vida e até esse momento, sofrimento tão completo. Eu tinha trinta anos, tinha sido mobilizado por ser médico e não por ser guerreiro; não tinha tido qualquer preparação física e, muito menos, militar e tinha sido obrigado a trotar naquela manhã, durante várias horas seguidas - desde que soaram os primeiros tiros, ninguém mais pode utilizar as viaturas, que serviam, apenas, para nos proteger de um dos lados de onde poderiam vir as balas. Mas o cansaço não era só físico. Muito havia para contar do lado psíquico: direi, apenas, que a expectativa, numa aventura de risco, cansa muito! O último troço do percurso até Zala foi uma viagem com todos os ingredientes para ser triunfal: a companhia 448 tinha cumprida mais uma tarefa considerada, não só difícil e arriscada, mas também de um grande significado militar, porque tinha sido tornada operacional uma importante via de penetração através da zona mais densamente infestada de terrorismo de toda a área dos Dembos e, naquele momento, de Angola; a operação tinha sido feita com apenas três feridos ligeiros a floresta era deslumbrante e, a partir de agora, esperava-nos o prémio, pré-anunciado de uma mudança imediata para a pacífica Portugália, na Lunda. Mas o passado estava, ali, também, persistentemente, presente: a companhia 448, já contava 14 mortos em combate e tinha sido ali, entre Zala e Vila Pimpa, que dois grupos de combate tiveram de fazer frente a uma emboscada montada por argelinos e cubanos e que acabou por dizimar quase metade dos nossos companheiros que por ali seguia. Era nessas imediações que ficavam os célebres pontos negros do morro da camioneta vermelha e da fazenda das palmeiras, sítios funestos, onde se escreveram, com sangue, páginas amargas de história, que já me tinham sido lidas por alguns dos seus protagonistas, mas que tinham ficado algures na periferia da consciência, numa zona onde não há demarcação entre realidade e a ficção, mas que agora subiram à presença viva do entendimento, trazidos pela emoção ainda ao rubro. Sítios de onde, tantas vezes, só se saía com o auxílio das rajadas dos aviões vindos de Luanda e onde tantos nos deixaram, para sempre,

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ausentes dos que amavam e que, muito longe e distraídos pelos afazeres da vida, eram, se calhar, felizes. Tudo isto fervilhava no meu espírito impedindo-me de saborear aquela beleza muito verde que dos dois lados da picada oferecia aleluias de conforto nas duas léguas que faltavam para chegar ao fim da jornada. Tudo eram fantasmas a perturbar aquela perspectiva de consagração num passeio sossegado. Quarenta e três anos depois, onde estão os registos das centenas de episódios como este? Por onde anda a consciência colectiva destes factos? Quem tomou nota deste sofrimento, quem valorizou o significado de sacrifícios tão duros? Quem se lembrará, no futuro, da rudeza destas experiências, da intensidade vivencial destes momentos? Há lágrimas que só se enxugam com o conforto de se saber que há quem as entenda! Os livros de história não vão contar estes factos e os seus capítulos vão conter mensagens mais ou menos escondidas à sombra de palavras cuidadosamente elaboradas, e serão seguramente, facciosos porque há em jogo ideologias e interesses que vão contaminar o discurso! Não se trata de saber se foi boa ou se foi má a causa desse combate, mas ele deu-se. Cumpriu-se o dever e o dever cumpre-se, quer se ganhe, quer se perca, não olhando a sacrifícios e no anonimato. Poderá não se concordar com as razões que o motivaram, mas há, pelo menos, que o registar para que cada um o possa sublinhar ou eliminar, ao sabor das crenças e dos afectos. Páginas de um extenso livro que ficará sempre por escrever e que só perdurarão, dolorosamente, na memória de quem as viveu e que não as pode rasgar ou amachucar e deitar fora! Serão sepultadas com os seus intérpretes humildes e generosos. Alguns nomes aparecerão glorificados; uns, à custa de decisões tomadas no macio quente dos gabinetes, onde não chegou o som de um tiro ou o grito pungente de alguém esquecido a morrer longe de tudo; outros aparecerão como campeões de pacifismos hipócritas, úteis, calculados! Por mim, foi grande o conforto espiritual para aquele esforço físico e emotivo. Fui supraabundantemente recompensado por ter sido superior ao meu medo e por ter partilhado com aqueles meus companheiros de guerra os riscos que corremos! Zala era aquilo que esperava. Arquitectonicamente, os restos de uma pequena vila, igual a tantas outras da vastidão angolana. Ninguém, chegado de fora, era capaz de distinguir

entre Quicabo e Quibaxe ou entre Quitexe e Nambuangongo. A urdidura arquitectónica destas povoações era sempre a mesma: a picada que a atravessava – e que lá nos conduzia e por onde de lá se partia – era a sua espinha dorsal; de um lado e do outro desta rua principal meia dúzia de pequenos edifícios toscos davam abrigo ao posto da autoridade, à mercearia, aos correios, à estação de serviços, a uma ou outra família branca ou a alguns nativos de mais posses. Perto, havia, também, sempre uma capela. Na periferia, o muceque com as suas cubatas e os seus numerosos habitantes. Zala situava-se num pequeno planalto, todo ocupado pelo acampamento militar. À periferia alguns edifícios inteiros ou semi-destruidos, que restaram da antiga povoação e que, abandonados pelos seus proprietários, assassinados na sua maioria logo nos princípios de 1961, tinham sido aproveitados para montar bares, cantinas, dormitórios, enfim, os componentes básicos de um quartel rudimentar. A rua central depois de terraplanada funcionava como pista de aviação. Teria cerca de 200-300metros de comprimento o que não bastava para que um avião, mesmo pequeno, pudesse levantar vôo; porém, como toda a povoação assentava num pequeno planalto, a pista terminava abruptamente e os aviões não careciam de descolar, porque caíam no ar quando ela terminava! Quase como que para pôr fim às nossas dúvidas quanto à operacionalidade daquele aeroporto, poucas horas após a nossa chegada, aterrou em Zala uma Dornier que tinha sido chamada para evacuar os nossos feridos. Vimo-la aterrar e vimo-la partir. Estavam, assim, desfeitas as dúvidas. Para surpresa maior, o piloto dessa aeronave era meu primo, cuja mobilização para Angola eu desconhecia. Foi preciso vir a Zala para nos encontrarmos! Passei a primeira noite num catre que pertencia a um alferes que tinha pendurado junto a uns tijolos que funcionavam como mesa de cabeceira, o mais precioso dos troféus de guerra: o seu capacete de aço furado por uma bala que o tinha atingido, umas semanas antes, bala que, amortecida pelo choque, lhe rodeou a cabeça e lhe caiu aos pés, sem ter produzido mais do que um pequeno arranhão superficial, em vias de cicatrização! No dia seguinte ao da nossa chegada era domingo e tivemos missa, coisa que já não acontecia havia largos meses. O capelão do batalhão era um sacerdote alentejano que vim a reencontrar, cinco anos depois, em Monfortinho, de cujas termas era aquista regular. Durante uma série de


anos, acompanhado de uma irmã que era freira, lá aparecia para fazer a sua cura termal e para horas e horas de conversa porque esse encontro de Zala, apesar de curto, tão rico de memórias tinha sido! Na segunda-feira, havia que voltar à Bela Vista, pelo mesmo caminho e a mente, conhecedora do risco potencial daquele regresso, não deixou de o tomar, devidamente, em consideração, transformando a fortaleza de um voluntário na fraqueza de um timorato. Decidi colocar à roda dos meus receios a espessura metálica de uns semi-cilindros, que seguiam connosco sempre que nos deslocávamos, porque permitiam fazer, rapidamente, pequenas pontes para ultrapassar cursos de água gerados pelas imprevisíveis chuvas tropicais. Fiz quase todo o percurso de volta, emboscado num desses cilindros, sem ver nada nem ninguém. Inutilmente porque, ao contrário do que todos prevíamos, não houve um tiro nos cerca de 40 quilómetros da viagem de regresso. Na Bela Vista, fomos recebidos com exaltada alegria pelos nossos companheiros, que nos vieram esperar a várias centenas de metros antes do acampamento. Soubemos que tinham seguido a operação enquanto ouviram o ruído dos tiros. Soubemos, também, que tinha sido difícil ao capitão da companhia de novatos conter a raiva desses valentes companheiros, que queriam sair, também, para partilhar connosco os riscos de mais essa aventura. Na ida actuei como um herói; Na vinda comportei-me como um cobarde. Não são muito afastados os estados mentais que condicionam estes dois tipos de atitude, que dão constante possibilidade de alternância ao nosso comportamento. A consciência e a inconsciência a balizarem este movimento entre os dois pólos opostos do ânimo. A heroicidade, além de poder significar uma loucura sublime como a do nosso querido Teixeira – que durante os ataques saltava para cima das GMCs, porque daí via melhor os inimigos - tanto pode ser produto de uma coragem por irreflexão como de um medo subitamente esquecido. Cinco dias depois da nossa chegada, ordem para arrancar para leste. No dia 5 de Março, demos o primeiro passo até Luanda, “aterrando” no Grafanil. Aí secámos três dias! No dia 8, um domingo, iniciámos a caminhada longa, que nos iria levar a Portugália, na Lunda. Numa primeira etapa fomos até Malange. É espantosa a fidelidade com que a memória tinha fixado sítios que percorri e acontecimentos que vivi oito anos antes, na memorável digressão que em 1956,

o Orfeão Universitário do Porto tinha feito por terras angolanas: aqui tinha encontrado o amigo de Riomeão; ali, fizemos uma serenata; acolá ficava o café explorado por um emigrante da vizinha Arada. No dia seguinte partiu-se, cedo, para uma jornada que nos levaria até Nova Gaia, onde encontrei o Ramiro Valentim, meu condiscípulo, mais adiantado do que eu na sua comissão. Aí já se podia viver, ninguém dava pela guerra. O Ramiro via doentes civis com malária e cultivava galinhas. Ofereceume ovos da sua lavra; soube, aí, também, que o seu pai se encontrava gravemente doente. De Nova Gaia partimos para o Cacolo. Foi bravo o percurso, complicado pelas últimas chuvadas que tinham tornado a picada intransitável. Foi uma oportunidade para contactar, pessoalmente, com mais uma dura realidade africana: o tormento das picadas em época de chuvas. A juntar à irregularidade dos pisos, à lama e às poças de água, não há a quem pedir auxílio. Percorrem-se dezenas, centenas de quilómetros, sem se ver uma pessoa, sem se encontrar uma povoação! Quem percorre as lonjuras africanas tem de se bastar a si próprio: como quem leva aspirinas para prevenir os refreados ou bicarbonato para neutralizar a azia, há que levar enxadas, pás, areia, fragmentos de madeira para dar suporte fixo às rodas das viaturas, quando elas se entalam nas covas escorregadias. Enquanto decorria uma dessas operações, várias vezes repetidas na nossa jornada, e os entendidos desencravavam as viaturas desses sarilhos, os espectadores, como eu, colhiam goiabas que, amarelinhas, nessa época do ano, se ofereciam gostosas e fáceis de apanhar, de um e outro lado da picada. Foi, também, numa dessas paragens forçadas que, pela primeira vez na vida, vi um camaleão autêntico, no seu habitat natural, a mudar de cor como eu gostaria de mudar de sítio! Do Cacolo fomos parar a Henrique de Carvalho, hoje Camissomo e, daí, para Portugália, onde já chegámos a horas de dormir. Ao fim de vários meses, tinha, de novo, uma cama numa construção de pedra, coberta com telha! Era outro, o mundo da Lunda. Portugália era uma linda povoação, limpa, de ruas bem traçadas, pavimentadas a saibro, com residências individuais com jardim, belos parques públicos, clubes, lojas, mas onde se pressentia um certo constrangimento, fruto de uma apertada vigilância sobre comércio de pedras preciosas. Cumpria-se uma legislação e

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uma fiscalização apertadíssima, não só nas minas, mas também na povoação. Ai de quem fosse apanhado com esses materiais proibidos ou de quem se suspeitasse ter qualquer comprometimento em negócios que os envolvessem! Todas as manhãs tinha uma consulta para nativos. A queixa que ouvia era sempre a mesma: Mutcha nene, dói báriga (muito doente, dói a barriga). Dava para quem tinha febre ou diarreia ou uma pneumonia, ou qualquer parasitose local ou sistémica. A ajuda dada por um intérprete, que era, naturalmente, um nativo, era quase nenhuma porque as expressões tradutíveis eram escassas. Lá se ia adivinhando pela aragem e pelo exame físico. O único diagnóstico que fiz com base num quadro clínico bem definido e que me deixou consolado foi o de uma apendicite aguda, num militar nosso, que fui ver a 200 quilómetros de distância e que, operado a tempo, se salvou. Foi curta a minha estadia na Lunda. Chegado a 13 de Março regressei a Luanda a 23. No mesmo Nord-Atlas viajou comigo o furriel Brandão evacuado por graves perturbações mentais surgidas a seguir à embuscada de Vila Pimpa, que dizimou metade do grupo que ele comandava. Foi difícil fazê-lo entrar no avião porque ele assegurava que o objectivo era lançá-lo lá de cima, depois de iniciado o voo. Só aí conheci o tenente-coronel Igreja, comandante do batalhão a que a nossa companhia pertencia e que morreu general. O seu funeral a 25 de Março de 2006 levou-o para a sua terra natal a Chamusca. Era um militar valoroso e um homem digno. Os nossos contactos, nessa altura, foram breves. Conheci-o melhor nas duas últimas reuniões do batalhão em que participei: em 2003 e 2005. Nos breves discursos que fez mostrou bem que a bravura da sua conduta de militar não colidia com a riqueza do seu profundo humanismo. Todos os soldados o adoravam! A partilha de momentos difíceis por criaturas sem preconceitos cria laços que nada nem ninguém jamais consegue desfazer! Tenho-o confirmado nas várias reuniões em que tenho participado e onde não há siglas partidárias, nem galões nem títulos, onde há, apenas, amigos que sofreram lado a lado, que viram morrer companheiros com a mesma farda, irmãos em cujas faces, ora via sorrisos ora lágrimas, sempre tão verdadeiros uns como outras e que agora partilham comigo em vivência profunda, as recordações. No dia 23 de Março regressei ao hospital Militar de Luanda para retomar a actividade clínica interrompida e para iniciar a actividade docente nos Estudos Gerais Universitários de Angola. E a minha pequena história pertencente à História acabou aqui. Outubro de 2007

Quarenta e três anos depois, desfardados, em Chamusca.


D. CARLOS - CEM ANOS DEPOIS António Ramalho de Almeida* Nunca se escreveu tanto em Portugal sobre um Rei, como de D. Carlos I, para alguns O Diplomata, para outros, O Martirizado. Para todos nós a razão de tanta escrita tem a ver com algum remorso colectivo que todos acabamos por assumir pela sua morte, independentemente dos nossos credos e das nossas convicções. Tantos anos depois, ainda há quem veja em D. Carlos um emblema residual da Monarquia, e quem o confunda com um estigma sebastianista, que persegue alguns receosos do regresso ao tempo dos Reis e das Rainhas ao nosso país. D. Carlos, quer se queira quer não, entrou para a História pelo bom e pelo mau, e cem anos depois é recordado na data da sua morte violenta, que vendo bem, e lendo e relendo os relatos da imprensa da época, e os nossos críticos da História, não serviu para nada, a não ser acelerar um processo natural, que já se vinha apresentando e que era o trajecto republicano que se iniciava um pouco por toda a Europa. Ainda hoje se colocam muitas interrogações sobre os motivos da sua morte, sobretudo do processo que o levou à sua condenação. Repugna-me a ideia que os dois assassinos reconhecidos, Manuel dos Reis Buíça, e Alfredo Luís Costa, tenham combinado, à mesa do Café Gelo, matar o Rei só * Médico e autor de “ O Regicídio – Um crime mais que perfeito” Editora Fronteira do Caos.

porque não gostavam dele e porque o sentiam culpado do muito mau que se vivia no País e no caso particular em Lisboa. Impossível que assim fosse. Mas vamos atrás rever os registos da História para juntarmos as peças do “puzzle” e para tentar entender o que se passou de facto. A primeira parte do reinado de D. Carlos é fortemente agitada com 3 eventos políticos problemáticos: O Ultimatum inglês, a Revolução do 31 de Janeiro no Porto e a agitação nas Colónias Portuguesas de África. Em qualquer delas o Rei foi posto à prova e, bem aconselhado, acabou por decidir bem, revelando bom senso, a contento das maiorias, e com desagrado de outros que exigiam dele uma atitude de grande sacrifício do país sem qualquer retorno. A alternância no poder dos principais partidos políticos da época, o Regenerador e o Progressista, mantinham-se e ampliaram-se atingindo um nível de luta partidária particular, com graves problemas sem solução. O primeiro teve a ver com a denúncia dos gastos da Casa Real, desajustados para a forma miserável como vivia a maioria do povo português, e com adiantamentos que eram gastos perante a revolta dos mais críticos. D. Carlos gostava de saborear os prazeres da vida enquanto a miséria grassava pelo país. Os jornais, criticavam

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ou defendiam conforme a orientação política, mas na sua maioria não perdoavam ao Rei alguns hábitos que sentiam como afronta à população portuguesa, pobre de facto. D. Carlos viu-se também confrontado com outros problemas como o dos Tabacos, negócio que, denunciado no Parlamento, transpirou para o exterior, constituindo motivo para o aumento do tom de censura que o Rei ouvia por toda a parte. Por sua vez, a estratégia dos deputados do Partido Republicano, que para lá de bons comunicadores, de palavra fácil e convincente, preparavam com cuidado as suas intervenções, ia conquistando cada vez mais adeptos e simpatizantes, o que veio colocar muito difícil governar nos moldes tradicionais. Questionado sobre o cada vez mais notado alheamento sobre a sua participação directa na governação do país, D. Carlos dizia que nos moldes da nova monarquia constitucionalista o Rei era para reinar e o Governo para governar. A segunda parte do seu reinado é polémica: ponto final no Rotativismo; acabaram-se as alternâncias; dali para a frente

tudo iria ser diferente e só assim se conseguiria fazer alguma coisa pelo país. Esta atitude do Rei, embora pesada no contexto da época, é uma atitude inteligente, coerente e necessária. Para isso vai necessitar de alguém da sua inteira confiança, firme, de mão dura e de lealdade inequívoca e recíproca, que irá produzir uma mudança importante na vida política de Portugal. João Franco é a primeira escolha, e recebe do Rei tudo o que poderia pretender para iniciar um tipo de governação diferente, com facilidades, e sobretudo com o caminho burocrático completamente aberto e livre. Só que entre os dois há uma diferença gritante. D. Carlos é um homem inteligente mas tolerante, sensato e sabe o que quer. Franco não tem rigorosamente as mesmas características e perante os obstáculos que lhe vão colocando à frente no dia a dia, vai reagindo de forma impulsiva e primária, como reagem os pouco seguros. Sente o poder e usa-o nem que não seja a melhor forma de chegar aos seus desideratos. Isso vai-lhe trazer poucos amigos, e vai perdendo popularidade. Não se dá bem com os opositores e pede ao Rei para governar em ditadura, dissolvendo o Parlamento. O Rei concede. Com o caminho aberto, sente, pouco depois, que mesmo assim os opositores incomodam. Então o melhor é acabar com eles. Como? Muito simples. Tendo ele o poder executivo e administrativo na mão, resolve criar e redigir um Decreto que lhe vai permitir após a prisão de todos eles, deportá-los sem lhes dar a oportunidade de um julgamento. Timor é o destino, sem regresso. Assim sem mais nem menos. Mas para isso é necessário o consentimento assinado do Rei no Decreto, para este ser válido. E será que D. Carlos irá colaborar nessa decisão precipitada? Se não assinar, significa que pela primeira vez não confia na atitude governativa do seu leal amigo, e no cenário de então seria como retirar-lhe a confiança. Se assinar torna-se cúmplice de um acto no mínimo reprovável, embora ele sinta que tanta oposição é um entrave constante ao progresso do País. Por sua vez, Franco tem aqui um momento único para pôr à prova o Rei. Ou está por ele ou contra ele. Não há outra saída possível. Se assinar tudo bem, se não assinar...


É difícil continuar a frase. Nesta altura João Franco já não podia viver sem o poder, como acontece com os ditadores. A volúpia desse poder inebria, embebeda, possui-o de forma irresistível, e não pode parar, por isso duvido que se D. Carlos não assinasse o dito decreto, João Franco se demitiria. Não acredito!!! Porém comete uma falha grave. É aqui que se vê a falta de senso ético e político do ditador. Decide que o Decreto tem de ser assinado o mais depressa possível, de preferência amanhã, dia 31 de Janeiro de 1908. Será o Ministro da Justiça, que o levará em mão, à presença de Sua Majestade, que permanecia ainda em Vila Viçosa, onde gozava o seu mês de caça, e só regressaria com ele assinado! É uma exigência trágica, egoísta e inusitada. E é trágica porque Franco sabe que com esta medida vai fazer transbordar o copo da tolerância dos opositores. Sabe que essa atitude irá ter uma reacção forte, de certeza. Não é de mãos atadas que os presos de 28 de Janeiro vão aceitar o castigo brutal. Ele sabe que os amigos, os familiares, a Carbonária (que tão activa andava nessas semanas), a Maçonaria, enfim as forças ainda com força, não ficariam de mãos a abanar. Além do mais, tem o principal chefe da Carbonária, Luz de Almeida, preso. Será que alguém acredita que os elementos desta associação secreta, vão deixar que o seu chefe executivo seja deportado assim sem mais nem menos? Não. Impossível! Franco foi primário ao redigir o Decreto e exigir a assinatura régia de imediato. Olhou o bem dele, a sua impunidade, transferindo para o Rei o odioso da questão. No fim, era o Rei que mandava. A assinatura assim o esclarecia, e daí o Decreto ser uma ordem de D. Carlos. Por sua vez este, após leitura detalhada, deve ter ponderado se deveria ou não assiná-lo. Não assinar era retirar a confiança ao seu Chefe de Governo, com quem repartia mutuamente uma lealdade imaculada. Assinando iria voltar contra si a onda que estava voltada para João Franco. O Rei assinou, e acto contínuo exclamou para quem presenciou a cena: - Estou convencido que assinei a minha sentença de morte! D. Carlos era bastante inteligente e ali mesmo mediu o

alcance do seu acto, mas não vacilou, como não o fez quando o aconselharam a não seguir viagem para Lisboa no dia seguinte, 1 de Fevereiro, um Sábado frio. E seguiu viagem. Uma vez em Lisboa, D. Carlos podia ter seguido o conselho do seu responsável pela segurança, o conselho de seu irmão, e de mais individualidades que, conhecendo bem a realidade da Lisboa daqueles dias, o desaconselhavam vivamente a seguir viagem em landau aberto. Porém Franco minimiza o facto e não vê razão para isso. Será até um sinal de fraqueza. Medo é termo que não entra no vocabulário do Rei, pelo contrário, vai mostrar valentia, destemor, coragem, mas vai em carruagem aberta para provar isso mesmo. Nem escolta de segurança precisa. Está decidido! E a carruagem põe-se em marcha com a família real “aparentemente” tranquila, acenando para a multidão, mas tensa, receosa e numa expectativa atenta a algo que poderia correr mal. O Rei traz consigo uma pistola, e faz a viagem com a mão no bolso, acariciando a arma. À sua frente, está o filho Luís Filipe, herdeiro do trono, igualmente com o cabo de um revólver bem seguro na mão direita, que lhe foi entregue antes de subir para a carruagem, Receio? Cautela! Só Franco estava tranquilo. Tinha mandado prender todos os seus adversários políticos, ou pelo menos grande parte deles. Deixou sair o cortejo real, e calmamente ladeou o Terreiro do Paço pelas traseiras dos Ministérios e seguiu a pé. Trezentos metros adiante o cortejo real é surpreendido por uma emboscada, que, apesar de executada por poucos elementos, consegue, em poucos segundos, alcançar de forma fulgurante o seu objectivo. O rei é morto pelas costas, com um tiro solitário, rigorosamente no único sítio onde pode ser fulminado: na base do crânio. Cai sobre o colo da Rainha, que seguia à sua direita. Antes de deixar cair a cabeça em definitivo, ainda recebe um tiro no ombro esquerdo, já escusado porque o primeiro, de tão certeiro, bastou. Apesar disso, saindo da multidão, um outro assassino sobe o pequeno degrau da carruagem e dispara sobre o peito do Rei dois tiros. D. Luís Filipe reage de imediato, vendo o pai ser ferido, levanta-se, e tirando do bolso o revólver desfecha-o em Alfredo Costa. Este, atingido entretanto, fita o Príncipe e dispara sobre

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ele duas balas que o ferem. Porém, de repente, o Príncipe cai fulminado, por mais uma bala de Manuel Buíça. Também esta bala foi mortal. O Príncipe cai nos braços do irmão, que seguia a seu lado esquerdo na carruagem, jorrando sangue pela face, e em perigo de vida. O Infante D. Manuel levanta-se, e a sua preocupação é estancar o sangue da ferida da face do irmão. Procura um lenço, limpa e faz pressão dobre a ferida, mas esta não cede. Entretanto também ele é ferido num braço. “Uma queimadela subtil”, diz ele tempos mais tarde. A Rainha também reage. Em pé, com um ramo de flores que lhe fora oferecido minutos antes, tenta bater em Alfredo Costa, afastando-o do landau, uma, duas, três vezes, no rosto do regicida, que está mais preocupado com a missão sagrada de abater o Rei. De repente a carruagem abala aos arrancos, ganhando velocidade, e ouvem-se mais tiros e vozearia. Alfredo Costa é agarrado por populares e pela polícia e um deles encosta o cano da arma à cabeça e dispara. Costa deixa de reagir e cai como um peso morto. Do outro lado da rua um tenente de Cavalaria levanta a espada e desfecha-a no pescoço de Buíça. Este, instintivamente dispara a carabina, e sai o quarto tiro que vai atingir em cheio a perna do militar que começa a sangrar. Também Buíça cai a sangrar do pescoço, mas antes, vê um soldado avançar para ele ameaçador e dispara o quinto e último tiro da sua carabina. O soldado Salvador, sente o braço morto e sangrante, vítima da última bala de Buíça. No chão, sujo de sangue, o regicida agoniza e já nem sente a bala de misericórdia que alguém lhe desfechou na cabeça. Passaram-se uns 20 segundos apenas. Passou-se uma eternidade. A carruagem desapareceu levando a morte, uma viúva e o novo Rei de Portugal que minutos antes não sonhava com este salto do destino. D. Carlos morre vítima da sua coragem e do seu destemor. No Terreiro do Paço, ficou o silêncio, após o drama tremendo que ali teve o seu cenário. As pessoas, incrédulas, fugiam, e até um jovem, só porque estava ali perto da boca da cena e corria com a cabeça destapada, foi morto friamente por um polícia descontrolado, nervoso e impreparado para esta situação.

O que viria a seguir? Sim, para muita gente teria que haver uma sequência de factos políticos, dos quais o Regicídio seria fatalmente o primeiro. Aguarda-se. Ninguém acredita que mataram o Rei só para o matar. Seria uma Revolução Republicana? A acreditar na coincidência das datas – 31 de Janeiro, no Porto, e 1 de Fevereiro em Lisboa, embora com muitos anos de intervalo, podia ser uma pista. Mas não. As gentes de Lisboa, metidas em casa, receosas mas numa expectativa ansiosa, aguardavam os jornais para saber o que se passava a seguir com a curiosidade de alguém desnorteado. Mas não. Passaram-se as horas e os dias e afinal nada mais aconteceu. Um país de luto; um velório em S. Vicente de Fora; representações estrangeiras a chegarem todos os dias a Lisboa; as condolências; os jornais com as páginas cheias de notícias relacionadas com o Regicídio. Comentários de toda a ordem, mas. . . o Príncipe . . . que mal fez ele para morrer tão novo? Apenas pelo legítimo direito de querer defender o seu pai da agressão de Costa? Tudo seria evitado se João Franco tivesse domínio sobre a escalada de poder que o avassalou. Não resistiu ao chamamento doce da serpente, e foi pelo mais fácil, atraído pelo canto suave do abismo, sem pensar nas consequências imediatas. Franco não tem desculpa! Franco atraiçoou o pacto de lealdade celebrado com D. Carlos, porque: 1º ao pensar na forma de punir os seus adversários políticos, fê-lo de maneira a envolver o Rei directamente na responsabilidade de tal medida, passando ele para um plano secundário de responsabilização. O Rei ao assinar o Decreto de Deportação imediata dos presos, passaria logicamente a ser o autor da medida. 2º ao querer a sua assinatura de imediato, no dia 31 de Janeiro, véspera da chegada de D. Carlos a Lisboa, e a exigência no próprio dia da publicação nos jornais de tal medida, fez com que a opinião pública se exacerbasse e transferisse para o Rei muito da antipatia que nutria pelo ditador. 3º ao encorajar o Rei a seguir em carruagem aberta, alegando que tudo estava sob controle da “sua polícia”, e para além disso, ser uma boa oportunidade de mostrar a coragem e o destemor do Rei ao seu povo, foi como que levá-lo de braço dado para o último passo do abismo.


4º o facto de não ordenar a presença de um pelotão de segurança a acompanhar o cortejo encabeçado pela família real, ao contrário da opinião da Segurança da Casa Real e do Infante D. Afonso, irmão do Rei, foi o pequeno empurrão à beira do abismo, que fez com que a tragédia tivesse todos os condimentos. 5º sabendo que com a prática da sua política rígida e intransigente contribuía fortemente para a impopularidade do monarca, à vista de todo o país, não teve a capacidade de medir as consequências dos seus actos, numa atitude que deixa a desejar sobre as suas qualidades intelectuais. Pode dizer-se em seu favor que tal nunca lhe passou pela cabeça que pudesse acontecer, num país reconhecido por ser tradicionalmente de brandos costumes. Franco foi um dos responsáveis pela morte do Rei D. Carlos e indirectamente pela do Príncipe D. Luís Filipe. Nunca mais teve paz, o ditador. Demitido por D. Manuel II, foi para o exílio tendo passado por situações bem difíceis, repudiado pela população de uma cidade em Itália que o escorraçou. Acabaria por publicar um livro onde tentou lavar a consciência, publicando as cartas trocadas com D. Carlos, mas não chegando para convencer mesmo os mais tolerantes. Por outro lado foram vãs as tentativas de esclarecer quem foram os mandantes do Regicídio, situação que se mantêm misteriosa, mesmo nos dias de hoje, cem anos depois. Muitas conjecturas, muitas suposições, mas de factos concretos apenas o arquivamento do inquérito, o desaparecimento de algumas das suas páginas, suposições e nada mais. Ficaram apenas Manuel dos Reis Buíça, e Alfredo Luís da Costa como os autores do crime de morte na pessoa do Rei de Portugal, D. Carlos I de Bragança, e de seu filho o Príncipe herdeiro, D. Luís Filipe. Porquê? Não acreditamos que se possa saber muito mais sobre este mistério, mas ficamos com a clara sensação de um crime, que sendo sempre reprovável, não trouxe nada de vantagem a ninguém, muito menos a um país que, apesar de tudo, não merecia que um acto destes fosse a antecâmara de uma velha monarquia, embora desde há alguns anos muito enferma, quase agonizante. É assim a História: páginas gloriosas e outras vezes sem essa glória, mas mesmo assim úteis para reflectir sobre os erros, para que se não voltem a cometer.

D. Carlos - Paisagem do Alentejo - Pastel sobre cartão.

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CAMINHO Costa e Silva* Villa da Feira....

Villa da Feira....

“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”1

“Pelo sonho é que vamos, Comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Haja ou não haja frutos, pelo Sonho é que vamos.

Villa da Feira....

Basta a fé no que temos Basta a esperança naquilo que talvez não teremos. Basta que a alma demos, com a mesma alegria, ao que desconhecemos e ao que é do dia-a-dia.

O “sonho comanda a vida Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança”2

Chegamos? Não chegamos? -Partimos. Vamos. Somos.”3

* Cibernauta 1 - Pessoa, Fernando: Tabacaria 2 - Gedeão, António: Pedra Filosofal.

3 - Gama, Sebastião: Pelo sonho é que vamos


A EPISTOLOGRAFIA VIEIRIANA E AS TERRAS DA FEIRA (1608 – 1697) NO 4º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA Carlos Maduro* A minha obra é mui segura, Porque a mais é de correia; Se a alguém parecer feia, Não entende de costura. Bandarra

A vida do Padre António Vieira seduz pela longevidade, uma longevidade plena de acontecimentos e recheada de vivências. Deste modo, sempre que se fala de Vieira, o erro pode ocorrer ao tentarmos aprisionar num determinado instante ou numa determinada obra o pensamento e a grandeza do Jesuíta. Habituados aos lugares comuns do pensamento vieiriano, satisfeitos com os arrojos retóricos dos sermões mais emblemáticos, acaba-se frequentemente por valorizar os aspectos da obra a que o autor menos importância dava. Como ele próprio referia no prólogo à edição dos Sermões1, 1 - A edição dos Sermões mais acessível reparte-se por 15 volumes e foi editada pela Lello & Irmão Editores, no Porto. * Professor da Escola E. B. 2/3 Professor Doutor Carlos Alberto Ferreira de Almeida.

essa tarefa fazia-a por imposição, destinando para trabalho posterior, de modo a agradar a todos, a elaboração da Clavis Prophetarum. “Só sentirei que este [tempo] me falte para pôr a última mão aos quatro livros latinos de Regno Christi in Terris Consummato, por outro nome, Clavis Prophetarum, em que se abre nova estrada à fácil inteligência dos profetas, e tem sido o maior emprego de meus estudos”.2 Tendo como linha de reflexão este desejo, e para assinalar o 4º centenário do nascimento do Padre António Vieira, honrados com o convite do Sr. Dr. Celestino Portela, procuramos brindar a nossa revista Villa da Feira com uma pequena revisitação do pensamento vieiriano a partir de uma das obras no nosso entender fundamental, apesar de ser porventura uma das mais ignoradas, as Cartas3. Com efeito, é nas Cartas que podemos encontrar reflectido o Homem em toda a sua complexidade, o homem barroco, pleno de contradições, de sonhos, de visionarismos, numa palavra, numa enorme Coincidentia Oppositorum4. 2 - VIEIRA, Padre António, Sermões, Porto: Lello & Irmão editores, 1959, vol I, p. LX. 3 - Existem várias edições das cartas e as bibliotecas mais antigas do país têm um acervo considerável de edições manuscritas apógrafas destes textos. A edição mais utilizada e acessível das Cartas está publicada pela Imprensa Nacional da Casa da Moeda e foi coordenada por José Lúcio de Azevedo. Contém um espólio de cerca de 720 cartas que de forma alguma se pode considerar completo. Vieira foi um comunicador por excelência e muitas outras cartas terá enviado, tanto aos destinatários que conhecemos como a outros a quem forçosamente teria escrito, como notamos pelas referências que lhes são feitas ao longo de toda a sua epistolografia. 4 - O termo é de Dâmaso Alonso, foi usado para caracterizar a temática da

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Pela viagem das cartas, podemos encontrar textos tão diferentes como as “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, um papel em forma de carta, escrito nos tempos do fervor missionário pela evangelização e protecção dos índios do Brasil. Era dirigida a missiva ao Padre André Fernandes, Bispo eleito do Japão, mas desta carta terá feito diversas cópias, tendo uma delas como destinatária a rainha viúva de D. João IV, D. Luísa de Gusmão, ao que parece, com a intenção de lhe servir de consolação numa viuvez que caminhava já no terceiro ano. Será nas Cartas que podemos encontrar o envolvimento de Vieira em matérias da sua competência como a missionação, a educação dos colonos, dos negros e dos índios, mas também o seu envolvimento na diplomacia e na economia, atingindo por vezes um pragmatismo notável e uma visão económica incontestável aos dias de hoje; simultaneamente, também é nas Cartas que descobrimos o homem da sotaina negra, o jesuíta que prefere ser mendigo à porta de um Colégio da Companhia do que receber os hábitos episcopais5. Ficará sempre a dúvida em saber de qual dos dois nasce a utopia, onde vai beber o gosto pelos profetas, pela astrologia, pelo pensamento de Joaquim de Fiore6 e seus seguidores, ou então por Bandarra, Nostradamus e pelas narrativas prodigiosas dos milagres. bela e do monstro, mas é central na compreensão do Barroco como estilo literário e forma de vida. 5- O primeiro biógrafo de Vieira é o Pe André de Barros. Pese embora a biografia romanceada e apologética do mesmo, este excerto está de acordo com alguns desabafos que são feitos em algumas cartas, particularmente naquelas em que lamenta a frieza no trato por parte de D. Pedro II. Com efeito, em 1643, estando Vieira para ser expulso da Companhia por se imiscuir na defesa da divisão da Província Portuguesa da Companhia de Jesus, mandou D. João IV propor-lhe um bispado pelo secretário de Estado Pedro Vieira da Silva, sendo a resposta que «não tinha sua magestade tantas mitras em toda a sua monarchia, pelas quaes elle houvesse de trocar a pobre roupeta da Companhia de Jesus». BARROS, André, Vida do Padre António Vieira, Lisboa, Editores J.M.C. Seabra & T. Q. Antunes, 1858, p. 15. 6- Joaquim de Fiore e o Joaquimismo ( 1135-1202), esta corrente é o reflexo de uma sociedade medieval em crise, que depois de 12 séculos vê que o reino de Cristo ainda não está implantado na Europa; prevê-se, deste modo em 1260 (42X30) uma nova era, do Espírito Santo, com um imperador e um pastor angélico totalmente diferentes.

“Conta-me V. S.ª prodígios do mundo, e esperanças de felicidades a Portugal: diz-me V. S.ª que todos referem tudo à vinda de EI-Rei D. Sebastião, de cuja vinda e vida tenho já dito a V. S.ª o que sinto. Por fim ordena-me V. S.ª que mande alguma maior clareza do que tantas vezes tenho repetido a V. S.ª da futura ressurreição do nosso bom amo e senhor D. João o quarto. A matéria é muito larga, e não para se escrever tão de caminho como eu faço, numa canoa em que vou navegando ao rio das Amazonas, para mandar este papel noutra a alcançar o navio que está no Maranhão de partida para Lisboa. Resumindo, pois, tudo a um silogismo fundamental, digo assim: O Bandarra é verdadeiro profeta, o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o quarto há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar. - Estas três proposições somente provarei, e me parece que bastarão para a maior clareza que V. S.ª deseja.”7 Este atrevimento custou-lhe o processo no Tribunal do Santo Ofício de Coimbra e o cárcere; é também pelas cartas que podemos acompanhar toda a sua tragicomédia na passagem pela cidade do Mondego. Será na correspondência desta fase que vamos encontrar a primeira referência directa às Terras da Feira. De Coimbra, mais uma vez, as recordações são muito contraditórias: elogia a Companhia de Jesus residente na cidade, que considera a “corte da Companhia”8; mantém um relacionamento normal e amistoso com a Universidade, nomeadamente com um dos seus reitores; mas lamenta-se constantemente dos rigores do tempo da Lusa Atenas e, de forma alguma, o poderíamos imaginar em bom trato com os inquisidores. Dizia ironicamente a D. Rodrigo de Meneses: “[…] como o ano passado, de me quererem mudar o degredo para mais longe nesta ocasião de naus da Índia: mas não são necessárias as calmas de Guiné 7 - Carta escrita do Pará / Camutá, em 29 de Abril de 1659. VIEIRA, António, Cartas, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1970, Vol.I, pp. 468-469. 8 - Diz a D. Rodrigo de Meneses em 1664, “para toda esta grande comunidade do Colégio de Coimbra (que na verdade é a corte da Companhia”. Cartas, op. Cit. p. 55.


nem as tormentas do cabo da Boa Esperança; bastam os frios de Coimbra para satisfazerem à vontade de meus amigos.”9 A D. Teodósio de Melo, a propósito dos rigores das trovoadas, não deixa de associar os sinais do tempo à sua própria situação de cativeiro: “Tudo por cá são trovoadas, e hoje com pedras mais grossas que nozes. V. S.ª discursará melhor as razões por que merecemos que o Céu nos apedreje.”10 É evidente que, destas queixas, outros motivos haveria, ou não quisesse Vieira engenhosamente libertar-se das amarras do Santo Ofício e regressar o mais depressa possível a Lisboa, mas essas seriam outras histórias. Será também durante esta passagem por Coimbra que Vieira vai travar conhecimento e diríamos alguma amizade com o então reitor da Universidade, de nome Manuel CorteReal de Abranches11. Tudo nos leva a crer que um dos temas predilectos das conversas entre os dois fosse efectivamente o das doenças e dos achaques provocados pelo clima. Assim se entende que ambos tenham passado alguns tempos em visitas de cortesia mútuas na Quinta de Vila Franca, para onde ambos mudavam de ares e iam sentir a temperatura das águas do Mondego. Aqui passaram longas horas em conversa e trocaram possivelmente algumas confidências de parte a parte. Vieira, numa das suas missivas ao Marquês de Gouveia em 9 de Março de 1665 refere: “O reitor da Universidade, que cada três semanas tem uma doença, e deve a vida a V. Ex.ª por o haver livrado de Aveiro e da Feira”12. Não nos foi possível pelo cruzamento com outras cartas determinar o motivo deste desabafo, julgamos contudo que o assunto não se prendia propriamente com os rigores do tempo e muito menos com uma maior ou menor simpatia pelas gentes de Aveiro e da Feira, mesmo que o Reitor fosse oriundo do Alentejo, inclinamo-nos mais para uma pequena interferência do Marquês de Gouveia numa nomeação que, diga-se em abono da verdade, não seria nada desprestigiante. O favor teria sido tal que, Vieira na carta seguinte de 16 de Março ao Marquês, volta a dizer: “Temo que o reitor da Universidade se mate, e já estivera morto, se V. Ex.ª lhe não valera”13. Pelos poucos anos que esteve à frente da universidade, dois no total, não chegou o reitor a ter a longevidade que 9 - Cartas, op.cit, vol. II, p. 46. 10 - Idem, p. 178 11 - http://net.ci.uc.pt/reitoria/historia/reitores_xvii_xix [em linha]. 12 - Cartas, op. Cit, vol. II, p. 134. 13 - Idem, p. 136.

permitisse ao seu ilustre companheiro de maleitas este tipo de conversas familiares, na linha da mais genuína epistolografia ciceroniana. Da sinceridade dos lamentos de cada um deles, ou até insinuações acerca dos efeitos das terras da Feira sobre o mesmo, tudo é especulação nossa, mas apraz-nos registar esta referência ao nosso Concelho pela pena do ilustre Jesuíta. Dona Joana Pereira, 6ª Condessa da Feira A presença da Feira na epistolografia vieiriana não se fica, contudo, por esta passagem esporádica, ela já havia sido referida de forma indirecta antes da estada nos cárceres do Santo Ofício, aquando das primeiras missões diplomáticas à Holanda e a França. Com efeito, na correspondência com o

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Marquês de Nisa, Vieira comenta a fuga de D. Joana14 de Espanha para Portugal, sob a protecção de um soldado, facto que foi agraciado por D. João IV. Em carta escrita desde Haia, em 1 de Junho de 1648, a propósito de uma série de comentários que faz aos vários acontecimentos internacionais e nacionais, refere de forma sucinta: “A facção de Trugilo foi bizarra”. Lúcio de Azevedo em

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14 - Lembramos que casou o 5.º conde da Feira com D. Maria de Gusmão, deste consórcio nasceu apenas uma filha, D. Joana Pereira, que na falta de filho varão, foi a 6.ª condessa da Feira e herdeira de toda a importante casa de seu pai. Casou com D. Manuel Pimentel, mestre de campo general de Flandres, castelão de Anvers, 9.º filho de D. João Afonso Pimentel, 8.º conde de Benavente e de Maiorga, grande de Espanha. Enviuvando esta senhora, vem para Portugal, depois da aclamação de D. João IV, com seu filho primogénito, D. João Forjaz Pereira Pimentel que teve o titulo de 7.º conde da Feira, ainda em vida de sua mãe, por mercê do referido monarca, a quem serviu na guerra da Restauração, chegando a ser general e governador das armas num dos partidos da província da Beira; faleceu ainda moço. Cf. http://www.arqnet.pt/ dicionario/feiracondes.html [em linha].

nota, comenta esta passagem da seguinte forma: “Alusão ao feito de Cristóvão de Carvalho, soldado aventureiro que, fazendo uma correria em território castelhano, libertou e conduziu a Portugal a condessa da Feira e seus filhos, quando vinha presa de Trujillo, pelo que e por outros serviços, lhe concedeu D. João IV uma pensão. Na portaria respectiva vem referido o caso.”15 Mas não se fica por aqui a presença da figura de Dona Joana Pereira no corpus textual do Padre António Vieira. Anos mais tarde, aquando da segunda embaixada a Roma, a propósito de uma série de acontecimentos prodigiosos que ocorreram próximo de Grijó, voltamos a encontrar duas cartas onde a condessa é referenciada. Estes acontecimentos só por si justificariam este artigo, tendo em conta o conteúdo e a forma como são narrados. Para um melhor entendimento da importância destes dois textos, convém referir que estas duas cartas pertencem à correspondência trocada com o embaixador de Portugal em Paris, o famoso diplomata Duarte Ribeiro Macedo. Vieira terá encontrado nesta personalidade um interlocutor ideal para comentar, dar pareceres e procurar interferir, na medida das suas limitações, na política nacional e internacional. Por outro lado, esta passagem pela Cidade Eterna carece de alguma contextualização histórica para que se possa entender a importância desta missiva. Como sabemos, em Portugal, D. Afonso VI tinha sido deposto e enviado para o exílio na ilha Terceira; D. Pedro II, seu irmão, ocupava a regência do reino com o título de Príncipe, facto que provocava os maiores incómodos em termos diplomáticos por toda a Europa. Este será, portanto, um dos assuntos mais abordados na correspondência entre os dois diplomatas, particularmente entre inícios e finais de 1674. A eventualidade do regresso a Lisboa do rei deposto e a recusa do Príncipe D. Pedro em se coroar rei tornara-se num foco de conflitos, chegara inclusive a haver uma conspiração para depor o príncipe D. Pedro. O Jesuíta, sempre preocupado com tudo o que se passava no reino, procurava a todo o custo captar a atenção e simpatia do Regente. Na verdade, se de D. Pedro esperava cada vez menos favores, o facto é que de D. Afonso VI e dos seus apoiantes, muito menos. Não nos esqueçamos que foi durante o reinado de Afonso VI e de Castelo Melhor que Vieira 15 - Cartas, op.cit, vol. I, p. 197. Tivemos acesso ao original autógrafo desta carta na Biblioteca Pública de Évora na cota: cód CVI/2-12. 35r-35v. Na imagem, a letra é do punho de Vieira.


foi julgado e preso. Acresce a este dado a alma vieiriana que jamais abandonava o visionarismo do Quinto Império, adaptando constantemente as suas leituras aos sinais dos tempos. Neste preciso momento, para ele, o Príncipe D. Pedro poderia perfeitamente ocupar o lugar que inicialmente tinha pensado para o primogénito de D. João IV, o príncipe D. Teodósio e só depois para D. João IV, mesmo que isso implicasse a ressurreição do monarca, vindo depois a atribuir sucessivamente a coroa imperial a D. Afonso VI e, por fim, ao Príncipe Regente. Por estas razões, não nos espanta que, na epistolografia que temos vindo a estudar em vista a uma dissertação de doutoramento, Vieira utilize constantemente os mesmos argumentos para perspectivar um novo ano prodigioso que levaria à criação do Quinto Império do Mundo. Fê-lo para a fatídica data de 1666, como aliás o fizeram muitas comunidades judaicas. Em carta de 22 de Agosto de 1665 diz: “De aqui à Primavera há muitas noites que dormir fora, e as flores do ano de 1666 pode ser que produzam mui diversos frutos dos que até agora deu França a Portugal”16. E Lúcio de Azevedo comenta desta forma o excerto: “Este ano era designado pelos cabalistas para a realização de sucessos extraordinários. António Vieira esperava ver nele cumprido o seu sonho do quinto império do Mundo, com o monarca português por soberano, como então escrevia na História do Futuro. Nesse tempo havia já renunciado à crença na ressurreição de D. João IV (veja-se a carta LXXXIII do t. 1.º da presente edição) e atribuía o feito triunfal a D. Afonso VI.17” Esta mesma atitude voltará a ter para o ano fatídico de 1675, o ano que sucede ao das cartas que transcrevemos. Para encontrar os argumentos mais válidos, relê Bandarra e Nostradamus, e em carta de 18 de Setembro de 1674, escrita de Roma a Duarte Ribeiro de Macedo, num exemplar da mais refinada cabala, Vieira escreve com uma certeza que nos deixa apreensivos: “Se suceder o segundo, e são certas a paz de Polónia e maior rebelião da Hungria, não parece totalmente incrível a exposição que aqui se dá aos versos seguintes de Nostradamus: O vaste Rome ta ruine s’approche, Non par tes murs, par tu sang e substance; 16 - Cartas, op.cit, vol. II, p.222. 17 - Ibidem.

L AS pre par lettre te fairá voer lhorrible cange Se fer pointu te passerá iusque a la manche. O enigma pelas letras dizem que está na palavra ou palavras L A S pre, significando as três primeiras, L. A. S., l’anno santo, e as três que se seguem, pre, o número de 1675.18” É neste contexto que devemos ler a atenção e o cuidado que dedica aos sinais prodigiosos ocorridos em Grijó. E o que são para Vieira os sinais prodigiosos? No nosso entender serão sinais de qualquer espécie, desde que sirvam a utopia. Destes, aqueles que mais lhe agradam são os fenómenos astrológicos e os milagres. Nada que não fosse também comentado e utilizado por outros autores da época, nomeadamente cronistas, e escusamo-nos agora de lembrar exaustivamente as lendas de Alcobaça, de que o Milagre de Ourique será o expoente máximo, ou dos factos prodigiosos da crise de 1383-138519 ou posteriormente na Restauração20. Esse é um facto incontornável e Vieira deu inúmeras provas e exemplos de ser um fiel admirador da narrativa prodigiosa. Este assunto já foi também objecto do nosso estudo num trabalho sobre os Sermões do Rosário, onde dedicámos um capítulo às narrativas de milagres21; é, por isso, com muito agrado que apresentamos a carta das narrativas dos milagres de Grijó como um exemplo único na epistolografia de Vieira, pela forma como retoma o gosto pela narrativa miraculosa. A importância que lhe dá pode antever-se na carta de 29 de Maio de 1674, escrita de Roma a Duarte Ribeiro de Macedo, informando-o do seguinte: “ Veio outra carta, também única, em que se refere haver chegado aviso do Porto no dia antecedente que, na primeira oitava de Páscoa, junto a Grijó, numa ermida de Santo António, ou numa estrada antiga, vizinha à mesma ermida, tinham aparecido na terra, que é de cor amarela, muitas cruzes negras, todas iguais e quadradas, de quem dizem se mandou o retrato ao nosso provincial, e que cada braço ou ponta tem de comprimento quatro dedos; acrescentando que já tinham feito dois milagres, dando pés a um coxo e vista a um cego. 18 - Cartas,op.cit, vol. III, p. 103. 19 - Lembramos o estudo: REBELO, Luís de Sousa, A Concepção do Poder em Fernão Lopes, Livros Horizonte, 1983. 20 - Lembramos o título a todos os níveis sugestivo da “Restauração de Portugal Prodigiosa”, publicado em 1643, também ele por um frade da Companhia de Jesus. 21 - MADURO, Carlos Seixas, Um Sermonário Mariano de Vieira, Maria Rosa Mística, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2003, pp. 97-120.

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Até aqui a narração; e, se os milagres são certos, ambos se podiam verificar nos nossos dois príncipes. Estou vendo que se o negócio não é invenção, ou ainda que o seja, se hão-de fazer sobre ele grandes invectivas contra os hereges da fé de Cristo, que querem se remeta aquela causa ao seu vigário. As inundações do Tejo é sem dúvida que têm sido extraordinárias, e no Algarve dizem que apareceram grandes exércitos de gafanhotos. Com que os intérpretes poderão locupletar seus discursos.22” Parece ser por demais evidente nesta carta uma conexão imediata aos dois irmãos, D. Afonso e D. Pedro e, mais do que isso, um conjunto de leituras a que, muitas vezes, se escusava a comentários por motivos de segurança, mas são aqui claras as “invectivas contra os hereges da fé de Cristo”, para bom entendedor, luteranos e Império Turco, nomeadamente o segundo, que continuava a ameaçar Roma. Será, contudo, na carta que escreve quase um mês depois, com mais informações sobre o acontecimento, que informa com gosto redobrado pelo facto e um entusiasmo que diríamos pueril. Vieira também é este observador e transmissor de emoções do mais genuíno gosto popular. Do crítico feroz e sibilino, tantas vezes próximo de Eça, torna-se, quando menos esperamos, num contador de suaves milagres. E assim foi, com particular interesse para nós no momento em que nos apercebemos de que os mesmos acontecimentos teriam sido comunicados à Condessa da Feira, supostamente a autoridade a quem deveria ser dada informação de tão importantes ocorrências. Não nos foi possível estudar o local exacto que está referenciado, nem é esse o objectivo deste artigo; deixaríamos essa tarefa para estudiosos com mais conhecimentos sobre as informações dadas, limitar-nos-emos a transcrever o texto na íntegra e a chamar atenção para a beleza, naturalidade e, acima de tudo, simplicidade do mesmo. Vieira é também este que escreve com a naturalidade de quem respira: “Já disse a V. S.ª o que se tinha escrito acerca de haverem sinais na terra, a que eu não dava inteiro incrédito (sic); mas neste correio tive uma relação justificada por alguns padres dos mais autorizados da nossa província, na qual se refere à condessa da Feira que nas terras daquele condado, junto ao convento de Grijó, parece que por ser de Santa Cruz, em 22 de Março, quinta-feira da Semana Santa deste ano, passando um lavrador por uma estrada vizinha a uma ermida 22 - Cartas, op.cit, p.53.

de Nossa Senhora (não dizem de que invocação), ao pé de um carvalho, viu formada uma cruz negra sobre a terra, que é de cor barrenta, tão perfeita e igual por todas as partes como se a fizera um pintor. A tábua é de um palmo, e cada um dos braços de quatro. Admirado, o lavrador fez ao redor de toda a cruz um cerco de pedras, para que ninguém a pisasse, e, para maior advertência de quem passasse, pôs outra cruz de pau ao pé do carvalho, sem dar notícia alguma do que tinha visto. No segundo dia da Páscoa saiu o pároco a dar e receber as Aleluias pelos fregueses, e vendo uma e outra cruz, e tirando informação, descobriu o que havia passado, e na estação do dia seguinte ordenou uma procissão ao mesmo lugar, que se fez à tarde; no qual tempo aos olhos de todos começaram a aparecer novas cruzes, em número de trinta e sete, todas da mesma forma, medida, perfeição, e assim se foram multiplicando pelos dias seguintes, de maneira que, aos 27 de Abril, em que se escreveu a relação, passavam de oitenta, vendo-se entre elas uma diferente e muito mais notável entre as demais, a qual tem dezassete palmos de comprido, onze de braços, e de largura três, divisando-se nela da mesma cor uma figura como de crucifixo; «e eu - diz o autor - sou testemunha que vi nascer duas das ditas cruzes, e todas estão ainda no mesmo ser. O concurso é tanto que estão sempre as estradas e os montes fervendo em gente, por curiosidade, por devoção, e muito mais pelos milagres que vão sucedendo, entre os quais se referem, e diz a relação estão já autênticos, a vista dada a um cego, natural de cima do Douro, morador em Arnelas, que pendurou a sanfonina na Igreja da Senhora; um aleijado de pés e mãos, natural de Ovar; duas mudas de seu nascimento, outra aleijada, um menino quebrado, que todos recuperaram subitamente inteira saúde. Começaram a tirar terra de um braço da cruz grande, e a cruz se retirou daquele lugar, aparecendo inteira como de antes, da qual terra diz o autor as palavras seguintes: «Os milagres que tem feito a terra das santas cruzes são: tirar as maleitas a um homem que as tinha havido oito anos, dar saúde a uma mulher que estava toda inchada como hidrópica, e a muitos mais doentes de várias enfermidades antigas. E assim me aconteceu que, indo para Coimbra, levei uma pequena de terra, e chegando achei a meu companheiro Gaspar Pereira, filho de Fernão Soares Pereira, à morte com um pleuris, e lhe dei em água a beber uma pequena de terra, e lhe passou o pleuris de repente, à vista do médico que lhe assistia e de muitos estudantes, os quais


me pediram da terra, e um que tinha um companheiro doente com uma esquinência, da qual estava morrendo e não podia já respirar, dando-lhe a beber, em menos de meio quarto de hora ficou são. Enfim para relatar todas as enfermidades que tem curado fora um processo infinito. Têm-se autenticado todos estes milagres com testemunhas, e ficam as ditas cruzes légua e meia desta vila.» Até aqui o que se remeteu da informação do dito autor, enviada à condessa da Feira sem dizer qual é a vila nem o nome de quem escreve. Parece-me isto muito para fingido,

Padre António Vieira, Litografia de Legran.

e, se é verdadeiro, grandes cousas se podem ou esperar ou temer no nosso reino sobre a suposição de tais prodígios confirmados com tantos milagres. Se foram em outra nação mais diligente já houveram de andar estampados pelo mundo. Não deixa contudo a minha incredulidade de estar ainda um pouco duvidosa, pelo tempo e circunstâncias em que se publicaram estas maravilhas.23” Retomamos, em guisa de conclusão a ideia com que iniciámos este artigo: este também é Vieira. Um Padre António Vieira que procurámos apresentar diferente e frequentemente esquecido. Julgamos ser esta uma das mais simples mas sinceras homenagens que em nome da Feira se podem fazer ao visionário. Atrevemonos a dizer que talvez ele já esteja cansado de que falem dos seus sermões, dos seus peixes, das suas armas contra a Holanda, da sua Sexagésima. Afinal, e quando nos embrenhamos nos seus escritos, não eram estas as matérias da sua predilecção, longe disso. Procurámos antes lembrar o homem da sotaina negra no centenário do seu nascimento, percorrendo com ele alguns breves momentos em que também pensou e escreveu o nome das Terras de Santa Maria da Feira e apraz-nos registar que o escreveu para sonhar, numa palavra, para ir de encontro ao Quinto Império do Mundo. Temos um Visionarium, temos um Imaginarius, continuemos a ser dignos deste ilustre percursor que também tentou ler nestas terras mais alguma coisa que os olhos comuns não conseguem decifrar.

23 - Idem, pp. 70 -72.

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BRASÃO DE FORNOS E OUTRORA... FORNOS António Sousa Santos* Exmos Senhores: Agradeço desde já, em nome da Freguesia de Fornos, a vossa presença neste significativo acto para esta tão antiga Freguesia das Terras de Santa Maria. Hoje estamos a celebrar a apresentação das insígnias heráldicas da nossa Freguesia, foi um sonho que durante muitos anos foi desejado, tendo sofrido um novo impulso no início do ano 2000. Hoje depois de muitas ajudas e participações, estamos juntos a testemunhar a sua conclusão. Esta cerimónia simples mas verdadeiramente marcante, representa não só o termos conseguido que a nossa tão antiga e histórica freguesia tenha o direito a usar o seu brasão, quer na bandeira quer no seu selo branco, mas essencialmente o direito a usar a sua verdadeira identidade, ou seja de um modo mais simples, a nossa Freguesia de Fornos passa a partir deste momento a poder exibir o seu Bilhete de identidade devidamente aprovado por todos os órgãos a que a Lei obriga, e não foram poucos os passos para o conseguir! Para que esta promulgação tivesse sido possível, muito contribuiu a Editora Diácria, entidade a quem esta Autarquia * Presidente da Junta de Freguesia de Fornos.

entregou tal tarefa e da qual saíram dignificados e a quem esta Autarquia muito agradece. Mas para que esta pudesse ter ao seu dispor todos os dados necessários e identificadores da nossa Terra, deve esta Autarquia neste momento e de um modo muito especial todos os Fornenses, estarmos gratos pelo excelente trabalho histórico empreendido pelo nosso Pároco José Alves de Pinho. Sem o seu aprofundado estudo, que hoje de um modo especial vai ser divulgado, (e aqui queria saudar de um modo especial a “Revista Villa da Feira” pelo seu contributo na divulgação da história das Terras de Santa Maria) estou certo que o nosso símbolo heráldico poderia ser graficamente diferente, mas com certeza absoluta não traduziria as nossas verdadeiras origens. Para Ele, pela sua sabedoria a que nos acostumou ao longo dos anos por intermédio das suas palavras e dos seus escritos, pelo seu sacrifício pessoal ao embrenhar-se nos “matagais” dos documentos históricos e pela sua pertinácia, esta Junta de Freguesia e Assembleia de Freguesia de Fornos, quer apenas dizer a palavra bem antiga e tão Portuguesa – BEM HAJA.

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DOENÇA DAS CORES João Pedro Mésseder* Há um azul cruel sobre os campos de Castela, um azul que não cala o seu silêncio, porque o vermelho derramado há tantos anos não fez desse azul o seu espelho: apenas se infiltrou na terra ardente. E a tingiu ainda mais da cor da carne.

* Nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudos universitários e exerceu a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimos intitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética), catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesia de Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.


BRASÃO DE FORNOS E OUTRORA ... FORNOS Rosa Maria Santos* Exmos Senhores Hoje, se dúvidas ainda existissem, ficamos por intermédio dos trabalhos agora divulgados a saber da enorme importância histórica que a Freguesia de Fornos teve na história das terras de Santa Maria e de Portugal. A manutenção, inventariação e conservação do nosso património local é uma exigência a que os autarcas têm que ser sensíveis, não só por obrigações de cidadania, mas também porque é uma riqueza que as autarquias não podem desperdiçar. Todos sem excepção, mas de um modo mais interventivo a Autarquia e as Associações Culturais da Freguesia, têm o dever de ajudar a preservar as nossas raízes ou seja o nosso Património. Pela nossa parte, podem ter a certeza que este acontecimento hoje celebrado, constituirá também o nosso compromisso na defesa do legado que nos deixaram, e assim fazer com que os mais jovens sintam um grande orgulho pela terra em que nasceram. Para todos o nosso obrigado. * Presidente da Assembleia de Freguesia de Fornos.

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E... Manuela Correia* E haver na areia mais brisa que palavras Em que não fosse fugir de nós a marca das peugadas E haver no sol festejos com círios de quermesses E as ruínas do ser que as ondas desfizessem E haver só rugas de água que a maresia exorta E fosse um fumo branco a certidão da morte

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra, em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia. Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.


PADRE JOSÉ ALVES DE PINHO Celestino Portela* Exmas Senhoras e Senhores Hoje só a palavra gratidão apetece. Uma palavra ao Senhor Padre Pinho, autor da separata e do Livro “Outrora...Fornos” que hoje são apresentados. Amar é conhecer, e tanto mais profundamente amamos quanto melhor conhecemos. O conhecimento tem a força do ideal e os frutos são colhidos com as mãos do espírito. O espírito busca incessantemente a perfeição, o caminho, que se faz caminhando enquanto houver vida. Vida que não termina jamais, enquanto houver memória. Memória é a faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos. O dia a dia que vivemos seria muito fácil de registar se a isso nos dispuséssemos. Raros são aqueles que registam em diários o quotidiano das suas vidas. Poucos também os que escrevem as suas memórias, registando em tempo ulterior os factos passados, fazendo incursões sobre factos que não viveram mas que conservam por os terem ouvido referir a pessoas mais velhas. * Director de Villa da Feira

Procurar nos jornais os relatos dos factos que constituem o dia a dia de uma comunidade é já tarefa árdua, mas limitada pela própria natureza informativa, e por isso incompleta, que os periódicos nos revelam. Mas trabalho ingente, sublime até, é procurar as pontas dos novelos da História, por arquivos dispersos, as mais das vezes em manuscritos, de leitura difícil, em grafias pouco conhecidas, caídas em desuso total. São os papiros, os pergaminhos, os incunábulos, uma pesquisa constante e apaixonante. E tudo para que o leitor tenha fácil acesso a um livro bem impresso, em bom papel, de fácil leitura, que lhe proporciona momentos de lazer, de estudo, e sempre de prazer, do amor que é conhecer. Temos profunda admiração por aqueles Homens que se dedicam à investigação científica, plantando, regando, tratando as árvores da sabedoria para que dê os saborosos frutos que nos limitamos a colher com a facilidade com que tiramos um livro da estante. O Senhor Padre José Alves de Pinho, natural de Chave, concelho de Arouca, é Pároco das Freguesias de Fornos e Sanfins, desde 29-11-1964. Com uma vida sacerdotal intensa e dedicada consegue tempo para estudos de profunda investigação, que vem publicando em Jornais e Revistas.

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“Outrora.. Fornos” é um trabalho científico que nos transporta aos mais recuados tempos da nossa história. Se considerarmos que é o primeiro estudo monográfico sobre Fornos tomamos consciência do caminho que foi desbravado, do esforço que foi necessário para o conseguir. “Quando alguém queria dizer ou escrever algo sobre a história de Fornos, não tinha outro recurso senão o de repetir ou copiar o que essas notas genéricas referiam”. Este livro é a consagração de 40 Anos de Sacerdócio em Santa Maria da Feira, de dedicação às Almas e ao Espírito. Este trabalho, que honra a “Colecção Santamariana”, ficará como uma estrela a indicar os novos caminhos que outros peregrinos da investigação irão trilhar. Queremos aqui expressar ao Senhor Padre Alves de Pinho a mais viva admiração pela obra feita, a esperança do por fazer que vai realizar e a gratidão de toda a Equipa da “Villa da Feira” pela grandiosa achega dada à História da Terra de Santa Maria. E GRATIDÃO AINDA À Junta de Freguesia de Fornos Que, desde o primeiro momento, apoiou e incentivou a concretização destes projectos, numa demonstração segura que a actividade cultural é um dos seus objectivos autárquicos. Ao Senhor Presidente da Câmara Municipal Ilustre representante do nosso município pelo apoio que sempre tem dado à concretização dos nossos objectivos. Ao Senhor Professor Doutor Cândido Augusto Dias dos Santos Cuja obra docente e cultural são um marco importante no Portugal de Hoje, do Portugal que queremos se reveja no seu passado, no amor à Pátria, no orgulho de ser Português. Porque todos somos poucos para “levantar hoje de novo o esplendor de Portugal”, oferecemos a Vª. Exª. as páginas da nossa revista, para que nos conceda a Honra da sua colaboração por amor a Portugal. Bem Hajam.


OUTRORA ... FORNOS Cândido Augusto Dias dos Santos* Ao folhear o conjunto de elementos monográficos, sob a epígrafe Outrora… Fornos deparou-se-me na Palavra de gratidão um pensamento que me conduziu à antiga cultura helénica, a um dos diálogos de Platão. Refiro-me ao Banquete (Symposion) no qual o filósofo grego disserta sobre Eros – o Amor. Amar é conhecer – escreve o autor da Palavra de gratidão – e tanto mais profundamente amamos quanto melhor conhecemos. No referido diálogo, é este o caminho que Diotima, a mulher de Mantineia, ensina a Sócrates, um dos interlocutores. Começa no amor sensual (sexual), amor das coisas sensíveis, e, através de sucessivas superações, chega ao conhecimento e contemplação da própria beleza. “Beleza eterna que não conhece nem o nascimento nem a morte”. Quando nos elevamos acima das coisas sensíveis, através de uma ordem escalonada de um amor bem compreendido até a este grau e nos começamos a aperceber da beleza, estamos próximos do final, pois a verdadeira via de Eros consiste em participar das belezas naturais e em caminhar incessantemente para a beleza sobrenatural, passando como que por escalões, até passar finalmente para uma ciência que não é mais que a

ciência da beleza absoluta. Conhecer, enfim, o belo em si próprio. Eis, pois, o caminho: do amor à contemplação (conhecimento) da beleza. “Se a vida alguma vez mereceu ser vivida, caro Sócrates, (disse a mulher de Mantineia) é no momento em que o homem contempla a beleza essencial». Na versão helénica, a concepção do amor assenta, pois, no pressuposto de que o amor implica o conhecer e o conhecer implica o amor. De qualquer forma o amor é o começo de tudo. Foi certamente por amor a esta terra de Fornos, entregue ao seu cuidado pastoral, que o Padre Alves de Pinho, partiu, há muitos anos, à procura de traços ou marcas do seu passado. Viagem longa, com sacrifício dos tempos de lazer, para que as gentes de Fornos pudessem conhecer um pouco das suas origens, as razões da sua identidade. Nas últimas décadas, sobretudo, muito se tem escrito sobre a história das comunidades. Por iniciativa dos municípios, promovendo a realização de encontros e congressos, ou mesmo por iniciativa individual, a promoção do conhecimento da história local é um facto reconhecido. Todos gostam de saber de onde vieram, de conhecer as suas raízes. Porque são as raízes que alimentam a árvore. Toda a comunidade, paróquia, concelho, cidade, procura ter a sua monografia. A história local e regional goza hoje de larga aceitação. Conhecer o nosso passado é, em certa medida, conhecer-

* «Cândido dos Santos é Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Letras do Porto, natural de Pedroso, concelho de Vila Nova de Gaia. Estudou na Universidade do Porto, na Universidade Gregoriana (Roma) e, como bolseiro do Instituto Nacional de Investigação Científica, na Escala de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris); doutorou-se na Universidade do Porto em 1977 e ascendeu a Catedrático em 1979. Foi também Professor Catedrático convidado na Universidade Católica Portuguesa, de 1985 a 1998. Foi Vice-Reitor da Universidade do Porto. Publicou vários livros, como O Censual da Mitra do Porto, (Porto, 1973), Os Jerónimos em Portugal (Instituto Nacional de Investigação Científica, 1980; 2ª edição, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1996); História e Cultura na Época Moderna (Publicações da Universidade do Porto, 1998; Universidade do Porto. raízes e memória da Instituição, (Porto 1996; versão inglesa em 2002); Padre António Pereira de Figueiredo; Erudição e Polémica na segunda metade do séc. XVIII»

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nos a nós próprios. Não aparecemos no mundo por geração espontânea. Mesmo que o não conheçamos, trazemos o passado às costas: por hereditariedade, nos valores que herdamos, morais e materiais, em tudo o que nos rodeia: o lar em que nascemos, a escola em que aprendemos, a Igreja em que rezamos, o clube que frequentamos. Tudo é herança. Tudo ou quase tudo vem do passado. Vivemos rodeados de monumentos, sinais desse passado. Sinais da memória. Como os documentos. A palavra monumentum vem de monere (fazer recordar); documentum vem de docere (ensinar) cujo sentido evoluiu para o significado de “prova”. Monumentos e documentos são também herança do passado, reserva da memória colectiva. Com eles se faz a história (historiografia). Qualquer aluno que passe pela Universidade e pela licenciatura em História terá ouvido dizer muitas vezes que a história se faz com documentos. Com efeito, a história não é romance, Não é fruto da imaginação criadora, embora esta possa ter lugar em certa fase da investigação. A história faz-se com documentos. Neles verificamos desde logo, que, sendo os documentos presença do passado, nem todo o passado deixou marcas ou traços nos documentos. É apenas a uma porção mínima desse passado que o historiador tem acesso. Nunca saberemos do passado tudo aquilo que ele foi, nem chegaremos a saber o que desejávamos saber. Estamos condicionados pela existência ou não dos documentos. A história faz-se com documentos. Mas qual a noção de documento? Pode considerar-se como documento toda a fonte de informação de que o historiador pode extrair alguma coisa para o conhecimento do passado humano. Qualquer coisa da actividade, dos sentimentos e mentalidade do homem de outrora. Os vestígios de toda a espécie que o passado humano possa ter deixado. Uma corrente historiográfica dos finais do século passado - a corrente positivista – identificava documento com texto (texto escrito). Lucien Febvre diz que a história se faz com documentos escritos. E acrescenta: sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel , na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de

metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a actividade, os gestos, e as maneiras de ser do homem”. Nesta passagem do grande historiador francês está traçado o programa para o historiador da história local. Este não pode limitar-se ao documento escrito. Uma paróquia é um espaço geográfico confinante com outros espaços. Que tem de ser definido nos seus contornos. Diria, cartografado. Apontadas, em seguida as suas características que condicionam a vida das populações que nele se desenvolvem; o relevo, os cursos de água, os caminhos, a montanha. São estruturas físicas, que estão lá e não podem ser ignoradas. Dentro deste quadro geográfico decorre a vida das pessoas, que se organizam em poderes por que se regem. Poder senhorial, concelhio, poder religioso. Para subsistir essa população ou parte dela trabalha a terra. Quais a formas de exploração? Exploração directa? Em regime de arrendamento? De contrato enfitêutico? Um sociólogo francês, Gabriel Le Brás escreveu um livro de muito interesse para o historiador da história local: – L’Èglise et le village. Diz que as primeiras curiosidades numa aldeia são despertadas pelo sítio, o nome e a forma. O quadro geográfico, a origem etimológica do topónimo, e a forma, isto é, o lugar que a Igreja (edifício) ocupa relativamente às ruas da aldeia, aos lugares de sociabilidade (lugares onde as pessoas se juntam para comentar os assuntos do dia (as “tascas”, os cafés). Lugares profanos (espécie de anti-Igreja, onde a mensagem é frequentemente o oposto da mensagem da Igreja). Em país católico, a vida das populações gira em redor da Igreja. A Igreja preside à aldeia (Gabriel Le Brás). Isto é evidente nos meios rurais. O sino da Igreja ritma o trabalho dos campos. Ao toque das trindades, o lavrador suspende a enxada; ao domingo chama a comunidade à oração comum. Na linguagem que lhe é própria, alegra-se com os que estão alegres, e chora com os que estão tristes. O sino é um amigo. Numa monografia de história local não se pode ignorar a presença da Igreja. Por sua iniciativa se constituiu essa massa enorme de documentação na qual está registada a maior parte da vida das nossas populações. Massa enorme adormecida durante muito tempo. Refiro-me aos registos paroquiais. Após o concílio de Trento (1545-1563) foi tornado obrigatório o registo paroquial. Os párocos passaram a registar, por lei da Igreja, os baptismos; os casamentos, e os óbitos da


cada paróquia. Documentação preciosa para um tempo em que não há fontes fiscais nem censos da população. Assim, os baptismos feitos no prazo máximo de 8 dias após o nascimento permitem traçar as curvas da evolução demográfica, do desenvolvimento da população da freguesia; se aumentou, diminuiu, ou se se manteve estacionária. Registam estas fontes por vezes a existência de pestes, cujos efeitos se reflectem na subida dos óbitos e descida da curva dos casamentos. Bem como as crises agrárias, numa sociedade do Ancien Regime. Nos anos de más colheitas – quando o pão (cereal) era o bem indispensável – a falta de cereal afectava gravemente a vida dos pobres. Isso traduzia-se na subida da curva dos óbitos. O mecanismo destas crises é fácil de explicar. A falta de cereal faz aumentar os preços. Todo o dinheiro disponível é canalizado para a compra do bem fundamental. Primum vivere. Por isso, a crise acabava por se repercutir nos outros sectores da economia, no comércio e na indústria. Mas os registos paroquiais permitem também traçar movimentos anuais, mensais e estacionais, estudar a fecundidade dos casais, os espaços intergenésicos (quantidade de filhos por casal e espaços entre os filhos) e, em datas mais recentes, medir índices de mortalidade infantil, bem como índices de moralidade. Prestam serviços à onomástica, com a presença dos nomes próprios mais correntes, ligados tantas vezes a devoções, como v. g. a de Santa Catarina de Alexandria, devoção muito viva em Portugal nos séculos XVI e XVII e que os nossos navegadores levaram até Goa, Madeira e Açores. Ligadas também à vida das populações, temos ainda as festas, as procissões, as promessas (ex-voto), as relíquias, as indulgências, os altares, as orações, os cânticos, a liturgia, as confrarias, a iconografia, a visita pascal…etc, etc, os oratórios, as “alminhas”, tudo isto expressão do universo mental e espiritual dos homens. Os padroeiros, os oragos (não confundir com os padroeiros das igrejas).

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Ao analisar toda a gama documental, uma preocupação, entre outras, tem de estar sempre presente no historiador: a de situar no tempo próprio o fenómeno que estuda, para evitar anacronismos. Outra preocupação ainda: o cuidado a ter com a linguagem dos documentos. Um termo empregado num documento medieval pode não ter, e muitas vezes não tem, o mesmo significado que tem hoje. As palavras podem com o tempo mudar de sentido. É o problema da semântica. Termos como catedrático, tombo, jantar, colheita, …frequentes em textos medievais, não têm o significado actual. Outro cuidado a ter: o que diz respeito a pesos e medidas de sólidos e líquidos e suas correspondências, que podem variar segundo as terras. Acontecia, v. g., com o alqueire, medida diferente conforme as comarcas e concelhos. O Rei D. Manuel tenta na reforma dos forais velhos, reduzir todos os diferentes alqueires a um só. Apesar de tudo continuaram as diferenças, como testemunha Viterbo no seu Elucidário (II, p. 431, ed. de Mário Fiúza). O mesmo sucedia com o moio quer de pão quer de vinho. No tempo de Viterbo equivalia a 60 alqueires de medida corrente, Mas, em tempos anteriores, em


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terras como Lamego, a equivalência era outra, como consta do Censual de Lamego. As equivalências vêm referenciadas quer nos forais, quer nas escrituras de emprazamento, onde constavam as rendas a pagar pelos emprazadores. Segue-se daqui o cuidado a ter pelo investigador, porquanto no Antigo Regime e na Idade Média a verdade era a verdade local. A história faz-se com documentos. Onde procurar então esses documentos? Para tal deve o historiador conhecer a história da documentação no nosso pais, o itinerário que essa documentação seguiu. Porque os documentos, no geral, não se encontram hoje no meio em que foram produzidos. Por exemplo a Quintã de Fornos foi doada ao mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde que passou a ter o direito de padroado (direito de apresentação do pároco, que o Bispo apenas confirmava). Terminou esse direito com a legislação de Mousinho da Silveira e o directo senhorio sobre as rendas (decretos de 30.6.1832. e 5. 8. 1833). Mas a documentação relativa à Quintã de Fornos, o investigador com um mínimo

de experiência não a vai procurar ao mosteiro de Santa Clara onde foi produzida e onde esteve guardada até ao Liberalismo. Com a secularização dos conventos e mosteiros, essa documentação passou para as Repartições de Finanças, e quando foram criados os chamados arquivos distritais (lei de 27 de Julho de 1931) foi lá depositada. Em princípio é aí que se deve procurar. Em princípio, porque uma ou outra excepção é sempre possível. Os Arquivos criados por força desta lei deveriam recolher os cartórios notariais e judiciais, os arquivos paroquiais e tudo o que restava dos cartórios conventuais. Digo tudo o que restava, porque grande parte – sobretudo a mais antiga – tinha já sido levada para o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Acontece, por vezes, que a documentação que pertenceu a determinada instituição religiosa esteja repartida por mais que um arquivo. Um exemplo: a documentação do mosteiro de Pedroso está em 3 arquivos: um fundo, na Torre do Tombo; outro, no arquivo da Universidade de Coimbra; outro, no arquivo distrital do Porto. Como se explica esta dispersão? A parte da Torre do Tombo deve ter sido incorporada pelo interesse de Alexandre Herculano quando andava a escrever a História de Portugal. E a parte que está em Coimbra? Tem a ver com a história e as vicissitudes da Companhia de Jesus. Expulsa em 1759 pelo Marquês de Pombal, os bens do mosteiro, que eram muitos, (v. tombos) passaram para a Fazenda da Universidade de Coimbra. A parte restante está no arquivo distrital do Porto. Outro caso é o do mosteiro de Santa Maria de Belém, da Ordem de S. Jerónimo. Um fundo documental está no Arquivo distrital do Porto. Como foi lá parar? É fácil. O Rei D. Manuel, fundador do Real mosteiro de Santa Maria de Belém (Jerónimos) dotou-o com 4.ooo cruzados saídos dos rendimentos da Casa da índia. Após a união dinástica,


Filipe II, verificando a queda dos rendimentos da Casa da índia, solicitou ao Papa Sisto V licença para desmembrar dos rendimentos do mosteiro de Pombeiro, da Ordem de S. Bento, o correspondente aos 4.ooo cruzados que Belém recebia da Casa da Índia. O mosteiro hieronimita passou então a administrar a porção desmembrada. Mas nem sempre se consegue saber o porquê de tal destino. No campo da investigação histórica, a surpresa é sempre possível, e nem sempre explicável. Além dos Arquivos distritais e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, há o Arquivo da Universidade de Coimbra (que é também Arquivo distrital), o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, o Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, os Arquivos Municipais (v. g. o Arquivo Municipal do Porto, na Casa do Infante), Arquivos de instituições particulares, como, por exemplo, as Misericórdias. Dentro do Arquivo o investigador tem acesso à documentação mediante os inventários e catálogos; outras vezes, através da utilização de verbetes. Nos Arquivos, o investigador encontra, em princípio, documentos escritos: códices, tombos de propriedades, prazos, cartas de doação, escrituras de compra e venda, livros de receita e despesa, bulas papais, pastorais dos Bispos, documentos das chancelarias reais, doações de terras, concessão de privilégios, etc. Mas a história local, como já foi dito, não se faz apenas com documentos escritos, mas com tudo aquilo que foi sinal da presença e da actividade do homem: ossos, bocados de cerâmica, moedas, pulseiras, tudo aquilo que hoje nos é fornecido pela Arqueologia, Palácios, monumentos, pelourinhos… A par dos Arquivos, o investigador da história local tem de frequentar também os museus. E as bibliotecas que contêm, sobretudo, (mas não só…) obra impressa. E vou terminar. Uma infinidade de problemas ficou por tratar. Evitei teorias e discussões de escolas, que não tinham lugar aqui. Por exemplo, a posição do investigador perante o dossier documental que conseguiu reunir. A dúvida metódica leva-o a interrogar o documento: dir-me-á este documento a verdade? Os documentos dizem e não dizem. Haja em vista os documentos oficiais. Temos que socorrernos, sempre que é possível, da literatura clandestina, como acontecia nos antigos países de Leste, com os chamados samizdats. Porque era lá que estava a verdade. É necessário

saber quem elaborou o documento. Que interesses defendia? Não deve, porém, a dúvida metódica ser levada até ao exagero. Henri Marrou falava em amizade entre o investigador e o objecto da sua investigação, no fundo, com o homem que o documento revela. E cita a propósito o seguinte pensamento de Santo Agostinho: nemo nisi per amicitiam cognoscitur (não se pode conhecer ninguém a não ser pela amizade). Mas esta amizade não poderá suprimir o espírito crítico, fundamental? Marrou responde que não. Porque, diz ele, a amizade autêntica, na vida como na história, supõe a verdade. Termino, felicitando os organizadores da presente iniciativa. Ela dignifica as gentes desta terra de Fornos. O brasão que agora é apresentado dá-lhe um novo estatuto, uma espécie de estatuto de fidalguia. Felicito também o P. Alves de Pinho pelos seus trabalhos. São actos de cultura gerados, tantas vezes, no sacrifício de horas roubadas ao legítimo descanso. Mas creio bem que neste momento se pode considerar recompensado. Porque – e lembro a palavra do Estagirita – se as raízes da cultura são amargas, os seus frutos são doces.

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TRAIÇÃO Anthero Monteiro* o senhor vento violento passou no jardim deixou prostradas as rosas o jardineiro que só tinha olhos e mãos para as flores debruça-se para erguê-las

mas impacientes pareceram longas horas os instantes em que ficaram vergadas ao peso da vergonha e do ciúme à espera dos olhos traiçoeiros à espera daquelas mãos tardias

mas no atalho sobranceiro passeia uma sombra o seu perfume o homem detém o gesto e fica a olhar até desaparecer aquela mulher desconhecida e às rosas perfeitas

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.


INTERVENÇÃO DE PADRE JOSÉ ALVES DE PINHO* Toca-me agora a mim dirigir-vos algumas palavras nesta sessão. Todos reconhecemos quanto foi gostoso para toda a freguesia de Fornos, na qual eu me incluo, ter surgido esta ocasião de sarau congratulatório, na sequência da inauguração solene das insígnias heráldicas da nossa terra. Deu-se um passo em frente na afirmação da identidade de Fornos, factor significativo da unidade populacional e territorial e da solidariedade institucional. Não assim tão gratificante, antes penoso, estar eu associado a esta laudatória manifestação de festa, não por causa da inauguração do brasão, mas pela apresentação daqueles meus dois escritos, chamados «Fundamentos para o brasão de Fornos» e «Outrora… Fornos», que se incluíram neste programa. Porque, neste último papel eu não sei medir, nem explicar, nem abarcar a vossa dedicação, a vossa simpatia, a vossa amizade e generosidade em terdes vindo e participado em tão grande número e com tanta satisfação. Dou-me conta disso; e confuso, sobre este assunto nada mais quero dizer, nem explicar. É que, neste evento, muita coisa parece desajustada, porque demasiada e desproporcional. * Pároco de Fornos.

Demasiada e desproporcional: naquilo que me diz respeito, certamente… Mas, olhai: deixai que vos diga no tom leve do latino ridendo castigat mores! Se em toda esta realização alguma coisa houve de desmedida, algum corpo de delito se manifestou, tenho a dizer-vos que, nesse caso, o réu é só um; e não sou eu! É o sr. Dr. Celestino Portela, enquanto presidente da Liga dos Amigos da Feira. E digo porquê. - Porque foi o primeiro, que há muito tempo tomou a iniciativa; - porque, à sombra da benquista associação cultural da Feira – Liga dos Amigos - ele pensou o projecto, propôs a sua concretização e lhe deu cobertura, ao abrir a estes livros a porta da «Colecção Santamariana»; - mas, mais: além disso deu-lhe o formato exterior e interior de todas as publicações relativas à revista «Villa da Feira, Terra de Santa Maria»; - condecorou-os com as insígnias da LAF no anverso da capa; - propôs, acompanhou e orientou a impressão e a sua divulgação; - potenciou a forma solene e pública da apresentação dos dois escritos; - envolveu os corpos autárquicos neste evento;

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- depois, e com um especial carinho, na linha da gratidão e da amizade, dizer ao Sr. Prof. Dr. Cândido dos Santos, quanto nos dignificou com a sua presença, quanto ilustrou este evento com a sua magistral lição. Espero bem recapitulá-la, quando ela aparecer nas páginas da revista «Villa da Feira…» – Bem haja, sr. Professor e muito obrigado! - Mas ainda o meu muito agradecer às instituições representadas, à imprensa, aos benignos patrocinadores, aos quadros da paróquia, aos meus colegas na vigararia, aos meus antigos condiscípulos, a meus familiares e pessoais amigos. Sim, a todos dirijo estas minhas palavras de saudação e agradecimento.

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- no próprio conteúdo escriturado grafou textos panegíricos imerecidos; - fez diligências para que a generosidade dos patrocinadores despertasse, para assumir os encargos da edição; - pôs à disposição destas publicações o seu crédito pessoal, cultural e moral, ao tornar solidária com estas publicações a LAF, com a sua Direcção e associados. - Que mais dizer? Sim, que mais dizer, senão que, especando o dedo para o sr. Dr. Celestino Portela, repetir: - aí está o réu! É esse, o sr. Dr. Celestino Portela. Adiante! Se, nesta hora, a todos vós me toca dirigir o meu muito saudar e o meu muito agradecer; é com todo o meu ânimo que o faço; - se, voltando ao assunto inicial, me toca satisfazer às dívidas, manifestando o meu apreço e gratidão, quero fazê-lo em primeiro lugar à Junta de Freguesia pela colaboração, pela Sede aberta, pela presença dos seus titulares; - em segundo lugar, mas em mais subido grau de qualidade, à Il.ma Câmara Municipal, que em vértice de maior altura, aceitou envolver-nos com o sua presença e o seu patrocínio, na pessoa do seu presidente, que muito nos honra e nos penhora;

«Finalmente e voltando à gravosa acusação do réu. - Estaremos nós, de facto, perante um processo de culpa formada, com uma sanção a aplicar? - Sr. Dr. Celestino Portela: para eu ser justo, coerente e sincero comigo mesmo, deixe-me corrigir a toada jocosa acima utilizada; deixe-me inverter a instauração do processo, e, a propósito, pedindo vénia à sua modéstia e susceptibilidade, proferir o que me parece ser a justa, oportuna e douta sentença. Perante a acrisolada dedicação à terra que o viu nascer; perante o irrefragável bairrismo pela Feira, onde tranquilamente quer viver no seu bucólico remanso «A-ver-o-Sol» o sereno diaa-dia, repito, deixe-me declarar quanto foi grande e generosa a sua actuação em todo este evento; deixe-me irromper em aplausos, levantar a voz e declarar quanto V.ª Ex.ª ama esta sua terra de Vila da Feira; quanto tem em conta os seus valores; quanto está atento, amparando os mais pequenos gestos, as mais pequenas manifestações, que possam fazer luzir a Feira! Realmente, todos os esforços e todas as atenções tem envidado para descobrir, para dar a conhecer e para divulgar a Feira, com os seus valores e com tudo o que a possa engrandecer. - Ditar uma pena? mas, que digo eu?! Proferir uma condenação? - Jamais! pois aquilo que nesta querela se impõe como sentença, é imitar o seu desvelo pela Feira; é repetir sempre e em qualquer lugar: Eia! Força! pela Feira, para que cada vez mais se multipliquem os momentos de benfeitoria, ou de qualquer êxito. Esta noite pode servir de exemplo.


* Que direi mais? - Pela parte que me toca, confesso que, ao longo das pesquisas de ontem e de hoje, aqui ou ali, pelos arquivos, bibliotecas e alfarrabistas da Feira, de Braga, de Guimarães, do Porto, de Aveiro, de Coimbra, ou de Lisboa, conforme as disponibilidades e pelo espaço de algumas décadas, continuamente fui recebendo uma consoladora e bastante gratificação. Na auto estima pessoal, que foi arrumada a um canto do próprio “ego” - devo confessá-lo - sempre alimentei a esperança de uma futura publicação, para que pela partilha dos conhecimentos do passado, coligidos, se pudesse enriquecer toda a comunidade, restrita ou alargada. Hoje, foi um momento dessa concretização. Parcelar, diga-se, tendo em conta o acerbo de diplomas, fotocópias, apontamentos, deduções e conclusões ajuntadas, que esperam o momento de verem a luz, uma vez que estejam ordenadas. Toca-me continuar a trabalhar, na medida das possibilidades. Mas, gostava que o soubésseis: para mim escrever, é um trabalho penoso e demorado. Ao terminar estas minhas palavras, resta-me dizer-vos: nestes trabalhos, olhando-os de relance, vejo que há muitas imperfeições com gralhas e erros aqui, repetições acolá e muitas omissões além. Peço a vossa compreensão. Depois, reconheço e agradeço a vossa bondade e paciência em terdes vindo até aqui para escutar e participar. Rematando, direi que me sinto confuso, mas contente com as celebrações festivas de hoje. E, reconhecido, veementemente me congratulo com as instituições e personalidades aqui representadas, bem como com a vossa simpaticíssima presença. Tenho dito. »

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DOENÇA DAS CORES João Pedro Mésseder* Há um branco no céu, a tarde é de aguaceiro (palavra que reclama sua pronúncia, único fulgor discreto na casa vespertina do tédio), há um branco no céu – que não grita (por que não grita?) – entre nuvens cinzentas, fugitivas, fiapos de aérea tristeza. É um branco apenas branco, apenas sujo (fosse ele anjo) apenas pronto a salvar (se puder) esta mirada.

* Nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudos universitários e exerceu a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimos intitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética), catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesia de Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.


INTERVENÇÃO DO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA MARIA DA FEIRA Alfredo Henriques* Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Fornos, Senhora Presidente da Assembleia de Freguesia, Senhor Professor Cândido Santos, Reverendo Padre José Alves de Pinho, Senhor Presidente da Liga dos Amigos da Feira, Senhores autarcas (Presidentes de Junta e Municipais), Senhores Padres aqui presentes, minhas Senhoras e meus Senhores: Quando entrei nesta sala e o Senhor Presidente da Junta de Freguesia me convidou para fazer o encerramento desta sessão, eu fiquei completamente à vontade, pois esta é já uma situação habitual em muitos dos encontros para os quais sou convidado um pouco por todo o concelho. No entanto, confesso que hoje a situação é um pouco diferente, tendo em conta a profundeza das intervenções aqui proferidas, que, naturalmente, mereceriam da minha parte uma apresentação preparada. Mas como o que não tem remédio, remediado está, vou tecer alguns comentários sobre o que hoje aqui se passou e o que isso representa para o concelho de Santa Maria da Feira. E o que aqui aconteceu foi uma acção importantíssima * Presidente da Câmara de Santa Maria da Feira.

para a história, cultura e identidade da freguesia de Fornos e do nosso concelho. A apresentação do brasão desta freguesia e de todo o processo de concepção, no qual participaram os órgãos autárquicos - Junta de Freguesia e Assembleia de Freguesia, que deliberaram e propuseram a quem de direito, levando à sua aprovação a nível nacional - é um exemplo daquilo que deveria acontecer na generalidade das juntas de freguesia. Como sabem, há muitos anos que o concelho de Santa Maria da Feira tem o seu brasão aprovado e, mais recentemente, muitas das juntas de freguesia do concelho viram também aprovados os seus brasões. Noutras, o processo ainda está em curso, pois recordo que é ainda recente a legislação que autoriza as juntas de freguesia e as freguesias a terem um brasão formalmente aprovado. No entanto, em Fornos, este processo ficou marcado por um pormenor tão importante quanto fundamental: aqui, a generalidade das pessoas teve a oportunidade de conhecer os símbolos que constituem o brasão e o significado da sua escolha, estando toda essa fundamentação registada num documento a que a população poderá ter acesso sempre que pretender. Aliás, eu tive já a ocasião, por deferência do Padre Pinho – que me ofereceu a separata –, de fazer uma leitura rápida, mas atenta, e de constatar a importância desta explicação, pois é fundamental conhecer as razões que levaram a esta escolha e à sua aprovação. Todos

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conhecemos, e reconhecemos, a importância dos símbolos e o que representam para afirmação e identidade de uma autarquia, sendo, por isso, fundamental que toda a população tenha acesso a essa informação. Por isso, dou os parabéns à Junta de Freguesia de Fornos e a todos os responsáveis pela organização deste encontro. Naturalmente que as minhas primeiras palavras se dirigem ao Padre José Augusto Pinho, pelo seu trabalho, empenho e dedicação, que tornaram possível a realização desta sessão de apresentação. Deixo ainda uma palavra de apreço à Liga dos Amigos da Feira. Recordo que, numa das primeiras edições da revista Villa da Feira, tive ocasião de escrever, a pedido da LAF, uma nota introdutória, onde apelava para a importância desta publicação se assumir como um repositório da história do nosso concelho, onde ficasse registado aquilo que de mais importante aconteceu e vai acontecendo no concelho de Santa Maria da Feira. Hoje são já onze os números publicados, e eu, que sou um leitor assíduo e atento desta revista, posso aqui testemunhar que esse desejo, que explanei no primeiro número, está a ser plenamente conseguido. A revista Villa da Feira, não tendo uma periodicidade definida - como o Dr. Celestino Portela teve ocasião de vincar - é um importante documento para quem quiser estudar a história concelhia e, no futuro, será efectivamente um registo de consulta obrigatória. Por isso, reitero os meus parabéns à

LAF e a todos os responsáveis por esta publicação, deixando ainda uma palavra de incentivo para que continuem a desenvolver este trabalho, tão importante para o espólio documental concelhio. Antes de terminar, quero dirigir uma palavra ao Professor Cândido Santos. Como tivemos ocasião de aqui ouvir, o Senhor Dr. Celestino Portela pôs-lhe aqui à disposição a revista Villa da Feira, incentivando-o a escrever. Eu iria mais longe e diria que o Senhor Professor Cândido Santos tem a obrigação de escrever com regularidade para a revista Villa da Feira, e apresento-lhe três razões: em primeiro lugar, porque o seu saber tem de ser posto ao serviço dos outros. Já o Evangelho dizia que candeia não é para ficar debaixo do alqueire; por outro lado, porque o Professor é natural das Terras de Santa Maria; e, finalmente, porque passou muita da sua juventude aqui em Santa Maria da Feira, concretamente na freguesia de Escapães. Portanto, considero que estas são razões mais do que suficientes para que, daqui para a frente, possamos contar com alguns artigos seus na revista Villa da Feira. Antes de terminar, queria, efectivamente, enaltecer a lição que o Professor Cândido Santos aqui nos trouxe, agradecendo a sua presença em Fornos e em Santa Maria da Feira, e dizerlhe que, no futuro, gostaríamos de o ver muitas mais vezes por cá. Muito obrigado!


PADRE JOSÉ ALVES DE PINHO - SÓCIO HONORÁRIO DA LAF

Fernando Sampaio Maia entrega o Diploma...

O Brasão em Porcelana, oferta da J.F. Fornos.

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... e Celestino Portela o Emblema.

Autógrafos para Anthero Monteiro.

Celestino Portela, Fernando Sampaio Maia, Pe. José Alves de Pinho, D. Rosa Maria Santos, Anthero Monteiro e Carlos Gomes Maia.


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QUE SINISTRA LUZ... Manuela Correia* Que sinistra luz a lembrar-me agora ternura nenhuma (Antes um momento em que nos aperta cilíndrica bruma) E onde se projecta há somente viva mais uma fissura (Antes fosse sombra a tornar a noite numa casca escura)

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra, em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia. Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.


I – D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE NAS CELEBRAÇÕES DA MORTE E CENTENÁRIO DE NASCIMENTO, SALÃO PAROQUIAL DE MILHEIRÓS DE POIARES** David Simões Rodrigues* Ex.mos Senhores D. Sebastião Soares de Resende sai desta refrescante várzea de Milheirós de Poiares em fim de 1943, quando iniciávamos estudos em Leiria. No fim de Novembro aporta na Beira e no primeiro de Dezembro inicia a sua vida de bispo missionário fazendo as primeiras prospecções-investigações geográficas, sociais, culturais e naturalmente religiosasmissionárias. Leva consigo o espírito do cientista consciente de que é investigando que se aprende, objectiva e correctamente, e se faz ciência de conhecimento de experiências feito nesse contacto directo com a realidade concreta circundante em ordem à formação de juízos que hão-de presidir a uma planificação de acção acomodada à realidade de modo a evitar esforço e tempo preciosos. Mas, ao desembarcar na cidade e diocese da Beira como seu primeiro bispo, vai ali encontrar-se com o missionário, em Quelimane, Padre Manuel Alves Guerreiro, que fora prior de Seiça, de 1928 a 1939, e que em 1930 deixa no livro de

Baptismos: «...baptizei uma criança ... a quem pus o nome de David...». E David é quem hoje vem falar de D. Sebastião. Em 1949 funda na Beira o Colégio-Liceu. E a quem entrega a sua direcção e toda a responsabilidade do corpo docente? Aos Irmãos das Escolas Cristãs, vulgarmente conhecidos por Irmãos Maristas. O curioso é que quem está à frente da equipa como director é, precisamente, o nosso primo materno, o Irmão Cláudio, nome religioso do civil José Maria Pereira Cravo, que se tornou precioso auxiliar de D. Sebastião na execução do seu projecto de escolarização e aculturação da diocese. A História oferece mistérios e agradáveis surpresas. Caríssimos ouvintes Grande a figura de D. Sebastião, porque nobre a sua terra, feita da nobreza dos seus habitantes que exornam as páginas da sua história, ainda o comum cidadão. Sabemos de muitos ilustres filhos seus de que justamente se pode orgulhar. Porém, se nenhum outro mais houvesse, D. Sebastião Soares de Resende bastaria para aquilatar da grandeza da alma deste povo de Milheirós, cujo solo pisámos pela primeira vez quando viemos à procura de elementos para o nosso trabalho, este para a publicação sobre o mesmo tema feita na LAF e que hoje é lançada ao público. Por tudo quanto nos foi dado observar, investigar, ler e consultar, pelo que a nossa memória retém a estas distâncias da sua vida e da sua morte, e para quem ouve, forçoso é reconhecer:

* Licenciado em Filologia e Literatura Grega e Latina, Clássicas, com as variantes de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Diplomado em Histórico e Filosófica. Curso de Teologia. Dedica-se à investigação Histórico-Científica. ** Apresentação da separata dedicada a D. Sebastião Soares de Resende no Salão Paroquial em 29 de Abril de 2006.

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Defunctus adhuc loquitur, D. Sebastião estará morto, mas ainda fala. A começar pelo seu testamento: «Quanto a bens materiais, nada tenho a dispor, porque nada possuo. Os bens de família, há muito que me desfiz deles; Os bens, que porventura da igreja ou por meio da igreja, haja recebido, são exclusivamente para a Igreja, sem tolerância de outra partilha... O meu enterro será... simplíssimo... Desejaria também que fosse sepultado na principal via interna do cemitério... mais calcada pelos visitantes do mesmo ... simples campa rasa ... pequena pedra por cima» e escrito somente: «Sebastião, primeiro Bispo da Beira». Aí ... esperarei a ressurreição ... para o Juízo Final.» Em dia de «N.a Sra de Lurdes, 11 de Fevereiro de 1966 » E, em 25.1.1967, D. Sebastião, alma de português e de missionário de Deus para os Homens nos territórios que constituíram a sua vasta e variada diocese, definitivamente entra no processo da História. E por isso aqui estamos. Não por causa de um morto, mas chamados pela vida, por amor a um vivo que vive e fala da vida nos seus escritos. Aqui estamos, chamados a uma terra cheia de vida e o nome da terra é Milheirós de Poiares. Atraídos por um nome identificador de uma pessoa espiritualmente muito grande, que ainda mete medo a muita gente. E o nome da pessoa que ainda mete medo, sinal de que vive, é D. Sebastião Soares de Resende. Aqui estamos nós integrados nas celebrações dos 100 anos do seu nascimento, 14 de Junho de 1906 em Milheirós de Poiares. Não sabemos claramente se os nomes marcam ou não a personalidade do seu portador e por isso em que medida terá a ver também com muita da biografia de cada um de nós. A verdade é que, e isto sabemos, falamos de D. Sebastião. E, ajustando o nome à pessoa, ele é como o «símbolo». Encaixa perfeitamente e nesse encaixe prova a verdade e a aceitação tal como soldado que regressava da guerra anos depois e com cicatrizes que o tornavam difícil de reconhecer. Sebastião, chega até nós do grego Sebastianós, nome que por sua vez deriva de Sebastós, com raiz no verbo sebo cujo significado é: Experimentar pudor e temor religioso.

E também : venerar, honrar, honorificar o divino. Donde se infere que: Sebastianós, «digno de veneração, de respeito», «honorável» ou «honorificado», o venerável pela sua fé e religiosidade, entrega ao divino. Soares: medieval de origem obscura. Resende: Do germânico latinizado «Redisindi», genitivo latino de «Redisindus», que por sua vez se apresenta, no germânico, composto de: «reths», «conselho», «aviso»; e «sinths»: caminho, expedição. Donde, em síntese, tudo isto significa: «Sábio e avisado expedicionário. Efectivamente todo o seu peregrinar sobre a terra, expedicionário, foi cheio de sabedoria e de prudência.» Razão confirmativa de que - «Defunctus adhuc loquitur». Pode estar morto, mas aos nossos ouvidos chegam as vozes de uma vida de Missionário cheia de amor aos Homens fruto do seu Amor a Deus; as vozes dos seus escritos e dos seus nobres exemplos vividos nas duras batalhas que nos soam a épico e nos evocam o divino mártir S. Sebastião. Daí, pertinentemente, nos interrogarmos sobre a marca do nome que transportamos. 1. Falam: - O famoso diário «Diário de Moçambique», o melhor e mais independente jornal que em Moçambique alguma vez se publicou e que por isso mesmo e porque fundado pelo bispo, nascera condenado a sofrer e a morrer de morte violenta. - Os grandes e invejados colégios feminino e masculino da Beira, viveiros de cultura e humanismo cristão, alvos de ataques próprios de quem não é portador de marcas como as suas; - As dezenas de missões fundadas por extensas áreas em processo de cristianização e elevação cultural; dotadas dos indispensáveis meios geradores de cultura e progresso social, económico, familiar sem distinção, sendo especial a atenção na defesa dos nativos. - As muitas escolas e igrejas, professores, catequistas e missionários, travando sempre lutas tenazes contra a oposição governativa e o colono menos humano que via reduzido o seu campo de manobra na exploração humana e consequentemente o enriquecimento fácil e rápido à custa da miséria do indefeso nativo.


- Fala o socorro aos mais carenciados e destes ainda aos mais frágeis. - a defesa intrépida dos que via com fome e sede de justiça, escandalosamente oprimidos.

E nasceu o grande Missionário abnegado, sacrificado, ensinando, civilizando, aculturando, rasgando horizontes largos e fundos, como os bandeirantes. Demonstram-no as conferências, as pastorais e a doutrinação.

2. Fala o cidadão modelo que, às gerações que se lhe seguiram, legou o seu nome abençoado, numa época de crise de valores, de confusão de comportamentos que preterem virtudes essenciais humanas, em que se desonram e insultam estes mortos condecorando vivos de vidas mais que duvidosas e obscuras, de mãos, ao menos indirectamente, tintas de sangue do crime. (Isabel do Carmo, Palma Inácio e outros) Onde encontra o nosso caro ouvinte/leitor a condecoração por tantos e tão grandes e relevantes serviços prestados à Humanidade e a este pobre País? Onde? Podia, erradamente, sentir-se a «outra senhora» traída, mas a senhora presente?

4. Falam as gentes que pararam diante do desassombro do bispo defendendo os sem voz, e por isso falam os poderes que tremeram. Disso falam as 400 folhas do processo da Polícia Política, na Torre do Tombo. Falam os jornais de todo o mundo, eco das notáveis intervenções de D. Sebastião como Padre Conciliar do Vaticano II. Ao bispo quiseram amordaçar. Como Paulo de Tarso responde: não posso deixar de falar. Fiel à sua vocação humana, sagrado para Deus e para a Humanidade sofredora dos filhos de Deus, nascidos no mesmo lar sob o mesmo tecto com destino comum, a alma paternal de D. Sebastião não sofria multidões sujeitas a roer ossos a que outros haviam devorado a carne. Angustiava-lhe a alma de cristão e de europeu civilizado e Missionário, o degradante e vergonhoso espectáculo da escravatura. Mesmo escravatura? Sim, escravatura em todo o sentido e dimensão que a História e a Sociologia reportam. Os seus olhos vêem e o coração sangra-lhe. Disso deixa, sobretudo no seu Diário, palavras rastos de sangue de uma dolorosa Paixão do Negro às mãos do Branco. D. Sebastião, para além da vergonha de branco, sentia o entrave à obra missionária.

3. Fala o missionário intrépido Soube realizar uma acção evangelizadora que autenticamente proporcionava o encontro de muitos povos e de muitas culturas, no íntegro respeito pelas diferenças e pela liberdade sem espaço para a proliferação da libertinagem de qualquer natureza. E porque esta sua voz ecoou funda em todos, diante dele se curvaram respeitosamente ortodoxos, hindus, protestantes, maometanos, e outros. Para desgraça de todos os envolvidos, nem sempre a miopia insana do poder civil entendeu assim esta missão civilizadora. Como doença hereditária essa miopia continua com outros nomes, com outras vestes e muito mais agravada. Muitas figuras de missionários ao largo e ao longe, à China e ao Japão, levaram o nome de Portugal e com ele a cultura europeia. E exemplos maiores ficaram-nos de São Francisco Xavier que a Índia não cristã venera conservando ainda hoje bolsas de língua portuguesa que denomina de «papiá cristão», fala portuguesa. São João de Brito, D. António Barroso, e na esteira destes o nosso D. Sebastião Soares de Resende: No princípio era o Homem e o Homem em Deus se fez Cristão e o cristão se fez Padre e este foi feito Bispo e o Bispo era o Missionário de Deus entre os Homens. E os Homens eram Negros e os Negros o receberam ... Mas aos que o receberam deu-lhes o poder de se tornarem Filhos de Deus que não têm cor.

5. Fala e grita a evidência do imperativo da Justiça e da Fraternidade geradoras da Igualdade perante a lei nas mesmas circunstâncias. Políticos e colonos querem imporlhe outros caminhos ditados por escusos interesses políticos e económicos, contraditórios da sua missão evangelizadora de libertação integral. Sob o imperativo da coerência e da fidelidade aos princípios da sua missionação e do seu carácter, impossível outro caminho, apesar de conhecer claramente as consequências. Para D. Sebastião, Homem singular, impossível outro caminho. 6. Falam, por isso, os constantes e ingentes combates, cruéis por vezes, desesperantes, destruidores de energias físicas e morais, consumidores de tempo. Ora chamado pelos ministérios de Lisboa, ora de motu próprio impelido pela

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necessidade de esclarecimentos e de soluções de problemas levantados pela estreiteza mental de uns e pela maldade de outros, ei-lo voando para Lisboa, embaixadas, nunciatura, vitima até de interesses de promoções eclesiásticas de carreira longe do que é espírito de Missão. No caso concreto os aspirantes a cardeais, núncio Maximiliano Fustenberg e o bispo D. José da Costa Nunes.

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7. Falam milhares e milhares de crianças e de jovens sem futuro digno, que socorreu e a quem proporcionou oportunidades de promoção social arrancando-os às garras de exploradores sem escrúpulo, de que o Estado, sempre os Estados, não era o menor. Incalculável o seu património moral, abundante e de inestimável riqueza, fundamentado e cultivado nos valores humanos e virtudes cristãos da Bondade, da Coragem, da Prudência, sempre longe os calculismos de autodefesa. Tudo se tornou num permanente estado de espírito e de vida. Foi assim que D. Sebastião Soares de Resende, até à morte, e ainda na sua própria morte, foi aumentando as reservas do País e da Humanidade como figura de referência. 8. Fala até o próprio silêncio do oferecido climatizador, único, arrumado a um canto do vasto quarto do moribundo. Nunca serviu, por respeito para com todos os da casa. D. Sebastião preferia o incómodo calor húmido a suportar o moral da diferença de tratamento. Não há para todos, não há para ninguém. A tanto em coisas aparentemente tão pequenas se definem as grandes almas. Falam os seus funerais onde as multidões de todas as condições sociais e cores da pele e credos religiosos, enchiam literalmente ruas e praças, varandas e janelas, árvores e muros da Beira, chorando a sua orfandade. Falam ainda hoje as flores que nunca faltam sobre a campa rasa, simples e pequena. Todas estas vozes chegam até nós, testemunhando que «defunctus, adhuc loquitur». D. Sebastião Soares de Resende, estará morto, mas prossegue falando, ao qual se unem as vozes dos seus nobres exemplos de vida em sacrifício constante. 8.1. Mas este morto que assim fala continua a fazer transir de medo muitos vivos, porque o problema não reside no estar morto, mas em ele falar e falar deste modo, com esta vida,

com estes factos e do quadrante donde fala. E Ele é este Bispo cristão. Nesta sociedade do silêncio de conveniência, silêncio sobre ele é a voz de ordem. Mas felizmente que há silêncios gritantes que por isso mesmo fazem história. Fora inverso D. Sebastião e outra a vida e os senhores desses silêncios se ergueriam gritando aos quatro ventos e sobre ele cairiam com o destruidor barulho em que são magistrais e profissionais. Quem não conhece o barulho destes silêncios desse mundo? E pisam e repisam e fazem infernal propaganda e enchem jornais e revistas e as casas de espectáculos e de cinemas, obedecendo ao «voltairiano» «Écrasons l’infame». 9. Obedecendo a estas e a tantas outras vozes deste morto-vivo: 9.1. Aqui estamos todos conscientes de que estes são os ventos da nossa história a soprar gritos de vida, conscientes dessa Vida que nos invade, conscientes da asfixia que na ausência-silêncio tem a mais sub-reptícia expressão de morte, nem sempre assim entendida, e ainda mal. 9.2. Aqui estamos, porque essoutros ventos da história sopram silêncios a repregarem-se nas consciências gerando ambientes de vazio, sabendo que nada do nada se colhe. Mas os filhos do nada estão vivos, gerando silêncios porque os incomoda sobremaneira estes mortos que desta forma falam. Anda por aí o camaleão Ariel e seus perigos silenciosos, sob formas poéticas, vestidos de arte, de filosofias, e até de detergentes. Quem se dá como de múltiplas formas lhe invade os mais escusos recantos da sua casa e da sua vida? Prouvera estivessem também as nossas, e até as nossas igrejas cristãs, imunes à invasão de Ariel que de muitas e capciosas formas nos vai enchendo do que ama e esvaziando do que odeia. Mais ainda. Com tal desfaçatez que se atreve a sentar-se às nossas próprias mesas metendo a própria mão em nosso próprio prato. 9.3. Senhoras e senhores, Defunctus adhuc loquitur. Só os Homens com a dimensão e a estatura de D. Sebastião falam mais alto que muitos vivos, por que nesses não tem a morte poder total. Por isso, aqui estamos em nome do Tempo e da Vida de D. Sebastião, desta mesma Vida que o mesmo tempo gera


e logo devora. Mas, não é o Tempo esse monstruoso Pai que devora os próprios filhos que gera? Mas como suspender o curso do tempo, aspiração de poetas e de místicos?: «Tu próprio és o tempo, os teus sentidos são o teu pêndulo. Se páras o movimento, o tempo partiu.» (Angelus Silesius, séc. XIV). 9.4. Aqui estamos em Nome da Palavra que somos nós e as nossas vidas. A palavra é Vida. Aqui estamos com a vida das palavras recordando e homenageando D. Sebastião Soares de Resende, que esperamos seja o filho querido desta terra de Milheirós de Poiares. Recordamos com a Palavra, porque recordar é viver. Não foi a Palavra durante muito tempo considerada portadora de poder mágico? Para os egípcios, conhecer as palavras queridas era condição para assegurar a imortalidade da alma. Palavra era, para eles, imortalidade. Adão e Eva tiveram o primeiro privilégio: pôr nomes aos animais e às coisas. E as coisas e os animais passaram a ser identificados e reconhecidos pelas palavras. Pelas palavras e vários outros símbolos anunciamos que em nós estão vivos todos os nossos que antes de nós partiram. Por todas essas palavras os trazemos ao nosso convívio fraterno. O Logos grego, ou o Verbum latino, no princípio, era Deus e Deus era o Verbo e o Verbo se fez carne e habitou entre nós e por ela, Fiat, todas as coisas foram feitas e sem Ele nada foi feito de quanto está feito. Eis a fundamental razão da nossa palavra hoje e aqui: a Vida. Por isso, feliz o povo que, para seus entes queridos, recusa a vala comum do esquecimento. Não a esta vala comum que o silêncio determina lançar tudo e todos quantos caem sob o seu domínio como aliado do Tempo? Silêncio e Tempo aliados da Morte. Feliz o povo que baniu da sua vida o mais cruel e desumano dos túmulos e das mortes, o silêncio daqueles a quem foi roubada a voz. Por isso, para os libertar desse túmulo e dessa morte, os recordamos embalados na palavra e nela os trazemos à Vida.

Excelências, Senhoras e Senhores, Jovens: Permitam-me breve apontamento de homenagem à vida deste recordado. D. Sebastião, indubitavelmente, tinha aqui, em Milheirós, o seu coração de filho. É humano. Aqui, na partida para tão longínquas terras, deixara saudoso da terra e da mãe Margarida, o seu coração de filho extremoso. Natural é o retorno às raízes à medida que os anos vão pesando e as debilidades humanas corroendo o corpo. Quanto mais a doença precipitava o fim do seu percurso terrestre mais a terra-berço e a mãe Margarida se tornavam presentes. E que leito mais doce para um filho moribundo exalar o último suspiro que o regaço materno? Pois isto observou o jornalista silencioso na visita a poucos dias do seu passamento final. D. Sebastião, sereno, muito sereno, olhos cerrados parecia dormitar. Cobria-lhe o mirrado e martirizado corpo lençol de linho. Na dobra do lençol de linho, criado pelos campos de Milheirós, sobressaíam dois grandes Bês que, em 1943, a mãe Margarida bordara para o seu menino, – para as mães os filhos são eternos meninos. Os dois grandes BÊS eram o seu menino Bastião Bispo. Agora, Janeiro de 1967, o filho, doce e repetidamente deslizava a ponta dos dedos pelas letras bordadas, – observa o comovido e meditativo jornalista. Mas que mistérios encerra a vida por descobrir? Que voz longe perto soa? Eram as mãos do filho, nas vésperas do reencontro, acariciando o rosto materno, naquelas letras bordadas. Lá longe, no outro lado da África, já a caminho perto do Sol Nascente, Milheirós de Poiares e a Beira, de Moçambique, uniam-se no insondável mistério do momento que a ambos em breve uniria na Vida Eterna. Ex. mas Autoridades, minhas Senhoras, meus Senho-res, Caríssimos jovens Terminemos. É certo que «quem meu filho beija minha boca adoça». Confirma-o a simpática e carinhosa atenção prestada às nossos palavras sobre o filho maior desta vossa terra, o que muito grato nos deixa. Porém a ninguém assiste o direito de abusar. Vosso é este filho maior. Mas, permitam-me duvidar se estaríamos todos aqui e desta forma, não fora a atenção da

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Liga dos Amigos da Feira, LAF, e esta pela acção do Sr. Dr. Celestino Portela, cujo evidente desvelo, amor às Terras da Feira, seu torrão natal, e atenção aos seus valores, em boa hora envidou esforços para dar todo o relevo possível à extraordinária figura de D. Sebastião Soares de Resende, o Feirense, o Homem, o Bispo Missionário. Dessa notável acção sai agora solenemente a público esta obra a ele inteiramente dedicada. Deixai sonhar quem já admirava D. Sebastião, agora apaixonado pela sua extraordinária figura, paixão gerada no decurso do aprofundamento da investigação biblio-biográfica. Mas qual o sonho do apaixonado investigador? No exemplar entregue a cada um de vós vai um relicário que encerra não as cinzas, mas a alma deste vosso conterrâneo. Ainda bem, porque já o vemos devotamente embalado pelo carinho das vossas mãos e aquecido pela leitura do vosso coração. Lê-lo, eis a melhor forma de o amar e venerar, pois ninguém ama o que não conhece. Conhecimento é o que a palavra nos transmite. Também nós começámos com vaga admiração e terminámos possuídos de verdadeira paixão. Assim, Senhoras e Senhores, aqui, nas vossas mãos, o deixamos. E fica bem. Muito obrigado, D. Sebastião Soares de Resende. Muito obrigado, Milheirós de Poiares. Disse.


AS ALCUNHAS DOS OLEIRENSES Anthero Monteiro* 1. Algumas histórias pessoais, a título de introdução Isto das alcunhas foi sempre algo que me causou alguma perturbação, umas vezes porque fui vítima, outras porque saí beneficiado. A mim, quando andava na escola primária, cá em S. Paio de Oleiros, os colegas, naquela idade em que se começa a aprender a crueldade por auto-afirmação, atiravamme com o apodo de “Matéria”. Ainda que semelhante epíteto adviesse da mera analogia fonética com o meu nome e o vocábulo pudesse significar tanta coisa, nomeadamente no campo da física e da filosofia, eu embirrava com aquela nauseabunda alcunha que, na linguagem popular, cheirava a pus e defendia-me à pedrada, isto é, atirava aos responsáveis por tais abusos calhaus minúsculos, que propositadamente falhavam sempre o alvo. Quando estudava em Braga no seminário, nem a compostura do lugar nem o permanente controlo evitavam que se exercesse ainda mais requintadamente aquela tendência juvenil para a impiedade. Porque, entretanto, caíra de um muro e quebrara a cana do nariz que se me tornara ligeiramente adunco, os bonifrates promoveram-me a “Papagaio”. Ia aos arames e, noite fechada, no segredo do travesseiro, com a

alma inundada de acrimónia, ruminava terríveis vinganças que, todavia, nunca poderia cumprir. Bem diferente era o diminutivo hipocorístico “Terinho” com que muitos me tratavam ou ainda tratam algumas pessoas geralmente mais velhas – e oxalá me acompanhe o resto da vida, por ser muito mais saboroso do que o nome antecedido de qualquer grau académico. Outro tratamento com que, desde que comecei a rimar ali pelos 13 anos, alguns poucos me mimoseiam, desde o seminário, é o de “Poeta”, espécie de cognome bem saboroso, por corresponder, não certamente aos méritos dos meus versos, mas aos sonhos e ideais que sempre me acompanharam. Um dia, porém, também eu sofri as consequências do uso das alcunhas. Frequentava a 3.ª classe na escola do arraial. Estávamos no recreio, a jogar à bola e a esfacelar, como de costume, os dedos dos pés descalços nas raízes nodosas das tílias, quando, na rua adjacente, vindo dos lados de Nogueira, ia passando um ciclista. Mal viu aquela figura curvada sobre o guiador da bicicleta de corrida, a pequenada desatou a gritar: — Talaborda! Talaborda! Eu nunca ouvira aquela apodadura, nem lhe sabia (e ainda hoje não sei) o significado, nem conhecia o homem, mas, muito inocentemente, juntei a minha voz àquela saudação em coro. O ciclista parece que não gostou, porque entrou, desarvorado e a toda a brida, pelo arraial dentro, apanhando-

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros, autor, entre muitas outras obras, de O Misticismo Laico de Manuel Laranjeira (Roma Editora), um ensaio sobre o genial escritor nascido na Vergada. Organizador de várias tertúlias poéticas, começou recentemente a coordenar as Quartas Mal - ditas do Clube Literário do Porto

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me num ápice logo a mim, que não fazia ideia nenhuma do alcance da minha, pelos vistos, má acção. Agarrou-me por um braço, encostou o velocípede junto às escadas de acesso e conduziu-me à sala de aula, onde se queixou à professora de mim e dos meus colegas. A professora quis saber quem participou naquela agressão verbal e, descobertos os melros, a turma quase em peso, aplicou-nos, na presença do queixoso, logo ali vingado, as reguadas da praxe. Sei, pois, por experiência que, ao trazer para aqui a relação das alcunhas dos meus conterrâneos, estou a versar um tema de certo modo melindroso e capaz de ferir algumas susceptibilidades. É natural que alguns se arrepelem por completo, por razões que a vivência de cada um justificará, de verem figurar neste rol a sua alcunha ou a de familiares. Tudo fiz para não identificar os donos dos apodos julgados mais ofensivos, mas considero que omiti-los constituiria uma grave perda para o património local. Como é praticamente impossível fazer um registo completo, também poderá suceder que outros, daqueles que se orgulham da sua alcunha, pois muitas constituem honrosos cognomes e são já verdadeiros apelidos que apenas tenderão a facilitar a identificação e a comunicação, verifiquem, com desgosto, não constar aqui a sua. A estes peço desculpa pela involuntária omissão, e aos demais, pela ousadia em mencioná-la, na certeza de que, como se imagina, o autor destas notas não seria capaz de ofender propositadamente nenhum dos seus conterrâneos, que tanto preza. Espera, assim, portanto, não merecer mais nenhuma palmatoada. 2. Alcunha e apelido: tentativa de definição “Alcunha” (ou “alcunho”) e “apelido” são palavras que designam sobrenomes, ou seja, aqueles nomes que se acrescentam ao do baptismo, para uma identificação mais completa de um indivíduo. Mas, enquanto o apelido é um sobrenome já oficializado que acompanha o nome próprio no bilhete de identidade, para identificar a família a que alguém pertence (portanto um sobrenome comum), já a alcunha, enquanto tal, é um sobrenome não legalizado, inicialmente e ordinariamente de ordem mais pessoal, porquanto, advindo quase sempre de uma característica individual mais acentuada, sobretudo nos planos físico, moral, intelectual e profissional,

assume a maior parte das vezes um cunho intencionalmente depreciativo, picaresco, ridicularizante ou injurioso. Sustentam alguns que as alcunhas são mais frequentes entre as camadas sociais inferiores, tornando-se praticamente inevitáveis nos casos das meretrizes e dos delinquentes. Daí decorrerá certamente a resistência, por vezes violenta, que lhes é oferecida pelos visados, o que, no fim de contas, só contribui para uma maior probabilidade de o apodo se eternizar. Verifica-se hoje, porém, que à alcunha não escapam até as mais notáveis personalidades, sobretudo aquelas que mais se expõem à vida em sociedade, sobretudo através dos meios de comunicação de massa. Há ainda os casos de alcunhas que, como refere a Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, vêm a ser «ostentadas como verdadeiros títulos de glória, passando de uns a outros […] e chegando a ser usadas por todos os membros duma família», sendo tomadas, posteriormente, «pelo alcunhado ou pelos descendentes como apelido»1. A alcunha é algo que se aplica também por vezes a lugares, como acontece no caso de certas cidades intituladas de “Leais”, de que é exemplo a cidade do Porto, ainda por cima considerada “a Invicta”. 3. Processos de formação Quanto aos processos de formação de uma alcunha, Augusto César Pires de Lima explica que o mais usual é o da metáfora, que, como se sabe, pressupõe uma comparação prévia. E exemplifica com o caso de alguém a quem se chama Rato por ser «fino como um rato», ou a alguém tido por Bicho, por ser «feio como um bicho», ou ainda a um certo Mocho, por ter o hábito de «andar de noite como um mocho», ou a um(a) determinado(a) Pulga, porque «salta como uma pulga». No caso dos oleirenses, paradigmática será a alcunha de “Bolina” atribuída ao nosso abade P.e Matos (P.e Manuel José de Oliveira Matos, pároco de Oleiros entre 1930 e 1946), que muitos ainda conheceram «gordo como uma bolina». Veremos, porém, pela classificação que constará mais adiante, que, na génese das alcunhas, participam outros processos que nada têm a ver com a comparação ou a metáfora e, como diz, aliás, o mesmo etnólogo, «muitas 1 - Anote-se, todavia, que, no Brasil sobretudo, “apelido” é o vocábulo mais usual para designar “alcunha”.


circunstâncias enfim, umas fáceis de adivinhar, outras já perdidas»: episódios ocorridos, incidências da vida, traços fisionómicos, ou de carácter, hábitos, defeitos, costumes, aberrações, deturpações, etc. Curioso é o processo de comparação por oposição, a que se dá o nome de “antífrase” (a Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira exemplifica com a alcunha “Pureza” para uma prostituta e “Sério” para um gatuno) e que se pode ilustrar com o caso oleirense de uma senhora já bastante idosa, do lugar do Fial, a quem a rapaziada deu a alcunha do grande corredor português Fernando Moreira, não porque ela andasse muito depressa, mas exactamente pelo contrário: arrastavase penosamente, de pau na mão atrás dos engraçadinhos, que infestavam as imediações só para acirrá-la ainda mais. Este tipo de inversão é, aliás, um processo também utilizado na toponímia, pelo qual D. João II preferiu a designação de Cabo da Boa Esperança ao de Cabo das Tormentas ou se dá a uma rua a denominação de Direita quando ela é a mais sinuosa da terra. 4. As alcunhas em S. Paio de Oleiros Após estes indispensáveis preâmbulos explicativos, é a hora de aqui deixar as alcunhas que consegui elencar em S. Paio de Oleiros. Umas, encontrei-as em documentos escritos, por vezes transformadas já em apelidos, alguns muito antigos (daí a inclusão da data do documento), principalmente nos registos paroquiais e nos arquivos distritais do Porto ou de Aveiro. Outras, anotei-as quando as ouvi e, finalmente, muitas outras foram recolhidas junto dos oleirenses mais idosos, com a colaboração de alguns familiares e amigos.2 Tentei estabelecer uma classificação e tudo isso me saiu da seguinte forma: 4.1. Profissões Começo pelas alcunhas dos oleirenses que provêm das profissões, ocupações, cargos, títulos, graus hierárquicos dos seus donos ou de ascendentes destes ou ainda de produtos por eles vendidos ou locais de venda. São, pois, elementos 2 - Esta lista teve um significativo contributo por parte do Dr. José Maria Pereira da Rocha e de familiares seus (também meus), nomeadamente do Sr. José Monteiro da Costa, entretanto desaparecido do número dos vivos, em casa de quem, na passagem de ano de 1996/97, se dedicou grande parte da noite, com grande animação, a este tema. Aqui expresso ao Dr. Pereira da Rocha o meu particular apreço e gratidão pela preciosa recolha a que então procedeu.

de extrema importância para uma análise socioeconómica da localidade. Exemplos: Alfaiata (Maria) Assa-frangos Barbeiro (Castro) Cabreiras Cadeiras (ou Caixas, Ti Ângela das …) Cadete Capataz Carregador (José) Carteiro (Bernardino) Caseiro (Maria do …) Cordoeiro(a) (Francisco / Maria) Costureira Ferrador (Bernardo - 1885) Ferreiro (Martinho, o … - 1365; hoje, Zé do …) Ferro (Francisco do…) Ferro Velho (Rei do …) Fogueteiro Garajeiro Loja (Albertina / Joaquina da...) Moleira (Emília) Moleiro (José - 1889) Morgado Padeira Padeiro Pide Porqueira (Tina da … / Tobias da … - 1885) Regedor (Maria do … - 1885) Relojoeiro Sal (Amadeu do…, que vendia esse produto) Salgueira Sapateiro (Angelino) Sapateira (Maria …) Sardinha (João da...) Sardinheira Sargento Serrador Sobe-e-desce (nome de um café da Quebrada, do qual era proprietário) Soqueira / Soqueiro (Joaquim Alves dos Reis - 1885) Sovela (José …) Talho (Arlindo do…)

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Tapeteiro (Zé) Ténico (sic) Tremoceira Tremoços (Rosa dos) Vareiro (Zé do …; Tobias do...) Vassoureiro (Henrique…) Venda (Maria da …) Vendeira (José da … - 1889) 4.2. Características físicas Muito comuns são também as alcunhas decorrentes de características físicas peculiares, por vezes deficiências, tiques, formas de falar, de se vestir ou de se apresentar e que funcionam, afinal, como verdadeiros traços caricaturais do indivíduo. Exemplos: 98

Barbuda Beiças Bigodes Boca Aberta (P.e Ribeiro) Bolina (P.e Matos) Caganito (de reduzida dimensão) Cego (Bartolomeu Costa Barros, o … - 1757) Cegueta Ceguinho (António, do Fial) Côta Fernando Moreira (por antífrase, como já se explicou) Gago Jovem Lã Branca Lindinho (João do …) Loura Louro Mama Maneta Micha Minissaia Miúdo (do…) Moreninha(s) Mouco Muda Nac-nac (expressão que o dono da alcunha utilizava em vez de “Não que…”)

Negrão (João Domingues, o …, 1731) Ossinhos (Ti Maria dos ...) Pequena (Rosa) Perna-curta Peluda (Ana, 1885) Peludo (Pedro, 1885) Pita-de-lão Pita Negra Pito Vermelho Preta (Micas) Rabão (ao puxar a rede, sobressaía-lhe o traseiro…) Rasteiro Rua Escura (??? muito moreno) Ruço (escrito por vezes Russo, indevidamente: tem a ver com a cor do cabelo - 1885/ 1903 / 1996) Ruivas Velhinho Velhote (Maria do …) 4.3. Características psicológicas Outras parecem apontar mais para o retrato psicológico, moral ou mental do alcunhado e aqui poder-se-ão incluir modos de ser, hábitos, vícios, taras e manias, entre outros traços dominantes da personalidade e do intelecto. Exemplos: Areias Azedo (Johanne - 1365) Bota-açucre (os da Mena) Calado / Caladas Canalha Cifrão (sempre à procura de enriquecer) Cismado Coça-o-cu Enjoado Maganinho Mansa (da...) Marau / Maraua Peneira Pilha-galinhas Pinga Politrão (de pelintra?) Santinho (António) Sereno


Terrorista Vadio 4.4. Proveniência A origem dos nossos habitantes (o lugar onde vivem ou viveram, a terra donde vieram, o país onde estiveram emigrados, a raça) fica também, muitas vezes, registada na alcunha ou no apelido. Exemplos: Baião Bessada Braga Brasileira Brasileiro Candal Cardenha (António da …) Carvalhedos (Maria dos …) Castelas Castelhano (António Dias, o … - 1637) Cobaixa (lugar de Nogueira da Regedoura) Eirado (Bernardo do … - 1885) Estação Fial ou Fialzinho (José) Fonte (Johanne da … - 1438) Fontes Foz-Côa Francesa Gavião (Rosa do…, 1885; certamente do lugar de Anta com este nome) Guimbra Igreja (Neca da …) Lamego (Ti Américo) Lapa (Daniel da …, pseudónimo literário de Augusto da Cruz Ferreira) Moura Mourinho (Domingos Dias, o … - 1637) Negrão (João Domingues, o… - 1731) Paramos (António de…, do Fial) Paulista Pego (Francisquinho do …) Penedos (Adrianinho dos …) Pindelo (do …) Quinta (Henrique da … referente à Quinta das Pedras)

Ribeiro Ri(o)miona (Rosa, família proveniente de Riomeão? 1885) Saibreira (Luís da …) Sameiro (do …) Seitela (Bernardino …, natural de Mozelos - 1885) Tomás de Abrantes (heterónimo do fotógrafo José Gomes da Silva) Travanca Valongueiro(a) (Joaquim / Maria) Vila (da...) Zabumba (António do …) 4.5. Nomes próprios de familiares Noutros casos, são os nomes próprios de pessoas da família que dão origem à alcunha, acontecendo isso, sobretudo, para uma melhor identificação de marido e mulher, mudandose muitas vezes apenas o género do nome, ou fazendo-o anteceder de um determinativo de posse. Exemplos: Brízida (da …) Caetana Cândida (Fenando da …) Catrina (1897; hoje, Rosa da …) Celestino (José Alves da Costa, da Aldeia) Dioga Felícia (Joana Domingues Pereira, do Valado) Ferreira (da…) Germano / Germana Laura (da…) Magdanello (Emília do…- 1885) Pedro ( F. do …) Nicolau (Rosa do … - 1885) Raimunda / Raimundo Rita (F. da …) Silvestre (Joaquim do…) 4.6. Relações de parentesco Ao que parece, também alguns termos da relação familiar comparecem no processo de formação de várias alcunhas e apelidos, como se pode ver nos seguintes exemplos:

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Avó / Avô (Manuel d’…- 1885) Filho Neto(a) (Violante do… /Quim da …) Pai Viana Paizinho Primos Sobrinho

Pardal Pato Rata Rato-Seco Rola Rolo Sapo Verde

4.7. Alteração de outros nomes

4.9. Outras

Provêm algumas alcunhas da simples transformação de outros nomes, geralmente próprios, ou por deturpação, truncamento, má pronúncia, metátese, sufixação de valor diminutivo ou hipocorístico. Exemplos:

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Crasto (metátese de Castro; Joaquim do…) Geno (por Eugénio) Guitera (Manuel da...; deturpação de Quitéria) Laída (deturpação de Alaíde) Lenora (ou Leonora, Emília da …; por Leonor) Marçalina (por Marcelina) Nelinho Nelito Paulininho Ritinha Sustino (deturpação de Celestino) 4.8. Zoónimos Surgem também alcunhas e apelidos derivados de nomes de animais, pelas mais variadas analogias que com eles podem ser estabelecidas. Exemplos: Cabra-Loira Cabrito Carocha Carriça(s) Chiba (do Candal ) Chibinho / Chibinha Chininho /Chininhas Galinhola Gato (Zé) Grila (Isabel Francisca, a … - 1743) Lebre

Para muitas alcunhas e apelidos perdeu-se irremediavelmente a explicação, mas, por trás da maior parte, escondem-se ocorrências bizarras, protagonismos em factos ridículos ou fora do comum, hábitos mais ou menos criticáveis, esquisitos modos de pronunciar, corruptelas de nomes, expressões que o acaso fez brotar, iniludíveis semelhanças, etc. Aqui vão as restantes alcunhas de oleirenses que foi possível recolher, umas de difícil classificação, outras hoje completamente inexplicáveis ou cuja explicação foi silenciada pelos alcunhados. Nalguns casos poder-se-ia aventar uma justificação, mas será hoje difícil, sem incorrer em erro grosseiro ou sem ferir susceptibilidades, afiançar que foi essa a verdade dos factos e dos contornos que as motivaram: Algebra (ê) Amarelinho Ameixa Arrebenta Arriaga Avança-leão Bacalhau Balaia Balona Barroca Bate-Estacas Baú (Manuel) Bernardo (Zé do) Bizazosas (seria assim a forma de pronunciar a expressão “Vira a Roda”) Bóia (Simão do …) Bola (Manel da) Bosta (Zé da…) Bota-Boi


Broca (da …) Brun (Ti Olívia do …) Busana (José da …) Cabeça (Ti Augusto …, ou Choco …) Cabeças-de-Porco Caceta Cacildo / Cacilda Caçoila Cadinha Cagalhufa Caguinas Calhau Camarada Caneco Canejos (ou Cançaradas) Caniços Cara-de-cu (“A cara da minha filha é tão bonita como o meu cu” - dizia o pai.) Carapanto Carboílha Caricas (Manuel) Carnaval Cartauzinho (Domingos Dias, o… - 1731) Cartola Castelas (Marinheiros) Chap(e)rona (Rosa) Charrilhó (por Charlot) Charuto Chavelha Chedas Chibante (1885) Choco Chorinha Chucha-pitos Cigalho Come-merda Conhé Costinha Couta Coutinha Cravilhano (ou Escravilhano?) Enguia Enjeitada ou Injeitada (Maria - 1637) Esganado

Espigado / Espigada Estoura Facas Facho (Manuel) Fardilha (João) Faruk (ou Rei …) Feijões (1921) Ferrugento (Manuel) Fifas Flores Fôfa Foguete Folhetas Frada(s) Franquiante (Manuel) Fura-valos Galhetas (Manuel) Garganta Giagá (família de padre natural de Oleiros, do lugar do Pego) Inácio Infinita (Leonor) Lameiras Lampedinhas Lampião (Armando do Braga) Lãozinha Laré Leites Leituga (1921) Leonço (Leôncio) Ligeiro (Manuel) Linguete (Manuel) Lapejo Lorete / Loretas Louro Mação Maceira Machicho Maganinho Magôla Maio (Tina do …) Manta (Zé da …) Marau / Maraua Maricotas

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Mário Soares Marinos Melindra (António; Tina) Menano Micha Michael (Manuel Francisco de Oliveira, de Vila Boa) Migas Miquinhas Miúdo (do …) Moça (Rosa / Maria / Manel da …)) Moisés Nabiga Nhenha Nica (Manuel da … - 1885) Novo (João Pires, o … - 1578; hoje, Zé …) Pachão (1885; ou Paixão) Palhô Pamparona Paranha (Artur da …) Pasta (António da …) Patrício Péga (1921; hoje, Bernardino; e ainda Maria Gomes da Costa, do Fial ) Pêga (António da) Pequeno Lord Perdido (António …, alfaiate) Pereira (da …) Pereiro Petecho ou Patacho (António) Picado / Picada Piçalho Pichela (Luísa) Piconero Piedade (da …) Pilha- eléctrica Pitança (1921) Pitas Pica-terra Pinas (Sr. Ernesto) Pomba-de-leque Prata Puxa Rafael (Fernando Coelho de Barros) Rainha

Rajado Ramim Rapadoura Rasteiro (Domingos João, o … - 1721) Rateira Regueifa Rei (Rosa do … - 1885) Rinhonhó (Maria do…) Rique-trique Sabença Salazar Sanjoão / Sanjoona Sapeiro Sete-e-pico Sol (Maria do …) Tabosa Tadeta Tapadinha Tegas (Rosa do …) Televisão Ténico (sic) Tèté Tocos Tota Trás (Ti Zé de…) Três-dias Três-vez Tribuna Trinchuda (ou Tronchuda) Trombone Tum-tum (Domingos) Tuta Varona (Joaquim da…) Vidraça (Rosa) Vinagre Vintura (Quinzinho do Agro-Velho) Violante (da …) Virelas Vita (Ana da…) Xará Zenha


5. Breve conclusão Esta classificação que nos atrevemos a estabelecer decorre evidentemente do corpus vocabular recolhido em S. Paio de Oleiros, o qual, todavia, acreditamos, se repetiria, com mais ou menos semelhanças, com mais ou menos variantes, se outro fosse o local de análise, se maior fosse o âmbito da recolha, que poderia até alargar-se ao território nacional. Pareceu-nos que este trabalho, ou pelo menos a sua intenção, excede em muito a simples curiosidade local e representa, ainda que de um modo singelo e com inevitáveis lacunas, um pequeno contributo para o património cultural da minha terra. É que as alcunhas dos oleirenses, como aconteceria com qualquer outra localidade, falam eloquentemente do que eles foram ou são. Ficamos a saber de onde provieram, que andaram por aqui pessoas de outras raças e regiões, quais foram as suas profissões, ocupações, modos de vida ou de subsistência, usos, virtudes, defeitos, formas peculiares de linguagem. Obtivemos ainda algumas informações sobre como o povo estabelece a comunicação, como apura os processos de identificação de cada um, como refina a sua natural tendência para a crítica social, como exerce a ironia e a crueldade, mas também o carinho e a ternura. E se quisermos ou pudermos aprofundar o assunto, ao conhecer curiosas histórias que envolvem as alcunhas e apelidos dos nossos conterrâneos, veremos ainda mais enriquecido o conhecimento do nosso passado e alargada a compreensão da nossa identidade de oleirenses. _______________ Bibliografia: - ADRAGÃO, José Victor, Pseudónimos, diminutivos e alcunhas, in Público, 9/1/1994. - Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2003. - Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. I, Editorial Enciclopédia, Lisboa / Rio de Janeiro, s.d. - LIMA, Augusto César Pires de, Estudos Etnográficos, Filológicos e Históricos, 1.º Vol., Edição da Junta Douro-Litoral, Porto, 1947.

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PARTIDA Anthero Monteiro* (à memória de Juca Rocha / para José Carlos Tinoco) finalmente o pianista disse tocar sempre também cansa agora é a vossa vez e partiu

como um pé de vento súbito desencadearam arpejos nas cordas íntimas do piano foi então que reachámos os dedos e as mãos para o último e reconhecido aplauso

ficámos todos à procura dos dedos mas as mãos eram apenas punhos compactos de raiva um violoncelo afoitou-se a escavar o silêncio para sugar-lhe as lágrimas um saxofone ergueu a cabeça animal e ganiu gutural uma alegria amarga os poemas deram as mãos às canções aos soluços e ao júbilo inventado perante o sorriso aquiescente do ausente na hora de descer ou subir ao infinito os seus dedos alheios às teclas

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.


AINDA À MESA COM MESTRE AQUILINO CONVERSANDO SOBRE COMERES VÁRIOS Manuel Lima Bastos* Já a criada – para empregar uma expressão fora de uso – levantou a mesa e sacudiu a toalha à janela que defronta o pátio da casa do escritor na Soutosa, espargindo as migalhas que o passaredo que escolheu as frondosas tílias como residência – falanstério alado, chama-lhe Aquilino - procura avidamente, e a que tem direito como bichos do Senhor feitos do mesmo barro que o bicho homem, e também já a tarde declina e ensombrece. Mas ainda sobra um dedo de porto velho nos cálices para rematar a conversa e convocar as recordações. Este pátio, rodeado por dois lados da casa e pelo renque de tílias a sul, tem um tal ar de compunção, sombrio e húmido, quase claustro de convento, que não podia deixar de ser propício ao recolhimento e à meditação. Obreiro infatigável que trabalhou toda a vida dez, doze e mais horas por dia, ao longo de sessenta anos – julgado no tribunal plenário de Lisboa, de infame memória, pelo crime de ter escrito “Quando os Lobos Uivam” e o juíz bronco lhe perguntou em que se ocupava, respondeu: “Trago o meu nome ao alto de mais de * Advogado - Devoto Aquiliniano.

setenta obras” - quantas vezes não terá assomado a essa janela ou passeado pelas sombras do pátio na luta sem fim do escritor contra os demónios que guardam a mina de diamantes das ideias originais e das palavras justas? *** Será esta, provavelmente, a última croniqueta de pendor gastronómico que escreverei e aqui terminarão as conversas imaginárias com o escritor. Pela minha parte, vou deixá-lo descansar na sua última morada no Panteão Nacional que tão tardiamente a Pátria lhe destinou. Mas mais vale tarde que nunca. Agora só falta que a sua prosa magistral regresse aos textos escolares donde foi vergonhosamente banida já em tempos de democracia e por cujos ideais Aquilino tanto se empenhou e lutou, pagando o preço do menoscabo, das perseguições e dos exílios. Nós, portugueses, que poucos motivos temos para nos orgulharmos da nossa condição, temos ainda essa casa comum que é a nossa língua. É imperioso que o nosso maior escritor do século XX tenha o lugar cimeiro que merece na sua aprendizagem e que a sua obra possa eflorir e iluminar o espírito e o coração dos nossos escolares.

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*** Em “A Via Sinuosa”, primeiro romance do escritor publicado em 1918 e continuado em “Lápides Partidas” – os quais fariam parte duma trilogia a completar com um terceiro romance que Aquilino desde logo intitulou “Sob o Pendão Bárbaro” mas que nunca escreveu – a figura central é Libório Barradas, isto é, o próprio escritor com a sua matriz envolta nas roupagens intranscendentes da ficção. E é curioso constatar que, quase quarenta anos volvidos, o escritor ressuscita o mesmo Libório Barradas nas últimas duas páginas de “A Casa Grande de Romarigães” publicada em 1957.

Como anjo tutelar dos desmandos e desvarios do personagem principal criou o Mestre uma das figuras mais minuciosas e comoventes de eclesiástico rural, “o bom Sr. Padre Ambrósio”, mestre de latinidades e sacerdote de vida exemplar no cumprimento do seu múnus, culto e compassivo. Na viagem que fizeram a Barrelas – actual Vila Nova de Paiva e terra do Malhadinhas – discreteia o excelente abade sob temas gastronómicos. Obra de meia manhã pararam junto a uma taverna, sob a sombra de duas carvalhas, para almoçar. Pediu o cura ao taverneiro vinho que veio servido numa infusa de barro de Molelos e, cheios os copos, disse: “- Boa cara tem, vejamos as obras”. E abrindo a cesta do farnel, “ a sua mão dextra, naquela amplitude amena com que abençoava, pairou sob o capão de gostoso recheio, os bolinhos de bacalhau (que Aquilino apreciava sobre o avinagrado, digo eu) e outros manjares que traíam as excelências nos invólucros engordurados”. Como o bom vinho e a boa comida propiciam a loquacidade, contou “o bom Sr. Padre Ambrósio” que era filhote daqueles sítios um certo fulano chamado Domingos Rodrigues que foi cozinheiro-mor do Marquês de Marialva e publicou uma “arte” (culinária?) que “deu mais brado que os Lusíadas”. E conta que o livro “dá receita dum comer, que não seja jantar, nem púcaro de água, mas petisqueira de viagem, em que há galinhas guarnecidas de torresmos, galinhas mouriscas, frângãos em caldo amarelo, frângãos turcos com natas e cardos, lombo de vaca com alcaparras, capelas reais com tutanos, almojávenas de ovos moles!...” Deu-me no goto estas “almojávenas”, palavra de óbvia origem árabe e perdi algum tempo em buscas para decifrar o que seriam. Acabei por descobrir que se trata duma doçaria oriunda de Silves quando esta cidade era a capital da província árabe do Algarve. Confeccionava-se com pão recesso – pandormido dizem os nossos vizinhos espanhóis – amolecido com coalhada de leite e coberto de ovos moles e amêndoas picadas. Não deviam ser más para remate de tais petisqueiras deglutidas em viagem à sombra fresca dum carvalho frondoso.


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Conta Aquilino, num passo duma das suas obras, que certo cavador de enxada, natural de aldeola serrana vizinha, falecera com cerca de cem anos. Nascera e vivera na mais extrema pobreza possuindo apenas uma pequena casa nas abas do povo, dum só aposento e coberta a telha vã, digna herdeira das casas dos nossos antepassados das citânias. Trabalhara toda a vida de sol a sol, “dando o dia” nos labores mais humildes e violentos tais como as malhadas na época própria e, de alvião e picareta em punho, agenciando nos baldios da serra meia dúzia de palmos de bacelo e horta para terceiros, aquilo que o escritor chamava “da pedra fazer terra”. Nunca passou da cepa torta pois os fracos réditos lhos levavam o cigarrito e o bagaço de que era consumidor inveterado. Durante o calvário que foi a sua longa vida o passadio resumiu-se ao caldo de berças adubado a unto que as mulheres mais compassivas dos patrões para quem trabalhava lhe regalavam e ao naco de pão centeeiro. Lá de longe em longe, quando o rei fazia anos, quebrava o jejum com a sua sardinha de salmoura, daquelas que se vendiam nas tendas expostas à porta em barricas de madeira e cobertas de moscas varejeiras e de cuja existência eu próprio ainda bem me recordo. De feitio taciturno mas trabalhador exacto, nunca lhe conheceram família nem outra companhia. O funeral teve o acompanhamento da meia dúzia habitual daqueles que não perdem um enterro e lá vão pensando na morte da bezerra, contentes no íntimo por pertencerem ainda ao número dos viventes. Depois das hissopadas sacramentais e quando o coveiro já despejava as primeiras pazadas de terra na cova aberta na vala dos indigentes, o abade resmungou mais para os botões da garnacha que para os acompanhantes: “- Este diabo, se comesse bifes, durava até aos 150 anos!” A medicina não comunga desta opinião. Parece que a frugalidade mais espartana e a abstinência de carnes e gorduras é condição determinante da longevidade.

Em 1948 publicou Aquilino “Cinco Réis de Gente”(e a sua continuação em”Uma Luz ao Longe”) que relata a meninice e a pré-adolescência dum rapazinho que crismou com o nome de Amadeu (“amado de Deus”) e que outro não é que o próprio escritor mais uma vez travestido, à semelhança de Libório Barradas, com o manto ficcional da fantasia. Foi com “Cinco Réis de Gente”, que me foi oferecido por meu pai em dia de anos, mais precisamente em Janeiro de 1949, que travei conhecimento com a prosa do escritor. Já quase na parte final da obra é descrita de forma saborosíssima uma campanha eleitoral nas aldeias das serras da Lapa e da Nave para a escolha do deputado pelo círculo às Cortes nos últimos anos de vigência da monarquia. Eram opositores um fidalgo de grande prestígio local, D. Nicéforo da Ula Monterroso Barbaleda Fernandes, frequentador da Côrte, amigo pessoal do rei e ganhador crónico das eleições e o presidente da câmara de Trancoso, capitão do exército sem grande nome mas que conseguira arrebanhar o apoio de parte do clero montesinho. Este D. Nicéforo, homem lhano e generoso, dava-se à maçada de estanciar na sua quinta do Reparo em A-de-Barros nos períodos de campanha eleitoral para mostrar o nobre fácies aos eleitores e solicitar-lhes o voto. Eram seus lugar-tenentes e caciques locais um professor primário - mestre régio se chamava na época – e um recebedor da Fazenda, pai do menino Amadeu de quem o fidalgo era padrinho. E uma bela manhã, ao nascer do dia, romperam para as aldeias serranas a visitar cada um dos eleitores que não eram tantos como isso pois só tinham direito de voto os chefes de família com bens imóveis inscritos na Fazenda. A breve trecho se aperceberam que a vinha estava vindimada recebendo recusas sistemáticas ora de forma delicada ora afrontosa. Era óbvio que o cura local, Padre Nuno Nazaré, se antecipara e captara os votos para o capitão de Trancoso proposto pelo Partido Regenerador. Que fazer, se a eleição era vital para o Partido Progressista em que militava o fidalgo? Estava à vista que a chave da questão era o abade. D. Nicéforo cofiou a bela barba anelada e reflectiu em voz alta: - “Vende a mulher de César as graças, quanto mais um homem de saias a influência! É mais fácil comprar o cura que os fregueses.” E lá foram abordar o Padre Nazaré no fim da


missa dominical e amanhou-se o acordo a contento do padre e do fidalgo. Congraçadas as partes e os interesses – e cabe perguntar se hoje as coisas se passam de forma muito diferente – como estava na hora do almocinho e os expedicionários tinham a barriga a dar horas, o Padre Nazaré, “que não era um labroste com tonsura a mais no alto da cabeça” mas um rústico não destituído de finura e cordialidade, convidou-os para “uma petisqueirinha de salpicão e febras de presunto com ovos na sertã” na residência paroquial. O fidalgo aceitou mas acrescentou os bons acepipes acabados de chegar da Quinta do Reparo ao lombo dum burro e confeccionados pelo cozinheiro francês. O padre Nazaré não recusou participar com o contributo do seu apetite “para que não faltasse o beneplácito divino do ungido” à petisqueira. Beberam-se vinhos velhos – Dão, suponho - e foram muito apreciadas e gabadas as batatinhas do padre, aferventadas em panela de barro, ”farinhentas e alvas como suspiros”. D. Nicéforo perguntou se era por intercessão divina que obtinha o abade tais maravilhas pois na sua quinta, com adubos e boa terra, não conseguia nada parecido. Respondeu o reverendo que “não conseguia não, que eram privilégio daquele solo pobrinho” e que a receita era ter “terra granita, água granita e caganita”, com perdão da má palavra. Ganhas as eleições e colado o Padre Nazaré na sua nova e rendosa paróquia, o fidalgo convidou os caciques e influentes de toda a região para um ágape na sua Quinta do Reparo. E serviu-se “peixe de barrica que as vareiras traziam à feira de S. Mateus, enlodado de molhanga”, “enguias e peixe vário de escabeche”, “arroz de cabidela”, tudo regado com “um rico vinho de três assobios”. Já o cabrito assado no forno, “não obstante estar apetitoso, foi imolado com certa demora que as cisternas estavam meio repletas”. *** Árvore bem amada pelo escritor acima de todas as outras árvores da Beira Alta foi o castanheiro, a mais imponente, generosa e importante de todas as espécies vegetais da Península Ibérica. Tudo quanto aqui vai ficar exarado sobre o castanheiro foi aprendido em Aquilino e, por isso, desnecessário se torna voltar a citar a fonte. Ainda antes de Cristo, as civilizações do Mediterrâneo

Oriental, nomeadamente fenícia e grega, consideravam a Ibéria um éden de riquezas por explorar e escassamente habitada. Conta o geógrafo grego Estrabão, que a visitou, que o coberto vegetal era tão denso que era possível caminhar sobre árvores desde os Pirinéus até às Colunas de Hércules (estreito de Gibraltar)! Dado o devido desconto ao exagero, ainda assim se pode concluír que a península deveria ser uma cerrada floresta repleta de caça e os seus mares inçadoiros prodigiosos de peixe para não falar das riquezas minerais de que é exemplo, que ainda hoje existe, a famosa Ruta de la Plata, extensa de várias centenas de quilómetros. O coberto vegetal era formado, além doutras espécies menos importantes, pelo castanheiro, o carvalho e o sobreiro. O próprio pinheiro, hoje tão disseminado, não era autóctone e só surgiu bastante mais tarde. O castanheiro da Beira Alta, nas suas diversas variedades – da demanda, longal, rebordão e outras – dá-se bem em cabeços desafogados de média altitude (entre os 400 e os 600 metros) isolado ou em soutos com os da sua igualha mas não suporta a presença doutras espécies vegetais mesmo arbustíferas. Odeia particularmente a proximidade do pinheiro. Se o querem ver medrar, animar a paisagem com a sua presença grandiosa e desentranhar-se em frutos é dar-lhe espaços abertos e arejados. Podem vir chuvas torrenciais, ventos ciclónicos ou neves de rachar que a tudo resiste altaneiro. Pelo outono, depois que os ouriços abriram e se colheram as castanhas – “pão partido em pequeninos” cita Aquilino sem indicar a fonte – a sua folhagem assume todas as cores em todos os tons como sumptuosa dalmática episcopal. Se é certo o ditado quanto à longevidade do castanheiro – “trezentos a crescer, trezentos no seu ser e trezentos para morrer” – ainda há poucos anos deveriam existir exemplares coevos da fundação da nacionalidade. Dos belos e extensos soutos de castanheiros que existiam por toda a parte na Beira Alta já quase todos desapareceram. Nos anos 30 e 40 do século passado uma doença maligna atacou-os mortalmente desfazendo o seu alburno e transformando-o numa espécie de farinha. Subsistiram ainda durante alguns anos quase reduzidos à códea exterior. Os que não sofreram o ataque da doença foram dizimados pela cobiça dos madeireiros que se aproveitaram do extremo depauperamento das populações serranas para os adquirirem por dez réis de mel coado.

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Conta Aquilino que se deixava em legado, a uma ou mais pessoas, o castanheiro tal no sítio tal, como hoje se lega um campo lavradio ou um pinhal, o que mostra o valor e a utilidade da árvore. Ainda hoje existe na Vila da Rua, termo de Moimenta da Beira, um castanheiro reduzido à base com dois ou três metros de altura e que é considerado o castanheiro de maior perímetro do mundo, sendo necessários cerca de dezasseis homens para o abraçar. Rondará os 800 anos de idade e estava rodeado por um muro baixo de pedra de que ainda restam os alicerces. Parece que em tempos imemoriais à sua volta se fazia uma romaria resultante duma ainda mais antiga tradição vinda do culto druídico dos celtas que consideravam as árvores de porte majestoso como o castanheiro e o carvalho o “axis mundi” (eixo do mundo). O certo é que, apesar da ruína e da idade provecta, ainda hoje deita rebentos pela primavera e ouriços com castanhas na sazão própria, a avaliar por fotografias recentes que examinei. Dentro de cada ouriço há uma castanha que está vazia e a que os serranos chamam “folecha”. Tinham o curioso costume de a utilizar para, quando uma mulher andava de esperanças, adivinhar o sexo do nascituro. Davam-lhe uma cuspidela e atiravam-na ao lume da lareira. Se estourava ruidosamente, vinha aí um macho; se rebentava com uma discreta flatulência era menina. Os nossos avós lusitanos, e antes deles os iberos e a tropa fandanga dos invasores de proveniência vária, não cultivavam as cerealíferas. Os lusitanos, rapinantes natos, viviam nos seus valhacoutos de difícil acesso nas serranias do extremo ocidental da Meseta e alimentavam-se da caça abundante e da pesca nos rios, assumindo a castanha papel de primeira ordem na sua dieta diária. À semelhança do que ocorria com os árabes dos desertos do norte de África que, com um punhado de tâmaras (cujo próprio caroço era roído) sobreviviam a dias e dias de viagem, os lusitanos nas suas excursões predatórias levavam apenas castanhas no surrão. Viajavam de noite montando em pêlo os seus cavalicoques serranos capazes de trepar encostas como as cabras e descansavam de dia no recesso dos bosques. Depois de várias jornadas a água dos mananciais e castanhas, ao romper da alva, invadiam os povoados das terras férteis e ricas do litoral com as populações ainda amodorradas no sono e era o saque e a destruição sem contemplações.

A castanha era consumida, como ainda hoje se faz, cozida ou assada mas também em farinha ou pilada. Ainda é do meu tempo vê-la à venda pilada e comi várias vezes caldo de castanhas piladas. Os lusitanos armazenavam-na em covas cobertas com terra bem batida onde, com o frio, se conservavam perfeitamente imunes ao apodrecimento e ao abrigo do dente voraz dos roedores. Na gastronomia moderna acompanham perfeitamente os assados, inteiras ou em puré, isto para não falar nos famosos “marrons glacés” vindos de França e Itália em embalagens tão sumptuosas e a tal custo que dir-se-ia tratar-se de escrínios de jóias de alto preço. *** Vou agora colocar a pedra de fecho na abóbada desta croniqueta: o pio leitor (como gostava de dizer Mestre Aquilino), se puder e quiser, leia de vez em quando meia dúzia de páginas do escritor. Não ficará mais rico (no sentido utilitário do termo), nem mais importante, nem gozará de maior consideração social. Mas, se tiver dois dedos de entendimento, verá a língua que bebeu com o leite materno em todo o seu esplendor e beleza. Aquela que o poeta brasileiro Olavo Bilac definiu como “última flor do Lácio inculta e bela”. Hoje já não é inculta mercê do génio de homens como Aquilino e Pessoa mas continua bela. Um pouco de emoção não lhe fará mal. Se conseguir ouvir a música das suas esferas, ela dirlhe-á donde vimos, quem somos e para onde vamos. mlimabastos@gmail.com


DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DE PERSONALIDADES FEIRENSES Francisco de Azevedo Brandão* BANDEIRA, Manuel Augusto Correia (1837-1923). Nasceu na Feira em 1837, e licenciou-se em Direito, foi decano dos advogados e juiz substituto da comarca da Feira e conselheiro judicial. Foi ainda presidente da Câmara Municipal da Feira e administrador do mesmo concelho e foi também agraciado com a Comenda da Ordem de Cavalaria de Nossa Senhora de Vila Viçosa por relevantes serviços ao concelho e ao país. Bibliografia Correio da Feira, 26.5.1923 BAPTISTA, Augusto Caetano Cardoso (? – 1933). Natural da freguesia de Lobão, foi «um apóstolo do bem». É recordado como «um homem afável, humilde sempre com a mão estendida para todos aqueles que dele precisam». Exerceu vária vezes o cargo de presidente da Junta de Lobão, tendo levado a efeito grandes melhoramentos em muitos pontos da freguesia, mormente no cemitério e nas escolas. Faleceu em 19 de Janeiro de 1933. Bibliografia Jornal Tradição, 28.1.1932

BAPTISTA, Manuel de S. João (? - ?). Vivia em 1724, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «Agostinho Descalço e missionário na ilha de S. Tomé; natural de Morgado, freg. de S. Miguel do Souto, Feira; filho natural do P.e Manuel Correia da Silva, reitor da igreja de S. Miguel de Souto, natural do Porto, e de Maria Manuel, natural e moradora em Morgado; neto paterno de Baltasar Correia e de Benta Marques, moradores no Porto, na rua da Ferraria de Cima, freg. de N.ª Sr.ª da Vitória, e materna de Gaspar Dias e de Maria Manuel, lavradores, naturais e moradores em Morgado. Provisão de Comissário na ilha de S. Tomé de 12 de Dezembro de 1724. A.N.T.T. – Manuel – m. 262, n.º 1784». Bibliografia Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º160 (Outubro, Novembro e Dezembro), 1974. BARBAS, José de Almeida (? - ?). Foi pároco da freguesia de Pigeiros, apresentado, em 1831, pelos «Rochas», continuadores dos antigos Pereiras da Quinta do Paço de Pigeiros.

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local. É autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

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Bibliografia P.e José Inácio da Costa e Silva, «Santa Maria de Pigeiros», jornal Tradição, número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940.

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BARBOSA, Alberto Toscano Soares (1896 - 1989). Nasceu em Oliveira do Hospital a 13 de Julho de 1896. Era filho de António Toscano Soares Barbosa Júnior e de D. Maria do Patrocínio Domingues. Era licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra. Foi Juiz de Direito de 1.ª classe da comarca de Lisboa, auditor do Tribunal Militar de Lisboa. Casou por quatro vezes. A primeira, em Benavente, a 13 de Julho de 1923 com D. Manuela Olga da Silva Brito, nascida ali a 7 de Julho de 1901 e falecida em Lisboa a 16 de Maio de 1929, filha do Dr. Baltazar Adriano de Freitas e de D. Carmina do Patrocínio da Silva Brito; a segunda vez em Lisboa, na freguesia de S. Sebastião da Pedreira, a 14 de Março de 1932 com D. Leonor Avelar Maia de Loureiro, nascida a 20 de Janeiro de 1903, filha do médico Dr. Manuel Maia de Lourenço e de D. Maria Teresa Avelar. Este casamento foi dissolvido por motivo de divórcio por sentença de 20 de Julho de 1963; a terceira vez com D. Maria da Costa Melo Toscano, natural de Capelas, Ponta Delgada, Açores, filha de António da Costa Melo e de D. Maria de Sousa Moniz Pontes, em 9 de Abril de 1964. Também este casamento foi dissolvido por motivo de divórcio; a quarta vez com D. Maria Bárbara de Sousa Donas Toscano a 29 de Junho de 1985. Do primeiro casamento teve os seguintes filhos: Vítor Alexandre Toscano de Brito Pereira de Resende, nascido a 26.1.1924; Maria Carmina de Brito Toscano, nascida em Santarém a 7.4.1927 e que casou na Vila da Feira, na Casa da Quinta do Castelo, a 12.8.1950 com seu primo Dr. Eduardo Sebastião Vaz de Oliveira. Do segundo casamento teve Ana Maria Toscano Soares Barbosa que nasceu em Lisboa a 25.10.1937. Alberto Toscano Soares Barbosa faleceu na freguesia de Santo Ildefonso, no Porto, em 7 de Dezembro de 1989, com 93 anos de idade e encontrase sepultado no cemitério da freguesia de Travanca, concelho da Feira. Bibliografia Fernando de Castro da Silva Canedo, Família Canedo e Teixeira Guimarães da Vila da Feira. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 63 (Julho, Agosto e Setembro), 1950. Livro de Baptismo de Oliveira do Hospital de 1897 – Arquivo da Univ. de Coimbra.

Assento de Óbito n.º 2505, Maço n.º 3 – Arquivo Central do Porto. BARBOSA, António Toscano Soares (1826-1907). Nasceu em 26 de Outubro de 1826. Era filho de António Luís Barbosa, Juiz eleito de Travanca e contador da Comarca da Feira, e de D. Ana Peregrina Toscano Pereira de Azevedo e Melo da Casa da Várzea. António Toscano Soares Barbosa foi Contador da Comarca da Feira e Senhor da Casa da Várzea. Casou com D. Maria Carolina de Almeida, filha de Jorge José Teixeira Guimarães, nascida na Vila da Feira a 28.8.1840 e ali falecida a 13.9.1910. António Toscano faleceu na Vila da Feira a 13.9.1907 Bibliografia Fernando de Castro da Silva Canedo, Família Canedo e Teixeira Guimarães da Vila da Feira. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 63 (Julho, Agosto e Setembro), 1950. BARBOSA, António Vieira (? - ?). Era pároco de Fiães em 1753. No seu tempo teve a visita pastoral de D. João da Silva Ferreira, administrador Apostólico da Diocese. Paroquiou até 1755. Bibliografia Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1940. BARBOSA, Domingos Teixeira (1843-1926). Nasceu em 1843. Era filho de Luís Teixeira Barbosa e de D. Rosa Teixeira Laranjeira. Casou com D. Albertina Barbosa de Araújo e Castro, nascida em Grijó em 1861 e falecida em 11.1.1929, filha de Joaquim Leite Alves de Araújo e de D. Maria Emília Amália de Castro. D. Albertina foi Directora da Pia União das Filhas de Maria em Rio Meão. O Dr. Domingos Teixeira era licenciado em Medicina e foi conhecido por «médico do bosque», por haver «um grande e belo jardim nas traseiras da sua casa». Faleceu no lugar de St.º António, Rio Meão, a 11 de Junho de 1926 com 83 anos de idade. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. BARBOSA, Francisco da Costa (? - ?). Foi pároco da freguesia de Pigeiros, apresentado, em


1813, pelos «Rochas», continuadores dos antigos Pereiras da Quinta do Paço de Pigeiros. Bibliografia P.e José Inácio da Costa e Silva, «Santa Maria de Pigeiros», jornal Tradição, número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940. BARBOSA, José Correia Leite (? - ?). Nasceu em Souto Redondo. Era filho natural do capitãomor João de Castro da Rocha Tavares Pereira Corte-Real, da Casa de Fijô, avô do conselheiro José Luciano de Castro e do 1º. Conde de Fijô. Casou com D. Bernardina Leonor Eulália Pereira da Silva, filha única de um dos mártires da liberdade, enforcado no Porto a 7 de Maio de 1829, o capitão Bernardo Francisco Pinheiro, natural das Airas, freguesia de S. Jorge, concelho da Feira. José Barbosa foi administrador do concelho da Feira. Foi ele que trouxe a suspensão do mandato de presidente da Câmara da Feira e comandante do Batalhão de Caçadores nacionais, Bernardo José Correia de Sá, por este ter participado numa procissão religiosa, fazendo de Ecce Homo «embrulhado no seu riquíssimo manto de damasco de seda, roxo, guarnecido de florões de oiro fino, acompanhado de Nossa Senhora da Soledade encarnada em Joaquim José Teixeira Guimarães, amanuense da mesma Câmara». Foi também excomungado pelo Bispo da Diocese. Bibliografia Henrique Vaz Ferreira, Ferro Velho, Correio da Feira, 4.7.1946. BARBOZA, Ambrósio Godinho (? - ?). Era pároco de Paços de Brandão em 1630, conforme a seguinte escritura; «Aos vinte e seis dias do mês de Março do dito anno de seiscentos e trinta annos, no lugar de Rio Meam, que he termo da villa da Feira, estando ahy o Lecenceado Antonio de Sampayo Ribeiro Juis deste tombo, logo ahy perante elle dito Juis pareceo o Reverendo Abbade de Lamas, e apresentou h~ua procuração do Abbade de Pacoo de Drandam Ambrósio Godinho Barboza, feyta por sua mão, letra, ~que conheço, feita em os vinte e seis do mês de Março, sobredito do dito anno, em que lhe dava poder para reconhecer por direito senhorio a Comenda de Rio meão e a seu Comendador por direito senhorio do padroado, e apresentação da Igreja de Sam Seprião de Pacoo do Brandão, e por elle Abbade de Lamas foy dito, que elle em nome delle

constituinte, e por virtude da dita procuração reconhecia por direito senhorio a Comenda de Santiago de Rio meão, e a seu Comendador, e successores do Padroado, e apresentação da dita Igreja de Sam Sepriam de Pacoo do Bradam, que he sua em sólido, e assi reconhecia na forma das Bullas, ~q tinha de sua Santidade, e sentença dada sobre os embargos, que às ditas letras se veio, e com a pensam costumada, e por estar presente o dito Comendador, por elle foy dito aceitava o dito reconhecimento na forma dos mais, e assinou aquy como o dito Juis, e Abbade de Lamas, que assinou como procurador do dito Abbade de Pacoo do Brandam, tudo com testemunhas presentes, o padre Fr. Pêro Rodrigues Sardinha, Vigairo de Rio meão, e o padre Francisco Borges Cura de Maceda. E eu Lourenço Teixeira de Coadros escrivão do tombo o escrevi. Fr. Bernardo Pereira, Manuel Dias, Ribeiro, Fr. Pêro Rodrigues Sardinha e Francisco Borges» Bibliografia Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995. BARREIROS, Joaquim dos (? - ?). Padre-mestre do Souto, foi um dos fundadores da Sociedade Recreativo Soutense, em 1875. Bibliografia Jornal Tradição, 7.11.1936. BARRETO, Gaspar Correia (? - ?). Era filho de Amador Nunes e D. Mécia Caldeira. Casou em Arrifana, em 17 de Abril de 1589, com D. Francisca Soares, filha de Martim Vaz e de D. Francisca Soares. Este Martim Vaz pertencia à linhagem dos «Pinhos» e tinha o nome completo de Martim Vaz de Pinho Sampaio. Gaspar Correia Barreto foi pai de António Coelho Melo que morreu num recontro com os Holandeses na restauração da Baía, Brasil. Bibliografia António de Souza Brandão, Moutinhos de S. João da Madeira e Pinhos de Arrifana de Santa Maria. Revista Armas e Troféus, 1980. BARRETO, Manuel dos Santos (? – 1735). Descendia de um ramo de André de Quadros Barreto que foi juiz de fora e corregedor de Besteiros natural de Viseu, que tinha partido para a Vila da Feira pelo ano de 1513 e se

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fixou no lugar da Quintã, freguesia de Espargo. Manuel Barreto foi capitão-mor da Vila da Feira. Casou com D. Madalena Maria Pereira Pinto, filha de Domingos Leitão Pereira e de D. Ana Lopes de Sousa, da Quinta da Boavista na freguesia de Espargo. Após o seu casamento fixam-se na Quinta do Castelo, Vila da Feira, e tiveram os seguintes filhos: Frutuoso, nascido a 30 de Março de 1708; Francisco, nascido a 2 de Junho de 1709; Agostinho, nascido a 7 de Agosto de 1710; Helena, nascida a 30 de Agosto de 1711; e Quitéria, nascida a 31 de Dezembro de 1713. Manuel Barreto faleceu em 29 de Julho de 1735 e sua mulher em 29 de Agosto de 1731. Bibliografia Jorge António Marques, Evocações de uma Era, uma Terra, uma Lenda ou uma História – Aveiro. Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º3, ano I, 2003. 114

BARROS, Augusto de (1898-1969). Natural da Feira, radicou-se em Oliveira de Azeméis onde dirigiu o jornal local «Opinião». Antes tinha trabalhado durante alguns anos no «Correio da Feira». Era casado com D. Rosa de Sá Pinho de Barros da qual teve 4 filhos: Ercília e Laurinda de Barros, e Américo e Fernando de Pinho. Faleceu em 20 de Dezembro de 1969, com 71 anos de idade. Bibliografia Correio da Feira, 8.1.1970. BARROS, Pedro de (? - ?). Foi pároco da freguesia de Pigeiros, apresentado, em 1636, pelos «Rochas», continuadores dos antigos Pereiras da Quinta do Paço de Pigeiros. Bibliografia P.e José Inácio da Costa e Silva, «Santa Maria de Pigeiros», jornal Tradição, número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940. BASTOS, Artur Oliveira (1894-1976). Nasceu na Vila da Feira em 1894. Era fiscal de impostos em 1919, tendo-se aposentado em 1964. «Foi sempre muito dedicado à sua terra», tendo sido fundador do Clube de Caçadores da Feira e fez parte dos corpos directivos da Humanitária Associação dos Bombeiros Voluntários da Feira, da Santa Casa da Misericórdia e do Clube Feirense. Foi casado com D. Sofia Pinto Basto, tendo falecido em 30 de Janeiro de

1976 com 82 anos de idade, em casa da sua filha adoptiva, D. Laura Lurdes Costa Vita. Bibliografia Correio da Feira, 6.2.1976. BASTOS, João Henrique de (? - ?). Natural de Pigeiros, foi um benemérito da sua terra. Em 23 de Maio de 1913 fez uma escritura de doação ao Estado de uma sua casa, situada no lugar da Aldeia, em Pigeiros, destinada à instalação de uma escola com a denominação de «Escola Dona Maria Rosa de Jesus», em memória de sua mãe. Foi seu procurador o Padre da freguesia. Reverendo António Inácio da Costa e Silva. Esta escola esteve em funcionamento desde 1913 até 1970, sem que tivesse ficado nela qualquer placa com a referida denominação, pelo que a sua falta caiu sob a alçada da lei da Prescrição. No ano lectivo de 1970-71 a escola foi transferida para o edifício novo construído no Bairro do Sol, entre os lugares da Igreja e Cavadas. A antiga escola passou depois a sede da Junta de Freguesia e mais tarde a sede do clube de futebol. Bibliografia Padre Domingos Azevedo Moreira, Documentos Históricos sobre Pigeiros-Feira. Aveiro e o seu Distrito, n.º 31 e 32, 1983. BASTOS, João Leite de (? - ?). Foi pároco da freguesia de Pigeiros, apresentado, em 1785, pelos «Rochas», continuadores dos antigos Pereiras da Quinta do Paço de Pigeiros. Bibliografia P.e José Inácio da Costa e Silva, «Santa Maria de Pigeiros», jornal Tradição, número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940. BASTOS, Manuel António da Silva (1908-1974). Era natural de Fiães, onde nasceu em 1908. Era licenciado em medicina, foi um convicto republicano e democrata e «dedicado colaborador do «Correio da Feira», onde manteve durante algum tempo uma secção com o título «Episódios da Minha Vida Clínica», usando o pseudónimo «Dr. Ninguém». Era casado com D. Margarida de Almeida Lima Bastos, da qual teve dois filhos: Dr. Manuel Lima Bastos, advogado e Dr. Ângelo Lima Bastos, médico. Faleceu na sua casa de Valos, Fiães, em 23 de Agosto de 1974, com 66 anos de idade.


Bibliografia Correio da Feira, 31.8.1974. BEJA, Manuel de (? -?). Era abade de Lourosa em 1667. A 3 de Dezembro desse ano promoveu a reforma da Confraria do Santíssimo Sacramento de Fiães, que abrangia também as freguesias de S. Jorge, Sanguedo, Lourosa e Santa Maria de Lamas. Bibliografia Padre Manuel F. de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira, .Porto, 1939-1940 BERMUDES, Sancha (? - ?). Doou, em 26 de Junho de 1086, à igreja de S. Martinho de Argoncilhe o que possuía na «Villa» de Aldriz. Bibliografia Robert Durand, Le Cartulaire Baio Ferrado du Monastère de Grijó (XI-XIII Siècles). Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultura Português, Paris, 1971. BERREDO, Manuel Pereira de (? - ?). Vivia em 1675, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «Cavaleiro professo da Ordem de Cristo; natural da vila da Feira, freg. de S. Nicolau; Filho do Lic.º Gaspar Leite Cabral, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, natural da Feira e de D. Maria da Silva, natural da cidade do Porto, moradores na referida vila; neto paterno de Diogo Leite de Miranda, igualmente natural da Feira, e de Mécia Cardosa Coelho, natural de Lamego, filha de Rui Lourenço de Carvalho e de Mécia Coelho de Vasconcelos, moradores em Lamego, moradores na Feira, e materno do capitão António Álvares de Sequeira, o «Capitão Plumas», natural do Porto, e de D. Maria da Fonseca, natural da Baía, filha de Sebastião da Silva, tabelião na Baía, e de Ana da Fonseca, moradores no Porto; sobrinho paterno de Filipa Soares da Carvalho, casada com Manuel Cabral de Castelo Branco, mãe de D. Mécia de Berredo, casada com António Tavares Teixeira, morador em Arouca, Familiar do Santo Ofício; ajustado para casar, em 1667, com D. Luísa de Lemos, filha do Dr. António de Lemos da Rosa, desembargador da Relação do Porto, e de D. Maria de Matos, moradores no Porto, neta paterna do P.e Cosme da Rosa de Lemos, abade da freg. de S. Vicente de Cidadelhe de Vila Real, e de Antónia João, solteira,

depois casada com António Gonçalves, natural e moradora em Cidadelhe, e materna do capitão Domingos Vilela, natural do Couto de Goivães, Sabrosa, e de Isabel Gonçalves, natural de Constantim, termo de Vila Real. Carta de Familiar de 4 de Outubro de 1675. A.N.T.T. –m. 23, n.º594» Bibliografia Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 158 (Abril, Maio e Junho), 1974. BORGES, Francisco (? - ?). Vivia em 1503, segundo carta de brasão que foi concedida, nessa data, a seu pai Fernão Borges, Cavaleiro Fidalgo, pelo rei D Manuel. Francisco Borges era casado com Maria Machada, natural de Santo António de Rio Meão, filha de Estêvão Soares Machado. O seu bisneto, Garcia de Azevedo Coutinho, filho de Diogo Morais e de Maria de Magalhães, foi capitão da Marinha de Guerra D’El-Rei, onde prestou «relevantes serviços a D. João IV em 1640, que lhe valeu a honra de Cavaleiro de São Tiago. Casou em Válega com D. Mariana Morais». Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão, a Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. BORGES, Joaquim de Assumpção (? - ?). Natural da freguesia de Gião, foi pároco da freguesia do Souto. Depois, serviu durante alguns anos como prefeito do Seminário do Porto e pouco tempo depois ingressou na Companhia de Jesus, tendo-se dedicado à pregação missionária. Foi expulso do país na sequência da implantação da República em 1910. Faleceu na cidade de Vigo, Espanha. Bibliografia Jornal Tradição, 8.8.1936. BORGES, José Soares de Figueirôa (? - ?). Foi figura de relevo nas terras da Feira. Foi tenentecoronel de milícias nesta região, governador militar de Aveiro e deputado às Cortes. Para vingar a morte de seu tio Marques Soares, pelos franceses, ele e mais três companheiros montaram emboscada na Deveza do Pereiro, freguesia de S. Tiago de Riba Ul, ao tenente-coronel francês, Sameth. Escondidos atrás de uns loureiros desfecharam uma série

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de tiros que atingiram o tenente-coronel que caiu do cavalo já morto. Por causa deste incidente, as tropas francesas do general Themiers cercaram a freguesia de Arrifana, no dia 17 de Abril de 1809 e dizimaram a tiro 62 homens. Bibliografia Jornal Tradição, 5.1.1935 e 12.1.1935. BOTELHO, António Julião (? - ?). Foi pároco da freguesia de S. Jorge, de 1730 a 1753. Bibliografia P.e José Inácio da Costa e Silva, A Freguesia de S. Jorge, jornal Tradição, número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940.

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BRAGA, Hernâni das Neves (1910- 1980). Nasceu no Porto em 14 de Agosto de 1910. Fixou residência na Vila da Feira em consequência do seu casamento com D. Maria Luísa Soares de Sá Braga, administradora do Correio da Feira. Depois dos seus estudos, dedicou-se à actividade comercial na cidade do Porto. «Instruído, carácter de eleição, cavaqueador interessante, amigo do seu amigo, tinha pela Vila da Feira muita afeição, considerando-a como sua terra natal, por cujos problemas vivamente se interessava». Faleceu em 22 de Abril de 1980. Bibliografia Correio da Feira, 24.5.1981. Francisco Neves, Do Alto da Piedade. Edição da LAF – Liga dos Amigos da Feira, 2003. BRANDÃO, António (1882 -?). Nasceu no Burgo de Arouca em 17 de Dezembro de 1882. Órfão aos 12 anos foi adoptado pelo «pai Zé», de Fiães, como seu segundo filho. Foi pároco de Arouca, Santa Eulália, Santa Marinha. E Cedofeita. Em 1924 foi a Angola como secretário do Bispo D. António Meireles, tendo sido também assistente da Junta Diocesana da Acção Católica. Bibliografia Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira, Porto, 1940. BRANDÃO, António José de Azevedo Aguiar (1786-1858). Nasceu na Casa da Torre ou da Capela, em Paços de

Brandão a 9 de Junho de 1786. Era filho de Manuel José de Sá Pereira Brandão Azevedo Aguiar e Melo e de D. Maria Pais dos Santos. Segundo David Simões Rodrigues na sua monografia «Rio Meão, a terra e o povo na história», António José de Azevedo vivia em 1853 em Alpoços, Rio Meão e foi herdeiro do seu parente, João de Sousa Veloso de Azevedo da Quinta de Alpossos ou do Sardão. Foi Juiz Almotacé em 1830, secretário da Junta de Paróquia em 1835, Jurado de Sentença em 1836, 1837,1842 e 1843; presidente das eleições para a Junta de Paróquia de S. Paio de Oleiros em 1835 e das de Rio Meão em 1839; Juiz Ordinário e Vereador da Câmara da Feira em 1859. Faleceu em 20 de Dezembro de 1858. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão, a Terra e o Povo na História, Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. Francisco Azevedo Brandão, Família Azevedo Aguiar Brandão. Revista Villa da Feira Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão, Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995. Livro de Assentos de Paços de Brandão, fls.10. BRANDÃO, António Pereira (? - ?). Foi pároco de Rio Meão entre 1717 e 1719. «Deixou de palavra campos da Comenda em Rio Meão que Frei Braz de Sousa que lhe sucedeu passou a cultivar». Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – a Terra e o Povo. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. BRANDÃO, Fr, Braz (? -?). Descendente da linha de Fernão Brandão, foi comendador de Rio Meão, Frossos e Rossas. Foi depois comendador de Algôzo no Alentejo da Ordem de Malta. Deixou filhos bastardos de que fez caso e um deles chamado Domingos, morou em Frossos e outro morreu em Rossas de Arouca. Bibliografia Cristóvão de Pinho Queimado, Memórias Sobre Aveiro, 1687. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º10, 1937.


VEXAMES E RAZÕES DO COLONIALISMO IBÉRICO NO BRASIL António Mesquita*

“Escravo” – estudo de Debret. Aguarela inédita, MEA 322. Catálogo da Exposição de Agosto de 1997, da Chácara do Céu, Rio de Janeiro. * Jornalista e Investigador Histórico.

PREÂMBULO O culto de S. Crispim e S. Crispiniano teve origem na Europa Central, no séc. XIII, para defender e coordenar a actividade do Ofício dos Sapateiros, que dominava, com os artesãos Curtidores e Surradores, as técnicas de tratamento do couro e manufactura não só do calçado, mas também do vestuário e aprestos guerreiros, inclusive o arreio de cavalgaduras e odres de transporte de líquidos, de grande impacto social e militar nessa sociedade medieval em convulsão contínua. A admissão e divulgação dos SS. Crispim e Crispiniano, como patronos dos Sapateiros, no Reino de Portugal, só se fixou no ano de 1563, em Lisboa, graças ao Teólogo da Contra-Reforma e delegado ao Concílio de Trento, D. Melchior Boliargo, que tinha sido bolseiro em Paris do Rei D. João III e futuro Bispo de Fez e, simultaneamente, Prior da Paróquia de S. Mamede de Lisboa e Coadjutor do Cardeal D. Henrique, então co-Regente do Reino e titular da Arquidiocese de Évora. Enquadrada a laboração do Ofício dos Sapateiros na complexa estrutura corporativa da “Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa”, como Ofício Cabeça da respectiva “Bandeira”, para a qual nomeava dois representantes, na generalidade, com excepção em Lisboa, a “Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa” rapidamente se constituiu como a espiritual colectiva da actividade económica nacional dos

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Curtumes e Calçado e, como tal, referência do aparelho político-municipal na vigência do Antigo Regime em Portugal, recebendo particulares privilégios do Poder Real e prerrogativas Apostólicas, beneficiando da construção da sua Ermida-sede num terreno adossado à entrada da barbacã do Paço Real, que perdura hoje sob a designação genérica de Castelo de S. Jorge. Associações de classe dos fabricantes licenciados do fabrico de calçado, utensílios de couro e tratamento de peles, com um vínculo ao Prelado da Diocese e a El-Rei através dos municípios, as “Irmandades de S. Crispim e S. Crispiniano”, que se fundaram a partir de Lisboa nos principais centros de fabrico de calçado do Reino, no exemplo da biografia dos seus mártires padroeiros, apelavam à humildade, amizade, entreajuda na doença dos confrades, bem-fazer para a salvação das almas e glória a Deus, enquanto, no temporal, administravam o acesso e a actividade da profissão através de exames prévios, controlo de qualidade e preços na estrita obediência às leis gerais do Reino e posturas do Senado da Autarquia Local onde estavam estabelecidas, enquanto os Senados municipais, presididos por Juízes de Fora de nomeação régia, se assumiam como factótuns do governo estrutural do Reino. As Irmandades de S. Crispim e S. Crispiniano, que mantiveram uma protecção muito especial da Casa Real, fruindo os altares dos patronos e os respectivos estandartes autorização de usar as “Quinas”, não somente por representarem a maior força corporativa do Antigo Regime, mas também pela sua tradicional fidelidade à hierarquia da Igreja, transformaram-se em símbolos profissionais ortodoxos contestados pelos movimentos liberais com o dealbar da I Revolução Industrial. À semelhança do que acontecera na Europa, em Portugal a componente corporativa dos sectores económicos, com os agrupamentos profissionais conhecidos por “Casas dos Doze” e “Casas dos Vinte e Quatro”, veio a ser extinta em 07.05.1834. Esta disposição avulsa, com resultados, em certa medida, mais perversos do que os da legislação anterior, foi percebida pelos meios ortodoxos de então como o terramoto político do Antigo Regime por retirar dos Municípios o controlo da actividade económica da Nação e fazer depender só do livre-arbítrio de cada um o exercício profissional, coarctando ao Patronato, de base popular, o poder interventor que até aí dispunha através dos seus procuradores junto da vereação

dos senados concelhios, constituídos e dominados pela gente fidalga e principal das respectivas áreas urbanas e termos. Este trabalho, que coincide com o concluir de um longo projecto de reflexão histórica com assento preferencial na componente económica portuguesa suportada em fontes dispersas nos arquivos municipais do continente e do Brasil, traduz também a tentativa, sem trair a cronologia, o distanciamento e a metodologia adequadas, de assinalar o lento e dificultado anseio do trabalhador anónimo na sua afirmação profissional e procura de melhor qualidade de vida no mundo armadilhado do poder religioso e político, iludindo a exclusão, a xenofobia e a discriminação genealógica do espaço português.

antoniomezquita@clix.pt

I PARTE I.I - O MUNICIPALISMO E AS ACTIVIDADES ECONÓMICAS Como vulgar vila ou cidade portuguesa do continente europeu, o centralismo governamental da Corte de Lisboa gizou a estrutura municipal das principais povoações do Brasil em rigorosa semelhança com a representação administrativa concelhia de Lisboa, guardadas as proporções de grandeza urbana e demográfica. Foi assim com o Compromisso da Misericórdia de Lisboa, de 1618, adoptado como se fosse o compromisso interno das muitas dezenas de misericórdias que se formaram nas principais povoações portuguesas de Norte a Sul e de Ocidente a Oriente; não deixaram de ser também comuns às estruturas corporativas, cujos regimentos das artes mecânicas decalcaram as disposições seguidas na capital do Reino, para só se referir dois exemplos concretos e irrefutáveis. As determinações do Desembargo do Paço, mesmo a milhares de quilómetros, eram respeitadas com rigor pelos oficiais régios, como transparece, como um exemplo tirado, do processo de constituição urbana da “vila de Magé”, no antigo arraial do mesmo nome, em 09.06.1789, nas


circunvizinhanças da cidade do Rio de Janeiro1, obedecendo a uma tramitação processual donde constam as diversas solenidades regimentais: “Auto de abertura de Pelouro para Juízes e Oficiais que hão-de servir no corrente ano e Juiz de Órfãos trienal ” e respectivo “Auto de Posse e Juramento”; “Auto de Demarcação e Declaração de Limites”; “Auto da Criação de vila e Levantamento do Pelourinho”; “Auto de Posse e Juramento dos Tabeliães e Escrivão do Juízo dos Órfãos” e autos de “Posse e Juramento do Almotacel” e do “Meirinho do Juízo dos Órfãos”2. Desde os meados deste século XVIII, as provisões régias vinham a ser instruídas com a recomendação de que as implantações não atentassem contra a salubridade pública, fossem possuidoras de boas águas e lenhas, devendo reunir uma praça centralizada com o pelourinho, Casa da Câmara, Cadeia e Audiências, com ruas largas e direitas e reserva duma área bem dimensionada para a Igreja e demais oficinas públicas3. O órgão administrativo do novo município ficou constituído por dois Juízes, três Vereadores, um Procurador, um Juiz de Órfãos trienal e um Tesoureiro do Concelho e um Escrivão. A formalização da criação da vila foi presidida pelo Ouvidor e Corregedor da comarca, Dr. Marcelino Pereira Cleto, que meteu de ajudas de custo seis dias a 2$400 réis, perfazendo o total de 14$000 réis e foi iniciada com o levantamento e verificação do Pelourinho, que continha “todas as insígnias competentes” e de três aclamações: “Viva a Rainha Nossa Senhora Dona Maria Primeira de Portugal”, findas as quais se ergueu o Pelourinho e “houve o dito Ministro por formada esta nova Villa”. O Pelourinho ou Picota aparece ligado à simbologia da autonomia dos grandes aglomerados urbanos europeus da Idade Média e está particularmente referido nas “Posturas de 1145 de Coimbra”, data anterior ao reconhecimento oficial da independência política de Portugal4 e premonitória da elevação desta cidade a primeira capital da recémformada nação do Ocidente da Europa por El-Rei D. Afonso Henriques, em substituição da capital condal de Guimarães dos seus progenitores, como o local de expiação pública das transgressões jurídicas ou deliberações das assembleiasgerais ou cabidos dos chefes e dignitários do Poder Municipal, conhecidos vulgarmente sob o nome genérico de “Homens Bons”. 1 - Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Pac.3-Div., Caixa 02627. 2 - IDEM. 3 - Vasco da Costa Salema in “Pelourinhos do Brasil”, Soc. Histórica da Independência de Portugal, Lx. 4 - 1179 -DATA DA BULA PAPAL “MANIFESTATIS PROBATUM”.

No Pelourinho passaram até ao fim do “Antigo Regime”5 a ser proclamados pelo Porteiro do Concelho e afixados os editais das leis e posturas e, paralelamente, aplicadas as penas previstas pelos Senados Municipais e crimes não capitais, reservados para a Forca, não sendo de estranhar encontrar ali acorrentado um sapateiro com um baraço ao pescoço com um par de sapatos na extremidade, por ter ousado infringir a tabela de preços ou um comerciante por não ter o côvado, balança ou pesos aferidos pela medida do concelho. Só os Mestres Sapateiros, no grande mundo de mesteirais de Quinhentos, gozaram da deferência muito especial, concedida por El-Rei D. Manuel I, de isenção da ultrajante pena de exposição no Pelourinho, substituída por multa, mas com as “Ordenações Filipinas” esse privilégio foi revogado e ninguém das artes mecânicas ficou isento desta punição. O Ofício dos Atafoneiros ou Moleiros, patrocinado por Santo Antão, cuja capela estava erecta na “Igreja do Colégio” da Companhia de Jesus, então os dirigentes espirituais do Império, muito instaram do Senado da Câmara de Lisboa para que isentasse estes confrades da pena da Exposição no Pelourinho, mas nem tão influente patrocínio concorreu para a excepção da antiga tradição expiatória, cujo Síndico municipal manteve: “pela primeira vez se recorre na pena pecuniária nela contida e pela segunda vez na dita pena em dobro e estará na Picota [Pelourinho] como na Postura se contem e pela terceira vez além das ditas penas será açoutado [no Pelourinho] pela dita pena corporal (...) em Lisboa 3 de Julho de 16296.

Fig. 1 – O Pelourinho do Rio de Janeiro, na primitiva Praça da Aclamação7

5 - Designação histórica que assinala o Absolutismo Monárquico, em geral. 6 - Regimento do Oficio dos Atafoneiros, in “As Corporações dos Ofícios Mecânicos - Subsídios para a sua História”, de Franz-Paul Langhans. 7 - Jean Baptiste Debret, in “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, 3 vol., S. Paulo, 1954.

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O Pelourinho implantava-se no rossio ou praça principal da povoação, como futuro centro cívico da actividade social e administrativa do Município, próximo da igreja matriz ou templo religioso principal da paróquia, quase sempre defronte da Casa da Câmara do Senado, constituída de rés-do-chão, com janelas laterais gradeadas, para a Cadeia e de segundo piso ou sobrado para salão de reuniões da Vereação, Tribunal, com duas ou três pequenas salas contíguas de apoio para secretaria e aposentadoria do juiz de fora, que presidia à vereação municipal e às funções de presidente do tribunal. A proximidade da Igreja da Casa do Senado da Câmara/ Cadeia permitia o conforto espiritual dos presos, que podiam, ainda que a certa distância, ouvir Missa e outras festividades religiosas. Apresentava o Pelourinho a configuração duma erecta coluna de pedra lavrada, fixa no solo a um pequeno maciço redondo ou quadrangular, delimitado por degraus, cujo número obedecia às exigências topográficas e nunca aferidores da potencial hegemonia administrativa e quadro de vereadores, como alguns historiadores pretendem, erradamente, interpretar, mostrando na extremidade as armas nacionais ou brasão da povoação ou do donatário do respectivo município, que tanto podia ter a qualificação de Couto ou Honra, com menos frequência, Concelho ou Vila, com mais vulgaridade, e Cidade. O Pelourinho ou Picota passou a ser descrito pelos populares e que alguns historiadores transpuseram para as monografias, como símbolo do absolutismo, segregação e pena de morte, em nítida confusão com a Forca, onde eram, efectivamente, executadas as penas capitais, pelo que, na maioria dos países, foram sistematicamente destruídos no período mais agudo dos movimentos de libertação sóciopolíticos ou movimentos populistas, mormente com a queda progressiva do Antigo Regime na Europa. Na vizinha Espanha, os pelourinhos foram mandados destruir pela Corte de Cádiz, em 26.05.1813 e como a directriz não tivesse atingido os seus totais objectivos, no ano de 1837, a Rainha D. Maria Cristina, voltou a promulgar a destruição de “todos los signos de vasallaje”8. Em Portugal, esta barbárie patrimonial e artística, pois alguns deles eram verdadeiras jóias de escultura, só foi iniciada depois de 1834, por iniciativa ou estímulos rancorosos. O da cidade de Lisboa, já arrancado, foi salvo à última hora de

embarcar para Paris, aquando da retirada do Comandante chefe Junot no armistício que se seguiu às primeiras Invasões Francesas. Na cidade do Rio de Janeiro, elevada a Corte Portuguesa dos anos de 1808 a 1821, ainda em 1820, estava colocado o Pelourinho, monumento emblemático da força representativa do Municipalismo local, a dominar a vasta “Praça do Rossio”, tendo a esbelta coluna de granito encimada uma esfera manuelina de cobre dourado. Mais tarde, o local passou a ser conhecido como “Praça da Aclamação” e actualmente, como “Praça Tiradentes”. Entendemos provável, que, inicialmente, estivesse implantado junto do “Arco do Teles”, na Praça XV, réplica brasileira do “Terreiro de Paço”, de Lisboa, onde se encontrava estabelecido o antigo Senado da Câmara, destruído durante um grande incêndio oitocentista (cerca de 1790), no lado oposto ao futuro “Paço Imperial”. A partir das festividades do casamento do Príncipe D. Pedro com D. Amélia, em 1830, o símbolo de autonomia municipal foi removido para a “Praça do Capim”, agora inexistente devido à abertura da Av. Presidente Vargas, que levou a Fiscalização de obras do Senado da Câmara, em 28.02.1834, a protestar e a requerer a sua transferência por se fazerem ali “continuados despejos, não obstante a vigilância do respectivo guarda”9. O pintor-historiador Jean Baptiste Debret, na prancha 45 do vol. III, deixou um desenho aguarelado do antigo Rossio (Fig.1) a fixar a elegância deste importante marco artísticomonumental, entretanto desaparecido, anotando que tal tipo de emblema estava divulgado em todas as cidades do interior do Brasil “simplesmente representado por um grande poste de madeira pintado de vermelho, de uma altura de vinte pés mais ou menos e em cuja extremidade um enorme facão, todo de ferro, fincado horizontalmente aparenta de longe os braços de uma pequena cruz, um dos quais formado pelo cabo e o outro pela ponta saliente e larga da lâmina”. O pintor francês, que viveu na corte do Rio de Janeiro, inicialmente na do soberano português D. João VI e depois, com a independência da Colónia, na do I Imperador do Brasil, D. Pedro, com a publicação da sua obra em França entre 1834 a 1839, foi durante anos considerado incómodo pela sociedade e meios académicos brasileiros pelo realismo das suas gravuras e textos explicativos dos costumes e cenas dos escravos, negros e ameríndios.

8 - Felipe M. Olivier López-Merlo, in “Rollos y Picotas de Guadalajara”.

9 - “Pelourinho”, in Arquivo Geral do RJ, cota 47-2-44.


A obra de Jean Debret é imprescindível para conhecer os últimos anos da história do colonialismo do Brasil. Todavia, o pintor-historiador deixa entrever alguma confusão entre os Pelourinhos, símbolos do Municipalismo, e os Paus de Paciência, onde eram chicoteados os negros fugitivos, desobedientes ou criminosos, que, segundo este professor e académico francês, “existem em todas as praças mais frequentadas da cidade (do Rio de Janeiro) com o intuído de exibir os castigados que são em seguida devolvidos à prisão”. Conhecemos no Brasil, ainda bem conservados, de origem colonial portuguesa, os “Pelourinhos” das cidades de Mariana, MG, S. João del Rei, MG, Igarassu, PE, enquadrado na antiga Câmara Municipal, e Alcântara, MA, mas é possível haver alguns mais em réplicas museológicas ou em reconstrução. Os “Paus de Paciência” destinavam-se às execuções públicas, onde os escravos eram amarrados, que, segundo Jean Debret, a cada chicotada se erguiam nas pontas dos pés, evidenciavam o polimento dessa fricção que “se encontra em todos os pelourinhos das praças públicas”.

o pau de paciência das execuções esclavagistas com desenho bem diferenciado dos pelourinhos europeus (Fig.2). As tiras de couro da chibata arrancavam, ao primeiro golpe, a epiderme e o sangue amolecia rapidamente as tiras de couro, obrigando à troca amiúde de chicote. Ao fim de 12 a 30 chicotadas era necessário lavar a chaga com pimenta do Reino e vinagre, para cauterizar a carne viva e evitar a putrefacção, rápida num clima quente, pormenoriza o probo investigador como informação supletiva, dando o desenho dos chicotes pousados perto do carrasco em pleno acto executório. Em certos municípios do Brasil pós-independência foram introduzidas “palmatoadas” em substituição de penas de açoite, multas e prisão quando as transgressões eram cometidas por indivíduos Negros, como se verifica no art.º. 11 da Lei 62, de 21.10.1879, da cidade da Telha, no Estado de Ceará10. O pintor Jean Debret retratou uma sapataria carioca11, em que o Mestre, um homem pardo, pretensamente de descendência portuguesa, casado com uma mulher crioula, que sobraça um bebé, castiga com a palmatória um dos seus aprendizes negros (Fig.3).

Fig. 2 – Execução pública no “Pau da Paciência”, debaixo da vigilância policial. No chão, os diversos tipos de chicotes utilizados no castigo

Os pelourinhos coloniais, em pedra dura e no acabamento rugoso da picola, não podiam mostrar o polimento que o académico francês refere nos paus de paciência, cujas execuções foram intensificadas ou restabelecidas, ainda segundo o pintor-historiador, com todo o rigor em 1821, com a independência do Brasil. Aliás, a Prancha 45 do vol. II mostra

Fig. 3 – A sapataria no Rio de Janeiro nos começos do Império do Brasil, de Debret

10 - “A Escravidão no Ceará”, Berenice Abreu de Castro Neves, ed. Museu do Ceará, Fortaleza. 11 - “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, Prancha 29, vol. II.

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Muitos Estados do Brasil contemporâneo, reflectindo uma moda internacional divulgada por jovens comissões progressistas de Direitos e Igualdades humanas empurradas por movimentos políticos, alguns até trazendo à colação as touradas e direitos à vida dos animais, empolgam nas diversas manifestações retrospectivas da emblemática/condenação colonial, sobretudo de origem ibérica, o Correctivo da Palmatória, mas ao contrário daquilo que pretendem sugerir ter havido um sistemático e ignóbil método repressivo contra o negro -, desmentem, pelo contrário, tal pressuposto e testemunha mais uma relação interactiva, quase ameninada e de intuitos pedagógicos dos colonos com as populações menos aculturadas. O simbolismo dessas muitas exposições coloniais brasileiras tem ignorado e, infelizmente, com pouca ingenuidade e rigor históricos, que muitos anos depois de extinta a hegemonia colonial portuguesa, as Forças Armadas dos grandes países conhecidos como baluartes da “Liberdade”, mantiveram o sistema abominável da “Chibata” do passado abolicionista e descrito por Debret, no seio da disciplina militar, nomeadamente a França, até 1860; os Estados Unidos, até 1862; Alemanha, até 1872; e a Inglaterra, sempre tão pronta a reivindicar a iniciativa da Igualdade e da Democracia no mundo, até 188112… O uso discricionário e desumano das penas corporais na marinharia e principalmente a que subsistiu na Marinha Brasileira gerou o pronunciamento do Rio de Janeiro, de 1910, conhecido como da “Revolta da Chibata”, envolvendo quatro couraçados, três cruzadores e um navio blindado, fazendo correr tinta no mundo, desde a Europa aos Estados Unidos, consagrando como herói o praça preto João Cândido, o “Almirante Negro”, como chefe das “reivindicações que levaram os marinheiros à Revolta da Chibata (que) iam muito além da extinção do castigo inevitavelmente associado à escravidão”13 Em Portugal, no que concerne ao castigo pedagógico da Palmatória, que nada tem a haver com o desumano correctivo da chibata, milhares de crianças, até a nossa antepenúltima geração, terão dado e recebido “bolos” ou palmatoadas nas palmas das mãos com estas “Meninas de Cinco Olhos”, como em alternativa se chamava às palmatórias em calão 12 - “Águas Revoltas”, de Hélio Leôncio Martins, in “Revista de História da Biblioteca Nacional”, Rio de Janeiro, Abril de 2006. 13 - “Contra a chibata, canhões”, de Álvaro Pereira do Nascimento”, in “Revista de História da Biblioteca Nacional”, Rio de Janeiro, Abril de 2006.

dos estudantes das primeiras letras, por erros de ditado ou faltas de deveres escolares, de tal modo generalizado, que, como símbolos da educação juvenil, foram adoptados pelos formandos do magistério primário, que guarnecidos de fitas coloridas oferecidas e subscritas pelos padrinhos e amigos, eram benzidos na Missa colectiva de fim do Curso, numa praxe estudantil ainda seguida na extinta Escola do Magistério Primário de Aveiro, na década de 60 do séc. XX (Fig.4).

Fig. 4 – A palmatória-símbolo do estudante do Magistério Primário de Aveiro


Como em qualquer recanto do Reino e em todos os ramos das actividades económicas, só era permitida a abertura de lojas para o fabrico e venda de calçado aos oficiais do Ofício de Sapateiros previamente examinados e designados na hierarquia profissional por “Mestres”, sendo uma das funções do “Almotacel” das Câmaras Municipais fiscalizar a actuação de todos os oficiais das artes mecânicas. No Senado Municipal da cidade de S. Salvador da Baía, que foi a primeira capital da Colónia do Brasil, pelo menos desde 23.07.1644, ajuramentavam-se dois Juízes do Ofício de Sapateiros para que “fizessem o que convém ao serviço da dita Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, o que prometeram fazer e se lhe concedeu pudessem examinar na forma do estilo”14. Igual procedimento normativo verifica-se pela acta de 23.01.1796, elaborada pelo Escrivão José Rodrigues Silveira nas “Casas da Câmara” da mesma cidade, que registou a nomeação de um primeiro Juiz dos Sapateiros a José do Canto, de um segundo a Manuel José de Melo, ambos moradores nos Caldeireiros e para Escrivão do Ofício a João José de Almeida, dos Arcos, em Santa Bárbara, por que“concorrem neles os requisitos necessários”15. O Senado desta cidade, aliás em respeito pelas directrizes regimentais metropolitanas, disponibilizava um livro brochado para anotação das Cartas de Exame concedidas na sua área jurisdicional e onde se lançou, em 14.03.1810, a Carta de Exame do Oficial Sapateiro Francisco José da Costa, passada na vila de Santo António do Recife, da Capitania de Pernambuco, que transferindo-se para a Baía, tal como se procedia no continente europeu, era obrigado a averbar no Senado da nova área de trabalho o respectivo certificado profissional, sem o qual não podia exercer a profissão16. Nos fins do séc. XVII, mais propriamente em 22.11.167317, na capital da Colónia brasileira, o Juiz ordinário, Vereadores, Procurador do Concelho, Juiz do Povo, Mesteres (representantes das actividades económicas eleitos pela “Casa dos Vinte e Quatro”agregados à Vereação do Senado Municipal) e os Juízes dos Ofícios Mecânicos juntaram-se nas Casas da Câmara com o objectivo de regularem as insígnias e antigualhas “com que se ajuda a celebridade e festa 14 - “Livro Primeiro – 1641 a 1649”, Arquivo Histórico da Prefeitura de S. Salvador da Baía. 15 - “Oficiais Mecânicos – 1765 a 1798”, Arquivo Histórico da Prefeitura. 16 - “Livro 1464-Cartas de Exame de Oficiais Mecânicos”, ibidem. 17 - “Atas da Câmara- V Volume”, da Prefeitura do Município da Baía.

que a Deus e seus santos faz a devoção Cristã”, ficando instituído: “O Ofício de Carpinteiro daria a bandeira, que costumava dar e a armação de madeira para a “Serpe” em conjunto com os Ofícios dos Marceneiros e dos Torneiros; o Ofício de Alfaiate a bandeira costumada e o pano que cobre a Serpe, pintado e aparelhado, mantendo-o e conservando-o à sua guarda, em colaboração com os Carpinteiros, Marceneiros, Torneiros e os Homens Negros, que carregam com a Serpe; ao Oficio de Sapateiros competia a bandeira própria e o “Drago”, que sempre deram; o Oficio dos Pedreiros, a bandeira que mandaram fazer à sua custa; o Oficio dos Tintureiros, com Sombreiros [Sombreireiros], Frigueiros (?), Funileiros e Tanoeiros darão uma bandeira e quatro cavalinhos fuscos; o Oficio dos Padeiros, com Confeiteiros, dois gigantes, uma giganta e um anano, que o povo conhecia por Pai dos Gigantes; o Ofício dos Ferreiros, com Serralheiros, Barbeiros, Espadeiros e Correeiros aglutinados na Confraria de S. Jorge, o guião do costume, o santo de vulto na charola, cavalo armado com pajem, alferes, trombeta e seis sargentos da Guarda, bem vestidos; as Vendeiras de Porta, Taberneiros e Taberneiras quatro danças, entrando nela a de Esparteiro”. O incumprimento das cláusulas desse Acordo corresponderia a 6$000 réis de cadeia, que reverteriam para a Câmara. O documento mostra um averbamento, datado de 20.09.1713, a declarar que o Ofício de Botoeiros se agregou aos Tanoeiros. O mesmo Termo ou Regimento das Procissões revela, em leitura atenta, um desfasamento com a hagiografia seguida no Continente face às directrizes da Contra-Reforma, com excepção do “Ofício dos Ferreiros” e afins, que mantinha o carismático S. Jorge a cavalo, que remontava ao fundador do corporativismo e da Dinastia de Avis, D. João I; contudo, esta discordância não é casual e deve ser integrada na indisponibilidade tradicional na aceitação da estrutura corporativa pela Companhia de Jesus, dominante em absoluto da política colonial brasileira até ao governo de Pombal. Sendo os regimentos da Procissão do Corpo de Deus verdadeiros organigramas da sociedade portuguesa, este “Termo de 1673”, regulando todas as procissões da Baía, reflectia o grau de estratificação social das artes mecânicas da Colónia, assinalando a inferioridade dos Homens Negros, que

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só integravam os grandes actos cívico-religiosos protegidos pelos sectores dos mestres Carpinteiros, do Mobiliário e Alfaiates, ainda que na subalternidade do transporte da “Serpe”. Nas procissões do Império e essencialmente na de “Corpus Christi” eram severamente punidas as representações faltosas das artes mecânicas, que deviam estar decentemente vestidas e com as insígnias e bandeiras na ordem de lugar descritas no respectivo regimento. O Ofício dos Sapateiros, que desde o séc. XVI manteve na capital do reino gravadas no respectivo estandarte as figuras de S. Crispim e S. Crispiniano, tomou da tradição popular o apelido de Bandeira de S. Crispim. Mas foi com a nova regulamentação, mais nominal do que estrutural, da “Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa”, promulgada pelo Alvará Régio de 03.12.1771, que ao Ofício ou Grémio dos Sapateiros se denominou “Bandeira de S. Crispim”, consagrando, com carácter oficial, o nome do glorioso mártir emigrante italiano dos Sapateiros na constituição corporativa do Antigo Regime. O Municipalismo oferecia no Império Português uma estrutura que proporcionava ao Patronato ou Sector Económico, formado pelas forças produtivas da nação detidas pelos mestres ou patrões de serviços e comerciantes, apelidados de “Mecânicos”, uma relativa intervenção na vida política em contrapoder da Nobreza, que isenta de contribuições, constituía a potencial fonte de recrutamento da Vereação dos Senados Municipais no longo período conhecido por Antigo Regime, com a qual as artes mecânicas alcançaram uma certa hegemonia representativa na sociedade portuguesa, que alguns historiadores designaram, impropriamente, por classe do Povo, como que se em algum estádio da Civilização os interesses patronais coincidissem com as aspirações e vida dos assalariados e dos menos afortunados… Com origem na iniciativa do fundador da Dinastia de Avis (D. João I), ainda na Idade Média, nos principais centros urbanos do Reino que concitavam grande actividade artesanal e comercial, uniram-se as principais profissões em confrarias ou grémios, inspiradas nas guildas do Norte da Europa, nomeando os ofícios com grande número de praticantes dois representantes para uma câmara corporativa, a que se chamou de “Casa dos Vinte e Quatro”; as profissões com menor número de profissionais nomeavam um só elemento. Para orientar estes delegados, que pelo Alvará de 27.09.1647 passaram a ser casados e com 40 anos de idade no mínimo,

escolhiam entre si um presidente com funções honoríficas, designado por Juiz do Povo. A Casa dos Vinte e Quatro reunia em plenário em 21 de Dezembro, sob o patrocínio do Apóstolo S. Tomé, congregando os agentes das entidades patronais escolhidos pelos respectivos grémios /confrarias / irmandades / bandeiras /ofícios, designações que variaram com os tempos, mas de comum significado, para eleger os delegados à Vereação da Câmara local, conhecidos como Mesteres. Estes representantes patronais, nas sessões públicas do Senado Municipal, assentavam-se em bancos mais baixos do que os restantes membros Nobres da Câmara, presidida por um Juiz de Fora de nomeação régia, bacharel ou licenciado em leis, mas, na generalidade, nos assuntos de gestão corrente e económica conferiam-lhes igualdade de voto. No Senado da Câmara de Lisboa havia quatro Mesteres ou representantes dos ofícios-mecânicos e nas restantes povoações do Reino havia dois. Nas cidades ou vilas de menor expressão comercial e manufactura as “Casas dos Vinte e Quatro” estavam reduzidas a “Casa dos Doze”. No Reino, não obstante a carência de um estudo sistematizado a nível nacional, formaram-se Casas dos Vinte e Quatro nas seguintes povoações: Lisboa, Porto, Coimbra e, possivelmente, em S. Salvador da Baía; e Casas dos Doze em Tavira, Vila Viçosa, Arraiolos, Borba, Santarém, Lamego, Viseu e Guimarães. A Bandeira de S. Crispim, pela designação Pombalina ou Ofício dos Sapateiros pela denominação tradicional, originou quase sempre a existência duma extensão de índole religiosa, conhecida por “Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano”, com estatutos ou compromissos sujeitos a uma dupla aprovação de El-Rei e do titular diocesano (Bispo, Arcebispo ou Cardeal), com que se processava o controlo não só sobre a componente política, mas também a disciplina ética e profissional dos associados, quer no aspecto social quer religioso. Cabia, sob a égide das Irmandades de S. Crispim e S. Crispiniano, a eleição do Juiz e Escrivão do Ofício dos Sapateiros, cometendo ao Senado da Câmara Municipal da respectiva área administrativa ratificar e dar-lhes posse. Nas atribuições dos referidos Juiz e Secretário estava o avaliar da formação profissional dos candidatos a Oficiais Examinados ou Mestres, em substituição dos “Examinadores do Ofício” na sua eventual inexistência, propondo ou negandolhes a “Carta de Exame” a conceder pelo Senado da Câmara


Municipal, a par das funções de fiscalizar a qualidade das peles, modelos e manufactura do calçado e da representação sectorial nos actos cívicos e religiosos. O título “Carta de Exame” constituía condição indispensável para abrir estabelecimento, recrutar “Obreiros” e tomar “Aprendizes”, bem como iniciar o fabrico e a venda directa dos produtos, conferindo o acesso à Licença e Fiança anuais do respectivo Senado Municipal, o que era, então, comum a todas as profissões mecânicas, salvo o da profissão de Mestre Sapateiro, que estava dispensado deste requesito, segundo privilégio consagrado por uso e costume em Portugal desde tempos imemoriais. Nas localidades onde se fundava uma Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano os mestres ou proprietários das lojas de Sapateiros e Curtumes tinham obrigatoriamente de se quotizar para sustento da dita confraria, mas só os que estavam virgens de Infâmia ou Raça Infecta, depois de uma averiguação aprofundada da “Pureza de Sangue” ou estado de “Cristão Velho”, gozavam a qualidade de Confrade ou sócio de pleno direito, como de ser eleitor e de ser elegível para os cargos directivos ou de representação profissional. Os patronos da Irmandade dos Sapateiros, segundo o que estava tradicional e canonicamente reconhecido18, foram dois irmãos aristocratas, oriundos da cidade de Roma, um mais velho do que o outro, ambos com cabelos encaracolados, que nos primeiros tempos do Cristianismo abandonaram a sua pátria e haveres e apostolaram na antiga Gália, hoje França, difundindo a palavra de Cristo. Todavia, bibliografia italiana recente e próxima do Vaticano19, ainda que considere S. Crispim e S. Crispiniano “irmãos” no martírio e na fé, nega, a partir dos últimos anos, o parentesco consanguíneo dos Mártires20. Estas duas figuras do Martirológio Cristão viveram do trabalho comum de sapateiros, numa lição de humildade e renúncia dos bens materiais e regalias que possuíam, desafiando com a mensagem do Salvador as leis que na altura provinham de Roma, ainda não convertida ao Catolicismo, acabando por morrer decapitados em Soissons (França), 18 - Louis Réau, in “Iconografie de L´Art Chretien”, Presses Universitaire de France, Paris e“Iconografia de los Santos”, de Juan Ferrando Roig, Ediciones Omega, S.A,Barcelona. 19 - “Santi & Calzolai –Storia del Consorzio dei Santi Crispino e Crispiniano e dell´industria vigevanese”, com base na versão original intitulada “I Santi Crispino e Crispiniano patroni dei calzolai”, do Pároco da cidade de Vigevano, D.Piero Maggi, de 1987. 20 - Louis Réau, in “Iconografie de L´Art Chretien”.

depois de um cativeiro no decorrer do qual lhes infligiram torturas horríveis, sendo as mais divulgadas a do caldeirão de chumbo derretido no qual foram introduzidos desnudos e do sacrifício das agulhas cravadas nos sabugos das unhas. Durante séculos, ficaram as respectivas cabeças guardadas como relíquias na Igreja de S. Lourenço, da cidade de Roma. Por iniciativa do pároco de Vigevano, D. Piero Maggi e autorização oficializada, em 28 de Setembro de 1983, pelo Vigário Geral de S. Santidade o Papa João Paulo II, as relíquias dos Santos Padroeiros dos Sapateiros recolhidas nesta Igreja de S. Lourenço, de Roma, foram transferidas para o Santuário da Santa Casa de Loreto, em Vigevano, sede do Consórcio Industrial de Calçados. A cidade de Vigevano, ao Norte de Itália e próxima de Milão, só no pós II Grande-Guerra concentrou o sector de Calçado italiano, organizando durante anos o certame da “Mostra Internazionale Calzaturiera” e daí ter ficado conhecida como Capital do Calçado de Itália; com o domínio da moda, fabrico e exportação actuais do calçado italiano ascendeu a Capital Mundial do Calçado de hoje. Adoptados na Idade Média como patronos dos Sapateiros da Europa e considerados como subpadroeiros de França, os Santos Crispim e Crispiniano foram introduzidos em Lisboa pelo Coadjutor do Cardeal D. Henrique para a Arquidiocese de Évora, em 1563, D. Martim Boliargo, ex-estudante em Paris e depois Bispo de Fez e Prior da Igreja Matriz de S. Mamede de Lisboa, enquanto este príncipe do Renascimento cogovernava o Império com a Rainha D. Catarina, avó do então imberbe rei D. Sebastião, que morrerá em Alcácer Quibir, em Marrocos, quando pretendia implantar um Reino Cristão em todo o Norte de África. I.II - O CULTO DE S. CRISPIM E S. CRISPINIANO NO RIO DE JANEIRO A alusão mais antiga ao culto de S. Crispim e S. Crispiniano no Rio de Janeiro colhe-se da atribuição da data da construção do altar onde se colocaram as imagens destes mártires patronos na primitiva Igreja matriz da Candelária, em 25.10.175021, que, sendo correcta, se enquadrará no período da governação de El-Rei D. João V, coincidente com o pico 21 - Resenha histórica da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Rio de Janeiro, do Pe. Raimundo Assis Queiroga – fotocopiado.

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da mineralização aurífera brasileira, que lhe permitiu assumirse não só como mecenas da Igreja mas também reformador administrativo do Reino, porquanto o culto europeísta de S. Crispim e S. Crispiniano, duma riqueza humanística baseada numa mística de solidariedade medieval, afrontava os interesses político-religiosos dos jesuítas dominantes na Colónia durante séculos. A congregação da Companhia de Jesus pretendeu, ainda na metrópole, nos finais do século dezasseis, reformular as “Confrarias dos Oficiais Mecânicos”, de inspiração medieval europeia, com dirigentes afectos à sua comunidade religiosa, sem diferençar os múltiplos sectores produtivos e a especificidade das hierarquias profissionais, fazendo tábua rasa dos indiferenciados, chamados “Obreiros”, serviçais assalariados sem reconhecimento de qualificação profissional, dos “Aprendizes” das artes-mecânicas, com pouco mais de doze anos de idade e dos “Oficiais”, com exame, distinguidos com o título de “Mestres” e patrões das lojas e estabelecimentos. Os Mestres ou proprietários das lojas fabris ou comerciais formavam as actividades económicas sustentáculo da orgânica tributária do Reino, num contexto de privilégios em que as Classes da Nobreza e do Clero estavam isentas de impostos. Por isso, só aos oficiais mecânicos elevados a Mestres era autorizado estabelecer confrarias corporativas com assento nas “Casas dos Vinte e Quatro”ou dos ”Doze”, constituídas por delegados dos respectivos sectores económicos com mais de quarenta anos e obrigatoriamente casados, que seleccionavam os seus representantes para uma carreira política conhecida por ”Mesteres” junto das Vereações dos Senados, formadas exclusivamente por Gente Principal da terra e de reconhecida Nobreza, presididas por um Juiz de Fora. O Ofício dos Sapateiros carioca, dinamizando a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Rio de Janeiro no respeito das directrizes económico-corporativas seculares da Metrópole, distinguiu-se pelo seu grande protagonismo na protecção dos confrades fabricantes do Calçado e na preservação das boas técnicas dos Curtumes, combatendo a venda pelas ruas e os especuladores, travando a mão-de-obra indiferenciada, escrava ou das Reduções ou Missões jesuíticas, curtimenta de peles e o comércio paralelo, numa amálgama de concorrência incontrolada, tradicionalmente fraudulenta para o circuito produtor/consumidor e para a economia interna das nações.

Em 12.08.1764, os Mesários e demais confrades de S. Crispim e S. Crispiniano reuniram-se na antiga Igreja da Candelária para discutir mais uma vez o flagelo da venda incontrolada de calçado pelas ruas da cidade, entretanto proibida pelo artigo 18º. da Lei de 24.05.1749 com a pena de 100$000 réis, reincidência em dobro e seis anos de degredo em Angola, deliberando, por unanimidade dos confrades, que as obras encontradas à venda na rua fossem apreendidas, dadas por perdidas e aplicada uma multa aos prevaricadores de 6$000 réis. Para tornar mais eficaz esta medida, considerando que o Compromisso da própria Irmandade só impedia, pelo Artº. 2º., “que não se examine do dito ofício Pardo ou Preto cativo”, decidiram acrescentar ao regulamento interno a disposição de que “nenhum Pardo ou Preto cativo tivesse loja pública ou particular com pena de 6$000 réis, revertendo 3$000 réis para o Senado da Câmara e 3$000 réis para a Irmandade por cada vez que forem compreendidos na dita culpa”, medida que parece redundante porque a proibição estava implícita no clausulado anterior, já que a Lei geral negava a actividade económica a quem não possuísse a respectiva habilitação profissional. Com a força da Lei das prerrogativas das estruturas corporativas, que consideravam as deliberações tomadas em assembleias-gerais ou cabidos das irmandades, logo que ratificadas pelos Senados, integrantes dos regimentos dos respectivos Ofícios e equivalentes a Posturas Municipais, os confrades sapateiros cariocas, na mesma reunião, acrescentaram que “os Mestres do dito Ofício”, sob a pena anterior, não só não podiam ter mais de dois aprendizes, sendo de lojas grandes e somente um nas lojas pequenas e receber novos aprendizes sem que os primeiros terminassem o tempo completo e estivessem aptos a trabalhar como “obreiros”, como também os Mestres ficavam obrigados a “dá-los correntes” ou habilitados, dentro do prazo ajustado no contrato da aprendizagem, a celebrar com o pai do aprendiz, conforme era “uso na cidade de Lisboa”22. Só com a liberalização da sociedade portuguesa do Antigo Regime, operada no Governo Pombalino, foi possível, de forma institucional, aos Homens de Cor terem acesso ao título de Mestres e, assim, serem donos de estabelecimentos fabris e comerciais. 22 - “Livro dos Sapateiros”, in Arquivo Municipal da Prefeitura do Distrito Federal do RJ cota 50.1.12 Documento reproduzido na III Parte – Doc. N.º1.


É pois, em consequência da legislação promulgada por El-Rei D. José I, que vamos encontrar, no início do séc. XIX, na Corte portuguesa além-atlântico, estabelecidos ou arruados dezoito Sapateiros Pardos com oficinas/sapatarias na artéria atribuída aos fabricantes de calçado, na Rua Detrás do Carmo, da cidade do Rio de Janeiro, zona hoje histórica classificada a envolver o espaço do ex-Paço e Capela Imperiais. De acordo com as leis corporativas do Reino, os mestres sapateiros que não pudessem por alguma razão ser irmãos da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano eram contribuintes obrigatórios da mesma irmandade sem o estatuto de “Confrades” e, assim, impedidos de assumir funções não só na Mesa da associação religiosa, mas também de ascenderam à carreira política de homologação pelo Senado Municipal para os cargos de Juízes, Escrivães do Oficio e Mesteres. Na cidade do Rio de Janeiro, todavia, todas estas funções de representação socioprofissional, pela inexistência local da Casa dos Vinte e Quatro ou da Casa dos Doze, que jamais se terão formado e de cujo funcionamento dependia este escalonamento político-administrativo, eram preenchidos por nomes propostos pelo Senado, prática então vulgarizada no Reino onde não se constituíram estes agrupamentos profissionais, que muito afectou a expansão manufactureira portuguesa. Com a vinda da família reinante para o Rio de Janeiro, cedo se aperceberam os Sapateiros Pardos, pela proximidade das suas lojas, a cerca de cinquenta a cem metros da Corte, do tratamento humano do Regente e restantes familiares, cujo protocolo e relacionamento cortesãos não afastava ninguém, fosse qual fosse a raça e a cor da pele, honrando e condecorando os súbditos sem segregações e só atendendo aos méritos individuais, contradizendo, pela prática quotidiana, a disciplina da actividade do Ofício dos Sapateiros controlada pela Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano. Fundamentados neste juízo de valores, os dezoito Sapateiros de Homens Pardos da Rua Detrás do Carmo apresentaram, em 1809, um abaixo-assinado a Sua Alteza Real, tendo como primeiro subscritor Joaquim José Pinto23, a denunciar a desigualdade de direitos entre os associados da Irmandade de SS. Crispim e Crispiniano, dando como argumento o exemplo da Corte e o contraste que ocorria na Igreja da Candelária, onde estavam sediados os Sapateiros 23 - “Livro para Registo das Consultas que se fazem no Desembargo do Paço – 1808 a 1810”, in Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

com outras confrarias mecânicas, inclusive as corporações dos Ofícios dos Alfaiates e dos Ferreiros, aparentemente mais tolerantes no relacionamento profissional, que atribuíram ao facto do compromisso que geria a irmandade dos Sapateiros carioca não se encontrar homologado pela Coroa. Será, aliás, este o objectivo da petição dos Sapateiros Pardos da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Rio de Janeiro fotocopiada no histórico do Pe. Raimundo Queiroga24 e com base no qual o ilustre sacerdote concluiu que a fundação da irmandade de S. Crispim se devia a estes homens de cor, o que é claramente inverosímil, mas desculpável pela ilegibilidade e o não enquadramento do documento, que reproduzimos acompanhado da leitura paleográfica – III Parte25. O abaixo-assinado dos Sapateiros de Cor foi mandado anexar ao Compromisso, em 15 de Dezembro de 1809, para “Vista” do Desembargo do Paço. Ignora-se, contudo, o acórdão dos desembargadores e o despacho régio de tão subtil reclamação baseada na segregação das instituições e na acessibilidade protocolar e trato atribuídos ao Regente e Paço Imperiais. Coincidente com a tolerância rácica que se reivindicava e em proximidade de data, na velha capital da colónia, cidade de S. Salvador da Baía, no processo da escolha dos Juízes e Escrivães do Ofício dos Sapateiros, em 04.05.1812, eram nomeados para Juízes dois “Domingos de Tal”: um morador “debaixo do Dr. Elias” e outro “defronte a Porta do Calundra, ambos brancos” e um escrivão “Vicente de Tal, ele dito crioulo”26, cujos apelidos “Tal” substituíam o patronímico de origem desconhecida, indiciando não só que se ultrapassara a segregação profissional, mas também a exclusão no quadro político-corporativo. Que o protesto dos Sapateiros Pardos do Rio de Janeiro não deixou de desencadear uma reestruturação relevante do sector colonial do calçado é evidente, pois reescreveuse um novo Compromisso da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano carioca, que remetido ao Desembargo do Paço, obteve homologação pela Provisão Régia de 16 de Novembro de 181327. A Mesa da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano também elaborou a codificação das leis e deliberações dispersas sobre o sector económico do Calçado num regulamento 24 - Este caderno integra um directório litúrgico da Capela dos Mártires. 25 - in Arquivo Nacional do RJ, Pª. 3, Doc. 23, Caixa 289. 26 - in “Livro dos Oficiais Mecânicos”, Prefeitura de S. Salvador da Baía, ibidem. 27 - v. Documento Nº 2, na III Parte deste trabalho.

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inovado, que ficaria, sendo aprovado, o mais liberalizante do Império Português, vertido num manuscrito formato ¼, brochado com capa de couro, sob o título de: “Regimento do Governo Económico da Bandeira e Ofício de Sapateiro desta cidade do Rio de Janeiro”, subscrito por uma assembleia-geral de vinte e seis profissionais, em 02.02.1817. O conteúdo deste regimento, constituído por 45 capítulos28, que omite entretanto referências à sua homologação pela cadeia hierárquica do governo e cuja inexistência confirmamos pela pesquisa do Arquivo da Prefeitura, actas das Vereações e dos livros das Posturas do Senado Municipal da época, resultará, na nossa óptica, dum projecto de regulamento que não chegou a ser ratificado pelo Senado carioca, não obstante enquadrar-se no arquétipo regimental com o mesmo título aprovado pelo Senado da Câmara de Lisboa, em 19.11.1736 e que constituía para o sector o vade-mecum da legislação nacional. Da matéria renovadora e da menos comum do corporativismo do Antigo Regime que reflectia este projecto de regimento do Rio de Janeiro, destacamos os seguintes capítulos: O Capítulo 2º, que prescrevia que o Escrivão do ano antecedente seria nomeado Juiz; o Capítulo 3º, que o Juiz e o Escrivão do Ofício passavam a ser nomeados pela Mesa da Irmandade, sob a exigência de um currículo profissional e moral, de molde que permitisse a sua eleição para a “Casa dos Vinte e Quatro”, acaso esta viesse a estabelecer-se no Rio de Janeiro; o Capítulo 15º, defendia a elegibilidade dos confrades dependente da inscrição prévia na Irmandade e de qualidade sem ocupação infame; o Capítulo 28º subordinava a “Examinação” dos candidatos Pardos ou Pretos duma certidão prévia comprovativa da condição de livres e forros; o Capítulo 35º regulava a aprendizagem do ofício, obrigando a um registo de individuação dos aprendizes com a menção de Pátria, Pais ou Senhores; o Capítulo 41º proibia a venda de calçado novo ou usado fora das lojas; e o Capítulo 42º que só autorizava a venda ou contrato de calçado aos Oficiais examinados. O primordial deste reformador projecto de regimento revelava-se na abertura do quadro sócio-profissional do Reino, numa liberalizante iniciativa dos Mesários e Confrades da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano carioca, assente na acessibilidade dos Pretos e Pardos, desde que libertos,

ao Patronato dos Sapateiros nas condições dos Homens Brancos, aliás decalcando as directrizes da legislação Pombalina, cuja aplicação prática, com alguma reserva, entrevimos esboçadas no Município de S. Salvador da Baía, em 1812. Sendo sabido que a introdução de qualquer novidade profissional no complexo quadro administrativo dos Ofícios Mecânicos dependia da avaliação e ratificação do Senado Municipal, este esboço jurídico apresentava, todavia, uma incoerência no articulado da “Aprendizagem” dos adolescentes em estado de escravidão (Capítulo 35º referência a “Senhores”) por não se coadunar com a exigência de certificação de alforria na “Examinação” (Capítulo 28º), que um Senado assessorado por um Síndico ou presidido por um Juiz de Fora, habitualmente com formação jurídica, dificilmente homologaria. Esta incongruência formal reforça o nosso convencimento de que a regulamentação da Bandeira e Ofício dos Sapateiros do Rio de Janeiro nunca chegou a ser ratificada pela Vereação do Senado Municipal e jamais submetida a posterior apreciação do Desembargo do Paço. Parece-nos pouco credível que o Senado Municipal admitisse no mesmo diploma o protagonismo dos Sapateiros na criação duma “Casa dos Vinte e Quatro”, por passível de melindrar, por omissão, os restantes agentes dos crescentes e diversificados sectores económicos da comunidade carioca. Aos argumentos expendidos, acresce que o empenho democrático e anti-racista manifestados pelos mesários e confrades de S.Crispim e S.Crispiniano não se conciliava com a filosofia esclavagista que entretanto grassava entre a vereação do Senado Municipal do Rio de Janeiro. O Senado Municipal do Rio de Janeiro, nos inícios de Novembro de 182129, deliberara e enviara cópia da acta da respectiva sessão, sub-repticiamente, à Secretaria de Estado dos Negócios do Reino a requerer a anulação do “Aviso Régio”de 02.04.1813, que determinava como “abusiva a liberdade que se tem introduzido de se fazerem ocultamente e se venderem pelas ruas da Corte sapatos e todo o mais género de calçado”, prejudicando “obras aqui fabricadas e próprias de um ofício embandeirado, sujeito às Leis Municipais e regulado por um Compromisso” 30, com o argumento que esta directriz

28 - Códice Nº.773, acervo do ANRJ e a ele se refere Maria Beatriz da Silva, in “Vida Privada e Quotidiana do Brasil”.

29 - Vereanças do Senado da Câmara”, fls. 193, cota 16.3.25, in A.G.RJ. 30 - “Portarias Autênticas”, fls. 4, cota 47.4.60, Arquivo Geral da Cidade do RJ.


Régia constituía uma “ofensa manifesta da Lei e dos direitos de propriedade dos Senhores dos Escravos” 31!... A Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Rio de Janeiro, em representação do Sector do Calçado, indignouse com o conhecimento da tentativa sigilosa da revogação arbitrária do Aviso Régio e recorreu para Sua Alteza Real a contrapor não só a fundamentação invocada pela Vereação do Senado, mas também que as decisões tomadas pela Irmandade na defesa do Ofício dos Sapateiros sempre foram executadas no respeito pelas leis do Reino e pareceres prévios do Juiz de Fora e do Senado, que com despudor e em absoluto segredo, aparecia agora a desvincular-se da política do Desembargo do Paço, bajulando a corrente do capitalismo selvagem inerente aos grandes fazendeiros e senhores dos engenhos a favor da Escravatura. Foi neste ambiente de confrontação ideológica e de interesses, que opunha a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano ao Senado Municipal do Rio de Janeiro, que decorreu uma queixa apresentada pelo candidato a mestre Sapateiro, Francisco António Vieira, em 07.08.1822, que ao pretender examinar-se para abrir uma sapataria e ter pago na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano as devidas propinas e feito prova ao Juiz do Ofício com o respectivo recibo, “o embalou e congeminou com demoras”, sem lhe fazer o exame. Cansado de tanta espera, o reclamante, que diz ter a solidariedade do Escrivão e da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, recorreu ao Senado, mas o Juiz do Ofício demitiu-se. O Senado elegeu outro Juiz, de nome Joaquim José de Sousa, que rejeitou o cargo, sendo então nomeado para o substituir um novo Juiz do Ofício, José Vicente Guerra, que persistiu em “de forma alguma (...) a examinar o suplicante”32 . No último despacho vinculado pelo Senado, em 04.09.1822, o dito Juiz do Ofício aparece ameaçado com pena de procedimento. Estava-se a três dias da independência da Colónia do Brasil... O culto e as imagens dos mártires romanos padroeiros dos Sapateiros permaneceram na antiga Igreja da Candelária até 1889, ano em que por falta de condições económicas da Irmandade para enfrentar as despesas que lhe eram rateadas pela reconstrução deste esplendoroso templo inaugurado em 1898, da maior harmonia e concepção artísticas do rio de Janeiro, que orçavam em cerca de 600 contos da época, 31 - “Vereanças do Senado da Câmara”, ibidem, transcrito na Parte III, Doc. Nº.3. 32 - “Livro dos Sapateiros”, ibidem, transcrito na Parte III, Doc. Nº. 4.

transitaram, em 23.10.1889, para a Igreja de S. Joaquim, provisoriamente e para Capela própria, em 24.07.1921, construída de raiz na rua de Carlos Sampaio, n.º. 340, Rio de Janeiro, onde hoje se veneram33. I.III - A BONDADE REAL, AS CONFRARIAS DO ROSÁRIO DOS NEGROS E A ALFORRIA Foi característica dos soberanos portugueses da gesta dos Descobrimentos o dom da fraternidade humana para com as diversas etnias que se iam aglutinando à grande civilização europeia, no exemplo dos seus reais antecessores da reconquista do território ibérico ocupado pelos árabes e que passou a constituir a nação continental portuguesa. A Dinastia iniciada com D. Afonso Henriques concedeu às populações mudéjares subjugadas regulamentos especiais a defender os seus antigos costumes e cultura, que ficaram conhecidos como “Forais dos Mouros Forros”, subordinados à autoridade directa de El-Rei. Aos pretos arrestados na Costa da Mina, em consequência do projecto de investigação oceanográfica em busca do então desconhecido reino cristão do Prestes João, foi franqueada desde logo a entrada e a frequência dos salões da Corte de El-Rei D. João II, entretanto baptizados, ensinados a falar e a escrever o português e o latim34, sendo muitos deles encaminhados para a vida sacerdotal e evangelização, no ano de 1494, da Ilha de S. Tomé35, culminando com a sagração do primeiro Bispo Preto, em 1518 e sacerdote em 1520, D. Henrique, Bispo de Útica e Auxiliar da cidade e diocese do Funchal36, numa iniciativa inédita da História da Igreja e cuja prossecução religiosa foi alargada ao Continente Asiático, com a ordenação sacerdotal do primeiro padre indiano, em 155837. Com o rei D. Manuel I, as últimas etnias árabes e judaicas ainda não miscigenadas residentes no Reino foram integradas na sociedade em igualdade de cidadania nacional pela Lei de 01.03.1507 e para os contingentes de africanos, que chegavam ao porto de Lisboa nos porões das caravelas e considerados presas de guerra, foi criada pela Ordem de Cristo, 33 - Pe. Raimundo Queiroga, ibidem. 34 - “Os Pretos em Portugal”, do Pe. António Brásio, que cita o alemão Dr. Jerónimo Munzer, viajante do séc. XV. 35 - idem. 36 - “Verbo-Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura”, vocábulo “Henrique (Dom)” 37 - “Rotas da Terra e do Mar – Da Propagação do Cristianismo”, de João P. Oliveira Costa, edição do jornal “Diário de Notícias”, Lx.

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promotora dessa realização científica, na Igreja da Conceição Velha, nas traseiras do pombalino edifício do actual Ministério da Finanças, perto do Campo das Cebolas, uma pia para lhes dar o Sagrado Sacramento do Baptismo38, autorizado por Bula do Papa Leão X, de 07.08.1513, que transformava as “peças” humanas, tratadas como vulgares animais ou cativos de guerra, em pessoas e irmãos em Cristo numa sociedade intrinsecamente católica não obstante a diferença da cor da pele. Mais do que em nenhuma outra civilização da Europa, Lisboa permaneceu como capital, nesse período, de mais forte país do mundo, solidária com o culto do Espírito Santo39 e às regras do Antigo Testamento, que prescrevia o resgate dos escravos hebreus ao sétimo ano da escravatura com um dote pelo senhorio, num quadro legal que dava como saldadas as dívidas dos credores e extinto o tempo de cativeiro40, estimulando um clima sadio de convivência entre as diversas raças humanas que coabitavam o espaço nacional, conquanto o Papa Nicolau V, por Bula de 1510, autorizasse os portugueses a reduzir à escravidão os sarracenos, pagãos e os demais inimigos de Cristo ao Sul do Cabo Bojador e Nem, incluindo a Costa da Guiné. No Estado da Índia, em 1512, Afonso de Albuquerque ensaiava com soldados brancos de diversos países europeus sob o seu comando a mestiçagem com aborígenes, de modo que “no século XVI já em Goa residia um núcleo considerável de luso-indianos, que se manteve com características próprias até aos nossos dias”41, numa atitude inspirada na mítica de Alexandre o Grande e experimentada, duas décadas antes, pelo rei D. João II, no povoamento da Ilha de S. Tomé e Príncipe com adolescentes de famílias judaicas. A Carta Régia manuelina de 1515 concedeu a liberdade às escravas São-Tomenses e à sua descendência pelo envolvimento na colonização da respectiva ilha. Em 1517, outra carta régia manuelina estendeu a mesma liberdade aos escravos que serviram os povoadores na Ilha de S. Tomé. A legislação quinhentista portuguesa, condensada nas Ordenações Manuelinas, de 1521, obrigava todas as crianças negras escravizadas oriundas da Guiné nascidas em

Portugal a serem baptizadas nos dias comuns do baptismo dos filhos dos Cristãos e os menores de 10 anos compelidos ao baptismo sob pena de serem confiscados aos respectivos Senhores. Porém, os escravos, adultos maiores de 10 anos, só podiam ser convertidos ao Cristianismo mediante o seu prévio consentimento, ficando neste caso os respectivos proprietários, ditos “Senhores”, isentos de qualquer pena, desde que atestado pelo Pároco da freguesia que o escravo recusara a baptizar-se 42. No mais antigo regimento português dos Ofícios Mecânicos, o do Ofício dos Borzeguieiros e Sapateiros, de Lisboa, com sede no antigo Hospital de S. Vicente, junto à Sé Catedral, El-Rei D. João III, em 27.07.1532, numa rectificação da integração racial e religiosa operada no reinado do seu pai D. Manuel I, não autorizou que se mantivesse a referência a “judeus e mouros”, por “já não os haver”, declaração régia que transcende uma vulgar realidade social e configura uma decisão política profunda do mais complexo e enigmático reinado português43. Com o Decreto de 1539, El-Rei D. João III, que ficará conhecido na história como Piedoso, veio qualificar com um raro Estatuto de Nobreza a descendência derivada do citado povoamento insular das crianças judias, autorizando aos “mulatos honrados e casados de São Tomé o exercício de funções no Conselho” [Senado Municipal, cuja constituição era reservada à Nobreza]44, redimindo a eventual crueza de D. João II na precoce miscigenação dos negros com as duas mil crianças judias entregues à tutela de Álvaro de Caminha, nomeado governador de S. Tomé e Príncipe em 11.11.1493. Estas crianças, com idades compreendidas entre os 8 e os 10 anos, num contexto de longevidade média do homem em cerca de dois terços inferior à de hoje, foram contempladas, por dotação testamentária expressa por Álvaro de Caminha, com um escravo e uma escrava por cada grupo de cinco para “assegurar suas mantenças ou os dar a quem os governasse, enquanto não fossem para por si viveram”45. Em 20.03.1570, com o jovem rei D. Sebastião, decretou-se a proibição da escravatura dos Ameríndios, salvo a resultante da captura numa “guerra justa”.

38 - “Pretos em Portugal”, Intróito, ibidem. 39 - O políptico de S. Vicente, séc. XV, Museu Arte Antiga, Lx., consagra pictoricamente o que os relatos históricos descrevem. 40 - “Êxodos”-21 e “Deuterónimo-12 e 15, in Bíblia Sagrada”. 41 - “A Monarquia Manuelina-A Implantação do Império”, de José Hermano Saraiva, in “História de Portugal, Alfa”.

42 - Livro 5, Título 99. 43 - v. última nota de rodapé (nº.184). 44 - “A Evolução Social entre 1481 e 1640”, Maria Fátima Coelho, in “História de Portugal”,Alfa. 45 - Luís de Albuquerque, “A Colonização de S. Tomé e Príncipe” in “Portugal no Mundo”, 2º vol.


No decorrer de 1571, na ilha de S. Tomé, foi formado um seminário para ensinar e preparar sacerdotes de raça negra para evangelização da África46, fundado pelo Bispo local D. Gaspar Cão, que em 1585, por decisão do seu sucessor D. Martinho Ulhoa, foi transferido para a cidade de Coimbra com os mesmos fins47, mas que, por cerca de 1592, não funcionava por falta de alunos, “por tal se oporem os naturais.”48 Em 1595, o rei D. Filipe II regulamentou para dez anos o prazo máximo de cativeiro dos Ameríndios condenados à escravatura por envolvimento em combates, cujo desencadear de qualquer acção guerreira passou a depender da autorização régia49. Em 1596, o monarca Filipino, renovou a liberdade a todos os naturais do Brasil, entregando o monopólio da evangelização dos povos do interior do sertão aos padres Jesuítas50. Cada sacerdote estabelecido no Brasil começou por receber um subsídio da Coroa Portuguesa, em 1550, de 10$400 réis anuais (alimentação e vestuário) e, em 1575, elevado para 20$000 réis, prevalecendo sem correcção durante dois séculos51. Devido a alegada insuficiência financeira para aculturação do Ameríndio, a Companhia de Jesus ficou autorizada a exportar para o Continente Europeu com isenção de impostos os excedentes produzidos nas terras anexas às Missões ou Reduções da congregação que incorporavam mão-de-obra ameríndia, onde será explorada a intensiva criação de bovinos, curtumes e toda a sorte de produtos tropicais, concorrendo com extraordinário “handicap” com os colonos civis52, agravados com substantivos tributos alfandegários. No dealbar do século XVIII a Companhia de Jesus possuía um qualificado corpo de pilotos e marinheiros para a sua frota privativa, subvencionada pela Coroa, formada por três navios do Colégio do Rio de Janeiro e outros três do Colégio da Baía, além de uma fragata municiada e equipada de artilharia, que remontava ao século anterior e que era “a melhor embarcação que navega nesta costa”53. 46 - “As Missões Cristãs no Brasil”, de João Paulo Costa, in “Portugal no Mundo”, vol.3. 47 - “História de Portugal”, vol. IV, de Joaquim Veríssimo Serrão. 48 - Joaquim Veríssimo Serrão, ibidem. 49 - Jean Baptiste Debret, ibidem. 50 - Idem, João Paulo Costa. 51 - idem. 52 - idem. 53 - Serafim Leite ,S.J. in “Breve História da Companhia de Jesus no Brasil”.

Em 1605 confirmou o soberano Filipino a alforria dos nativos54, mantendo nos Jesuítas “o domesticar” e “o segurar” da sua liberdade, o que demonstra a resistência da sociedade civil e religiosa em obedecer às determinações oficiais de libertação dos aborígenes ditos “índios”. Não se tem dado a necessária relevância à actuação do governador do Brasil, D. Diogo de Meneses, que defendeu uma missionação exemplar e aldeamento dos silvícolas, subordinado a um homem branco, que lhes servisse de capitão, um escrivão e um meirinho, com o objectivo de se criarem hábitos sedentários que pudessem ser aplicados no trabalho dos engenhos e roças, mas pagos com justiça, perspectivando uma colonização do Brasil com “raízes mais sólidas para o futuro” com dispensa de importação de negros55. Nesta orientação se deve entender a Lei de 30.07.1609, de D. Filipe II, que considerou o cativeiro dos índios “contra o serviço de Deus e um dano para a Coroa”, pois reduzia a mãode-obra, decretando que os Índios baptizados e praticando a Fé Católica eram considerados livres e não podiam ser constrangidos a serviços nem a coisa alguma contra a sua vontade. Pela revisão da lei anterior, de 10.09.1611, a pedido dos colonos, o Governador foi autorizado a “fazer guerra justa” aos Índios, em caso de antropofagia e rebelião ou levantamento, e lícito neste caso o seu cativeiro, condicionando D. Filipe II a duras penas todos aqueles que incorressem no “Estatuto de Liberdade dos Ameríndios”, repondo o espírito da carta régia de 1570, de El-Rei D. Sebastião, “para desespero dos missionários”56. Alheia aos motins e repúdios populares, a Companhia de Jesus continuou, porém, a explorar a vassalagem dos Índios, utilizando-os “como trabalhadores de todos os ofícios na construção de suas igrejas e de suas fazendas e na cultura das suas terras”, presos “por laços da obediência e da disciplina às Missões”57. Com origem no séc. XVI, em Minas Gerais, nasceu a prática entre os Jesuítas com o objectivo da exaltação da fé induzirem os Ameríndios a enterrar uma quantidade de ouro em pó extraído num ou em dois dias de trabalho e decorridas quarenta e duas horas a escavar o mesmo local, donde emergiam pequenos

54 - Jean Baptiste Debret, ibidem. 55 - Joaquim Veríssimo Serrão, ibidem. 56 - “As Missões Cristãs no Brasil”, p.271, ibidem. 57 - Jean Baptiste Debret, ibidem.

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crucifixos de cobre, reluzentes como o ouro58, numa suposta alquimia milagrosa! O aglomerar destas anomalias deu origem a sublevações civis em diversos anos e locais da colónia brasileira: 1617, 1640, 1642, 1643, 1646, 1653 e 1661, sendo, por diversas vezes, expulsos os padres da Companhia de Jesus por iniciativa dos delegados régios das diversas províncias da Colónia Brasileira, cedendo a pressões da comunidade local, com o fundamento de “quererem só para si a mão-de-obra indígena e de colocar a população índia num regime em todo semelhante ao da escravidão”, medidas sempre aplacadas e contornadas pelo governo de Lisboa59. O celebérrimo jesuíta António Vieira, de sangue negro, conhecido no Brasil mais pela defesa virtual do que efectiva dos direitos dos ameríndios do que pelo classicismo dos seus sermões, uma das raras figuras de cor ou sangue infecto admitidas na Companhia de Jesus devido à sua precoce genialidade, e, talvez por isso, intérprete muito utilizado como face visível da referida instituição em situações nem sempre coerentes com a origem antropológica do protagonista, que se verá elevado pelos compêndios escolares como príncipe da Língua e Literatura Portuguesas, em 1661, foi expulso do Pará e enviado sob prisão para Lisboa, mas com o golpe palaciano na Corte de Lisboa, que leva à prisão e deportação de elrei D. Afonso VI e à regência de D. Pedro, o hábil sacerdote ascendeu a Conselheiro de Estado. A Congregação dos Jesuítas manteria ao longo do seu organigrama instituicional uma permanente posição racista, que se divisa na múltipla correspondência interna entre os Visitadores e o Geral da Companhia, estabelecido em Roma. Em Dezembro de 1568, o então Visitador da missão jesuíta estabelecida na cidade de Goa resumia: “A experiência ensinou-nos que não é agora conveniente admitir nativos da região na Companhia, nem mesmo quando se trate de mestiços”.60 O reorganizador das missões jesuítas no Oriente, Alexandre Valignano, entre 1574 e 1606, corrobora semelhante posição, considerando que “todas as raças escuras são muito estúpidas e viciosas, e espiritualmente do mais baixo nível que é possível”. Aliás, esta atitude xenófoba foi deliberada em todas as “ordens religiosas que se haviam fixado no Brasil (e que) 58 - Jean Baptiste Debret, ibidem. 59 - João Paulo Costa, ibidem. 60 - “O Império Marítimo Português – 1415-1825”, de C. R. Boxer, edições 70, 2001.

mantiveram uma discriminação racial rígida contra a admissão de mulatos” - generalizará o professor britânico C.R. Boxer, baseando-se nas Constituições Sinodais do arcebispado da Baía de 1707, publicadas em 1719-1720, que obrigava os candidatos à ordenação sacerdotal a total isenção “de qualquer mácula racial de judeu, mouro, mourisco, mulato, herético ou de outra alguma infecta nação reprovada”61. Segundo o que o probo historiador Oliveira Martins62 concluíra no séc. XIX: “os Jesuítas, cuja obra era o reino, tinham um rei feito para pôr no lugar do doido Afonso VI, que cedia do trono em favor do Castelo Melhor; e, como o ministro se atrevia a ser um homem, como não se curvava submisso e humilde, a Companhia baniu-o. Depôs o rei, aclamou D. Pedro II ”. No decorrer da regência de D. Pedro, em 01.04.1680, promulgou-se uma nova “Lei de Liberdade dos Ameríndios”, contemplando a filosofia da Companhia de Jesus e, em 21.12.1686, com D. Pedro II, já soberano, reafirmou-se a concessão da mão-de-obra dos nativos brasileiros nas Missões ou Reduções jesuíticas no comércio e indústria desenvolvidas pela Companhia de Jesus e ratificou-se a atribuição à mesma companhia religiosa o governo económico, jurídico e administrativo de todas as povoações evangelizadas pela congregação. El-Rei, todavia, pressionado pelas reivindicações da sociedade colonial, reconhecera imediatamente antes (em 20.11.1686) ao seu representante na colónia brasileira, o Marquês de Minas: - “que houvindo aos Padres da Companhia vos informeis se são obrigados a ensinar nas escolas desse Estado e contando-vos que assim he os obrigueis a que não excluão a estes nossos geralmente só pela qualidade de pardos, porque as escolas de sciencias devem ser comuns a todo o genero de pessôas sem excepção alguma” 63. No entanto, a Companhia de Jesus, por liberalidade de um soberano de perfil talhado pelos ideólogos da própria congregação, legitimou e reforçou as prerrogativas acumuladas durante a suserania castelhana, calando as vozes discordantes da sociedade civil e dos concorrentes religiosos, engrandecida com um incomensurável poder político e económico dos territórios coloniais portugueses. Em 1691, a Companhia de Jesus, com a oratória empolgante do Pe. António Vieira, instiga a intensificação da captura e utilização dos negros da Costa de África com 61 - idem. 62 - “História de Portugal”. Vol II, PUBLICAÇÕES Europa-América, 323. 63 - Gilberto Freyre, in “Casa-Grande & Sanzala”, vol. II, S. Paulo, 1946.


o argumento de serem mais fortes, resistentes e activos do que os índios brasileiros na exploração das sanzalas e engenhos, quer dos colonos quer das suas Missões ou Reduções e propõe a evangelização da comunidade esclavagista africana aglomerada no Brasil, que reconhecia ter então suplantado em número bastante elevado o povo ameríndio64. O que de subtil escondia este apelo tardio do factótum Pe.Vieira dos interesses jesuíticos à evangelização dos Negros da Guiné era o facto de que os adultos maiores de 10 anos não baptizados, de harmonia com a legislação consagrada pelo Rei D. Manuel65 e respeitando o espírito dos Forais dos Mouros Forros medievais, mantinham a independência religiosa e ninguém sem a sua própria autorização prévia os podia converter ao cristianismo. A generalização das Irmandades do Rosário dos Pretos na comunidade imperial portuguesa e particularmente no Brasil permitia que as crenças e religiões ancestrais dos escravizados negros fossem preservadas em expressões artísticas envoltas em ingénuas manifestações folclóricas e se radicassem na sociedade colonial. A sagacidade do Pe. António Vieira e da sua Congregação de Jesus, felizmente para a cultura heterogénea da futura nação brasileira, chegaram tarde demais para interromper na colónia a afirmação do mundo banto e os resquícios duma cultura milenária, expressa no “Candomblé”, em Salvador da Baía, que tomou o nome de “Xangô” no Estado de Pernambuco ou de “Tambor-de-Mina” no Maranhão; o “Umbanda” generalizado do Estado do Rio de Janeiro, numa prolixa diversidade de “Orixás”, cujo culto de “Oxum” reflectia a mítica da “Madona Negra” europeia no contexto afro-brasileiro, enquanto o culto de “Yemanjá” traduzia a componente feminina de Deus, num fenómeno paralelo ao ocorrido no séc. XII, na Europa, em que os construtores corporativos das catedrais góticas fizeram emergir e intensificar a divulgação do culto feminino de Deus, prosseguidos, mais tarde, pelos trovadores medievais com a literatura das cantigas de amigo e pelos autores dos cavalheirescos romances de cavalaria na exaltação da Mulher, tão magistralmente simbolizados na escrita do imortal Cervantes. Excluindo os exageros pontuais cometidos contra a liberdade humana por forças ortodoxas da Igreja, que por frouxidão ou terror religioso dos soberanos num e noutro 64 - João Paulo Costa, ibidem. 65 - Ordenações Manuelinas, Lº 5, T.99º, ibidem.

reinado subscreveram, no apogeu do Ciclo dos Descobrimentos, coincidente com a hegemonia da Ordem de Cristo e Ordem de Santiago, enquanto esta esteve sob a batuta de D. Jorge, filho de D. João II, a iconografia religiosa portuguesa traduzia a raça negra nos quadros bíblicos e nos oragos. No quadro socioprofissional, a cidade de Lisboa, nos meados do séc. XVI, dispunha duma multidão de Mulheres Negras que desenvolveram uma inigualável actividade comercial em perfeita liberdade e igualdade com as portuguesas continentais, contabilizando-se mais de mil mulheres pretas no abastecimento de água a retalho dos lares dos bairros da capital; outras centenas, na venda de ameixas, favas cozidas e doce de aletria ou na venda de frutos do mar, camarões, berbigões, búzios e outros géneros66, numa demonstração inegável da confiança da sociedade lusa na ética dos Negros num sector tão sensível como o da alimentação humana, que causava admiração aos agentes diplomáticos estrangeiros, intelectuais e viajantes dos mais diversos países. O Regimento do Ofício dos Pasteleiros de Lisboa, aprovado em 05.09.1543, que proibia a admissão de aprendizes da Raça Mourisca, forro ou cativo, porque se “presume deles que não são fiéis nem têm verdadeiro como cumpre para este ofício desta qualidade”, por susceptível de provocar algum acto de sabotagem alimentar junto dos consumidores, autorizava o uso e aprendizagem da profissão dos indivíduos “Preto ou Judio ou Mulato”, num testemunho acrescido do respeito, consideração e integração destas etnias na sociedade reinol portuguesa. No primitivo compromisso dos Ourives do Ouro, aprovado em 1572, era autorizado e habitual nos trabalhos das forjas e no martelar das barras de ouro a mão-de-obra Negra, Branca e Índia escravizadas. No séc. XVII, em Lisboa, como resultado da tolerância humanística dos portugueses, proliferavam Negros e Mulatos de todas as etnias como criados, alguns de apelidos nobres, vivendo lado a lado na intimidade das famílias67; no século seguinte, muitos eram vistos, na maioria do sexo feminino, com Senhoras da Nobreza sentadas ao seu lado, na Ópera ou às janelas dos solares, elevadas a Damas de Companhia68. 66 - “Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552”, de João Brandão (do Barco). 67 - “Lisboa Seiscentista”, de Fernando Castelo Branco. 68 - “Lisboa Setecentista-Vista por Estrangeiros”, de Piedade Santos, Teresa Rodrigues e Margarida Neves.

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No fins do séc. XVIII (1792), no Rio de Janeiro, o Lorde Macartney, ex-governador de Grenada, nas ilhas ocidentais Britânicas, de passagem para a China, admirava na capital da colónia brasileira, “sejam quais forem os sofrimentos dos escravos às mãos dos capatazes nas plantações, os que vivem na cidade não parecem desditosos”, não necessitando de recorrer à embriaguez para esquecerem o triste fado, porquanto “tinham muitas oportunidades de exercer os seus naturais talentos musicais e gozavam plenamente “qualquer parcela de prazer que acontecesse estar ao seu alcance”69. Para além dos Negros, ainda que minoritariamente forros ou livres, abundava uma heterogeneidade de escravos de muitas etnias, não raro dispersos por todas as classes sociais, desde a Nobreza à Clerezia, quer secular quer conventual, nomeadamente por lavradores, homens de negócio e rendeiros dos grandes latifundiários, que pelo enriquecimento de bens formavam uma alta burguesia e até alguns oficiais mecânicos dispuseram de mão-de-obra esclavagista. Muitos destes escravos obtiveram a alforria dos exproprietários no continente, como o caso, entre muitos, dum serviçal do padre Manuel Machado, do Escoural, Montemor-oNovo, no Alentejo, que em testamento alcançou a alforria em recompensa de ter sido tratado “com muita caridade nas suas doenças e achaques que consigo trás a velhice”; recorrendo a outro exemplo, referimos Catarina Alves, da mesma região, senhora solteira, em 1600, que concedeu a liberdade ao seu escravo Bernaldim, de 30 anos, por “ter sempre bem servido até aqui e ser homem de boa fama e bons costumes e o criar e lhe ter muito amor”; um lavrador, de nome Filipe Sobrinho, também alentejano, deu alforria ao seu escravo como prenda de casamento por este se consorciar com uma mulher livre, Domingas Correia, “na forma do sagrado Concílio Tridentino70. Abundam igualmente na Colónia brasileira casos semelhantes de que se fez arauto o sociólogo Gilberto Freyre, que honra os académicos do Brasil, mas ainda não foi quantificada durante a vigência do Antigo Regime, por razões óbvias, a assimilação da escravatura negra na alta sociedade portuguesa, não obstante a prolixidade da miscigenação ocorrida. Dos exemplos que conhecemos recentemente, graças ao trabalho da académica da Universidade Baiana,

Lígia Bellini 71, que examinou 400 cartas de alforria, citamos que 71 dessas cartas foram concedidas em termos gratuitos, relevando, por ordem cronológica a de um jovem mulato de nome Joaquim, em 1688; em 1702 da preta Maria e do seu filho Marcelino, que prestaram prova de libertos perante o Juiz dos Órfãos; em 1706, regista-se o caso da escrava Luzia, natural do Congo, que alcança do Pe. Francisco dos Frades Franciscanos da Baía a alforria e diversos presentes e testemunha, ainda a mesma investigadora, com base no cronista de S. Salvador da Baía do séc. XVIII, Santos Vilhena, que os “mulatos e negrinhos eram criados com extrema indulgência”. Coincidente com o ciclo do ouro do reinado de João V, num resgate liderado pelos Frades Trinitários, no ano de 1720, compreendendo um total de 365 cristãos cativos dos corsários mouros da cidade de Argel, no Norte de África, resgataram-se: o padre Romão Mendonça, natural do Rio de Janeiro; Miguel Siqueira, marinheiro negro, natural do Pará; Maria, mulher negra, natural de Pernambuco, já com 12 anos de cativeiro; em 1726, num resgate de 214 cativos, salientase o resgate de Maria, negra, do Maranhão, com 15 anos de cativeiro; em 1739, numa outra leva de 178 portugueses cristãos cativos em Argel, aparece resgatada Luísa Maria, negra, da Baía, que já estava cativa há mais de dois anos. Uma nova geração de historiadores contemporâneos do ramo da Genealogia, todavia, dá sinais de positivo interesse na classificação através dos assentos dos “Livros Paroquiais”, mais concretamente de Baptismo, Casamento e Óbito, da influência do esclavagismo na linhagem dos nossos concidadãos, dada a vulgaridade como aparece a alforria registada em testamentos, com maior incidência a partir da Abolição da Escravatura Pombalina, nos fins do séc. XVIII. Na região de Santo Tirso, no Minho, surpreende-se um investigador deste sector com uma disposição testamentária do seu 4º Avô, em 1798, que dispõe: “a cada um dos meus escravos Francisco e Roza se dê anualmente dez alqueires de pão e cinco almudes de vinho e mil e duzentos réis, também anualmente, para [a]luguer de casa”72. Acrescenta ter encontrado ainda outros casos muito “curiosos, inclusivamente com a oferta de terras após a libertação”. Estes legados, abundantes em referências nos livros de óbitos dos cartórios

69 - “O Império Marítimo Português, 1415-1825”, de C. R. Boxer. 70 - Jorge Fonseca, in “Uma Vila Alentejana no Antigo Regime – Aspectos sócioeconómicos de Montemor-o-Novo nos séc. XVII e XVIII”.

71 - “Uma Relação Delicada”, in “Revista de História da Biblioteca Nacional”, nº12, Rio de Janeiro. 72 - Miguel Brandão Pimenta (http://genealogia,sapo.pt/forum), “Escravos em Portugal”.


paroquiais, ilustram a absorção pela sociedade portuguesa da doutrina bíblica, muito intensa no decurso do Antigo Regime. Está ainda por determinar a influência cultual da “Madona Negra”, não só na iconografia como na hegemonia religiosa portuguesas, que desde os primórdios do Cristianismo corporalizou a área geográfica correspondente à actual França mediterrânica e cujas estatuetas negras da virgem eram divulgadas pelos Cavaleiros Templários73, mas também a correspondente propagação iconográfica desta proscrita Ordem de Cavaleiros pelos seus continuadores em Portugal - a Ordem de Cristo. O santuário de Nossa Senhora de Rocamador, em Lot, Quercy (França), no picotado de um dos mais célebres caminhos de Santiago de Compostela convergentes para este principal centro Europeu de peregrinações situado no Norte da Galiza, sustentou, entre outras e com grande incidência, a divulgação da imagem de Nossa Senhora Negra com a qual se ergueram, debaixo da sua égide, imensos estabelecimentos medievais de assistência a peregrinos e, em paralelo, na rede Sul-ibérica, conhecida como Caminho de Santiago de Portugal. Aliás, o próprio Santuário Compostelano do Norte de Espanha adoptou desde a Baixa Idade Média e sob o controlo arcebispal a partir do início do séc. XIII, a Mistica da Negritude, utilizando o azeviche (pedra de carvão do grupo dos lignitos vendida actualmente nas Ourivesarias) na confecção dos “souvenires” religiosos, como as “Vieiras” e o rosto do próprio Apóstolo S. Tiago, além de pequenos painéis marianos e “pietás” conhecidos como “Porta-paz”, a par de colares muito apreciados por damas fidalgas viúvas e abadessas74. Na cidade do Porto, na Rua do Souto, prevaleceu a par do medieval “Hospital dos Palmeiros”, dos Sapateiros e mais tarde conhecido como de “S.Crispim e S. Crispiniano”, desde os primórdios da nacionalidade, um “Hospital de Nossa Senhora de Rocamador”, mas foi em Soza, no concelho de Vagos, perto de Aveiro, que o culto de Nossa Senhora de Rocamador teve grande implantação histórica, transfigurandose no reinado de D. Afonso V numa Comenda da Ordem de Santiago. Mais hospitais de Nossa Senhora negra de Rocamador existiram a assinalar o caminho português de Santiago, na variante do litoral, como Coimbra, Leiria, Torres Vedras e

Santarém, e no ramal interior, Lamego, Guimarães, Braga e Chaves, cujas origens remontam à Baixa Idade Média, diluindose estas referências documentais por volta do séc. XV e que serão depois absorvidas, definitivamente, pelos hospícios da “Santa Casa da Misericórdia” manuelina, instituição ímpar da civilização assistencial europeia, com difusão nos quatro cantos do mundo, cujos estatutos irão inspirar/influenciar, no séc. XX, as organizações rotarianas e lionísticas de origem americana. Segundo a escritora Margaret Strarbird 75, o dogma da “Negritude Simbólica”, tal como o cultivou tão ostensivamente SS. o Papa João Paulo II, falecido recentemente, pela imagem negra da padroeira da Polónia, Nossa Senhora de Czestochowa, que manteve um oratório próprio nas suas instalações privadas, no Vaticano, foi em tempos recuados enaltecida por S. Bernardo de Claraval, amigo e colaborador do rei D. Afonso Henriques e redactor dos estatutos da Ordem dos Templários, co-obreiros da formação de Portugal, alcançando uma afirmação preponderante na emblemática Cristã. Nos fins do séc. XV, atribuído ao Convento da Ordem de S. Domingos, aparece pela primeira vez referenciado em Lisboa o funcionamento da “Confraria da Nossa Senhora do Rosário”, então subdividida em duas: uma englobando as “Pessoas Honradas” e uma outra para os “Pretos e Escravos”. O rei D. João II, dinamizador e o principal teórico da supremacia dos Descobrimentos e falecido em 25.10.1495, dotou a Confraria do Rosário dos Pretos com a esmola de 1$500 reais por cada caravela chegada da Rota da Mina76. O seu sucessor, D. Manuel I, em 18.04.151877, conceder-lheia mais $500 reais por cada caravela proveniente da mesma origem, que, junta com a esmola do seu régio antecessor, resultava numa expressiva receita estatal derivada do denso tráfego portuário da época. A Confraria do Rosário dos Pretos de Lisboa reforçou a sua influência na solidariedade social dos Negros com a promulgação do Alvará de 10.10.1578, que lhe conferia poderes para angariar emprego aos homens e mulheres escravos forros solteiros e sem ofício e autorização para prestar ou indicar um fiel depositário para o exercício de actividades das artes-mecânicas, porque, para cumprimento das normas administrativas vigentes, qualquer actividade económica/ofício mecânico, no decorrer do Antigo Regime, carecia, a par da

73 - Carminda Levy, in “O Poder da Madona Negra”. 74 - XACOBEO´99 – Xunta de Galicia, Espanha.

75 - “Maria Madalena e o Santo Graal”, Lx. 2004. 76 - “Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552”, idem. 77 - Pe. António Brásio, ibidem.

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“Examinação prévia”, com excepção do Ofício dos Sapateiros, de um Termo de Fiança caucionado por uma pessoa de posses registado na Câmara Municipal onde a actividade era exercida, renovável no mês de Abril de cada ano, com o intuito de acautelar eventuais indemnizações ao Consumidor por fraudes decorrentes do exercício profissional. A gestão administrativa destas Confrarias do Rosários dos Pretos era mantida por Confrades Escravos Negros e quando o número de elementos para a eleição da Mesa fosse insuficiente, o Padre Provincial da Ordem dos Dominicanos tinha poderes para indicar um indivíduo da mesma raça para assegurar o número do quadro em falta e para o qual nenhum homem de cor, mesmo livre, podia recusar. A protecção social aos negros e escravos da capital do Reino generalizou-se ao fim de dezenas de anos e deixou de ser um exclusivo da Ordem Dominicana, sendo adoptada pela comunidade religiosa, de molde que, em 1668, os sacerdotes do Convento da Graça, da Ordem de Santo Agostinho (Gracianos), dispunham duma confraria já desta invocação. Por esta data, as fontes históricas disponíveis dão à extensão feminina dos padres Dominicanos o patrono religioso das Confrarias do Rosário dos Negros, mais concretamente ao Convento de S. Salvador (freiras Domínicas). Não andaremos longe da verdade, se atribuirmos a aparente incompatibilidade do precursor movimento de protecção e solidariedade aos pretos a razões formais que se prenderiam com a atribuição à respectiva Ordem dos Pregadores de S. Domingos da administração dos complexos Tribunais da Inquisição. As Confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a partir da cidade de Lisboa, difundiram-se pelo território do Continente, naturalmente pelas cidades e vilas onde estas minorias étnicas se aglomeravam com maior expressão, sendo exemplo incontestado da tolerância e liberdade religiosas nacionais, não deixaram de se assumir, como observa a académica paulista Antónia A. Quintão78, para além de “outros canais de participação política e vivência religiosa”, símbolos de resistência do mundo esclavagista. Permaneceram, em Portugal, indicações do seu estabelecimento em Elvas, principal Praça-Forte do eixo LisboaMadrid, nos fins do séc. XV; na cidade de Évora, na Igreja de S. Francisco, com data anterior a 1518; em Lagos, o mais antigo mercado de escravos da costa africana em Portugal,

a existência da confraria do Rosário dos Pretos tem data anterior a 1555; em Leiria, sob a protecção dos Dominicanos, referencia-se o ano de 1571; em Setúbal, também sob a égide da Ordem de S. Domingos, remonta a 21.01.1584; em Alcácer do Sal, a 22.10.1588; em Salvaterra de Magos, no Ribatejo, aos fins do séc. XVI; no Porto, estabelecida no Convento de S. Francisco, em 1698, sob a designação de “Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito; no interior do Alentejo, na vila de Moura, a partir de 13.08.1689, assinala-se a confraria do Rosário dos Pretos centralizada na Igreja Matriz. A fundação da Confraria de N. Srª. do Rosário dos Pretos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe, entreposto privilegiado dos escravos da Costa da Guiné e da Rota Atlântica, ocorreu em 1526, com a autorização de D. João III, tendo em vista servir os pretos forros que ali habitavam79. Remontando ao ano de 1500, existia uma igreja debaixo do orago de N. Srª. do Rosário, na cidade Velha, da ilha de Santiago, em Cabo Verde. Do séc. XVII são as referências aos templos angolanos de N. Srª do Rosário dos Pretos, em Luanda, Cambambe e Pungo Andongo. Foi, todavia, no território da Colónia do Brasil que o culto da Nossa Senhora do Rosário dos Pretos encontrou um proverbial campo de aderentes, organizados canonicamente em irmandades, erguendo ermidas ou igrejas a exultar a padroeira Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, umas modestas outras com grande dignidade arquitectónica que até têm servido, temporariamente, de catedrais enquanto estas igrejas-mãe não se edificaram ou se reconstruíram. Decorrente duma ancestral como latente corrente teológica de libertação da comunidade religiosa brasileira se enquadrará o culto das imagens negras de S. Benedito, Santa Efigénia, Santo António de Catagerona, S.Gonçalo e Santo Onofre80, culminando com a emblemática Nossa Senhora da Conceição Aparecida, encontrada nas redes dos pescadores do Rio Paraíba em Outubro de 1717, cujo culto será depois tomado sob a protecção da abolicionista princesa D. Isabel de Bragança, Condessa d´Eu, filha e regente do ex-Imperador D. Pedro II, a quem se lhe deve a oferta do sumptuoso manto de veludo azul-marinho e ouro que cobre a pequena imagem escura da padroeira e cujo moderno templo, elevado a Santuário Nacional, em Aparecida, SP, se transformou, a par do da Madona Negra Senhora de Guadalupe, no México, num

78 - “O Significado das Irmandades de Pretos e Pardos: O Papel das Mulhres”.

79 - Arlindo Manuel Caldeira, in “Mulheres, Sexualidade e Casamento em S. Tomé e Príncipe”. 80 - Antónia A.Quintão, ibidem.


dos maiores centros de peregrinações e fulcro do ecumenismo apostólico do universo hispano-americano. Sem intenção de sermos exaustivos, referenciamos as seguintes Irmandades/Igrejas brasileiras de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do período colonial: em Vila Velha, junto à cidade de Vitória, ES, com um templo construído em 1558; em Paranaguá, PR, uma catedral datada de 1578; em Olinda, PE, templo do séc. XVII; em Santos, SP, igreja com data de 1652; no Rio de Janeiro, estabelecida em 1639 a par da Confraria de S. Benedito, que se fundiram em 1669 e construíram um templo comum em 1700; em Tiradentes, MG, o templo data de 1708; em Salvador da Baía, de 1710, reflectindo o culto duma irmandade datada de 1686; em Sabará, MG, igreja fundada em 1713 e ampliada em 1768; em S. Luís de Maranhão, iniciada em 17.05.1717 e aberta ao culto em 1772; em Marechal Deodoro, AL, em 1717; em S. João del Rei, MG, em 1719, com a irmandade que remonta a 1708; em Parati, RJ, em 1725; em Diamantina, MG, em 1728; em Barbacena, MG, em 1774; em Alcântara, MA, em 1777; em Itabira, MG, em 1775; em Fortaleza, CE, em 1730; em Mariana, MG, em 1752/1758; em Belém, PA, iniciada em 1767; e em Ouro Preto, Igreja construída em 1785 em substituição da anterior capela da Irmandade do Rosário, de 1709, que foi matriz de 1731 a 1733. Ao século XVIII atribui-se a construção das Igrejas de Parnaíba, PI e do Recife, PE e ao ano de 1822 a Igreja de N. S. do Rosário dos Pretos, em Santos, SP81. Por disposição de dois alvarás de D. Pedro II, um datado de 22.02.1688 e um outro de 01.04.1702, foram as irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos beneficiadas com a capacidade de resgatar os negros nos casos em que: “algum senhor vender algum escravo seu para fora do Reino o não pudesse fazer, pagando-lho a Confraria por sua justa avaliação e não em sua estimação como pedem”. Uma nova Irmandade do Rosário de Pretos criada, em 1714, no Convento da Graça, da Ordem dos Agostinhos, absorveria as mesmas prerrogativas da irmandade da Ordem dos Dominicanos, resgatando os escravos negros quando os seus donos pretendiam desfazer-se deles por “ódio criminal”. Ainda no mesmo ano, por Provisão Régia de 11 de 81 - Com base no “Guia Brasil 2000-Quatro Rodas” e sites brasileiros, desta temática, disponíveis na Internet.

Junho, veio a fundar-se uma Irmandade do Rosário na Igreja da Santíssima Trindade de Lisboa, da Ordem dos Trinitários, que causou um incidente inédito no Desembargo do Paço. Testemunha o Pe. António Brásio82, que Sua Majestade D. João V, sustentando que as Confrarias de Rosário dos Pretos gozavam, pelos seus antecessores régios, da faculdade de libertar confrades escravizados necessários para os serviços privativos das irmandades e que tal autorização estava consignada na Irmandade estabelecida no Mosteiro de S. Salvador, das freiras Dominicanas, pretendeu, com este fundamento, conferir semelhante regalia à recém-criada Confraria de Nossa Senhora do Rosário, de que era Juiz o seu próprio irmão, o Infante D. Manuel. Perante o parecer desfavorável do Procurador da Coroa a determinação real acabou por ser alterada, obrigando-se o soberano no seu despacho, de 07.02.1714, a contemplar somente o resgate quando se verificasse a intenção de venda do escravo para o estrangeiro. Quem se tem dedicado a aprofundar este tema, não encontrou, até hoje, a disposição que comprova a asserção do Soberano sobre a dita prerrogativa das irmandades do Rosário dos Pretos, que indiciará que os documentos oficiais se extraviaram na catástrofe de 1755, terramoto e incêndio dos arquivos nacionais ou que um Rei, mesmo absoluto, não podia desafiar os interesses que estavam por detrás da escravatura, que na jovem nação Brasileira, séculos depois, levaram à abdicação do Imperador D. Pedro I83, em 1831, e, anos mais tarde, à destituição de D. Pedro II e queda do próprio regime84. Será necessário esperar pela Carta de D. José I, de 17.09.1753, passada à Irmandade do Rosário dos Pretos do Mosteiro de S. Salvador (Freiras Domínicas), para se repor o alegado benefício régio invocado pelo pai do soberano, coagindo os “senhores dos irmãos escravos da Confraria do Rosário a que recebessem os interesses que justamente se arbitrassem pela escravidão de cada um, ainda que não tivesse havido mau tratamento a justificar o resgate”85. Começou, então, a ser possível, no Reino de Portugal, o resgate dos escravos Negros, independentemente das razões invocadas para a alforria, por preços justos e 82 - ibidem. 83 - “Os Partidos Políticos e a Abolição”, de M. Lurdes Lyra, in “A Abolição do Cativeiro” coordenação de Arno Wehling, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, RJ.,1988. 84 - A implantação da República ocorreu a 15.11.1889. 85 - Pe. António Brásio, ibidem, p .92.

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arbitrados, desde que fossem confrades das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Não se pode escamotear que o sangue negro correu com profusão nas veias da alta e média fidalguia portuguesas de há muitos séculos, inclusive no Secretário de Estado do Brasil, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre jesuíta António Vieira, bem como no Estadista Marquês de Pombal, cujo tio-avô, o Pe. António Carvalho, pároco de 1610-1640 da Matriz de S. João da Pesqueira, ficou conhecido pelo “Abade Negro” 86, para só se citar duas figuras mais mediáticas pelo protagonismo e proximidade históricas, pelo que não se deva estranhar que, no auge da repressão ideológica do Antigo Regime, os mais importantes teólogos do Reino considerassem o sangue Negro menos perigoso do que o sangue Judeu87 . Ao Regimento do Ofício dos Chocolateiros, homologado por disposição régia de 17.10.1752, que funcionaria como barómetro premonitório numa perspectiva histórica da formação humanística do Governo do soberano recémentronizado D. José I, do qual o Marquês de Pombal será depois figura charneira, foi suprimida a redacção do “Capítulo 16 que trata da limpeza de sangue não terá validade nem observância alguma”, augurando profundas mudanças na discriminação étnica em que assentava o funcionamento dos Tribunais da Inquisição, a Política Social e a Economia do Reino. Este regimento negava ainda autorização de trabalho profissional a “preto ou mulato que não seja seu escravo” (do respectivo mestre Chocolateiro) e nos casos em que o escravo obtivesse alforria só podia empregar-se como oficial dum Mestre examinado, sem jamais poder abrir loja própria. Só em 06.06.1755, tendo como primeiro-ministro o Marquês do Pombal, El-Rei D. José I decreta o fim da Escravatura dos naturais do Grão Pará, Maranhão e Amazónia Brasileira e, em 1758 (08 de Maio), generaliza a alforria a todos os índios do Brasil. Simultaneamente, são fundadas as Escolas Primárias no Grão Pará e Maranhão, que ficam a assinalar a criação do Ensino Primário Oficial em Portugal e se reveste como a primeira experiência do ensino estatal na Europa; com a Lei de 06.11.1772 regular-se-á e complementar-se-á tão precursor Sistema Educativo, que vai manter-se em Portugal até o séc. XX, constituído de instrução de Doutrina Cristã, a cargo 86 - Ayres de Sá, in “Anais das Bibliotecas e Arquivos, Um dogma anti-geográfico”, vol. VIII, ano de 1927. 87 - Ayres de Sá, ibidem.

dos sacerdotes paroquiais; aprendizagem de Ler, Escrever e Contar, a cargo de professores de nomeação governamental mediante concurso, e de um Ensino Secundário preparatório do Ensino Universitário, este último destinado à formação dos Homens de Estado 88, que ficará conhecida como a Reforma da Universidade de Coimbra. O ano de 1755 (04 de Abril) fica a assinalar a institucionalização do livre casamento de europeus com aborígenes da Amazónia, com Dote aos Noivos, enxoval, alfaias agrícolas como prémio de fixação à terra e miscigenação com os locais e pelo “Estatuto de Enobrecimento”, dando a preferência dos noivos para o exercício nos cargos públicos da região, que até aí e na prática do Antigo Regime era reservada aos Senhores da Nobreza. O espírito anti-racista do reinado de D. José I, com o Marquês do Pombal na chefia do governo, não se restringe a uma estratégia de intervenção pontual neste, naquele ou estoutro sector geográfico, mas contextualizada numa política de globalização onde a igualdade e humanismo eram evidentes e generalizados. Em 20 de Março de 1758 declaram-se os Chineses livres e habilitados para todos os empregos, ofício e honras e, em 02.04.1761, atribui-se o Estatuto de Direitos e Deveres Cívicos das Pessoas Brancas nascidas em Portugal aos súbditos Asiáticos e Afro-orientais baptizados. O Decreto Régio, de 19 de Maio de 1761, determina a construção de um Seminário na Ilha de Moçambique com o objectivo “onde não só brancos mas também mulatos e negros livres podiam preparar-se para o sacerdócio” 89. A Abolição da Escravatura é promulgada em 1761 (19 de Setembro)90 e, cerca de doze anos depois, pela verificação “de que em todo o Reino do Algarve e em algumas Províncias de Portugal existem ainda pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade e de Religião, que guardando nas suas casas Escravas, umas mais brancas do que eles, com os nomes de “Pretas” e de “Negras”, outras “Mestiças” e outras verdadeiramente Negras” , ratifica com o diploma com força de Lei de 16.01.1773, que “todos os que nascerem do dia da publicação desta Lei em diante nasçam por benefício dela inteiramente livres, posto que as Mães e Avós hajam sido escravas”, com a menção expressa de que os abrangidos 88 - “Pombal e a Experiência da Autoridade”, de José Hermano Saraiva, in “História de Portugal, edição Alfa. 89 - “O Império Colonial Português – 1425/1825”, de C. R. Boxer. 90 - “Cronologia Comparada”, de Cecília Barreira, in “Dicionário Enciclopédia da História de Portugal”.


pelo referido alvará se respeitassem como “hábeis para todos os Ofícios, Honras e Dignidades sem a nota distintiva de “Libertos”. Com a Lei de 25.05.1773, El-Rei D. José I pôs um ponto final na discriminação religiosa entre Cristãos Velhos e Cristãos Novos, encerrando o processo de reformulação do Tribunal da Inquisição, promulgada em 1768, com que se extinguiram os holocaustos humanos desta repressiva instituição da Igreja de Roma e que, em concomitância, servia de cobertura às mais ignóbeis vindictas pessoais e repressões do Poder Político. Em 1774, o Vice-Rei da Índia recebeu, em nome de ElRei D. José, uma ordenação para que no exercício das suas funções nas Paróquias ou Missões religiosas e Postos Militares fosse dada a preferência dos cargos aos Nativos ou a seus filhos ou netos, independentemente da cor da pele ser mais clara ou mais escura91. Desta sequência legislativa libertadora filiam-se os pouco divulgados registos cronológicos constantes do acervo do Arquivo Histórico da cidade de S. Salvador da Baía92 respeitantes às “Cartas de Exame” ou diplomas profissionais de Oficiais Sangradores, Negros e Escravos, residentes no termo desta cidade colonial, outorgados em Lisboa, que mediante a aprendizagem e prestação de provas prévias alcançaram o grau de “Mestres” e que, deste modo, ficaram oficialmente autorizados a abrir estabelecimentos para exercitarem tão delicada e responsável especialidade cirúrgica, adiantandose em alguns anos à fundação naquela cidade, em 1808, da primeira Escola Cirúrgica Colonial pelo Príncipe-Regente D. João, em trânsito da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro. A Coroa Portuguesa interrompeu, com D. José I, não só a política económica de subalternização ao poder inglês, mas também sepultou a ideologia do “Quinto Império”, desenvolvidas no período conturbado da Restauração da Independência, oficialmente fixada em 1640, recriando no vasto território português uma liberdade fundamentada no personalismo ibérico. Tão excepcional quadro legislativo, todavia, tem sido escamoteado do ensino histórico nacional e não se tem dado o devido destaque com grave prejuízo da imagem de Portugal no Mundo. Enquanto os historiadores portugueses não pacificarem pela rigorosa contextualização e imparcialidade esta época histórica não se pode esperar da comunidade 91 - C. R. Boxer, ibidem. 92 - “Livro 1464 -Cartas de Exame de Oficiais Mecânicos”, ibidem.

internacional a verdadeira divulgação e consagração de um dos períodos mais fecundos e nobilitantes da gesta nacional. Este período cultural espantou e despertou inveja dos agentes diplomáticos estrangeiros acreditados na Corte de Lisboa por um tão pequeno país no extremo da Europa ousasse pôr em prática acções humanísticas inéditas na política social e económica dos tempos modernos. Mais incompreensível, a dois séculos de distância, é que a poalha das decisões dinamizadas pela figura do Estadista Pombal, igualável ao alcance historiográfico de El-Rei D. João II, promotor da Epopeia Marítima mundial, suscite ainda estudos conducentes a reduzir a sua personalidade a uma voraz cupidez patrimonial ou a uma psicopatia congénita93, omitindo o contexto de iliteracia, miséria, exclusão e xenofobia em que Portugal Imperial chafurdava, ignorando o patriotismo e vanguardismo duma política em prol da Liberdade e da Igualdade humanas, que ultrapassaram as barreiras nacionais. A concretização prática das libertadoras directrizes e mensagens do reinado de D. José, tão rapidamente juguladas depois da sua morte, ocorrida em 1777, tiveram de aguardar pela colaboração de dois descendentes directos do Soberano - a personalidade determinada do I Imperador do Brasil, D. Pedro, para proclamar a autonomia política da Colónia do Brasil e, embarcando para a Metrópole, derrubar pela luta a opressão e o obscurantismo preponderantes no Antigo Regime; e do tetraneto – Pedro II, do Brasil -, arquétipo da generosidade, cultura e pacifismo, que perdeu o ceptro ao pretender libertar na Paz e no Diálogo a sociedade brasileira dos ressaibos colonialistas e da Escravatura, dando ensejo à Oposição, por um golpe de um homem da confiança e amizade da Corte, o Marechal Deodoro da Fonseca, emergido como Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil94 e transformado no primeiro presidente da República do Brasil com o claro apoio dos grandes latifundiários, senhores dos engenhos e esclavagistas agastados com as intervenções Imperiais na criação das bases emblemáticas das democracias modernas - Liberdade, Igualdade e Solidariedade95.

93 - “O Mito do Marquês de Pombal – A Mistificação do Primeiro-Ministro de D. José pela Maçonaria”,de José Eduardo Franco e Annabela Rito e “Enigma Pombal”, de António Lopes. 94 - “Dicionário Ilustrado de Maçonaria (Simbologia e Filosofia)”, de Sebastião Dodel dos Santos. 95 - “A QUEDA DO IMPÉRIO – Os últimos momentos da Monarquia no Brasil”, de Marco António Villa.

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ABRI O GUARDA SOL Maria Fernanda Calheiros Lobo* Abri o guarda-sol, e recordei o que escrevi: Alguns Sóis Já são passados Outros ainda para vir. A vida deu-nos A Sombra E um guarda-sol para sorrir. (voltei a fechá-lo. A sombra estava fria, e o sol não aquece)

* Universidade Sénior - Douro.


ESPINHO - DE LUGAR A FREGUESIA E CONCELHO A INSTALAÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL DE ESPINHO. Francisco de Azevedo Brandão* A Instalação da Câmara Municipal de Espinho Criado o concelho pelo Decreto de 17 de Agosto de 1899, procedeu-se depois à eleição e instalação da Câmara Municipal. Assim em 7 de Setembro de 1899 foi publicado no «Diário do Governo», n.º189 de 24 do mesmo mês, o seguinte decreto: «Ministério do Negócios do Reino – Direcção Geral de Administração Política e Civil – 1.ª Repartição. Tendo sido criado o concelho de Espinho pela carta de lei de 17 de Agosto do corrente ano – Hei por bem decretar o seguinte: Artigo 1.º – A eleição da Câmara Municipal do concelho de Espinho realizar-se-á no domingo que for designado pelo governador civil do distrito de Aveiro, dentro do prazo de quarenta dias contado sobre a publicação do presente decreto, e para a gerência interina dos negócios municipais do mesmo concelho é nomeada a comissão formada pelos cidadãos enumerados na relação, que com o mesmo decreto baixa devidamente autenticada, devendo a comissão servir

até à posse da vereação eleita, na conformidade de Artigo 19.ª do Código Administrativo. Artigo 2.º – É dissolvida do concelho da Feira e para a gerência interina dos negócios municipais deste concelho é nomeada a comissão formada pelos cidadãos enumerados na relação que acompanha o presente decreto, a qual servirá até que tome posse a vereação que deve ser eleita mo domingo competentemente designado dentro do prazo a que se refere o artigo antecedente. Artigo 3.º – No prazo de dez dias a contar da posse da comissão municipal do concelho de Espinho se instalará a comissão do recenseamento eleitoral do mesmo concelho, devendo, dentro do mesmo prazo, fazer-se e comunicar-se as nomeações que para este efeito foram necessárias segundo o artigo 22.º da carta de lei de 20 de Julho de 1899. Artigo 4.º – O presidente da comissão municipal do conselho da Feira será o presidente da actual comissão do recenseamento militar do mesmo concelho, e para o concelho de Espinho, cujo presidente será também o da comissão municipal, esta nomeará quatro vogais, na conformidade do artigo 18.º do regulamento de 6 de Agosto de 1896. § único – As mesmas comissões de recenseamento militar cumprirão oportunamente o disposto do § 2.º do citado artigo 18. O presidente do conselho de ministros, ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino, e o ministro e

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local. É autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

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A chegada de S. M. a Raínha D. Maria Pia. 142

secretário de estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, assim o tenham entendido e façam executar. Paço, em 7 de Setembro de 1899. – Rei.- José Luciano de Castro – José Maria de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral». As comissões municipais nomeadas pelo mesmo decreto foram as seguintes: Para o concelho de Espinho: vogais efectivos: Henrique Pinto Alves Brandão, António Augusto de Castro Soares, António José Pires de Resende, João Francisco da Silva Guetim e António de Oliveira Salvador. Vogais substitutos: Manuel Fernandes Passos, José Alves da Rocha, Narciso André de Lima, Manuel Alves da Silva e Fernando Francisco Pereira, Para o concelho da Feira: vogais efectivos: Manuel de Oliveira Costa, Bacharel José Pinto de Almeida e Castro, Joaquim Alberto da Costa santos, José Correia Marques, João Leite de Sousa, António José da Mota Marques e António Bernardo Coimbra. Vogais substitutos: Caetano Fernandes de Oliveira, Manuel de Oliveira Alves, Francisco José de Moura, Manuel Carlos de Paiva e Sousa, Domingos José de Oliveira Pinto, Manuel António dos Reis e José Rodrigues Silva. Em 7 de Setembro, o Governador Civil de Aveiro, Albano de Melo, nomeia o Administrador do concelho de Espinho, Augusto de Oliveira Gomes. Finalmente, no dia 21 de Setembro, o novo Administrador

Dr. António Augusto Castro Soares.

dá posse aos membros da comissão municipal nomeados pelo decreto de 7 de Setembro de 1899, após terem prestado o respectivo juramento, os quais entre si procederam a eleição para os vários cargos dessa comissão, ficando esta constituída pela forma seguinte: – Presidente – Dr. António Augusto de Castro Soares; vice-presidente – Henrique Pinto Alves Brandão, Vogais – José António Pires de Resende, João Francisco da Silva Guetim, e António de Oliveira Salvador. No final da tomada de posse o novo presidente, Dr. António Augusto de Castro Soares, prestou homenagem, por valiosos e relevantes serviços a Espinho os seguintes cidadãos:


Conselheiro Albano de Melo

Conselheiro Correia Leal, Marquês da Graciosa, Augusto de Oliveira Gomes, Conde de Castelo de Paiva, Conselheiro Albano de Melo, Conselheiro José Luciano de Castro, Conselheiro Pereira Dias, Dr. Francisco Furtado (sobrinho do Marquês da Graciosa e seu sucessor), Ressano Garcia, Macário de Castro, Vaz Preto, Alfredo Meneres, José Pessanha,e Brandão, Gomes e C.ª. Nesse dia «jamais nesta praia se realizaram festejos tão brilhantes e extraordinários, jamais o bom povo vareiro vibrou de tão intenso júbilo, de tão franca alegria, traduzindo o seu grande bairrismo em que se confundiam espinhenses natos e adoptivos.

Toda a Vila amanheceu profusamente embandeirada e ornamentada, todas as casas ostentavam as mais variegadas ornamentações, formando um conjunto deslumbrante. Viva o Concelho de Espinho! – Viva Espinho Independente! – Eis os gritos entusiásticos dos Espinhenses, afixados em policromos cartazes, por todas as paredes, por todos os cantos da povoação. Um entusiasmo indescritível. Um autêntico delírio! – Espinho, finalmente, senhor dos seus destinos e da sua vontade, ia entrar na verdadeira senda do progresso, emparelhar, relativamente, com as terras mais progressivas do País…».1 Espinho celebrou condignamente o primeiro dia da sua liberdade. No rosto de toda a gente lia-se a alegria e a satisfação que lhe ia na alma por tão fausto acontecimento. Às nove da noite, quando as iluminações brilhavam na sua totalidade, organizou-se um préstito brilhante, composto por duas músicas, a corporação dos Bombeiros e comissão municipal que percorreu as ruas principais de Espinho, saudando os seus amigos! Durante o percurso foram erguidos contínuos vivas aos diferentes cavalheiros e espinhenses de destaque que ajudaram Espinho, e nem só uma palavra contra a Feira e seus homens. Frisamos este facto para que se veja o que de quanto o procedimento do nosso povo teve de correcto e digno até ao fim. Ao bater da meia-noite estrondeou lá para o norte uma salva formidável de mais de duzentos tiros. Era sinal de que haviam terminado os festejos. Durante todo o dia, e desde o romper da alva, percorreram as ruas da povoação cinco bandas de música, sendo queimadas continuamente girândolas de foguetes nos locais onde se encontravam… Como já mencionei, a concorrência de gente daí e das aldeias vizinhas, era verdadeiramente insuportável…».2

1 - Benjamim da Costa Dias, Narrativas e Documentos. «Defesa de Espinho». Trabalho transcrito no Boletim Cultural de Espinho, n.os 11/12, Vol. III, 1981 2 - Joaquim Tato. «Espinho Vareiro». Subsídios para a História de Espinho. Transcrito no Boletim Cultural de Espinho n.º 10., Vol III, 1981.

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FLECHA E TROVISCOS Sérgio Pereira* 1 trilho searento da sépia limonite e argila tensor do caminhar do forasteiro os pássaros gostam desta azáfama matinal provocando contendas fugazes no afolhamento estremecido das árvores 2. campos adormecidos na respiração do relento

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labirinto diáfano tertúlia das serranias breviário auspicioso de condimentos e configurações lábios de areia no escoamento dos cereais o rio trilha a sua constância imune aos improvisos da mente arborizada 3. céu picotado pela ramagem origem das latitudes carrego o feixe de lenha no escalvar do caminho os intervalos das passadas repetem-se no frémito de um encontro incessantemente adiado 4. tatuagem de halteres nos chifres do bisonte predomínio do vento na morada escorregadia da adastra

a chuva sente-se espoliada quando não é levada a sério delineações da gramagem da luz culminância das searas os pássaros não precisam de arremessos alegóricos indícios recentes de pastoreio alternativo no sopé debruado da montanha

* Nasceu em 1958, na freguesia de S. João de Ver. Tem seis livros de poesia publicados e uma vivência centrada no mundo dos livros e da criação poética. Mas é, sobretudo, um caminhante e um indagador do desconhecido que se move mais pelo o assombro da inquietação e da perceverança da escuta e do olhar do que pela mais-valia do saber. Assim, ao detalhe biográfico que estabelece ângulos de focagem e de leitura, prefere a revolta estreme do vento imemorial.


ANTOLOGIA PRÁTICA DE UM DEVOCIONÁRIO POPULAR. DEVOÇÕES SEMANAIS Padre Domingos A. Moreira* DEVOÇÕES SEMANAIS: A - Domingo Culto à Santíssima Trindade Pai, Filho, Espírito Santo Obs. – No primeiro quartel deste século, era habitual, no primeiro domingo do mês, a adoração de uma hora ao Santíssimo (e até comunhão) promovida pela Agregação do SS. (Rel). Culto em geral (Deus, Senhor) e Deus Pai: Ó minha alma nunca deixes De louvar o Criador, Que é muito do seu agrado Quem louva o Senhor. Louvado seja quem louva o Senhor (2 vezes) (O 11)

* Pároco de Pigeiros.

Tocam à missa do meu Redentor, Palavras são ditas, Ouvi-me, Senhor. Senhor, eu não Vos vejo Mas em Vós creio. Perdoai-me, que é o meu desejo. Deus te salve, casa branca, De Deus foste ordenada, Onde está o cálice bento E a Hóstia Consagrada. (O 31) Culto à Santíssima Trindade: Abatei minha soberba, Exaltai minha humildade. Bendita e louvada seja A Santíssima Trindade. (L 117) Eu benzo a minha casa Três vezes ao dia: De manhã e à noite e à hora do Meio-dia. Entrego-me a mim e à Minha família

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Às pessoas da Santíssima Trindade. Pai Nosso, Ave Maria. (O 48) A Santíssima Trindade Me acompanhe toda a vida, Que sempre me dê guarida E de mim tenha piedade. O Pai Eterno me ajude, O Filho a bênção me lance, O Espírito Santo me alcance Protecção, honra e virtude. Nunca a soberba me inveje Nem me desvie do bem. A Santíssima Trindade Me acompanhe sempre, Amém. (L 117-118) 146

Abençoai, Pai Eterno, Este meu entendimento, Para que só em Vós cuide Em todo o lugar e tempo. Abençoai, Divino Filho, Também a minha memória, Para que de Vós se lembre Em todo o tempo e hora. Abençoai, Divino Espírito, Também a minha vontade, Para que só a Vós ame Por toda a eternidade. (L 118) Culto a Jesus (Deus Filho): Jesus vivo seja comigo, Jesus morto seja meu encosto, Jesus crucificado seja o meu amparo. (RP 60) Valha-me Senhor vivo, Valha-me Senhor crucificado, Valha-me Senhor morto. Senhor vivo esteja comigo, Senhor crucificado a meu lado,

Senhor morto ao meu corpo. (Mens 117.16) Pelas vossas cinco chagas, Não me deixeis morrer Sem acto de contrição. (L 120) Jesus é meu Pai, Eu sou seu filho: Jesus da minha alma, Pai da minha vida. (Mens 117.16) Ó Senhor crucificado, Amor do meu coração, Que a minha alma se não perca Nem morra sem confissão. Contrito e arrependido, Peço mil vezes perdão. Ó Senhor crucificado, Pregado na santa cruz, Livrai-me do meu pecado Para sempre, Amém, Jesus. (L 120) Culto ao Espírito Santo: Ó luz do Espírito Santo, Vinde em nossa companhia. Nos caminhos desta vida Sede sempre o nosso guia. Ensinai-nos a louvar A Jesus e a Maria. Sete dons do Espírito Santo, Sete soldados de Cristo, Defendei a minha alma, Livrai-a de todo o risco, Ajudai minha fraqueza P’ra ser soldado de Cristo. (L 121)


Ao divino, ao divino, Ao divino imperador: Amparai a minha alma Quando deste mundo me for. (CP 238) Espírito Santo glorioso, Do Pai e do Filho procedente, Que iluminais a Cristandade, Com a vossa luz refulgente Iluminai os meus caminhos Nesta vida de caminhante. Santificai a minha alma Com a graça santificante. Durante toda a minha vida Defendei-me na tentação. E na hora da minha morte Dai-me a graça da absolvição. (L 121) Divino Espírito Santo, Que estais nessas alturas, Alumiai nossas almas, Não nos deixeis às escuras. (EP 8.325) B - Segunda-feira Culto às almas do purgatório Ao ver ou ao ir ao cemitério: Deus vos salve, antepassados, Irmãos meus. Já fostes como nós E nós havemos de ser como vós. Pedi e rogai a Jesus por nós, Nós pedimos e rogamos a Jesus por vós. (C 157) Deus te salve, adro santo, Cabeceira de finados. (CPR 96)

Orações várias: Ó anjo S. Miguel, Pesai-nos esta esmola. Entregai-a ao senhor Lá no reino da glória. (Mens 95.6) Olha cristão que és terra E olha que hás-de morrer. Hás-de dar contas a Deus Do teu bom ou mau viver. (CPR 99) Rainha do Céu, Rainha da glória, Sede nossa advogada, Até à morte nos dai fala No nosso coração sempre forte P’ra guardar os mandamentos De Nosso Senhor Jesus Cristo, assim seja. (C 159) Quem quiser ir para o céu, Apegue-se a S. Gregório. Ele quer que rezemos Às almas do purgatório. (Estre 152) Fica-te para aí, corpo, Que só és cinza e pó. Eu vou dar contas a Deus E lá me acharei só. Segui os teus apetites E bem nunca encontrei E as maldades que fizeste Agora as pagarei. (CPR 100) Virgem santa do Rosário, Ouvi minha oração. Lembrai-Vos desta alminha, Tende-a na vossa mão. (C 159)

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À porta das almas santas Bate Deus a toda a hora. Queremos que deixes o mundo Para irmos para a glória, Na companhia dos anjos Também da Virgem Maria E na nossa companhia, Jesus Cristo verdadeiro. (S 493) C - Anjos (especialmente anjo da guarda) Em tempos antigos, à quarta-feira e depois à terça-feira, e, actualmente, já esquecido este dia semanal de culto. Obs. – No primeiro quartel deste século, havia, na freguesia de Margaride, a Obra dos Santos Anjos para meninas (Rel 173) 148

Anjo da guarda: Anjinho da minha guarda, Deus vos dê muito bom dia. Assim como me guardaste dos perigos da noite, Guardai-me também de dia. Em vosso louvor seja Pai Nosso, Ave Maria. (C 151) Querido anjo da guarda, Meu guia e meu defensor. Rogai sempre a Deus por mim Por qualquer parte onde eu for. (CPMB 126) Anjo da minha guarda, Guardai o meu coração, Para que em mim se não perca O fruto da redenção. Guiai-me e acompanhai-me Pela justiça e verdade, Para ir gozar a Deus Na feliz eternidade. (CPR 75)

Anjo meu, faz sentinela Dentro do meu coração. Que o pecado, se entra nele, É a minha perdição. (L 133) Anjo da minha guarda, Semelhança do Senhor, Ao mundo fostes mandado Para meu amparador. Peço-vos, Anjo bendito, Por vossa graça e poder, Que das garras do demónio Me ajudeis a desprender. (L 132) Vos peço, Anjo bendito, Me queirais defender A mim e a toda a minha família Assim como Deus andou guardado No ventre da Virgem Maria, Pai Nosso, Ave Maria. (AB 3.267) Guardai-me de noite, Guardai-me de dia, Que eu vos ofereço Um Pai Nosso e uma Ave Maria. (CPR 75) Meu anjo da guarda, Santo anjo do Senhor, Me livre e me guarde, Seja a minha companhia A toda a hora da noite e do dia. Em sua honra e louvor Um Pai Nosso, Ave Maria. (CPR 76)

Santo anjo da guarda Em tribunal divino Seja meu advogado. Se eu cair em pecado, Me dê sua mão direita


Para eu me levantar E não tornar a pecar. (CPR 76) Anjo da minha guarda, Meu fiel guardador, Guardai a minha alma, Levai-a para o Senhor. (L 132) O meu bom Anjo da guarda Esteja ao meu lado agora E venha sempre a esta hora Livrar-me de tentações E que Deus guarde a minha alma De algum pecado mortal E evite as más ideias Que aos meus irmãos façam mal. Ó meu bom anjo da guarda, Pedi à Virgem Nossa Mãe Que me afaste do pecado Por toda esta vida, Amém. (AB 3.267) Ó Anjo da minha guarda, Semelhança do Senhor, Desceste do céu à terra Para seres meu guardador. Peço-vos, anjo bendito, Pelo vosso santo poder, Dos laços do demónio Me haveis de defender. (3 vezes ao dia) (O 40) Ó anjo da minha guarda, Minha doce companhia, Guardai-me por esta noite E amanhã por todo o dia. Ó anjo da minha guarda, Ó meu fiel guardador, Tomai conta da minh’alma, Entregai-a ao Senhor. (CPR 74)

Anjo santo guardador Mandor dizer o Senhor Não dormisses e velasses E a minha alma guardasses. Pelo poder que em ti mora Não me deixes nem uma hora Sem festas, sem alegria... Em vosso louvor Padre Nosso e Avé Maria, Para viver e reinar Sempre em vossa companhia. (OD 244) Se vós me deixais, Que será de mim? Ó anjo da minha guarda, Rogai a Deus por mim, Amém. (AB 4.313) Duas orações popularizadas ao anjo da guarda: Ó anjo digníssimo da minha guarda, A quem estou encomendada pela bondade de Deus Desde o momento em que nasci até à derradeira hora da minha vida, Amparai-me, anjo glorioso, guardai-me E levai-me por caminho direito e seguro Até essa santa cidade do Céu. Não permitais que eu faça na vossa presença Coisa alguma que vos ofenda. Apresentai os meus desejos e misérias ao Senhor, Alcançai-me para elas o remédio da vossa infinita bondade. Valei-me quando durmo, Atendei-me quando estou para cair E levantai-me quando já estou caído. Despertai-me quando desmaio, Alumiai-me quando não vejo, Defendei-me quando sou atacado pelo ímpeto do demónio, Nosso manhoso inimigo. E na hora da minha morte Livrai-me do dragão infernal, Para que eu seja sempre guiado e amparado de Vós. E vá depois seguramente gozar a vossa glória na vossa companhia

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Com todos os santos e santas, Louvando a Deus Nosso Senhor para sempre, Amém. (AB 4. 312)

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Anjo santo, meu conselheiro, inspirai-me; Anjo santo, meu defensor, protegei-me; Anjo santo, meu fiel amigo, pedi por mim; Anjo santo, meu consolador, fortificai-me; Anjo santo, meu irmão, defendei-me; Anjo santo, meu mestre, ensinai-me; Anjo santo, testemunha de todas as minhas acções, purificai-me; Anjo santo, meu auxiliar, amparai-me; Anjo santo, meu intercessor, falai por mim; Anjo santo, meu guia, dirigi-me; Anjo santo, minha luz, iluminai-me; Anjo santo, a quem Deus encarregou de me conduzir, governai-me. (Archibald Joseph Macyntyre, Os Anjos – Uma Realidade Admirável, 2.ª ed., Rio de Janeiro, 1986, p. 389) Esta segunda oração parece ter sido inspirada no modelo da seguinte oração conhecida que, por sua vez, inspirou outra, dedicada à Virgem Maria: Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriai-me; Água do lado de Cristo, lavai-me; Paixão de Cristo, confortai-me; Ó bom Jesus, atendei-me; Dentro das vossas chagas, escondei-me; Não permitais que eu me separe de vós; Do mau inimigo defendei-me; Na hora da minha morte, chamai-me; É mandai-me ir para vós; Para que vos louve com os vossos santos Nos séculos dos séculos, amen. Alma da Virgem, alumiai-me; Corpo da Virgem, guardai-me; Leite da Virgem, alimentai-me; Trânsito da Virgem, confirmai-me; Mãe da graça, intercedei por mim.

Recebei-me por vosso amor, Recebei-me por vosso escravo, Livrai-me de todos os males, Que eu sempre confie em Vós. Na hora da nossa morte, ajudai-me, Ensinai-me o caminho para Vós, Para que entre todos os escolhidos Vos louve eternamente, Amén. (L 127) Todas estas três últimas orações são em forma da ladainha, forma esta que é bem aceite pelo gosto popular. Outros anjos: S. Miguel arcanjo, Aio da Igreja, Alegria dos Anjos, Vossa graça nos defenda E vosso amor nos ampare E nos leve a gozar Ao reino de Deus Pai. (OL 89) Em honra de São Miguel Que nos livre de todas as tentações; Em honra de São Rafael Que nos dê boa companhia; Em honra de São Gabriel Que nos dê boas notícias. (O 41) Observação – Como é sabido, S. Miguel, por ter vencido o demónio, pode livrar-nos das tentações do mesmo demónio. S. Rafael, por ter acompanhado Tobias (ver Antigo Testamento da Bíblia), faz boa companhia. S. Gabriel, por ter dado a notícia da incarnação de Cristo no seio virginal de Maria, traz boas notícias. Outras orações: Ó anjo da guarda, Minha doce companhia,


Guardai a minha alma De noite e de dia. (Mens 91.17) Peço-vos, Anjo Bendito, Pela graça do Senhor, Que me livres do demónio, O pecado é tentador. (DL 140) D - Todos os Santos Culto que, tendo sido antigamente à terça-feira e depois à quarta-feira, acabou por desaparecer, tendo deixado alguns vestígios em orações populares como “rezas da ceia”, etc., em forma de ladainha. Obs. – No primeiro quartel deste século era habitual a quartafeira ser dedicada a S. José (Rel) em todas as semanas ou só na primeira semana do mês. Coração Divino, Deus adiante e atrás me guia, Entreguemo-nos a Deus e à Virgem Maria, que nós sejamos felizes por onde andarmos por todos os caminhos e por santos dos nomes dos nossos padrinhos que nos fizeram felizes e cristãos; que nós sejamos acompanhados e circulados pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e o manto de Nossa Senhora em volta. Para que nós não sejamos feridos, nem presos, nem mortos, nem maltratados por longos caminhos andaremos, bons e maus encontraremos. Os bons para nós virão, os maus de nós se afastarão. Entreguemo-nos ao Anjo da Guarda que nos guarda de todo o mal e à Rainha Santa Isabel, Padroeira de Portugal. Entreguemo-nos ao Santo Condestável e a São Jorge, grandes soldados

que venceram tantas guerras, nunca foram feridos nem presos, nem mortos, nem maltratados. Entreguemo-nos a São Bartolomeu, ao São Francisco Xavier que nos livre de tudo quanto por mal de mau homem, de má mulher, de má fé. Entreguemo-nos ao São Espírito, que nos livre de todos os trabalhos e de todos os maus desejos nós sejamos benditos. Entreguemo-nos ao Santo António e a São Pedro e a São Paulo e a São João, a todos os Santos que no céu estão. Pedimos aos 12 Apóstolos que venham todos em nosso auxílio, nos guardem tanto de noite como de dia, como guardado foi o Verbo Divino, no ventre da Virgem Maria. Pai Nosso e Avé Maria. (O 34) António eu te entrego a Deus e à Virgem Maria, Nosso Senhor é teu pai, Nossa Senhora é tua mãe, os 12 apóstolos são teus irmãos. Com as armas de São Jorge andarás armado para que o teu corpo não seja morto, nem teu sangue derramado, nem tuas carnes interrompidas. Nossa Senhora te guarde por todo o dia e à hora do meio dia como guardou o filho de Deus no seio da Virgem Maria. (O 52) “Glorioso Patriarca S. José, S. Joaquim, Santa Ana, Santo do meu nome, a Vós Santos todos juntos, e especialmente aquele de Vós com que tenho mais particular devoção, alcançai-me de Deus a minha eterna salvação.” (P. A. Tavares Martins, Paróquia de Santa Maria de Campanhã – Subsídios para a sua História, Porto, 1966, p. 837).

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A Santa Luzia, que nos dê vista e claridade na alma e no corpo. A Santo António, o pastor das coisas perdidas, que seja o pastor das nossas almas, para que se não percam, e guarde os nossos gados, para que não tenham perigo. A S. Gonçalo, que nos livre dos aleijões. A S. Frutuoso, que nos dê frutos e benções. A S. José, Santa Ana e toda a Família sagrada, que peçam ao Senhor por nós. Ao mártir S. Sebastião, que nos livre da fome, peste e guerra. 152

A S. Bernardino, que prenda o inimigo na hora da nossa morte. À Senhora da Saúde, que nos dê a esmola da saúde. À Senhora da Pena, que nos livre das penas do inferno. À Senhora dos Remédios, que nos dê remédio para o corpo e salvação para a alma. A S. Bento, que nos livre das coisas ruins e dores de dentes. A Nossa Senhora da Conceição, que nos dê a graça da salvação. Ao Sagrado Coração de Jesus, que nos dê um bom coração para O servir e amar. A todos os Santos, que sejam nossos advogados e protectores, durante a vida e principalmente na hora da nossa morte. Amém. (L 94) Rezemos em louvor do Santíssimo Sacramento, assim como nos deu p’ra hoje, nos dê p’ra todo o sempre, graças para O servir e não para o ofender. P. N. A. M.

Rezemos um Padre Nosso a S. Salvador do Mundo, assim como salvou o mar e a terra, nos salve as nossas almas p’ra diante de Deus Nosso Senhor, quando deste mundo formos. P. N. A. M. A Santo António Milagroso que nos guarde todos os bichinhos vivos e nascidos. P. N. A. M. A S. Bentinho bendito que nos guarde dos Maus vizinhos da porta, de quem bem nos fala e mal nos quer. P. N. A. M. A S. Sebastião que nos livre da fome, peste, guerra e ferros de el-rei. P. N. A. M. A Santa Bárbara bendita que nos livre de raios e mortes repentinas. P. N. A. M. A Santa Luzia bendita que nos dê vista e claridade na alma e no corpo. P. N. A. M. Rezemos por todos aqueles que andam sobre as águas do mar, para que o Senhor os traga a porto de salvamento; e aqueles que estão no estado da sua divina graça o Senhor os conserve nela; e aqueles que estão em pecado mortal o Senhor lhes dê o verdadeiro arrependimento dos seus pecados. P. N. A. M. A S. Nicolau bendito que nos livre de males desconhecidos, nascidos e por nascer. P. N. A. M. A S. Brás para que nos livre dos males da garganta e outros da mesma raça. P. N. A. M. Rezemos um credo ao Divino Espírito Santo, para que o Senhor nos acabe no estado da sua divina graça e nos faça fortes e firmes na fé: credo. (Reza-se em voz baixa). Seguidamente (também em voz baixa) reza-se a Salve Rainha a Nossa Senhora, até: Rogai por nós, Santa Mãe de Deus: - Para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Amen. (Barros da Fonte, Lourenço Fontes, Alberto Machado, Usos e Costumes de Barroso, Chaves, 1972, pp. 126-127)


E - Quinta-Feira Santíssimo Sacramento da Eucaristia Obs. – No primeiro quartel deste século era costume haver as comunhões das primeiras quintas-feiras do mês promovidas pela Obra das 3 Marias e discípulos de S. João Evangelista (Rel). O Sacrário é dourado Por fora como por dentro. Adoremos, adoremos O Santíssimo Sacramento. (CM 183) Pus-me a considerar Esta Ave-Maria Que tenho rezado E ofereço-a a Jesus Sacramentado. Deus dentro, Paz na guia, O Senhor esteja na minha companhia. (TP 173) Bendito, louvado seja O Divino Sacramento, Dos anjos manjar sagrado, Das almas é seu sustento. (EP 8.343) Dai-me memória E entendimento P’ra receber O Santíssimo Sacramento. (CPMB 126) Ó Sacramento Divino, Que lá estais nessas alturas, Alumiai as nossas almas, Não (n)as deixes às escuras. (CA 225) Já recebi A vossa bênção. Ficai, ó meu Jesus, Dentro do coração. (CM 193)

Santíssimo na custódia: Vou ser santa sem fim, Deus diante a par de mim. O Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo Me há-de guardar E a sua divina morte e paixão Me hão-de salvar. (Mens 92.16) Bendito e louvado seja O Santíssimo Sacramento, No céu que estais adorado, Cada vez com mais aumento. Na terra sacramentado. (Mon 213) F - Sexta-Feira Santa cruz e paixão de Cristo Obs. – No século XIX / XX havia habitualmente a comunhão das primeiras sextas-feiras do mês, promovida pela Associação do Coração de Jesus (Apostolado da Oração). Antes da Via Sacra Bendita e louvada seja A paixão do Redentor Que, pra nos remir das culpas, Padeceu grandes tormentos, Duros martírios na cruz, E morreu pra nos salvar. Louvado seja Jesus. À Via Sacra De Montalegre No fim de cada estação, rezava-se um padre-nosso 1ª estação Meu Jesus crucificado, Onde estais? Quem Vos ligou?

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Coro: Ai fui eu, foi meu pecado, Quem tal crime praticou. 2ª estação Meu Jesus, quem, despiedado, Com cordões Vos amarrou? Coro (repete) 3ª estação Meu Jesus, no santo rosto, Quem a mão Vos assentou? Coro (L 60) 154

9ª estação Meu Jesus, tão fatigado, Quem o peso Vos dobrou? (L 61) Coro

10ª estação Meu Jesus, quem, desgraçado Vossas vestes arrancou? Coro 11ª estação Meu Jesus, na cruz pregado, Quem as mãos Vos trespassou?

4ª estação Meu Jesus, quem, desvairado, Lama e escarros Vos lançou?

Coro

Coro

12ª estação Meu, Jesus, os pés cansados, Ao madeiro quem pregou?

5ª estação Meu Jesus, quem, desumano, Vosso corpo flagelou?

Coro

Coro

13ª estação Meu Jesus, quem vosso lado Com a lança atravessou?

6ª estação Meu Jesus, quem, por escárnio, Vossa fronte coroou? Coro 7ª estação Meu Jesus, qual o malvado Que da cruz Vos carregou?

Coro 14ª estação Ó Maria, ó Mãe divina, Quem o Filho Vos matou? Coro:

8ª estação Meu Jesus, a vossa boca, Quem com fel a amargurou?

Ai fui eu, foi meu pecado Quem tal crime praticou. (L 62)

Coro

- Além vai Jesus! - Que lhe quereis vós?


- Quero ir com Ele Que Ele leva a cruz, Seus braços abertos, Seus pés encravados, Derramando sangue Pelos nossos pecados. A terra tremia Com o peso da cruz, Digamos três vezes: Salvai-nos, Jesus, Salvador do mundo, Que tudo salvais. Salvai a minha alma, Bendito sejais. (EB 6.294-295)

Onde se ocupa o pecado. Outra é o inferno Para onde vai o condenado. Outra é o céu Para onde vai o castigado. [pela cruz] (PL 269)

Já os galos pretos cantam, já os Anjos se levantam, Já meu Deus subiu à cruz Para salvar as nossas almas, Para sempre amém, Jesus. (O 32)

Sobre a antiguidade deste dia devocional, pode ler-se: mensagem mariana de 18-4-1992 ao P. e Stéfano Gobbi (Aos Sacerdotes..., 13ª ed., S. Paulo, p. 777); ed. Henrique Pinto Rema, Sermões de S. António, Vol. I, Porto, 2000, p. 120; Gabriel M.ª Roschini, La Madre de Dios, Madrid, 1958, p. 595.

G - Sábado Dia Tradicional de Maria Obs. – O primeiro sábado do mês era dedicado, na freguesia de Banho, à Imaculada Conceição (Rel 226), no primeiro quartel deste século.

Quando se vê a cruz: Oferecimento do Terço Ó meu bom Jesus do Horto, Foste preso (foste morto!) Perdoai-me. Vossa morte Foi tão cruel e tão forte! Na hora da verdade, De mim tende piedade. (CPMB 129) Quem da minha sagrada morte E paixão se lembrar E trinta e três credos me rezar, Quanto me pede, Quanto lhe hei-de dar. (PL 271) Quatro coisas tem Deus, Todas quatro o seu mandado. Lema é este mundo Que nos traz enganados. Outra é o purgatório

1 Este terço que rezámos Oferecemos a Maria, Que nos livre do demónio E da sua má companhia. 2 As contas do meu rosário São peças de artilharia, Que combatem os infernos, Dizendo: Ave, Maria. 3 Ave, Maria puríssima, Sem pecado concebida, Outra vez: Ave, Maria, Rosa dos Céus escolhida.

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4 Maria seja connosco Na morte e mais na vida, Para o que sempre louvamos Nossa Mãe e companhia.

11 Retirai dos nossos peitos Tudo quanto da culpa é; Levai-nos à eterna glória, Jesus, Maria, José.

5 Bendito, louvado seja O rosário de Maria; Se ela não viesse ao mundo, Mas do mundo que seria? (CP 239)

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6 Bendito, louvado seja O divino Sacramento; Dos anjos sejais maná E das almas feliz sustento. 7 Este divino maná Quem o tomar dignamente Terá por certo viver Lá nos Céus eternamente. 8 É tão suave sustento Que se nos dá neste pão, Que nele se representa Os mistérios da Paixão. 9 Dos anjos sejais louvada, Ó Virgem da Conceição, Porque fostes reservada 1 De toda a culpa de Adão. 10 Também fostes desterrada De Belém a Nazaré, Pelas montanhas de Egipto, Mais Jesus e São José.

Por “preservada” (CP 240) 12 Senhor Deus, dai-nos auxílio, União, paz e concórdia; Para que sejamos dignos Da vossa misericórdia. 13 Misericórdia, meu Deus, Misericórdia, Senhor, Misericórdia vos pede Este grande pecador.

14 Pelas vossas cinco chagas, Pelo vosso divino amor, Pelas vossas cinco chagas, Livrai as almas, Senhor. 15 A Vós, Virgem, oferecemos Esta nossa devoção: Seja para glória vossa E p’ra nossa salvação. 16 Glória seja a Deus Padre, E à do seu filho também Glória seja ao Esp’rito Santo, Para todo o sempre. Amém. (CP 240)


1 Virgem Santíssima, Vós não permitais Que eu viva nem morra Em pecados mortais!

8 O mundo formou Para nos salvar; Nós somos pecador’s E sempre a pecar! (CP 245)

2 Em pecados mortais Não hei-de morrer, Que a Virgem Santíssima Nos há-de valer! 3 Nos há-de valer Com todo o valor, Rainha dos anjos Com seu resplendor. (CP 244) 4 Com seu resplendor Dos anjos maravilha; Como é divina A Virgem Maria! 5 A Virgem Maria Que o Senhor ‘scolheu P’ra ser Mãe Sua, Quando Ele nasceu.

6 Quando Ele nasceu, Nasceu Bom Jesus, Salvador do mundo, Dos termos da luz. 7 Dos termos da luz Só um Deus se achou: Como é divino, O mundo formou.

As contas do meu rosário São peças de artilharia Que combate nos infernos, Dizendo a Ave-Maria. Maria seja connosco Na morte e mais na vida, Para que sempre louvemos Nossa Mãe na companhia. (ES 490)

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METADE DE MIM Judite Lopes*

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Onde estás tu que não te encontro, metade de mim?!... Povoas-me o sono sem rosto e incendeias-me a noite dos sonhos com versos inacabados. Trago na pele o véu da fantasia que rompe as marés do nada como se as vagas de lua fossem palavras por dizer! Acende-se-me no peito a saudade dos beijos que não dei e o fogo rubro dos anseios queima-me o mar dos sentidos. Procuro no silêncio vazio a voz do olhar mudo que rasgo nas trevas onde invento teu corpo de luz e abraço apenas a poeira do tempo onde ressoa a música das sombras que me afaga a alma em ânsia.

* Licenciada em Animação Sociocultural. Autora do livro de poemas Vislumbres.


PADRÃO HISTÓRICO EM ARRIFANA DE SANTA MARIA Augusto Telmo * Na sequencia do artigo anterior, no qual iniciámos a publicação de alguns enxertos do livro que irá ser publicado aquando das comemorações dos 200 anos do ‘Massacre em Arrifana de Sª. Mª.’, a 17 de Abril de 2009, de autoria do autor destes, Augusto Telmo, e que se intitulará “Um Padrão Histórico em Arrifana de Sta. Maria”, passamos a publicar, a correspondência, inédita, recebida pelo Presidente da “Comissão do Monumento”, Saúl Eduardo Rebello Valente, antes e depois da inauguração do monumento, e oriunda da Comissão Oficial Executiva do Centenário da Guerra Peninsular e assinada pelo seu Presidente, General Rodrigues da Costa: “Lisboa, 11 de Abril de 1914. Tendo sido feriados os dias 9 e 10, só hoje posso corresponder, agradecendo, ao penhorante favor de V. Ex.ª, de 8. Antes de tudo, cumpre-me fazer uma breve nota histórica. O facto, comemorado pelo Padrão da Arrifana, embora (*) Licenciado em Engenharia Civil. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial. Professor do Ensino Secundário. Director do Jornal “O Arrifanense”. Tem 3 livros publicados sobre a história local.

d’alto relevo patriótico, foi essencialmente de caracter civil, não o tendo antecedido ou seguido qualquer acção militar. O singelo monumento, que vae inaugurar-se, é, e será sempre com honra para si, o podem afirmar, da iniciativa dos Arrifanenses, e portanto LOCAL, sob todos os aspectos, inclusivé o da sua propriedade: Outro temos, em idênticas condições, - o de Vila Nova da Cerveira. Ambos foram subsidiados pela Comissão do Centenário, quer dizer pela verba consignada ao centenário, o que não é POSITIVAMENTE ter sido auxiliado pelo Governo, embora o haja sido por proposta e acção directa d’uma Comissão Oficial. Não sendo, pois, o Padrão da Arrifana, nem do Estado (que o não mandou fazer), nem representativo de qualquer feito privativamente militar, passo a dar a minha opinião pessoal sobre os assuntos, a respeito dos quais V.Ex.ª me consulta: 1º.: Sendo a Junta da Paróquia a entidade oficial que dirige, e, de direito, preside à solenidade da inauguração do Padrão, a ela só pertence toda a iniciativa, e toda a responsabilidade dos convites, que entenda fazer; 2º.: Não há dever de serem feitos especiais convites militares, visto se não tratar de facto histórico, em que houvesse tomado parte o exército nacional; 3º.: Sendo vantajoso, para brilho da solenidade, a manutenção da ordem pública, a presença de força militar, é

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Praça da Guerra Penínsular - Casa da Viúva de Américo Rezende no dia da Festa da Árvore.

justo que esta seja requisitada pela administração do concelho à respectiva Divisão do Exército, e no efectivo que parecer adequado aos recursos locaes. Julgo ter satisfeito todas as perguntas de V.Ex.ª, mas continuo ao seu dispor para qualquer outras, rogando-lhe que, sem o mínimo constrangimento, disponha da minha sincera boa vontade em lhe ser agradável. Devo ainda dizer a V.Ex.ª que a Comissão do Centenário se fará representar no acto da inauguração pelo E.mo Sr. Dr. João Pereira de Magalhães, da Vila da Feira. Não participei anteriormente este facto por não saber ainda se o Sr. Dr. João de Magalhães quereria aceitar o encargo.” --------------------------

Saúl Eduardo Rebello Valente - Vice Presidente da Câmara da Feira.

“Lisboa, 15 de Abril de 1914. Recebi hontem a carta de V. Ex.ª, de 12, a qual venho agradecer, pedindo licença para, a seu propósito, acrescentar ainda alguns esclarecimentos necessários à minha anterior. A verdade histórica é só uma, e na sua simplicidade não é possível alterá-la, ou adaptá-la à nossa vontade. E a que se refere ao Padrão da Arrifana consta dos documentos, que todos existem e se guardam no archivo da Comissão do Centenário. Aquele Padrão, e que é um retábulo religioso, de auctor desconhecido, de pintura muito ingénua, existia, confiado à piedade dos arrifanenses, num nicho, aberto em propriedade particular, quando eu primeiramente o vi. Memorava, então como hoje, o MORTÍCINIO de 17 de Abril de 1809, feito pelos francezes na freguesia da Arrifana, em vingança da morte dum


Américo de Rezende - Iníciador do Monumento e 1º Presidente da Comissão.

oficial do exército invasor, ajudante ou filho do general, que então se aquartelava na Feira. Aquele retábulo recordava, não qualquer combate, mas a morte, - o sacrifício pela pátria - de muitos portuguezes, que sucumbiam inermes e desprotegidos às mãos dum inimigo cruel, poderoso, e vingativo. Não era um trofeu de glória. Era uma recordação piedosa, e uma homenagem dos vivos aos que haviam morrido, como verdadeiros mártyres da pátria. O retábulo vem para Lisboa, foi restaurado e melhorado, e voltou para a Arrifana, tendo eu lembrado que ahi fosse colocado numa das paredes (face exterior) da egreja, de preferência a continuar numa propriedade particular. Foi a Junta da Paróquia quem, no seu ofício nº. 9, de 15 de Março de 1912, comunicou ter deliberado que o retábulo-padrão fosse colocado num singelo monumento, erecto no local onde se efectuara o MORTICÍNIO, enviando então o desenho do referido monumento, para o qual - disse contava com a subscrição local, e pedia o auxílio da Comissão do Centenário. Assim se aprovou e assim se fez, resultando de

tudo isso que o padrão, RECORDANDO UM MORTÍCINIO, é de INICIATIVA LOCAL, subsidiado pela Comissão do Centenário. Logo não tem característica alguma militar, é CIVIL (se não quizerem que seja religioso, como eu entendo que ele é), e não é NACIONAL, mas LOCAL, porque foi a paróquia que o fez. Os subsídios da Comissão representam a intenção desta em honrar um episódio sangrento e triste, mas patriótico pelo sacrifício, da invasão de 1809. As legendas, relativas a esse episódio, e que ornam o obelisco, foram solicitadas pela Junta de Paróquia, em seu ofício sem número, de 5 de Maio, também de 1912. Há um ponto, que desejo esclarecer. Quando eu, em 1909, creio estive na Arrifana, nada de positivo podia ter aconselhado, ou prometido, sobre um monumento que só em 1912 nasceu da iniciativa da Junta de Paróquia. Sem prejuízo do que fica dito, lembrarei que, se a Junta de Paróquia desejar que o seu padrão seja MONUMENTO NACIONAL, OU MILITAR, pode, mais tarde, fazer nesse sentido as suas diligências, d’acordo com as leis, que regulam o assunto. Para a comparência de oficiais, ou quaesquer outros militares, à solenidade de 19 do corrente, também a mesma Junta está no pleno direito de convidar os que quizer, de acordo com o critério, que lhe parecer mais justo. Se igualmente a Junta quizer que, em Lisboa e na Secretaria da Guerra se empreguem diligências para que à inauguração do monumento assista uma guarda de honra, essas diligências se farão, e do resultado se dará conta. Não podendo, neste mês, sair de Lisboa nenhum dos membros da Comissão do Centenário, pareceu a esta justo e adequado delegar a sua representação em pessoa desse concelho, que além da própria cathegoria e respeitabilidade, muito afirmara o seu empenho pelo Padrão e em auxiliar sobre o assunto a Comissão do Centenário.” -----------------------

“Lisboa, 17 de Abril de 1914 Respondo à estimada carta de V.Ex.ª., de hontem 16, que hoje recebi. Já hontem eu conferenciara com o Sr. Tenente Coronel Pacheco Simões, chefe do gabinete do Sr. Ministro da Guerra,

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e que é também vogal desta Comissão, e nessa conferencia ficou combinado que eu oficiasse, como imediatamente fiz, à secretaria da guerra, lembrando a conveniência de ser nomeada uma guarda de honra, e um representante daquela secretaria para assistirem à inauguração do Padrão. Hoje, às 2 horas da tarde tive conhecimento de que o Sr. Ministro ordenara aquelas nomeações, e logo telegrafei, participando-as, ao Sr. Presidente da Junta da Paróquia. O representante da secretaria da guerra é o Sr. Major, comandante do batalhão aquartelado em Ovar. É de crer que vão os respectivos telegramas oficiais, mas eu devia esta resposta à carta de V. Ex.ª, até por que queria dizer-lhe que, espontaneamente havia previsto o pedido directo da Junta da Paróquia, e que muito aplaudo, como necessário e oportuno.” ------------------162

Ofício assinado pelo General Jayme Leitão de Castro” Para concluir estes textos, inéditos, como referimos acima, de grande valor histórico para a concretização oficiosa do monumento é importante referir-se que: «Pode pois dizer-se que o que levou a construir-se o padrão foi a vontade de dar uma maior perenidade e dignidade ao ‘Retábulo’ comemorativo da morte de Manuel Azevedo e, por extensão, de todos os arrifanenses fuzilados representados ou não no mesmo painel (pintura de autor desconhecido, datada de 1822, 13 anos após o massacre de 17 de Abril de 1809, que o perpetuava). É assim que o projecto inicial prevê a colocação do mesmo ‘Retábulo’ em lugar de honra no obelisco, “na face principal do monumento inteiramente ao abrigo da chuva e da acção directa da acção dos raios solares”.» (Por isso este retábulo foi colocado inicialmente do lado norte do padrão, para precisamente o resguardar, ao máximo, das mazelas do tempo).

“Lisboa 16 de Junho de 1914. Constando nesta Comissão haver-se extraviado do arquivo dessa Junta o desenho-projecto do Padrão Comemorativo, que em 19 de Abril foi ahi solenemente inaugurado, tenho a honra de enviar a V: Ex.ª, com destino aquele arquivo, uma cópia do referido desenho-projecto, que acompanhou o ofício dessa Junta nº. 9, de 15 de Março de 1912.” ----------------------

“Lisboa, 22 de Maio de 1917. Tendo eu assumido a presidência da Comissão do Centenário da Guerra Peninsular, por motivo do falecimento (falecido neste mês de Maio) do nosso inolvidável amigo Sr. General João Carlos Rodrigues da Costa, cumpre-me agradecer, com muito reconhecimento, em meu nome e no de todos os membros da Comissão, as palavras de verdadeira justiça e de viva saudade que V. Ex.ª se dignou dirigir-nos por tão profunda e irreparável perda. Desnecessário será acrescentar a V. Ex.ª que esta Comissão, não esquecendo todas as atenções que V.Ex.ª lhe tem dispensado, continua, como sempre, à disposição de V.Ex.ª para o que lhe possa ser útil.

Obs: ‘As transcrições foram feitas exactamente conforme foram escritas, mantendo-se a linguagem da época.’


GRANADA, ALHAMBRA E O SACRAMENTO Augusto Santos* Hoje é dia um de Abril de 1993, estou aqui em Granada, mais precisamente no Palácio de la Alhambra. Há quem diga que foi o mais belo palácio árabe do mundo antigo. Tenho à minha frente uma vista deslumbrante, um maravilhoso panorama, estou no jardim del Partal que eu baptizei de o jardim das peónias, porque tem aqui uns pés deste arbusto, e é agora quando começam a florir, e não há encanto maior do que ver estas flores enormes numa manhã fresca de orvalho, com o sol a raiar por todo o lado. Estas, têm uma cor entre rosa e alfazema, são tão exuberantes que se compreende facilmente porque é que os chineses as veneram, porque é que não prescindem de as reproduzir nas obras de arte mais apreciadas. Há na China lugares onde se vai em “peregrinação” às peónias, que as há de quase todas as cores, sendo sempre predominante aquele belíssimo tom de entre rosa e alfazema. Perto de Pequim há uma colina que só tem peónias. Aqui no Alhambra, olhando o famoso Sacromonte, onde pairam os Duendes, que é onde os ciganos mais castiços vivem em Cuevas, deu-me de repente uma enorme saudade da Maria la Canastera. Já a conheci com bastante idade, não sei quanta, mas bastante, que nos ciganos nem sempre é fácil saber. A sua casa era uma daque(*) Guia Turistico.

las muitas cuevas, depois de uma esquina, se fosse uma casa de paios, cá em baixo, teria sido bastante razoável, mas ali era uma fachada, toda caiada de branco, com sapatas cá fora para o pessoal se sentar, ao fresco da tardinha e da noite, com os imprescindíveis aromas a jasmim e a damas de noche. Nesta sua cueva recebia turistas, ávidos do autêntico, The real thing, para ajudar na subsistência da família, que participava toda em peso, desde a avó aos netos e netas: cantavam cante jondo, e dançavam por bulerias, fandangos de Huelva, martinetes, enfim, quase tudo. Também serviam um vinillo que era uma zurrapa doce, quase intragável. Maria la Canastera, La Matriarca, era quem mandava, eu ia lá sempre que podia. Era uma mulher de pele nem escura nem clara mas era muito cigana, tinha um rosto ainda muito bonito, feições suaves, doces e correctas, tinha ainda imensos dentes para mostrar um sorriso afável, era uma destas velhotas em cujo colo apetecia deitar a cabeça e deixar-se afagar. Chegávamos de noite, depois do jantar no hotel, e ela aparecia a receber-nos, penteadíssima; cabelo muito repuxado, muito brilhante, liso, escuro, teria sido negro, agora já tinha muitos brancos, deixava adivinhar que se ela soltasse o cabelo seria muito ondulado, ondas miudinhas, punha sempre uma flor fresca en el moño, no carrapito, que podia ser um cravo, uma rosa, o que estivesse ali mais à mão, mas do que eu

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Forte Moorish

gostava mesmo era quando ela punha um gerânio, que ficava assim como as coroas dos pavões, e o pé da flor oscilava, bailava também quando ela se levantava e com uma graça e um donaire, que não se imita de ninguém, nasce já com a pessoa, dava uns passos de dança, ou acompanhava as filhas e as netas, batendo palmas. É claro que já não tinha agilidade nem força para dançar, mas mesmo assim dava os tais passinhos e sobretudo movia os braços com tal graciosidade misturada de orgulho e arrogância, que, por um momento, a cigana já idosa e castigada pela vida mais parecia uma rainha e eu ficava extasiado, arrepiava-me todo e os músculos se me contraíam e fazia um esforço danado para ficar quieto. No final, sempre me vinha arrastar, para dançar, uma das netas, que, por sinal, era linda, e eu acho que já lá ia mais para a ver do que para outra coisa. O meu grupo divertia-se imenso, era una gran juerga,

uma galhofa; eu, em troca, pedia-lhes para que cantassem La Zarzamora, El Lerele, A Tani e outras, sendo estas as minhas preferidas. Ali, nas cuevas, gostavam todos de mim e eu deles, tínhamos uma relação muito simpática. Quando chegávamos ao hotel, dava por mim ainda a trautear: “Que tiene la zarzamora, que a todas horas, llora que llora por los rincones.” Um dia, depois de telefonar ao Henrique, que era um dos filhos, a reservar para essa noite, chego aí e encontro-me com todos vestidos de negro, luto rigoroso, barbas e cabelos crescidos, chapéus negros enterrados nas cabeças. Ainda pensei que nessa noite iriam representar alguma peça de Garcia Lorca, ou talvez dançar a Danza deI Fuego, de Manuel de FalIa, mas não, a realidade era outra; tinha simplesmente morrido a Maria la Canastera. Ainda lá fui mais uma ou duas vezes, mas já nada era igual.


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Alhambra

Dizem que ninguém é insubstituível, mas eu nunca estive muito seguro disso. Há várias pessoas na minha vida que nunca consegui substituir, também não sei se quis. Hoje, passados já alguns anos, olhando este Monte Sagrado, apareceu, nos meus pensamentos, aquele sorriso, tão diferente, tão afável. Quando eu telefonava, conhecia-me a voz e eu ouvia-a dizer para alguém que estivesse ali perto “Apunta aí el chaval esse que viene con los americanos”. Se alguém me chamasse hoje de “el chaval esse” não sei se não rebentava de alegria, como se diz aqui em Granada. Entretanto já o meu grupo tinha acabado a visita do Palácio de la Alhambra e tive de me ir embora, tive de acordar deste meu quase sonho, quase realidade, só sei que tive de deixar mais uma vez este Sacromonte, com um até não sei quando, talvez até um nunca mais, quem sabe …”Que tiene la zarzamora que a todas horas llora que llora por los rincones...”


A LOJA DO MAGO DE VÍTOR BELÉM Orlando Silva*

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A “Loja do Mago” – que você teve a gentileza de me oferecer –, decora agora a minha modesta tebaida. Como eu sinto aqueles claros-escuros, aquelas sombras e traços firmes que um momento de inspiração fez guiar a sua mão para agarrar figuras e objectos prenhes de mistério! Vejo nele a candura, a inocência de uma porção de magia branca, por adivinhar no menino encarrapitado no seu triciclo, uma alma virgem, um espírito puro que se extasia com os truques e os objectos que neles entram, por ainda não corrompido pelas misérias do mundo dos adultos. Mas, como em tudo há um reverso, não se esqueceu v. de figurar no seu belo quadro uns quantos símbolos invocadores de magias negras, de que a tabuleta e a estilização do gato preto que a sobrepõe são evidentes sinais. Traz-me ainda à memória o atónito menino, a criança que foi Pessoa quando posou para a posteridade no estúdio “Camacho”, à rua Nova do Almada, montado no seu triciclo sob o olhar meigo e desvanecido de sua mãe. Dir-se-ia, que num passeio matinal pelo Largo de S. Carlos, o menino que viria a ser o poeta, furtouse por instantes aos olhares vigilantes da criada velha e, ao dobrar da esquina, com o coração batendo desordenadamente na arca do peito, deu de chapa com aquela montra que o enfeitiçou. A sugestão ainda de um ventre feminino, contrastando na sua alvura erótica com o fundo negro da vitrina, arrasta-nos para o mistério da vida, que, por mais filosofias e metafísicas que se questionem, continua a ser isso mesmo, um mistério. (*) Publicista.


JOGO E LITERATURA Maria da Conceição Vilhena * Tendo sido convidada a proferir uma curta palestra na sessão em que vão ser entregues os prémios dos Jogos Florais, e tendo-me sido dada a liberdade de escolha do tema, pareceu-me que nada haveria de mais oportuno do que falar do jogo na literatura. Quer dizer, de traçar o itinerário que vai do jogodivertimento à obra literária, apresentando o jogo como ponto de partida para a literatura dramática. Antes de entrarmos propriamente no tema do nosso trabalho, vamos proceder a uma análise semântica da palavra jogo. Abramos o dicionário e imediatamente nos daremos conta da polissemia de jogo. Em sentido próprio, o jogo é uma actividade recreativa, gratuita, destinada a causar prazer, implicando uma “actividade física ou espiritual, e fundada, em certos casos, sobre diferentes combinações de cálculo, de destreza ou de acaso, no qual se ganha ou se perde. O essencial do jogo consiste em distrair, divertir, recrear, dar prazer. Em sentido figurado, jogo pode designar uma colecção de objectos (um jogo de chaves), uma combinação que produza determinados efeitos (jogo de luzes ou de movimentos) ou uma atitude de espírito com vista a enganar e dissimular (jogo

de palavras ambíguas, calculadas com astúcia ou manha). No seu sentido próprio, o jogo compreende um vasto domínio de actividade. Temos assim: - o jogo exercício físico, como o futebol ou os jogos olímpicos. - o jogo de interior: jogos de mesa, de salão, jogos de azar. - os jogos literários, com vista ao deleite intelectual e sobretudo no intuito de premiar e estimular a criação literária. Esta multiplicidade semântica é devida à acumulação dos significados de duas palavras latinas - iocus e ludus - que convergiram na palavra jogo: 1 – iocus, de que provém o significante jogo, queria dizer graça, divertimento brincadeira, galhofa.* 2- ludus tinha este mesmo significado e ainda mais o de actividade física. O ludus é divertimento, passatempo, zombaria, gracejo, escárnio e também jogo de circo, jogo militar, jogo religioso, representação teatral, bailado, manifestação cultural...

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De iocus se formou iocularis, de onde proviria jogral, personagem de

1º plano no jogo medieval, que actua na passagem do divertimento para a literatura e de que falaremos mais adiante.

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

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Sendo, pois, muito vasto e variado o domínio abrangido pelas actividades relativas ao jogo, nós vamos delimitá-lo, de maneira a só nos ocuparmos daqueles aspectos que vão relacionar-se com a literatura. Falaremos, pois, do jogo como exercício recreativo e prática de um prazer, requinte intelectual e conceito espirituoso; isto é, o jogo que se vai tornar teatro, que passa de espectáculo a obra literária. Em sentido lato, a vida é um jogo; e na origem da actividade humana tudo é jogo. J. Huizinga, na sua obra Homo Ludens, segue de perto Frobenius, que associa ao jogo os

grandes sistemas simbólicos dos chamados povos primitivos: a organização social, a religião e a arte. O jogo do homem tornouse a sua própria cultura e a esta cultura vai ele fazer jogar o seu próprio jogo: os deuses são actores divinos a representar o papel do homem na vida; inversamente, os feiticeiros e magos tentam representar um papel divino, disfarçando-se em seres sobrenaturais. O jogo aparece associado à literatura desde as épocas mais remotas: ao princípio, o concurso de poesia era apenas um dos vários números do jogo; mais tarde, é a própria poesia que preenche inteiramente a manifestação lúdica; de parte integrada no jogo, a poesia, associada à música e ao movimento, começa a constituir, de maneira autónoma, a matéria do próprio jogo. Em Roma, as primeiras manifestações teatrais, realizadas em 365-364 a.C., foram designadas ludi (jogo). Foram realizadas no momento de uma grande epidemia, e a este respeito escreve Tito Lívio (VII, 2, 3): “...e como a violência da doença não tinha diminuído nem por medidas humanas nem por socorro dos deuses, e os espíritos começavam a ceder à superstição, diz-se que, entre os diversos meios de aplacar a cólera dos deuses, se organizaram jogos cénicos, o que era novo para esse povo guerreiro, pois até aí só havia espectáculos de circo; coisa de pouca monta, a princípio, e importada do estrangeiro: barqueiros chamados da Etrúria, dançando ao som de flautas, sem poema, sem mímica para exprimir o sentido das palavras. A partir daí, os jovens começaram a imitá-los e introduziram gracejos em verso, acompanhados de gestos, moda que foi bem acolhida e se tornou tradicional”. Destes jogos cénicos organizados para aplacar a cólera dos deuses, nasceu, pois, o teatro romano, de raízes etruscas, em que, mais tarde, Lívio Andronico introduziria uma Intriga coerente, no género da tragédia ou da comédia gregas.


litúrgicos; e o teatro, nascido no altar, passa para o fundo da igreja; em seguida para o adro e finalmente para a praça pública. O teatro religioso medieval já existe em França no século XI, mas os textos mais antigos que se possuem são do séc. XII: le Jeu d’Adam, le Jeu de Saint Nicolas, le Jeu de la Résurrection... No que diz respeito a Portugal, não temos quaisquer textos que testemunhem da prática desses jogos nas nossas igrejas; no entanto estamos certos de que se realizavam, porque vários documentos da época lhes fazem referência.

Tal como em Roma, as primeiras manifestações duma arte dramática medieval receberam a designação de jogos. Notemos todavia que o teatro medieval marca uma ruptura com o teatro da Antiguidade. Nasce na igreja e surge como um processo de ensino dos mistérios da fé, ao mesmo tempo que torna a liturgia mais viva e animada; consiste na introdução de tropos em língua vulgar, uma vez que o latim tinha deixado de ser compreendido pelo povo. As primeiras manifestações teatrais são assim constituídas por simples representações paralitúrgicas, com uma finalidade didáctica e de animação cultural.** Teremos contudo de reconhecer que estes primeiros jogos dramáticos são mais representações literárias do que propriamente recreações cénicas de realidades vividas. No entanto, a hilaridade produzida por tais representações cedo revela a sua incompatibilidade com o carácter grave dos actos

Segundo Roger Caillois, o jogo não é produtor de cultura; no entanto, na medida em que é simulacro e competição, o jogo cria formas de cultura, tal como o teatro e o desporto. A simulação voluntária pode constituir uma intervenção activa no mundo e uma tentativa de o transformar. Entramos assim no domínio do jogo como processo educativo, instrutivo, formativo. De espírito profundamente didáctico, a Idade Média vai servir-se do jogo como divertimento, sem dúvida, mas vai sobretudo utilizá-lo como maneira viva e agradável de catequizar o povo. **

É curioso notar que, em todos os povos do mundo, a religião e o jogo

aparecem inseparáveis. Daí a origem religiosa do teatro em todas as civilizações: na Grécia, o teatro nasceu do culto em honra de Diónisos; em Roma foi para aplacar a cólera dos deuses; no Ocidente Medieval surgiu em torno da figura de Cristo.

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Na Idade Média, o jogo, como representação literária, segue diferentes direcções. A regra consiste, em geral, em adaptar à representação cénica um género poético, como a vida de um santo, a canção de gesta, a pastorela. Também a poesia lírica, na sua forma de canção de amor, se pode aproximar do género dramático e tomar mesmo a designação de jogo. É o caso do joc-parti ou partimen, de que falaremos mais adiante. A palavra jogo foi assim abusivamente utilizada para diferentes géneros dramáticos. Jogo é tudo o que mete actores em acção, quer se trate de géneros para divertir, como mimos ou paródias, quer se aplique a representações litúrgicas. Para Huizinga ou Roger Caillois, jogo é todo o acto de “mimesis”. Inferimos da sua existência, no séc. XIII, através das proibições que estabelecem os textos conciliares ou constituições sinodais : Em 1281, o arcebispo de Braga proíbe ao clero o contacto com jograis, histriões, mimos ou outras pessoas que pratiquem essas artes. No princípio do séc. XIV, o arcebispo de Lisboa determina que se não cante, dance ou “trebelhe”, nos mosteiros e igrejas, danças e “trebelhos” desonestos. Em 1436, D. Duarte condena as blasfémias, cantigas e autos que faziam durante as vigílias nas igrejas, em vez de se consagrarem à oração. Em 1477, no sínodo celebrado na catedral do Porto, o arcebispo D. Luís Pires proíbe as práticas consideradas desonestas e determina que todos aqueles que quiserem fazer vigílias em igrejas ou mosteiros, capelas ou ermidas, quer sejam homens, mulheres ou eclesiásticos, são proibidos de aí fazer ou consentir que façam “jogos, momos, cantigas ou bailes” e que não toquem instrumentos como pandeiros, violas, etc. Proíbe igualmente que, na procissão do Corpo de Deus, se façam “jogos ou representações”; e que para a festa e noite de Natal não cantem “chanceletas” nem outras cantigas “nem façam jogos no coro da igreja, salvo se for alguma boa e devota representação como é a do presépio ou dos Reis Magos ou de outras semelhantes a elas, as quais façam com toda a honestidade e devoção e sem riso nem outra turvação”. Os jogos a que se refere eram, pois, representações de carácter religioso, mas que corriam o risco de degenerar em actos desonestos e de provocar uma euforia incompatível com a gravidade exigida dentro da igreja. Também no país vizinho se fez sentir a necessidade de idênticas proibições. Afonso X, o Sábio (1252-1284), no Livro

das Partidas, proíbe aos clérigos fazerem jogos de escárnio ou assistirem a eles, ou consentirem que se fizessem nas igrejas. Só consentia que aí se representasse o nascimento de Cristo, a visita dos Magos, a ressurreição ou “coisas como estas”. Todas estas proibições se situam, aliás, no prolongamento de uma outra, anterior, pronunciada pelo próprio Papa: em 1207, Inocêncio III havia proibido todas as representações feitas dentro da igreja, o que mostra como era geral, na Cristandade, a prática dos jogos cénicos no interior das igrejas. Porquê tanta proibição? Certamente porque os desvios ao espírito que animava o clero, no princípio, cedo se manifestaram. A fim de mostrar até que ponto chegaram essas transgressões, falaremos muito rapidamente daquilo que se passava em território francês. É que a França, ao contrário de Portugal, possui um número grande de peças cómicas, para cima de 250, que dão testemunho da acentuada tendência medieval para a paródia. Como já dissemos, no Ocidente medieval, é em torno de Cristo que as representações dramáticas fizeram a sua aparição. O interesse que despertaram provocou uma tal afluência de povo que as igrejas se tornaram pequenas para a comportar. Além disso, não se poderia permitir, num local sagrado, os abusos e transgressões que se verificavam. Esses rudimentos de arte vão então ser postos na rua; passam para a praça pública, daí para a sala de espectáculos e assim surge um teatro com autonomia. Ao emanciparem-se da igreja, os autores e actores formaram as “confrarias alegres”, encarregadas de organizar os festejos de carácter profano, embora quase sempre associados às festividades religiosas. Em França havia várias confrarias e associações, as chamadas “sociétés joyeuses”: a Confraria da Paixão, a Confraria des Enfants-sans-souci, a Confraria dos Loucos, a Confraria de S. Nicolau. Desta última viria a surgir a Basoche, corporação dos bacharéis, fundada por Filipe o Belo, que a dotou, em 1302, de jurisdição autónoma. A Basoche teve um papel importante no desenvolvimento do teatro, pelas representações dramáticas que apresentava nas suas festas anuais; o facto de os seus membros assistirem diariamente a contendas e debates deve ter-lhes dado a ideia de comporem peças cómicas, burlescas, sobre o exercício da justiça, jogos dramáticos que, já no séc. XV, viriam a ser censurados pelo Parlamento.


Além destes jogos dramáticos e dos praticados pelo Carnaval, ficaram sobretudo célebres em França os que se faziam na Festa dos Loucos, entre o NataI e a Epifania. Nestes dias aboliam-se as barreiras hierárquicas e o homem divertia-se sem medo, desinibido, sem peias de qualquer tipo. Durante algum tempo as autoridades suportaram bem que o respeito pelo sagrado fosse suspenso: elegia-se um bispo dos loucos (ou papa ou rei), celebrava-se uma missa parodiada, pronunciava-se um sermão burlesco, ia-se até ao obsceno, com vinho e nudismo. Clérigos e estudantes participavam activamente nestas festas, que eram como que uma canalização e intelectualização da exuberância desenfreada das massas populares. Condenada pelo Concílio de Basileia, em 1435, e pela Concílio de Soissons em 1456, a Festa dos Loucos desligouse da Igreja, mas continuou a realizar-se até princípios do séc. XVII.*** A sua finalidade era fazer rir por meio da paródia e do burlesco; e esta finalidade tornou-se a própria finalidade de um género dramático popular que então começava a despontar – a comédia. Nestas festas, um dos jogos dramáticos que teve mais popularidade foi sem dúvida o “Sermão burlesco”. Consistia numa sátira ao pedantismo do pregador e respeitava escrupulosamente a estrutura habitual do sermão, até nos mais pequenos pormenores. Começava por um exórdio com citações bíblicas em latim macarrónico; seguia-se a exposição dogmática (com prova, confirmação ou refutação) a que não faltavam referências escatológicas; e terminava com uma exortação moral burlesca. É o contraste entre o sério da forma e o burlesco do fundo que faz sobretudo ressaltar o cómico. O tema era geralmente de circunstância, mas sempre em relação com os dois pólos do cómico medieval, o sexo e a gastronomia. Um grande número de sermões burlescos têm em vista ridicularizar as alegrias da vida conjugal e destinavamse a animar as reuniões familiares. Nada e ninguém escapou à veia satírica do poeta medieval: prazeres, vícios, bravura militar; literatura; textos administrativos; testamentos; clero, nobreza e povo, do mais grave ao mais debochado. ***

Nos fins do séc. XV, eram muitas as associações de loucos em França:

“Troupe du Prince des Coquarts,Troupe du Prince Peu d’Argent, Société de la Mère Folle, Société des Enfans-sans-soucy...

Dos santos cujas virtudes e milagres exaltavam, citaremos Saint-Oignon, aquele que a todos comovia até às lágrimas. Saint Hareng, martirizado pelo fogo; Saint Jambon et Sainte Andouille que faziam o milagre de dar de comer a quem tem fome. Relacionados com a mesa são ainda o “Sermon de bien boire”, o “Sermon d’un quartier de mouton” ou o “Sermon de la choppinerie”. O sermão burlesco é um jogo que já é teatro, na medida em que o recitador tenta uma identificação com a personagem imitada e em que há um cómico de ordem cénica pela prioridade dada à forma sobre o fundo. O público medieval apreciava igualmente um outro tipo de jogo literário, muito cultivado, mas que se diferençava profundamente do sermão burlesco. Referimo-nos ao “partimen”, ou Joc-parti em provençal, que é um jogo de sala destinado a entreter os espíritos ociosos. Trata-se de um género lírico, em que dois interlocutores debatem poeticamente uma questão geralmente relativa ao amor; um trovador propõe a outro um problema susceptível de duas soluções e o adversário deverá forçosamente escolher uma delas. Por exemplo: 1 - O trovador que foi amado por uma dama que imediatamente começou a gostar de outro, ganhou ou perdeu? 2 - Qual agradará mais à amada, aquele que ostenta a sua paixão diante de todos ou aquele que se deixaria matar para não a revelar? A tensão é também um debate poético muito do agrado dos trovadores, mas difere do joc-parti: neste o trovadoradversário tem de escolher uma das soluções propostas, enquanto que, na tensão, cada interlocutor pode desenvolver o seu parecer e nem chegarem a acordo. Por exemplo: um trovador faz notar a outro a severidade da justiça que castigou três ladrões: a um mandou arrancar-lhe os olhos, a outro cortar uma mão e um pé e o terceiro foi enforcado. Qual deles recebeu o maior castigo? Resposta do adversário: ficaram os três mais felizes; o primeiro porque agora cego terá sempre uma pessoa para o acompanhar e já não sofre de solidão; o segundo porque antes andava a pé e agora anda a cavalo; e o terceiro porque, tendo morrido, já não sofre mais. No entanto os temas predilectos eram sempre os relativos ao amor: Uma dama tem três apaixonados; um, a seu lado,

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pega-lhe na mão; outro, sentado na sua frente, toca-lhe o pé; o terceiro contempla-a enternecidamente. Qual deles será o preferido? Todos estes jogos literários, dramáticos ou líricos, populares ou cortesãos, eram obra de trovadores e de jograis. O jogral, sobretudo, tinha um papel importantíssimo, não só na divulgação da cultura, pela sua vida de nomadismo, mas principalmente como animador das massas. Residindo temporariamente ora em cortes reais e senhoriais, ora em palácios episcopais de um ou outro país, o jogral difundia, irradiava, permitia contactos, influenciava e era influenciado. Nas suas andanças, acompanhava peregrinações ou expedições guerreiras e exibia-se nas praças públicas, mercados e feiras, onde era centro de atracção pela arte múltipla que praticava: cantava a sua poesia ou de outrem, acompanhado de instrumentos musicais, imitava, gesticulava, fazia acrobacias, contava anedotas... Resumindo: entretinha, divertia, fazia rir, pela prática de uma arte que se situava entre o narrativo e o dramático, sem exclusão do lírico. O jogo é precisamente este encontro com o público, num momento em que se não dá ainda ao texto todo o valor literário que mais tarde se viria a reconhecer-lhe. Numa época em que poucas pessoas sabiam ler e a transmissão da cultura se fazia oralmente, o jogo dramático constitui o meio privilegiado, agradável e divertido, para o contacto com as massas: o jogo instrui, forma e diverte. E foi assim que as primeiras peças de teatro francesas se chamaram jogos. Citaremos apenas algumas: - Le Jeu d’Adam, drama semi-litúrgico dos fins do séc. XII. - Le Jeu de Saint Nicolas, de Jean Bodel, “milagre dramático”, escrito à volta de 1200. - Le Jeu de la Feuillée, de Adam de la Halle, poema dramático feito de realismo satírico e de maravilhoso, representado pela primeira vez em Arras, em 1262. - Le Jeu de Courtois d’Arras, adaptação dramática da parábola do Filho Pródigo, tratada com realismo e comicidade. - Le Jeu de Robin et Marion, de Adam de la Halle, representado em Nápoles em 1283 e que é uma pastorela dramática, com jogos, cânticos e danças, no género da ópera cómica. A partir do séc. XIII, as peças de teatro começam a perder o nome de jogo; no entanto, em 1511, Gringore leva à cena,

nos Halles de Paris, uma trilogia composta por uma “sottie”, uma “moralidade” e uma “farsa”, a que dá o título de Jeu du Prince des sots. Em Portugal o que se passaria então? Já nos referimos às proibições de jogos dramáticos nas igrejas, o que é uma prova de que eram praticados. Referir-nos-emos agora a notícias sobre jogos profanos, de que possuímos por vezes o texto. A mais antiga alusão data da 1193 e encontra-se numa carta em que D. Sancho I confirma uma doação a dois momos, Bonamis e Acompanyado. Não se fala aí de jogo dramático, mas de arremedilho. Como sabemos, arremedar quer dizer imitar alguém nos seus gestos e palavras. Ainda há poucos anos, nas nossas vilas e aldeias, havia o hábito de arremedar pessoas pelas ruas, pelo Carnaval. O Jogo consiste em não revelar o nome da pessoa; mas o imitador, de tal modo incarna o imitado, que todos ficam a saber de quem se trata. O “eu” substitui o “ele”, a identificação realiza-se e o processo pode assim ser considerado como um rudimento de arte dramática. O sermão burlesco, aliás, pode ser considerado como uma variante do arremedilho; e já vimos com que frequência era praticado em França. Ora também a veia satírica portuguesa usou e abusou do sermão burlesco. Possuímos uma carta de perdão de D. João II, datada de 1482, em que perdoa um escolar “morador em Setúbal, de nome Rodrigo Alves, que remedava e pregava” em maneira de judeu e capelão, tudo em tom de missa, terminada por “bebamus”. No Cancioneiro de Resende, um poema satírico de Álvaro de Brito Pestana, talvez de 1480, faz referência a estudantes pregadores que metem Santas Escrituras em sermões derivados em amores e fazem de falsas figuras tentações Uma Constituição do bispado da Guarda, de 1500, condena o “abominável costume” praticado em algumas festas do ano, como no dia de Santo Estêvão, de fazerem imperadores, reis e rainhas e levá-los às igrejas, juntamente com jograis que sobem ao púlpito, de onde dizem muitas “desonestidades e abominações”. Por aqui vemos que, se em Portugal não


havia confrarias e festas de loucos como em França, havia no entanto paródias que muito se assemelhavam. Jogos eram igualmente as representações de momos e outros divertimentos realizados na corte, a que se referem alguns documentos. Fernão Lopes, na 2.ª parte da Crónica de D. João I, cap. 96, alude aos “vários e luzidos jogos”, celebrados em 1387, no banquete das núpcias reais. Possuímos também um relato, em latim, dos festejos realizados em Lisboa, para celebrar a partida da infanta D. Leonor, irmã de D. Afonso V, que casou com Frederico III, imperador de Alemanha, em 1451. Nesse relato se descrevem os ludi, termo que, como já vimos, se empregava para designar as representações teatrais. Os ditos ludi consistiram numa prefiguração das cerimónias da eleição de Frederico III, como imperador, e da sua coroação pelo Papa, ladeado de cardeais, com discursos, votos e saudações em verso. Pouco mais tarde, em 1482 (reinado de D. João II), Lisboa viveu as comemorações do aniversário da batalha de Toro, “com toda a solenidade e cerimónia, ofícios e jogos, assim tão compridamente como se costuma fazer no dia do Corpo de Deus”. Os jogos da festa do Corpo de Deus não são exercícios físicos, mas representações dramáticas. Disso dá testemunho o Regimento dos sacristãesmores do Mosteiro de Alcobaça; aí se descrevem as festas do “Corpus Christi”, celebradas nessa vila, em 1435, e se alude a “outros jogos muitos que aí há, que não são aqui escritos porque se mudam cada ano.” O que é que mudava cada ano? Não seria o texto escrito que servia de suporte à representação? Aliás, os jogos referidos aqui são aqueles interditos pelas Constituições sinodais de 1477: se proibe que façam tais jogos nem representações... Isto porque muitas vezes “os sacristães emprestam as vestiduras sagradas para os jogos e tangedores e para outras representações” que os concelhos ordenam nas ditas procissões. O jogo é, pois, uma forma pré-literária do teatro que, com Gil Vicente, se vai aperfeiçoar e tomar a designação de farsa e auto. Entra-se então na plena representação teatral, verificando-se uma redução espacial e uma complexificação da intriga: da praça pública passa-se para o palco, o monólogo desdobra-se em diálogo e os actores multiplicam-se.

Na arte dramática, em seus primórdios, dava-se a primazia à representação: cor, gesto, música, ritmo. Assim era nas representações mágicas ou litúrgicas dos povos primitivos. Num desenvolvimento de formas e conteúdos, o corpo da peça começa a ser privilegiado; o que levou Aristóteles, na sua Poética, a dar o primeiro lugar ao texto, pois, como afirma, este subsiste e é válido mesmo sem a participação dos actores. Também no teatro medieval se verifica a mesma evolução; e o jogo, fenómeno sociocultural mais que facto literário, sujeito a factores de produção e divulgação, em breve se vê apoiado e suplantado pelo suporte escrito. Tendo o texto tomado um lugar de relevo na cultura da época, o jogo se vê derivar em obra literária e formar um género específico – o da literatura dramática. Do jogo-divertimento passou-se, pois, ao texto como produtividade literária: a relação destinador-destinatário abstrai do imediato e torna-se significação para a posteridade; ao espectador jovial sucede o leitor atento e o espaço escrita-leitura se vê imensamente alargada pelas múltiplas possibilidades interpretativas, segundo os gostos e tendências estéticas de cada época. O autor dramático deixou de visar forçosamente o espectáculo imediato, para se dirigir à percepção e receptividade de todos aqueles que lerão o seu texto e aí saberão descobrir, decifrar e apreciar os múltiplos sentidos, efeitos e matizes nele contidos. É o texto, suporte do jogo, superfície estruturada a reflectir estruturas imanentes, que vai permanecer como obra literária.

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“POMBAS BRANCAS” ILDA MARIA* Na verde atmosfera Onde se espraiam aves Já sinto, é Primavera, Que não cabes. E num silêncio escuro De folhas que não quero O meu olhar maduro Procura o que não espero. Quando na seca aragem Dum inconstante vulto Se ergueram na paisagem Brancas como um insulto Ao tempo e à escuridão Quatro pombas aladas Que acenavam perdão Às almas magoadas

Senti meu coração pequeno E, dentro do meu peito Cada vez mais sereno Murmurar a seu jeito: - Ó pobre Humanidade! E lá nos altos céus Em voos que eu invejo Unido com os seus Com a minha verdade, Unido ao meu desejo Voou meu coração liberto, Voou perto do céu, lá muito perto!

* Poeta. Faleceu em 20/07/1981


LOBOLO Jorge Augusto Pais de Amaral* Quem esteve em Moçambique ouviu certamente falar de lobolo. Ao tentar defini-lo, as pessoas são naturalmente tentadas a compará-lo com o dote. É compreensível essa tendência para procurar a explicação de qualquer prática cultural de outros povos vasculhando entre aquelas que nos ocupam a memória. O lobolo é, porém, diferente de tudo aquilo que os europeus podem repescar entre as suas lembranças. Para os portugueses, o dote era o conjunto de bens levados para o casal pela mulher ou que a esta eram doados pelo marido ou por outra pessoa tendo em vista o casamento. Antes da alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, existia, para além doutros regimes de bens adoptados pelos cônjuges, o regime dotal. Nos termos do disposto no artigo 1739º do Código Civil – revogado pelo referido diploma – a mulher podia dotar-se com os seus bens presentes ou com os que de futuro lhe adviessem por sucessão ou doação, e podia ser dotada pelo marido ou por terceiro. Apesar das semelhanças que somos tentados a reconhecer entre o dote e o lobolo, este tem características muito diferentes e um significado muito mais rico. O lobolo pode considerar-se como a forma de compensação * Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

entregue por um grupo a outro grupo a fim de restabelecer o equilíbrio posto em causa pela saída da mulher. Ao ser transferida do seu clã para outro considerava-se necessário que aquele de onde saiu fosse compensado com a doação de bens, geralmente um determinado número de cabeças de gado bovino. Estes bens permitiam ao grupo de origem da mulher reconstituir-se pela aquisição de outra mulher. Por esta via a mulher torna-se propriedade do grupo que a adquiriu. Passa de uma família para outra família depois de complicadas cerimónias de casamento. Torna-se necessário tomar em conta estes elementos para podermos compreender as consequências resultantes do lobolo: 1º - Toda a família da noiva toma parte na cerimónia do casamento principalmente no dia em que o lobolo é entregue pelo noivo. Os rapazes do grupo têm o direito de manifestar a sua opinião sobre o montante do lobolo, nomeadamente sobre o número de bois oferecido. 2º - Os irmãos do noivo têm o propósito de o ajudar, se este o necessitar, a conseguir o lobolo. Todos trabalham deste modo dentro do grupo a que pertencem. 3º - A mulher adquirida por este modo é considerada esposa “presuntiva” deles, embora não lhes seja permitido ter relações sexuais com ela. Recebê-la-ão em herança no caso de o marido falecer. 4º - Os filhos havidos do casamento pertencem ao pai, vivem com ele, usam o seu nome de família e devem-

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lhe obediência. Os do sexo masculino fortificarão o grupo e as raparigas serão dadas em casamento a troco do lobolo, o que irá também beneficiar o mesmo grupo. O direito patriarcal encontra o seu apoio no lobolo. Se a mulher não é lobolada, a criança que ela der à luz pertence à família da mãe, usa o seu nome de família e viverá na aldeia do tio materno.1 Segundo afirma Henrique Junod,2 o lobolo “marca a diferença entre um casamento legítimo e um casamento ilegítimo e, neste sentido, substitui um registo oficial de casamentos”. Na verdade, não sendo o registo civil obrigatório no tempo em que a administração de Moçambique cabia a Portugal, tornava-se difícil distinguir entre um casamento e uma simples união de facto. Quando no Tribunal o Juiz perguntava ao arguido se era solteiro ou casado, ouvia-se geralmente como resposta : “tem mulher”. E se o Juiz insistia, a resposta era invariavelmente a mesma. Perante o “impasse” só havia uma forma de sair dele e esclarecer a situação. Era-lhe então perguntado se havia pago o lobolo. Se ele respondia afirmativamente, o Juiz ditava para a acta que o arguido tinha o estado de casado. O lobolo de algum modo substituía, com efeito, o registo civil que não era obrigatório. O lobolo constituía também, segundo o mesmo autor, um obstáculo à dissolução do casamento, porque a mulher não podia abandonar definitivamente o marido sem que o seu grupo restituísse o lobolo. Por outro lado, se o marido viesse a reclamar os seus bois, não havia modo de lhe negar tal restituição.

Como se verifica, o lobolo é “uma cerimónia em que a linhagem de origem de uma mulher é cerimonial e economicamente compensada pela passagem dos direitos sobre os eventuais descendentes dessa mulher para a linhagem do marido, pelo que os filhos dela passarão a ter plenos direitos de pertença à linhagem paterna”3. Na cerimónia são invocados os antepassados aos quais se pede que protejam o casal. É-lhes pedido igualmente que aceitem a dádiva em que o lobolo se traduz. São os antepassados os destinatários dos bens e é em nome deles que é acordado o respectivo montante. Por isso, se costuma dizer que “os antepassados comem o lobolo”.4 Nesta perspectiva, as pessoas que, na verdade, consomem os bens, fazem-no em representação dos antepassados do grupo. Esta concepção não obsta a que o irmão solteiro da noiva tenha o direito de exigir o valor do lobolo para, por sua vez, lobolar uma mulher.5 Como tudo na vida, também o lobolo sofreu alguma evolução ao longo dos tempos. A Igreja procurou ver “incompatibilidades entre os ditames da moral cristã ocidental e os usos e costumes indígenas”. Por vezes geraram-se conflitos de certa gravidade, nomeadamente quando se pretendia pôr termo ao casamento, reconduzir a mulher lobolada à casa paterna e retirar o produto do lobolo para o restituir ao noivo. Ficou conhecido o despacho do Governador de Gaza quando, de uma maneira muito sensata, procurou pôr cobro a este modo de actuar: “Aos Negócios Indígenas para conhecimento superior, pois parece-me conveniente que pelo Arcebispado sejam dadas ordens aos missionários que não criem situações como esta de onde saem com evidente quebra de prestígio”. Apesar de tudo isto, a instituição foi-se mantendo até aos nossos dias. Continua a ser a forma de casamento

1 - Cfr. Henrique A. Junod, Usos e Costumes dos Bantos, Tomo I, pág. 287 e segs. 2 - Ob. cit. pág. 288.

3 - Cfr. Paulo Granjo, Lobolo em Maputo, pág. 9, nota de rodapé. 4 - Ob. cit., pág. 53. 5 - Ob e loc. Cit.


predominante no Maputo, tendo-se mesmo verificado a incapacidade das autoridades para o fazer substituir pelo casamento civil.6 Por vezes a realização do casamento civil não exclui a forma tradicional concretizada no lobolo. Para melhor aquilatarmos da sua importância basta referir que há casos em que os filhos chegam a lobolar a mãe em nome do pai já falecido, tendo como objectivo a “dignificação de ambos os progenitores e a integração dos filhos na linhagem do pai, tornando-os legítimos”.7 Certas pessoas da classe mais privilegiada uniram-se pelo casamento respeitando esta forma tradicional. É o caso dos conhecidos Nelson Mandela e Graça Machel, em 1999. O lobolo foi pago em cabeças de gado bovino, conforme foi oportunamente noticiado. Esta forma de pagamento foi sofrendo diversas alterações. Por vezes, o pagamento do lobolo passou a fazer-se com recurso a enxadas e actualmente é feito em dinheiro. Este modo de pagamento teve o seu início a partir da emigração dos Moçambicanos para as minas na África do Sul. Nos dias de hoje o pagamento do lobolo já não envolve necessariamente a família do noivo, ficando geralmente apenas a cargo deste. É o resultado de ser tornado mais fácil angariar o dinheiro necessário, depois que a ocupação dos moçambicanos deixou de ser exclusivamente a agricultura de subsistência.

Imagens de Moçambique. 6 - Ob. cit., pág. 82. 7 - Ob.cit., pág. 46.

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BRASIL H. Veiga de Macedo* És forte e rijo como o teu jequitibá, E, como ele, direito, esbelto, majestoso; És lume, asa, perfume, estandarte vistoso: - A graça a tremular aí no manacá. Teu sangue vivo, como ao vento a suiná, Na cor e no amor, recria um mundo generoso, Em teu corpo ardoroso e belo e portentoso, Flutua a luz do ipê e do jacarandá. Há sempre em tua noite a flor de embiruçu. Dócil como o bambu e altivo como o umbu, És na caatinga, espinho ou dor do gravatá. 178

És “árvore da vida” a estuar no buriti, E és, ó Brasil da fé, o Cristo unido a ti, Na roxa e pura flor do teu maracujá! São Paulo, 30 de Maio de 1982

* Poeta. Foi Ministro de Portugal. Faleceu em 25 de Janeiro de 2005.


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FURACÃO MITCH Joaquim Máximo* De acordo com a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo, um furacão é o mesmo que um ciclone. E um ciclone é um turbilhão atmosférico de grandes dimensões, com circulação de ar em volta de um eixo que se desenvolve em altitude, e onde a pressão é menor do que na periferia. Os ventos que lhe são próprios são fortíssimos e podem provocar devastações indescritíveis.

Para os jornalistas foi, certamente, sentido como uma bela notícia de primeira página. Para a Cruz Vermelha Internacional foi, naturalmente, sentido como uma necessidade urgente de actuação para minorar aquela desgraça. Quanto aos meteorologistas, temo que os seus sentimentos mais humanitários tenham sido, em parte, abafados por frios sentimentos de curiosidade científica.

O furacão Mitch, que se desencadeou na Nicarágua em Novembro de 1998, foi um dos mais violentos entre todos os que têm ocorrido naquele país. Perderam a vida centenas de pessoas, ficaram arrasadas centenas de casas e inundadas ou devastadas as culturas em milhares de hectares de terras. As gentes de agora ainda bem dele se lembram, e dele hão de ter conhecimento muitas outras gentes, ao longo da História.

O sentimento que senti por toda esta tragédia encontrase expresso nas catorze linhas que constituem o soneto seguinte:

Mas, entre estas gentes foi, ou será, o Mitch sentido de modos diferentes. Assim, para os habitantes da Nicarágua foi certamente sentido como uma desgraça imensa, um enorme pesadelo, com grandes sofrimentos e desesperos para todos eles. Para a maior parte de nós foi, certamente, sentido como uma grande pena pela desgraça de toda aquela gente. * Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbra e reside em Vila Nova de Gaia. Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu a actividade profissional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidade de Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integrada depois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionou disciplinas relacionadas com a Electrónica Digital. Faz parte da Direcção da revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “American Association for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences” e da “Planetary Society”.


MITCH O FURACÃO Inspirada pelo Demónio, A chuva casou com o vento E nasceu deles um rebento, Que pôs tudo em pandemónio, Era Mitch, o furacão, Que assolou a Nicarágua E matou tudo com água, Numa grande inundação, Para fazer esta maldade, Ele chamou uma amizade, E essa amizade era a Morte.

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E atacaram, lado a lado, E quem ficou desgraçado Foi povo com pouca sorte.


POSTAIS DO CONCELHO DA FEIRA Ceomar Tranquilo* A – Postais ilustrados

56 – Caldas de S. Jorge - vista parcial. Edição da Pensão Parque Cliché Abílio Gomes.

* Caminheiro por feiras, lojas e mercados.

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57 – Caldas de S. Jorge – Pensão do Parque (ao lado das Termas) Edição da Pensão Parque Cliché Abílio Gomes

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57 – A – Reverso do mesmo postal. Obliterações de Caldas de S. Jorge, Vila da Feira e Porto-Central. Selo de 25 c. do Centenário do Selo Postal. Circulado para o Porto em 3-7-1941. “Cá chegamos às Caldas sem novidade onde está muito calor e pouca gente. Principiei o tratamento que me deixa um bocadinho arrasada. Passo o tempo muito distraída e até alegre”.


58 – Caldas de S. Jorge. Igreja Matriz. Edição da Pensão Parque. Cliché Abílio Gomes. selo de 2,5 C. da série Lusíadas, no canto superior esquerdo.

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58 – A – Reverso do mesmo postal. Obliterações de Caldas de S. Jorge, Vila da Feira e Porto – Central. Ostenta ainda a marca “Coloque os selos no canto superior direito da frente”. Caldas de S. Jorge 1 de Julho de 1932, para o Porto. “Meu bom compadre. Tem só para saber da tua saúde e de toda Exma família”.


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Lojas de venda de calçado directamente da fábrica ao público Santa Maria da Feira Pinhel Lordelo/Guimarães Póvoa de Varzim Viseu

Rohde - Sociedade Industrial de Calçado Luso - Alemã, Lda. Lugar do Cavaco Santa Maria da Feira

Apartado 11 4524-909 Feira Portugal

Tel. 00 351 256 377 000 Fax. 00 351 256 377 008 E-mail: rohdefeira@rohde.pt


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Clube Feirense Associação Cultural


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Fundação Comendador Joaquim de Sá Couto


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