Villa da feira 19

Page 52

52

ausentes dos que amavam e que, muito longe e distraídos pelos afazeres da vida, eram, se calhar, felizes. Tudo isto fervilhava no meu espírito impedindo-me de saborear aquela beleza muito verde que dos dois lados da picada oferecia aleluias de conforto nas duas léguas que faltavam para chegar ao fim da jornada. Tudo eram fantasmas a perturbar aquela perspectiva de consagração num passeio sossegado. Quarenta e três anos depois, onde estão os registos das centenas de episódios como este? Por onde anda a consciência colectiva destes factos? Quem tomou nota deste sofrimento, quem valorizou o significado de sacrifícios tão duros? Quem se lembrará, no futuro, da rudeza destas experiências, da intensidade vivencial destes momentos? Há lágrimas que só se enxugam com o conforto de se saber que há quem as entenda! Os livros de história não vão contar estes factos e os seus capítulos vão conter mensagens mais ou menos escondidas à sombra de palavras cuidadosamente elaboradas, e serão seguramente, facciosos porque há em jogo ideologias e interesses que vão contaminar o discurso! Não se trata de saber se foi boa ou se foi má a causa desse combate, mas ele deu-se. Cumpriu-se o dever e o dever cumpre-se, quer se ganhe, quer se perca, não olhando a sacrifícios e no anonimato. Poderá não se concordar com as razões que o motivaram, mas há, pelo menos, que o registar para que cada um o possa sublinhar ou eliminar, ao sabor das crenças e dos afectos. Páginas de um extenso livro que ficará sempre por escrever e que só perdurarão, dolorosamente, na memória de quem as viveu e que não as pode rasgar ou amachucar e deitar fora! Serão sepultadas com os seus intérpretes humildes e generosos. Alguns nomes aparecerão glorificados; uns, à custa de decisões tomadas no macio quente dos gabinetes, onde não chegou o som de um tiro ou o grito pungente de alguém esquecido a morrer longe de tudo; outros aparecerão como campeões de pacifismos hipócritas, úteis, calculados! Por mim, foi grande o conforto espiritual para aquele esforço físico e emotivo. Fui supraabundantemente recompensado por ter sido superior ao meu medo e por ter partilhado com aqueles meus companheiros de guerra os riscos que corremos! Zala era aquilo que esperava. Arquitectonicamente, os restos de uma pequena vila, igual a tantas outras da vastidão angolana. Ninguém, chegado de fora, era capaz de distinguir

entre Quicabo e Quibaxe ou entre Quitexe e Nambuangongo. A urdidura arquitectónica destas povoações era sempre a mesma: a picada que a atravessava – e que lá nos conduzia e por onde de lá se partia – era a sua espinha dorsal; de um lado e do outro desta rua principal meia dúzia de pequenos edifícios toscos davam abrigo ao posto da autoridade, à mercearia, aos correios, à estação de serviços, a uma ou outra família branca ou a alguns nativos de mais posses. Perto, havia, também, sempre uma capela. Na periferia, o muceque com as suas cubatas e os seus numerosos habitantes. Zala situava-se num pequeno planalto, todo ocupado pelo acampamento militar. À periferia alguns edifícios inteiros ou semi-destruidos, que restaram da antiga povoação e que, abandonados pelos seus proprietários, assassinados na sua maioria logo nos princípios de 1961, tinham sido aproveitados para montar bares, cantinas, dormitórios, enfim, os componentes básicos de um quartel rudimentar. A rua central depois de terraplanada funcionava como pista de aviação. Teria cerca de 200-300metros de comprimento o que não bastava para que um avião, mesmo pequeno, pudesse levantar vôo; porém, como toda a povoação assentava num pequeno planalto, a pista terminava abruptamente e os aviões não careciam de descolar, porque caíam no ar quando ela terminava! Quase como que para pôr fim às nossas dúvidas quanto à operacionalidade daquele aeroporto, poucas horas após a nossa chegada, aterrou em Zala uma Dornier que tinha sido chamada para evacuar os nossos feridos. Vimo-la aterrar e vimo-la partir. Estavam, assim, desfeitas as dúvidas. Para surpresa maior, o piloto dessa aeronave era meu primo, cuja mobilização para Angola eu desconhecia. Foi preciso vir a Zala para nos encontrarmos! Passei a primeira noite num catre que pertencia a um alferes que tinha pendurado junto a uns tijolos que funcionavam como mesa de cabeceira, o mais precioso dos troféus de guerra: o seu capacete de aço furado por uma bala que o tinha atingido, umas semanas antes, bala que, amortecida pelo choque, lhe rodeou a cabeça e lhe caiu aos pés, sem ter produzido mais do que um pequeno arranhão superficial, em vias de cicatrização! No dia seguinte ao da nossa chegada era domingo e tivemos missa, coisa que já não acontecia havia largos meses. O capelão do batalhão era um sacerdote alentejano que vim a reencontrar, cinco anos depois, em Monfortinho, de cujas termas era aquista regular. Durante uma série de


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.