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Domingos Azevedo Moreira *

TEXTO DO II LIVRO DE VISITAÇÕES DE PIGEIROS (1850-1873) (conclusão)

Vol. I

(1769 – 1849)

Vol. II

(1850 – 1873)

«Cópia da Expozição q. vou dirigir ao Snr. Adm.or deste Con.co sobre o mao estado da Igreja, Rezidencia e Adro etc. Ill.mo Snr: Já estava rezolvido (sic) a dar p.te ao Governo de S. M. F. do abandono em q. se acha esta paróchia assim como (h)á pouco a dei ao Ex.mo e R.mo S.r Vig.º Cap.ar deste Bispado do Porto mas antes disso rezolvi-me ter com V. S.ª hum último dezengano (sic). A expozição será, terá talvez de ser longa e enfadonha, tenha V. S.ª a paciencia mas o caso assim o exige. Despachado p.ª esta Igr.ª pelo Imm.te Fundador e Libertador da nossa Liberdade Nacional não achei nesta Igreja senão farrapos em vez de paramentos, sendo-me de mais a mais uzurpada (sic) a rezidencia e passaes da Freg.ª pelo exApprezentante desta Igreja e tive de soffrer huma demanda dispendiozíssima de 13 a.s p.ª os restaurar. Tudo tenho ido remediando como me he possivel. Em 1840 houve a última Vezitação a esta Igreja; nella se capitulárão os utensílios necessarios ao Culto Div.º (Docum. to n.º 1)1(181) com a obrigação de eu remetter os cap.os da Vezitação ao Adm.or Civil (sic), a fim de q. este os fizesse subir à prezença do Adm.or Geral em Aveiro; tudo pratiquei e nada se fez; nenhuas providencias se dérão (Veja-se o m.mo Docum. to 2(182) ) athé hoje.

PIGEIROS 1990 (181) (182)

*Abade de Pigeiros. Faleceu a 10 de Janeiro de 2011.

O parêntese consta do texto. O parêntese consta do texto.

83


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Seguio-se o fogo desta Igreja q. a reduzio a cinzas com q.to em si continha na fatal noute de 24 p.ª 25 de 7br.º de 1843. Solicitei subscriçoens e esmolas tanto nas parochias do Paíz como na América p.r todos os meus Amigos e conseguimos dar melhor forma a esta Igreja sem empregarmos fintas obrigatorias. Estando já o Adro mal vedado, mais se damnificou com as obras de pedreiro indispensaveis à m.ma Igreja. P.ª ella se olhava unicam.te como alvo principal e o Adro se foi damnificando e abrindo por todos lados. Toda a casta de quadrúpedes ali entra e como no Adro se entérrão os cadáveres p.r q. não há cemiterio, não será de admirar q. algum corpo humano appareça dezenterrado pelos animaes. Os telhados da Igreja e Sacristias estão arruinadíssimos e he precizo não só fazê-llos de novo mas tapar com grades de ferro as ventanas da torre q. não têm sinos, p.ª evitar q. os rapazes garotos póssão passar (como costúmão) 3(183) das dezocupadas ventanas da torre p.ª os telhados da Igreja aos ninhos dos passarinhos e aos foguetes nas festevidades (sic), porq. são os rapazes q.m distrohem os telhados desta Igreja. Fez a Junta o seu orçam.to tanto p.ª os telhados e sua vedação aos rapazes e tapagem do Adro, q. foi approvado p.r ella, como se vê da cópia junta, em 13 de Fever.º de 1859 e em meu Officio de 22 | 24 de 22 do m.mo mez e anno foi por mim remetido o Orçam.to a V. S.ª p.ª o fazer subir à prezença do Snr. Gov.or Civil em Aveiro com a urgencia q. o cazo exigia como se vê da cópia do refirido (sic) off.º q. vai junta. V. S.ª com effeito (mil louvores lhe sêjão)4(184) remetteo o Orsam.to p.ª Aveiro e de lá voltou p.ª q. os peritos assinassem; assinárão e fôrão novam.te remettidos p.ª Aveiro e nenhum rezultado athé agora houve! Aconteceo o m.mo q. com os cap.os da Vezitação de q. já falei. Perdendo totalm.te a esperansa (sic) e inteiram.te dezenganado (sic) de q. Aveiro nada podia obter e vendo-nos já quase na necessid.e de celebrar cobertos com guarda-chuvas, fui pessoalm.te com o Regedor e mais alguns influentes pedir huma esmola de porta em porta mas em huma Freg.ª de cem fogos, tirando os proletários q. nada podíão dar e mesmo dos ricos tirando os q. se enfórcão p.r 5 rs. e os q. por ímpia esperteza capríchão em não dar nada p.ª aquillo q. cheira a religião (A avareza he o vício dos Campos) 5(185) q. poderíão O parêntese consta do texto. O parêntese consta do texto. (185) O parêntese consta do texto.

juntar-se voluntariam.te, Juntou-se pois o q. eu sempre pensei, 40$000 rs., mas o q. se poderia fazer com esse dinheiro promettido, não se contando ahinda com as falhas na sua cobransa (sic)! Em taes circunstancias rezolvi eu não cobrar nem administrar esse dinheiro e, juntando os offerentes, mandar em hum Dom.º à missa de pastores q. a votos elegessem huma Com.ão, de q. eu me excluí, q. dirigisse as obras com esse dinheiro e com eff.to elegêrão o Regedor M.el Fran. co Pascual p.ª Prezid.e e vogaes M.el J.e Milheiro e M.el Per.ª Coelho. Esta Comm.ão tem em vista concertar os telhados mas o trolha se me veio queixar q. não respondia pela segurança p.r q. todo o telhado devia ser feito de novo, q. o povo q.r só concerto mas q. ficará tudo na m.ma. Tendo eu m.tas vezes concertado a rezidencia à minha custa, fui avizado pelos operários de q. agora não tinha ella concerto possivel; q. poderia conservar-se mais de hum ou dous a.s mas q. necessariamente vinha tudo a dezabar p.r q. todas as paredes estávão a cahir; fui com hum bom entendedor examinar tudo e achei ser verd.e. Consultei a Junta sobre o orsam.to p.ª essa desp.ª e pedio tempo p.ª deliberar e consultar o espírito do Povo e depois rezolveo q. nada (he) de reedificação nem mesmo concertos na rezidencia (Docum.tos juntos)6(186). Nestes termos não sei o q. hei-de praticar; se ella cahir e fizer víctimas não serei eu o responsável p.r q. quiz prevenir o mal e não posso e V. S.ª determinará o q. devo fazer (véjão-se as cópias das duas Actas juntas)7(187). Há aqui um conflicto entre os 6 padres e o povo desta Paróchia. Os P.es querem q. se comprem param.tos p.ª celebrar p.r q. os não há decentes e dão a sua esmola também p.ª isso; o povo diz q. não concorre p.ª isso com coiza alguma p.r q. quem veste os paramentos, q. os concerte e q. os compre e nem as confrarias querem concorrer com parte desses pequenos depózitos q. têm. Neste conflicto supliquei com o maior empenho à Ex.ma Junta da Bula em Lisboa hum subsídio p.ª param.tos e ella remetteo ao Ex.mo e R.mo Vig.º Cap.ar 85$000 rs. com a expressa condição de q. eu só receberia esse dinheiro quando por Attestado do Vestimenteiro provasse ter despendido quantia superior àquella em param.tos p.ª esta Igreja.

(183) (184)

(186) (187)

O parêntese consta do texto. O parêntese consta do texto.


Concertárão-se pois os param.tos q. havia, fizérão-se outros de novo p.ª Missas solemnes; já tenho disso Attestado reconhescido do | 24 v Vestimenteiro q. não mostrei a V. S.ª e os thezoureiros das Irmandades recúzão dar de seus depózitos 20$000 q. vão a menos. No antigo orçam.to já se deve eliminar a verba de param. tos 35$000, substituindo-a pelos 20$000 rs. q. só agora faltão p.ª q. esta Igreja fique prove(c)ta. Faltando mais acudir às toalhas dos Altares e sobrepeliz p.r q. o fogo queimou humas, os ladroens roubárão outras no arrobamento da Igreja e não há sobrepeliz alguma p.ª a fábrica e toalhas há só as q. estão nos Altares, ficando estes desnudados emquanto ellas se lávão. Eu não sei como me hei-de sahir deste labyrintho a q. têm dado cauza as faltas de providencia de Aveiro: deixa-se aumentar e juntar tudo; não sei como se há-de remediar! Considero-me dentro de huma embarcação no alto mar a meter água por todas as junt(ur)as, tenho calafetado athé com as proprias vestes, já não tenho mais! Agora cruzarei os braços e deixarei ir a embarcação ao fundo!!! Q. faremos? Demorar estas tão urgentíssimas obras? He expôr a evidentes perigos de q. dezabe a rezidencia, a Igreja, a exhumação de cadáveres pelos animaes, indecencias etc. etc. etc. Exigir tão grande contribuição, sempre crescendo q.to mais demorada e de tão poucos fogos e menos contribuintes he quase hum impossivel moral; eu não tenho forças p.ª isso e se assim se rezolver, terei de me retirar desta terra p.r alguns mezes p.ª não morrer dum martírio tão inglório! O perigo he tal q. me força a declarar q. não vejo outro algum remédio senão annexar esta paróchia a alguma das circumvizinhas mas, se melhor juízo descubrir outra rezoloção, venha ella p.r q. só os desgostos ou o dezespero me fás optar tão dezairoza medida p.ª hum Párocho. Espero pois o tempo prudentem.te necessario p.ª V. S.ª consultar o Ex.mo Snr. Gov.or Civil do Distr.º e terem ambos a bondade de me aconselhar o q. devo fazer. Esta expozição official fica rezistada (sic) fielm.te no L.º das Vezitaçoens desta Igreja p.ª q. a todo o tempo conste q. não fui cão mudo. Desculpe-me, Ill.mo Snr., julgo q. não terei dito palavra q. o offenda e, se eu tiver cahido nessa desgraça, eu retiro de todo o coração essa expreção (sic), p.r q. em V. S.ª reconhesço o tipo dos empregados honradíssimos e homem de bem e verdadeiríssimo Cavalheiro. Fico aguardando a sua resposta em tempo opportuno. D.s g.de a V. S.ª.

Pigeiros, 13 de 7br.º de 1860. Ill.mo Snr. Adm.or deste Con.co da Fr.ª M.el de Lima Ferrás da S.ª. O Abb.e de Pigeiros A. C. Ozorio Gondim». 169

| 25 «Officio q. vou enviar ao Ex.

Snr. Vigario Capitular desta Diocese do Porto sobre os oito Livros do novo registo parochial. Ex.mo Snr: Estamos no novo anno de 1861 e ahinda me não dérão os 8 livros para o registo parochial como eu pelo meu m.to R.do Vig.º da Vara requeri a V.ª Ex.cia. Esta Junta não tem nem 5 rs.; eu paguei à minha custa os 8 livros q. findárão; à espera de q. apparecessem providencias mas estas nunca se dérão em todo o anno e eu não estou rezolvido a continuar sobre mim só huma contribuição annual tão oneroza. Esta Junta não se julga, por hum simples Decreto, auctorizada a impor ao povo huma contribuição annual sem q. ella seja votada em ambas as Cazas do Parlamento. Nestas Circunstancias esta Junta fez hum Orçamento em Novembro p. p. em q. entrávão os 8 Livros e outras despezas indispensáveis para esta Igreja no total de 13$780, que tudo podia sahir da Irmandade de S. Sebastião desta paróchia que tem o seu depózito e dinheiro a juros. Eu entreguei pessoalmente o Orçamento ao Adm.or deste Con.co q. então era Manoel de Lima Ferrás da Silva e lhe pedi promtidão (sic) no despacho, pois q. o tempo instava; o Adm.or mostrou todo o empenho mas depois dice-me (sic) q. remettera o Orçamento p.ª o Ex.mo Gov.or Civil deste Distr.º (Aveiro)8(188) e q. aguardava resposta. Logo eu vi q., cahindo o Orçam.to no sorvedouro do Gov.º Civil de Aveiro, nunca mais de lá sahiria, porq. de muitos q. p.ª lá tenho mandado nem de hum só tive nunca resposta. Ali nada se obtém senão por amigos e, como eu lá não tenho conhescido algum, nada poderei nunca obter. Nestas tristes circunstancias supplico a V. Ex.cia a bondade de me dizer se eu devo fazer os Assentos do prezente anno no antigo Livro legal q. estava ahinda quase no seu começo; ou então nos Livros q. findárão no p. anno, pois alguns estão mo

(188)

O parêntese consta do texto.

85


ahinda por estrear, outros têm só dous assentos e todos têm prudente capacidade para nelles caberem os Assentos do prezente anno; fico esperando com muita anciedade (sic) a resposta de V. Ex.cia. D.s g.de, Ex.mo Snr., a V. Ex.cia. Pigeiros, 2 de Janeiro de 1861. O Abb.e An.to Caet.º Ozorio Gondim». 170 «Circular do Ex.mo Snr. B.º do Porto em 8 de Junho de 1868 com preces “ad petendam pluviam”, com licensa (sic) de se renovarem se, passados 8, digo, passados 10 dias desde o seu comprim.to (sic), não formos attendidos». 171

86

«Circular de 6 de Outubro de 1870 Do (sic) Snr. Dião (sic) e Vig.º Cap.ar J.e Joaq.m Correia de Vasconcellos e mandada cumprir perlo Snr. Vig.º da Vara em 12 de Outubro de 1870,

1.ª −

mandando fazer Preces pelo Summo Pontífice Pio 9.º e paz da Igreja em 3 dias “Pro quacumque tribulatione” e q. nas Missas se dêem as respectivas Oraçoens durante as cauzas. Ozorio Gondim». 172 (Ver Apêndice 18 a, b)

| 25 v «Contas que dá a seus successores o pároco desta Freguezia abaixo assinado dos Oitenta e cinco mil rs. q. recebeo do Coffre das Bulas da Santa Cruzada no próximo passado anno para paramentos desta Igreja, as quaes contas com os documentos comprobativos fôrão lidos e publicados na Igreja em varios dias solemnes e depozitados na Sacristia parochial a ahi fôrão examinados por quem quiz e depois (as contas) affixadas na porta da Sacristia parochial. Despezas q. fiz p.ª obter do Cofre das Bulas a esmola de 85$000, não falando do meu trabalho mas só em papel selado e correio:

Huma folha de papel selado para a Reprezentação q. fiz ao Ex.mo Tribunal das Bulas, sendo o selo de quarenta rs. cada meia folha

80 rs.

2.ª −

Huma dita do mesmo selo para Requerimento e informação do Snr. Adm.or deste Con.co

80

3.ª −

Huma dita do m.mo selo para requerim.to e informação do m.to reverendo Vigario da Vara deste Distr.º

80

4.ª −

Paguei ao Correio da Vila da Feira pelo segurio (sic), premio e porte de toda a papelada remettida por mim ao Ex.mo e R.mo Snr. Bispo D. Sebastião, prezidente daquelle Tribunal em 20 de setembro de 1858, lansada (sic) essa despeza no Livro 4, digo, no Livro competente do correio a folhas 83 como constava da Cautela q. me dérão e 265

copiada neste L.º das Vezitaçoens desta Igreja a folhas 17 v

Sômão estas 1.as despezas

505».


«Despezas q. fiz com o Vestimenteiro o Snr. Francisco Joze Teixeira de Carvalho na Rua do Loureiro n.º 21 a 23 da Cidade do Porto como consta do seu recibo junto:

1.ª −

Huma Cazula e duas Dalmáticas, duas estollas, tres manípulos, bolsa de corporaes, veo de Cáliz, tudo de damasco branco de padrão amarelo e encarnado, guarnecido de galão e franja de ouro entre fino

62:320

2.ª −

Hum Valdequino

09:000

3.º −

Hum véo d’hombros uzado

02:100

4.º −

Compor uma Cazula

01:200

5.º −

Huma Cazula

04:000

6.ª −

Dous Veos de Cáliz

01:800

7.ª −

Tres cordoens de linho para alva

00:900

8.ª −

Agaluar1(189) huma Cazula e forro

01:800 Somma esta 2.ª classe

83:120». 87

«Despezas q. fiz depois de promtos (sic) os paramentos supraditos: 1.ª −

2.ª − 3.ª −

Pelos agradecimentos públicos q. demos à Ex.ma Junta da Bula q. publicámos no Periódico do Porto Intitulado “Amigo do Povo” no seu n.º 242 em sábado 3 de Novembro do anno de 1860, constando de 61 linhas a 20 rs. por linha, como consta do recibo junto

1:220

Condução dos paramentos do Porto para esta freguezia, como consta do recibo junto, paguei a Manoel Joze de Oliveira Bastos, das Cavadas, desta Freguezia

0:180

Dous reconhescimentos de tabellião, sendo hum do Attestado do paramenteiro para aprezentar ao Ex.mo Snr. Vig.º Capitular e outro do Documento junto

0:080

Somma esta 3.ª classe

| 26

1:480

Cónstão as despezas “retro” escritas de 3 classes: Sômão as primeiras Sômão as de 2.ª classe Sômão (as) de 3.ª Soma total das 3 classes

505 83:120 01:480 85:105

Sômão todas as despezas q. fiz com os paramentos, não falando no meu trabalho nem nas jurnadas (sic) que fis ao Porto nem dos meus criados, em oitenta e cinco mil cento e cinco reis e, tendo eu recebido oitenta e cinco mil rs., fica-se-me restando cento e cinco rs.». (189)

Provavelmente por”agalbar” (de “galba”).


173 (Ver Apêndice n.º 12, 13 e 34)

88

«Circular da Adm.ão deste Con.co de 5 de Fever.º de 1861. Ill.mo e R.mo Snr.: Sendo necessario haver conhescim.to nesta Adm.ão de todas as irmand.es e Confrarias q. existem neste Con.co e q. têm livro de contas, vou por isso rogar a V. S. queira remetter-me com toda a urgencia huma relação de todas as ditas Confrarias e Irmand.es com declaração daquellas q. têm estatutos, sua data e por quem (são) approvados. Outros(s)im rogo a V. S. queira enviar-me huma relação de todas as pessoas falecidas com dispozição e q. se ache por cumprir. Espero V. S. satisfaça com promtidão (sic) e q. de futuro dê conta mensalm.te de todos os falecim.tos a cujos herdeiros tenha de se tomar conta e nesta parte dezejo q. V. S. não afrouxe p.ª q. esta Adm.ão possa cumprir com o seu dever. Queira V. S. por via do regedor da paróchia expedir a prezente ao S.r reverendo p.co q. se segue. D.s g.de a V. S.. Adm.ão do Con.co da Feira, 5 de Fever.º de 1861. O Adm.or do Con.co Fran.co Xavier Corr.ª de Sá Noronha e Moura. Está conforme. Pigeiros, 8 de Fever.º de 1861. Ozorio Gondim. Com mais hum N. B.: Entendem-se cumpridos os legados quando tênhão aprezentado quitação desta Administração». 174 «Circular de 28 de Novembro de 1861 em q. o Snr. Adm.or pede q. dentro de 8 dias se lhe envie a relação de Testamentos e Escripturas e seus herdeiros, nomes e habilitaçoens p.ª ver se os legados estão cumpridos. Eu recebi em o 1.º de Dezembro de 1861». 175 «Circular de 30 de Junho de 1862 do Ex.mo Snr. Vig.º Cap.ar Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos em q. annuncia a nomeação e sagração do novo Bispo do Porto q. se há-de sagrar no próximo Dom.º 6 de Julho, o Ex.mo S.r D. João de França Castro e Moura; despede-se do Governo o m.mo S.r Vig.º Cap.

. Remetti os Exemplares p.ª o novo Registo parochial e os mappas estatísticos como tudo nella se vê p.r q. he do teor seguinte: Tendo sido eleito p.r S. Mag.de p.ª Bispo desta Diocese o Ex.mo e R.mo Snr. D. João de França Castro e Moura q. era B.º eleito de Pekim, tendo sido confirmado por S. Santid.e em consistorio de 21 de Maio último, estando designado o dia 6 de Julho p.ª a sua Sagração e devendo seguir-se brevemente a posse e effectivo exercicio do seu Episcopado, he possuído da mais elevada e Santa alegria q. hoje partecipo (sic) a todos os R.dos Párochos, Clero e Fieis deste Bispado tão jubilozos successos a fim de q. p.r estes dêem as devidas Graças ao Omnipotente e todas as demonstraçoens de tão justo regozijo, q. ninguém pode deixar de exprimentar (sic) ao ver terminada a tão duradoura viuvez da Igreja Portucalense | 26 v e confiado o Governo pastoral a hum Prelado emminentem.te Douto, prudente e Virtuozo9(190). P.r esta occazião não só dirijo aos m.to reverendos vigarios da Vara e reverendos párochos os mui justos agradecimentos pela sua valioza coadjuvação durante o tempo em q. tenho governado esta Diocese e peço-lhes perdão das minhas faltas e erros de omissão e commissão como provenientes não da vontade mas da mediocridade da inteligencia mas tambem dezempenho agora os seguintes deveres do meu menisterio. Remetto huns mappas estatísticos q. os R.dos párochos preencherão e devidamente preenchidos, datados e assinados devolverão aos respectivos r.dos Vig.os da Vara e por estes nos serão devolvidos athé 15 de Agosto próximo. Remetto p.ª serem cumpridos desde o 1.º de Janeiro de 1863 e cautelozam.te conservados nos archivos das paróchias os exemplares do Decreto e modelos de 2 de Abril de 1862 sobre o registo parochial, segundo os quaes podem servir p.ª muitos annos os Livros q. fícão na Paróchia. Remessa dos Livros. A remessa dos Livros e documentos ao Escrivão da Câmara deve ser acompanhada de duas idênticas guias, numa das quaes elle passará recibo de todas, e assinadas pelos R.dos párochos, declarando nellas os Livros e documentos q. remettem, segundo as suas classes e devendo os documentos vir no mesmo formato dos Livros e cozidos de forma q. se não confúndão os de hum assento com os de outros. ar

(190)

No texto não está sublinhado mas em tipo maior.


Certidoens. Todas as certidoens, incluindo incluindo (sic) as das denunciaçoens dos proclamas, serão passadas em papel de 40 rs. de sello bem como as procuraçoens e serão sempre de theor e não de narrativa as certidoens dos baptismos, cazamentos e óbitos etc. Bullas. Hei por bem, digo, hei por m.to recommendado a entrega do produto das Bullas e respectivas contas, pois q. p.r todo o mez do próximo Julho deve ficar saldada, digo, ficar salda a conta geral desta Diocese. Os m.to r.dos Vig.os da Vara cumprirão e fáção cumprir e girar com urgencia esta Ordem. Porto, 30 de Junho de 1862. Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos, Vig.º Capitular».

«Nota do Snr. Vig.º da Vara deste 4.º Distr.º: Remetto incluzos o Docum.to de 12 de Abril deste anno e respectivos modellos e o Mappa estatístico e espero q. cada hum dos m.to r.dos párochos me devolverá este devidam.te preenchido athé ao dia 10 do próximo mez de Agosto. Recomendo a maior brevidade no giro desta Circular. Rezidencia de Romariz, 4 de Julho de 1862. João Soares de Azevedo. Foi recebida nesta Rezidencia de Pigeiros na manhám deste dia de 5 de Julho de 1862. Fielmente copiada por mim Abb.e A. C. Ozorio Gondim». 176

| 27

«1.ª Circular do Ex.mo Snr. B.º D. João de França de 16 de Julho de 1862. D. João de França Castro e Moura, por mercê de D.s e da S.ta Sé Apostólica Bispo do Porto, etc. Fazemos saber q., tendo-se verificado no dia de hoje o Acto de posse q. por nosso bastante procurador tomamos da S.ta Igreja do Porto em cujo episcopado fomos confirmados e canonicamente instituídos por S. Santid.e o Summo Pontífice Pio IX, havemos por bem ordenar o seguinte, emquanto (sic) não mandarmos o contrario. Não só confirmamos os actuaes m.to r.dos Provizor, Vig.º Geral e Vig.os da Vara mas tambem todos os actuaes empregados do nosso Auditorio e Juízo eccleseástico q. dependem da

nossa nomiação (sic) e convenientem.te serão expedidas as competentes provizoens. No nosso m.to R.do D.or Provizor Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos, actual Chantre da nossa Sé e promovido a Deão da m.ma p.r S. Mag.de, delegamos a nossa jurisdicção ordinaria p.ª q. continue a exercer o governo da Diocese emq.to não podérmos (sic) assumir o pleno exercício do mesmo. Confirmamos todas as Pastoraes, Circulares em vigor dos nossos antecessores e do nosso m.to Rev.º D.r Provizor como Vig.º Capitular e Governador do Bispado q. por vezes têm sido. Confirmamos emfim (sic) as licensas (sic) e faculdades temporárias ou illimitadas athé agora vigentes q. tínhão sido concedidas pelos nossos antecessores ou pelo nosso m.to r.do D.or Provizor, o qual cumprirá e fará cumprir e correr esta nossa Circular. Dada na Quinta de S.ta Cruz (do Bispo) aos 16 de Julho de 1862. João, B.º do Porto. (copiada fielm.te do original em 4 de Agosto de 1862 em q. a recebi e expedida pelo Snr. Vig.º da Vara em 19 de Julho de 1862. Ozorio Gondim)10(191)». 177 «2.ª Circular do m.mo Ex.mo S.r de 30 de 7br.º de 1862. Manda S. M. El Rei partecipar (sic) ao R.do B.º do Porto q. pela Secret.ª de Estado dos Neg.os do Reino fôrão dadas as ordens convenientes aos Governadores Civis dos Destrictos (sic) Administrativos p.ª a organização de hum proje(c)to de devizão (sic) administrativa em conformid.e com as indicaçoens q. lhes fôrão feitas e q., podendo os P.cos das Freg.as prestar importantes esclarecimentos às commissoens districtaes encarregadas da organização do referido proje(c)to, convirá p.ª o melhor dezempenho daquelle trab.º que se expéção as ordens necessarias p.ª q. os párochos do Bispado do Porto prestem todas as informaçoens q. p.ª o indicado assumto (sic) lhe(s) forem pedidas pelos Governadores Civis dos respectivos destrictos Adm.vos. Paço em 18 de 7br.º de 1862. Gaspar Per.ª de Melo.

(191)

O parêntese consta do texto.

89


Paço Episcopal do Porto de 1862 em 30 de 7br.º. João, B.º do Porto. Romariz, 5 de Outubro de 1862. João Suares (sic) de Azevedo. Está conforme; era ut supra. A. C. Ozorio Gondim». 178

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«Cópia da minha Carta ao S.r Vig.º da Vara sobre o meu engano dos Mappas de 1861. Ill.mo e R.mo S.r: No fim do p. p. anno enchi os Mappas relativam.te àq.le anno de 1862. Porém pelo P.e J.e Henriques da Silva soube há poucos dias q. os referidos Mappas se devíão encher em relação ao anno de 1861. Nestes termos fícão inutilizados aquelles Mappas ou então já promtos (sic) p.ª q.do se exíjão os do anno 1862. Mas precizo agora de novos Mappas p.ª se encherem no anno atrazado. Supplico pois a V. S. o obzéquio de mos mandar, se os tiver a mais ou no cazo de os não ter requezitados à Auctorid.e compet.e. V. S.ª sabe q. eu tenho sido sempre promto em cumprir as ordens dos meus supiriores (sic) com o maior esmero e capricho; houve agora este engano e só os Anjos não se engánão. A remessa dos novos Mappas q. supplico pode ser abatida p.ª o anno p. f. ou, se fosse necessario | 27 v pagar os q. se me remetterem, nenhuma dúvida terei nisso. D.s g.de a V. S.ª. Pigeiros, 7 de Janeiro de 1863. O Abb.e Antonio Caetano Ozorio Gondim. Ill.mo e R.mo Snr. Vig.º da V.ª deste 4.º Distr.º eccleseástico da Feira». 179 «Circular do Snr. Adm.or deste Con.co de 26 de Março de 1863 sobre Procissoens. Adm.ão do Con.co da Feira, Circular n.º 157. Ill.mo e R.mo Snr.: Sendo as procissoens, como V. S. m.to bem sabe, huma manifestação do culto externo desde m.tos a.s recebida na

Igreja, em q. a devoção dos Fieis deve revestir as formas simples e graves da Religião e não ligar-se a práticas q., em vez de conciliar o respeito pelos factos q. se commemórão, são verdadeiros abuzos q. m.to prejudícão a respeitabilidade do culto e constando-se q. ahinda em algumas partes deste con. co se obsérvão infelizmente m.tos desses abuzos e indecencias nas procissoens às quaes he da maior conveniencia pública da Igreja q. cessem por huma vez, rogo por isso a V. S. q., antes de sahir à rua nessa Freg.ª qualq.r procissão, se digne apprezentar-me com a devida antecipação o respectivo programma, o qual exijo, a fim de q. eu me inteire não só das dispoziçoens do m.mo programa a q. se refere a Portaria do Min.º dos Neg.os eccleseásticos e (d)e justiça de 23 de Abril de 1859, pondo-lhe o competente visto; mas tambem (me inteire) da approvação do Ex.mo e R.mo Prelado desta Diocese, pois não consinta q. se apprezente fora da Igreja qualquer procissão sem que esta solemnid.e haja sido previamente executada conforme me ordena terminantemente S. Ex.cia o Snr. Gov.or Civil deste Districto em Circular de 19 do corr.e. Fico certo de q. V.ª S.ª me não dará o menor dissabor a este respeito e q. cumprirá pontualm.te tudo q.to se recommenda na prezente circular, pois confio m.to na ilustração, zelo e reconhescida probidade de V.ª S.ª q. tanto o caracterízão. Queira V. S. fazer inviar (sic) a prez.e Circular ao S.r R.do P.co q. se segue e vai declarado no Círculo e pelo último me será enviada com o visto lavrado no respectivo lugar. D.s g.de V. S.ª. Adm.ão do Con.co da Feira, 26 de Março de 1863. O Adm.or do Con.co Fran.co Xavier Correia de Sá Noronha e Moura. Está exacta. Pigeiros, 11 de Abril de 1863. Ozorio Gondim». 180 (Ver Apêndice n.ºs 31 e 45) «Lista dos (pobres) que dou para a Câmara como precizando de soccorros médicos e cirúrgicos se adoecerem nesta Freguezia. Bajouca 1.º – Maria, Inacio e Albina, f.os q. ficárão de M.el Fran.co de Sá. 2.º – Anna Maria, v.ª a Touta com seus quatro filhos.


3.º – João Fran.co Marinheiro11(192), v.º e seus 4 filhos. 4.º – An.to Ferr.ª com sua m.er e cinco f.os. 5.º – M.el Ferreira, v.º com 3 filhos. Bajouca (sic) 6.º – Maria de Oliveira Costa, soltr.ª com seu filho e nora. 7.º – Thomazia d’Olivr.ª Costa, soltr.ª 8.º – Alexandre Suares (sic) com sua m.er e filhas. Vinhó 9.º – Margarida Joaquina da Mota Cancela, soltr.ª. 10.º – An.to da Mota com sua m.er. 11.º – Maria Ferr.ª, v.ª de Fran.co. 12.º – M.el Alves de Oliveira Sub-cortinhas com sua m.er. | 28 13.º – Luiza Maria Per.ª Janeira, solteira com seu filho. 14.º – Alexandre Suares Janeiro com sua m.er. 15.º – Maria de Jezus, v.ª com seu filho An.to (a Patuleia). 16.º – Anna Maria, v.ª com seus 3 filhos. 17.º – Joaquim Joze Valente, moleiro com sua m.er. 18.º – Joze Pereira Manhoceiro com sua m.er. Pe d’Arca 19.º – An.to Gomes de Figueiredo (o Comp.e)12(193) com sua m.er e sogra. 20.º – M.el Henriques Bernardo com sua m.er. 21.º – Maria Jozefa, soltr.ª. 22.º – Marianna Roza, v.ª com sua f.ª. 23.º – Bernardo Miguel Cancella com sua m.er. 24.º – Maria Rita de Jezus, solteira, a Arrifaneira. Aldeia 25.º – An.to Per.ª Fragozo, v.º com seus f.os. 26.º – João Dias com sua m.er. 27.º – An.to J.e de Olivr.ª Reitor, soltr.º, sapateiro. Freza 28.º – Thereza dos Reis, solteira. Cimo d’Aldeia 29.º – Jozefa de Jezus Pedreira, v.ª com seus filhos. 30.º – M.el J.e de Olivr.ª Reitor com sua m.er e seis filhos.

(192) (193)

Ver Apêndice 45. O parêntese consta do texto.

Cavadas 31.º – Margarida Ferreira, v.ª. 32.º – Thomazia Henriques de Bastos cujo marido está auzente. 33.º – Maria Fernanda de Jezus, soltr.ª. 34.º – João Fran.co de Paiva com sua m.er. 35.º – Maria da Mota, soltr.ª com sua filha e irmám Roza. 36.º – Thereza Maria de Olivr.ª cujo marido he auz.e, com seu f.º. 37.º – M.el Lopes, soltr.º. 38.º – Thereza Lopes Caicheira, soltr.ª. 39.º – An.to Bernardo com sua m.er e filhos. 40.º – Maria da Silva, soltr.ª com sua filha Luiza. 41.º – Simão da Silva com sua m.er Delfina. 42.º – M.el Fran.co Lopes, o Febras, com sua m.er e filhos. 43.º – M.el Fran.co Lopes, digo, Francisco de Olivr.ª Costa (o Galopim) 13(194) com sua m.er e f.os. Calvario 44.º – Joze Joaq.m do Carmo, v.º. Quintám 45.º – Maria Fran.ca dos Santos, soltr.ª com 4 pessoas de sua familia q. são irmáns e sobr.as. 46.º – Maria Fernandes, v.ª. 47.º – Domingos J.e Moreira com m.er e 4 filhos. 48.º – An.to Marques, moleiro, com sua m.er. | 28 v algumas observaçoens:

1.º Entre estes vão m.tos proletários q. ora mórão num, ora noutro lugar. 2.º Que entre elles vão alguns q. têm uma pequenita caza com sua pequena cerca mas isto he na apparencia, porque na rialidade (sic) têm menos q. nada, porq. quanto possuem está emprenhado pelo dobro e mais do seu valor. 3.º Alguns têm uma pequena rezerva q. no estado de saúde não chega p.ª os alimentar e muito menos na doensa (sic).

(194)

O parêntese consta do texto.

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4.º Finalmente pode apparecer mais algum indigente q. eu ignore e por isso não me considero impedido de requerer soccorros para qualquer eventualidade. D.s g.de a V. S.. Pigeiros, 19 de Maio de 1863. Ill.mo Snr. Prezid.e da Câmara Municipal deste Con.co da Feira. O Abb.e An.to Caet.º Ozorio Gondim». 181

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«Circular do nosso Snr. Ex.mo e R.mo Bispo D. João de França Castro e Moura de 15 de Maio de 1864. Ahinda q. as más doutrinas séjão de todos os tempos e tênhão sempre cauzado à Religião e Sociedade Civil deploráveis males, comtudo (sic) nunca o(s) seus effeitos fôrão tão funestos como na época q. vamos atravessando. A rápida e quase instantânea transmissão dos pensamentos de huma a outra extremidade da terra e a reprodução dos escritos por meio da imprensa fazem honra à razão humana mas pedindo e devendo todos estes e outros inventos ser empregados na Gloria de Deus e em proveito da humanidade, têm sido as mais das vezes desvirtuados pela malícia dos homens. Por toda a parte gemem os prelos, imprimindo milhares de escritos, nuns dos quaes se nega clara e abertamente a existencia de D.s ou a sua Divina Providencia, noutros debaixo da forma duma Divindade impessoal se ensina o pantheísmo, materialismo e fatalismo, destruidor da liberdade e consciencia humana; em alguns fingindo-se prestar homenagem a D.s, negase toda a revelação Divina, a doutrina da creação (sic) do mundo e a existencia de Jezus Christo (Strauss)14(195) ou pelo menos a sua Divind.e (Renan, Vida de Jezus)15(196) e os merecimentos, a(s) prerogativas de sua S.ma Mãi (o Maldito)16(196b) e noutros finalmente (sendo alguns escritos em linguagem) 17(197), admittindo-se a revelação e confessando-se a Divindade de J. C., combate-se a Doutrina da Igreja Catholica, Apostolica, Romana já aberta e claramente, já com disfarse (sic), começando pela expozição de suas Doutrinas e propinando depois traiçoeiramente o veneno do erro e da mentira debaixo de allegorias, apólogos e O parêntese consta do texto. O parêntese consta do texto. (196b) O parêntese consta do texto. (197) O parêntese consta do texto. (195)

exemplos (taes são entre outros o Livro dos deveres, Vendo o invizível, o Professor Gomes, O bom Boticario Faria) 18(198). Não são menos perigozos muitos dos romances q. todos os dias se publícão e q., começando por exaltar a imaginação e ffomentar as paixoens, corrompem o coração e por fim pervertem a razão. Alguns destes píntão as paixoens como insuperáveis e homem sem liberdade para lhes rezistir (sic); outros as dão como lícitas e D.s como injusto por vedar a satisfação das mesmas. Chêgão outros ao seu delírio a pertender (sic) justificar o suicídio e outros crimes, minando (com o) tempo os fundamentos da Religião, da moral e de toda a sociedade humana. Em prezensa (sic) deste alluvião de más doutrinas não podemos ficar silenciozos e he hum dos 1.os deveres do nosso Ministerio pastoral exhortar como exhortamos os R.dos Párochos e curas d’Almas, nossos cooperadores a que, redobrando de zelo e em vista de tão graves perigos, afastem as ovelhas confiadas ao seu cuidado dos pastos immundos, ensinando e fazendo sentir a todos o perigo da condenação eterna a q. se expõem os q. publícão, vendem, lerem (sic) ou conservar em seu poder livros e escritos que contênhão tão falsas e detestáveis doutrinas e não menor e com muita maior | 29 razão devem lembrar aos paes de familia, mestres e professores as estreitas contas q. têm de dar a D.s, se por sua incúria deixarem chegar às mãos de seus filhos, discípulos e sobordinados (sic) taes livros e escritos. Não se esquéção tambem de lhes lembrar e advertir q. todos os q. obrarem doutra sorte, não só incorrem nas censuras eccleseásticas senão tambem q. se tórnão indignos da recepção dos Sacramentos pela sua obstinação no mal e por se acharem em occazião próxima, voluntaria de se perderem, digo, de se perverterem. Os livros assim prohibidos e cuja leição (sic) he vedada, nos deverão ser entregues porq., antes de serem queimados e inutilizados, importa saber quaes os erros q. se espálhão e o incremento q. toma o mal. E outro(s)sim em dezagravo e reparação das blasfémias que Renan e outros têm vomitado contra a Divindade do nosso S.r J. C., contra a Virgem SS.ma e outros Santos, recommendamos com grande instancia q. nos Domingos e dias Santificados, antes de começar a Missa Conventual e a primeira que se chama dos pastores, se recite

(196)

(198)

O parêntese consta do texto.


a Oração “Deos seja Bendito” q. com esta vai junta e, por cada vez que assim se praticar, concedemos quarenta dias de indulgencia a cada hum dos fieis. E p.ª q. assim se cumpra, será esta nossa Circular communicada a cada hum aos (sic) R.dos Párochos q. à estação da missa conventual se dezempenharão do q. lhes deixamos recommendado, fazendo os m.to R.dos Vig.os da Vara q. gire pela Igreja dos seus respectivos destrictos (sic) na forma do estilo. Paço Episcopal do Porto, 15 de Maio de 1864. João, Bispo do Porto. Recebida nesta paróchia de Pigeiros em 23 de Junho de 1864: rezistei (sic) e está conforme, era ut supra. O Abb.e Antonio Caetano Ozorio Gondim». «Oração ou Cântico a q. acima de refere ou alude: Deos seja Bemdito (sic), Seja bemdito seu Santo Nome, Seja bemdito Jezus Christo verdadeiro Deos e verdadeiro homem, Seja bemdito o nome de Jezus, Seja bemdito Jezus Christo no Santissimo Sacramento do Altar, Seja bemdita a Santissima Virgem glorioza Mãi de Deos, Seja bemdita sua Santa e Immaculada Conceição, Seja bemdito o Nome de Maria Virgem e Mãi, Deos seja bemdito nos seus anjos e nos seus Santos. Está conforme. Ozorio Gondim». 182 (Ver Apêndice 36 e 44) «Vezitação desta Igreja pelo Ex.mo Snr. Bispo. Aos vinte dias do mez de Outubro de mil oito centos e sessenta e quatro em huma quinta-feira, hoje mesmo pelas nove horas da manhám vindo da Igreja de Romariz, acompanhado do clero daquella e juntamente pelo da nossa paróchia, veio apear-se em frente desta Igreja o Ex.mo Snr. Bispo desta Diocese D. João de França Castro e Moura; entrou na Sacristia eccleseástica onde se vestio com os hábi(t)os | 29 v Prelatícios e entrou debaixo do páleo (sic) pela porta principal. Fez toda a Vezitação com toda a miudeza e crismou para cima de trezentas pessoas; vezitou tudo com muita miudeza e não mostrou nunca nem louvores nem censuras.

Agora que já passárão muitos dias depois da vezitação, eu acabo de saber que o Snr. Bispo fora muito agradado desta Christandade e a todos fazia elogios do asseio e limpeza em que achou a nossa pobre Igreja e, para que conste, acabei de lavrar este termo. Pigeiros, 24 de Dezembro de 1864. O Abb.e Antonio Caetano Ozorio Gondim». 183 (Ver Apêndice 39) «Historia da vitella paschal nesta Igreja. Quando eu vim para esta paróchia no anno de 1834 achei aqui hum antiquissimo Costume do Juiz da Igreja dar ao Párocho huma vitela esfolada como folar no sábado da Aleluia e o Párocho dar-lhes em gratificação 480 rs.. Era Encommendado quando eu tomei conta o Reverendo Joze Francisco da Silva da caza da Fonte da Bajouca, q. viveu mais de cem annos nesta Paróchia e contava assim a origem deste prezente, dizendo que antigamente era aqui o párocho obrigado a dar o almoço e a Ceia a toda a gente do compasso e o Juiz dava o Jantar mas q. os Juízes da Igreja se queixávão de q. nem tínhão quem cozinhasse nem louças nem preparativos necessarios e mesmo queríão fugir a convidar para o seu jantar seus parentes, compadres e amigos; fizérão com os Abbades a seguinte concordata: q. elles Juízes daríão huma vitela esfolada e os Abbades daríão todos os comeres no dia de Páschua (sic). Amigos e inimigos comprírão (sic) sempre esse costume e alguns houve como o Joze Neto da Portella que servio tres annos e em todos deu a vitella correspondente a cada anno; o mesmo praticou o Manoel Carvalho da Bajouca. Mas veio o anno passado, 1864, em q. era Juiz um tal Joze Coelho, da Bajouca, por alcunha o passarada, e foi o primeiro que não deu a Vitella. Eu entendi e ahinda hoje entendo e assim o praticarei emquanto (sic) viver, que não devia darlhe de jantar nem a elle nem ao rapaz da campainha, que he obrigas(s)ão (sic) delle e, chegando a esta minha caza com o compasso, sento-me e almosso (sic) eu com o criado da caldeirinha e o Juiz com o rapaz da campainha sêntão-se a hum canto da caza q. eu lhe(s) destino, fazendo cruzes na boca emquanto eu almoço e assim aos mais comeres; por mais amigos que séjão, nem hum copo de água lhes deixo dar nesse dia.

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A Junta de Paróchia elegeo para Juiz da Igreja neste corr.e anno de 1864 a Manoel Francisco Paschoal, actual Regedor, do lugar da Aldeia, mas elle mostrou à Junta um requerimento com o despacho do Administrador em que o exentava (sic) de Juiz como comprehendido no previlegio de vendedor de papel selado. Em vista deste despacho a Junta annuiu e prometteu não fazer nova nomeação; Paschual foi ter com o vogal da Junta Manoel Francisco Leite e pedio-lhe que fizesse como companheiro q. nomeasse novo Juiz mas que fosse nomeado hum muito pobre para se acabar com | 30 com o foro da vitella paschal ao párocho. A isto respondeo Leite que já havia quem se offrecesse (sic) por devoção a servir todo o anno e athé a dar a vitella do costume e que este era Manoel Carvalho da Bajouca, o qual servio já dous annos. Então Pascual respondeo que isso não tinha conta, que o que elle queria era distruir (sic) o foro da vitella e então que antes não nomeassem mais nenhum e que deixassem servir o velho Passarada para este a não dar este anno para ir pegando a lábia. A Junta assim o fez e está servindo o Passarada que tambem não deu vitela e servio a seco, isto he, esteve fazendo cruzes na boca emquanto eu comia e ao jantar permitti-lhe licensa (sic) de elle ir com o rapaz da campainha jantar a caza delle e depois vir encontrar-me a hora e lugar certo. Não he grande o prejuízo do párocho por falta da vitella: eu nunca com ella fiz prezente nenhum; cozinhava-se toda e comia-se aos 3 comeres e bem pouco ficava para se dar aos pobres; e, quando chovia no dia de Páschoa e o compasso ficava para a 2.ª feira, dava eu os 3 comeres nos dous dias e já a vitella não chegava para esses seis comeres, além de que com vitella só não se fás (sic) nem cozido nem sopa, sempre he necessaria a vaca q. eu comprava. Ora os 480 rs. q. eu dava de gratificação dá-me para eu comer vitella nesse dia e a vaca q. eu comprava só para o jantar dá-me para toda a semana mas para isto he necessario ter a coragem de fazer como eu faço: de não dar nesse dia a ninguém nem huma sede de água e, sendo assim, o párocho economiza muito. Se porém der de jantar sem lhe darem a vitella, arruinará a bolsa e ficarão escarnecendo delle, dandolhe geralmente o nome de tolo como merece. Talvez haja quem se admire do comportamento do Pascual; eu não me admiro d’elle se livrar: julgou isso mais honesto do que fazer o que fez o Pai, q., me dizem, a não

dera e por isso “De tal pai, tal filho se esperava” mas o q. me admira foi elle no compasso passado cassoar diante de mim o Passarada por elle não me dar a vitella, sendo mister q. eu acudisse ao pobre diabo, lansando (sic) água na fervura!!! São amigos do mundo que nunca se acábão de conhescer!!! Para governo dos meus R.mos Successores deixo escrita fielmente esta historia q. muito lhes pode approveitar. Pigeiros, 26 de Abril de 1865. O Abb.e Antonio Caetano Ozorio Gondim». 184 «Circular do Snr. B.º D. João de França de 9 de Março de 1866 sobre Conferencias. Attendendo a q. as Conferencias moraes a q. nossos antecessores dérão sábios regulamentos e mui especialm.te o Snr. D. Jerónimo de boa memoria em Circular de 22 de 7br.º de 1844, têm deixado de se fazer em muitos Círculos p.r motivos q. cumpre remover e, considerando o q.to são proveitozas p.ª o Clero estas Conferencias e palestras moraes p.r q. ahi se trazem à memoria e dezenvolvem os principios elementares aprendidos nas Aulas de Disciplinas eccleseásticas e se faz applicação dellas à rezoloção (sic) de cazos correntes, ficando assim os m.to R.dos Eccleseásticos mais habilitados p.ª fazerem seus exames e dirigir os Fieis com a luz da boa Doutrina e sam 19(199) moral | 30 v , havemos por bem ordenar o seguinte: 1.º Fícão restabelecidos os antigos Círculos das Conferencias moraes na forma em q. se achávão constituídos mas, onde convier q. se alterem, os m.to R.dos Vig.os da Vara o poderão fazer, bem como criarem novos Círculos, se as circunstancias locaes assim o exigirem. 2.º Os m.to R.dos Vig.os da Vara nomearão novos Prezid. es p.ª substituírem os q. tiverem falecido ou se acharem impossibilitados 20(200) p.ª os Círculos q. de novo se criarem, submettendo tudo à nossa approvação.

(199) (200)

O mesmo que “sã”. No texto está” impossibilitado os”.


3.º As Conferencias terão lugar nos dias e forma dezignados na Circular de 22 de 7br.º de 1844, mas naquellas Circulares em q. se tornarem difficeis pela muita distancia ou escabrozidade dos caminhos poderão os m.to r.dos Vig.os da Vara reduzir o seu n.º. 4.º Os R.dos Prezid.es das Conferencias moraes notarão as faltas q. se derem e se com motivo justificado ou sem elle e de 4 em 4 mezes remetterão huma relação dellas aos m.to r.dos Vig.os da Vara e por este nos serão remettidas todas as relaçoens em cada hum anno na Páschoa da Ressurreição. 5.º Nenhum Requerim.to em q. se peça licensa (sic) para uzo de Ordens, Carta de Cura ou Encommendado será deferido sem q. seja instruído com Certidão de frequencia das Conferencias moraes, passada pelo respectivo Prezid.e assim como com attestado da obediencia canónica passado pelos R.dos Párochos. 6.º Fícão dispensados de frequentar as Conferencias moraes os r.dos eccleseásticos q. tiverem mais de sessenta e cinco a.s de id.e se o local das m.mas ficar distante da sua habitação a mais de hum e meio Kilómetro. Os m.to r.dos Vig.os da Vara, Prezid. es das Conferencias moraes e mais Clero assim o cúmprão, cada hum pela parte q. lhe tocar e de modo q. dentro de hum mez a contar da recepsão (sic) desta se achem instaladas as Conferencias e será esta registada no L.º competente. Paço Episcopal do Porto, 9 de Março de 1866. João, Bispo do Porto. Foi recebida em Pigeiros, em 25 de Março de 1866». «Nomeações dos Círculos pelo Snr. Vig.º da Vara: 1.º – Compor-se-há da Freg.ª de Pigeiros, de q. será Prezid.e o r.do Abb.e. 2.º – Das Freg.as de Arrifana, Milheirós e S. João de q. será e Prezid. o r.do Abb.e de Arrifana. 3.º – Couto e S. Thiago, Prezid.e o r.do Abb.e do Couto. 4.º – Avanca, Prezid.e o r.do Reitor. 5.º – Loureiro e Ul, Prezid.e o Abb.e de Loureiro. 6.º – Oliveira e Madail, Prezid.e o Abb.e de Oliveira. 7.º – S. Roque e Pindelo, Prezid.e o r.do Abb.e (sic). 8.º – Nogueira e Macieira, Prezid.e Abb.e de Nogueira.

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| 31 «Circular do Snr. B.º D. João de 2 de Janeiro de 1867 q. determina o tempo e remessa dos L.os dos Assentos de cada anno p.ª a Câmara Eccleseástica. Tendo alguns dos R.dos Pa.cos desta Diocese deixado de enviar à nossa Câmara Eccleseástica os L.os do Registo Parochial com a regularidade q. lhes cumpre em observancia do Decreto de 2 de Janeiro de 1862 em q. o mencionado Registo teve princípio e sendo muito p.ª estranhar huma semelhante falta, tanto mais p.r serem os R.dos Párochos q. devem dar exemplo de obediencia às Leis, Ordenamos q. athé ao fim do mez de Fevereiro 21(201) aquelles R.dos Párochos q. tênhão deixado de enviar p.ª a nossa Câmara Eccleseástica os duplicados dos L.os do Registo parochial de suas Freguezias e os respectivos Documentos, os fáção ahi aprezentar cobrando recibo em huma das guias, q. os devem acompanhar, certos de q. procederemos como entender(mos) contra os que assim o não cumprirem. Advirtimos (sic) p.r esta occazião a todos os R.dos Párochos p.ª q. não mandem jamais os Documentos relativos aos cazam.tos sem q. vênhão cozidos sobre si, com o número de ordem a que respéitão e rubricados com a sua rubrica, como he expresso no artigo 10 do mesmo Decreto. E q. não serão recebidos na nossa Câmara Eccleseástica os que assim não vierem nem mesmo os Livros q. contiverem mais q. huma qualidade de Assentos, ficando como faltozos os q. assim os aprezentarem bem como os que aprezentarem os Livros sem os Docum.tos de cazamentos, tendo-os havido. Os R.dos Párochos, quando mandarem os Livros serão estes acompanhados por duas Guias iguaes, nas quaes mencionarão o que se contém; e devendo o Escrivão da Câmara Eccleseástica passar em huma dellas recibo do que lhe for entregue. O muito reverendo vig.º da Vara do 4.º Distr.º da Feira fará girar esta com a possivel brevid.e nas Freg.as do seu Destrito, enviando-a, depois de assinada, a esta nossa Secretaria. Paço Episcopal do Porto, 2 de Janeiro de 1867. João, B.º do Porto. Cumpra-se na forma do estilo. Romariz, 8 de Janeiro de 1867. João S.es de Azevedo, Vig.º da Vara. (201)

No texto não está sublinhado mas está em tipo maior.

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Foi recebida nesta paróchia, em 30 de Janeiro de 1867 e por mim fielmente copiada An.to Caet.º Ozorio Gondim».

187 (Ver Apêndice 53) «Circular de 18 de Fever.º de 1868 assinada pelo Ex.mo Gov. do Bispado. Querendo Sua Mag.de adoptar providencias p.ª q. os P.cos não séjão prejudicados em suas côngruas com o disposto no art. 2116 do Código Civil em q. determina q., além das despezas de funeral, a nenhumas outras he obrigada a herança ou a 3.ª della com suffragios pela Alma do falecido, não tendo sido ordenadas em testam.to, cumpre q. cada hum dos R.dos Párochos com a maior exactidão e urgencia encha, date e assine hum dos Mappas q. receberá com esta circular, tendo em vista o arbitram.to da côngrua e o registo parochial, sem haver a menor exegeração p.ª mais ou p.ª menos em ordem a não ficarem prejudicados com huma ou outra dessas providencias, q. forem adoptadas. Os m.to R.dos Vig.os da Vara | 31 v Cúmprão e fáção girar e cumprir esta Circular com os competentes mappas, recolhendo-os depois de enchidos e devolvendo-os sem demora. Porto, 18 de Fever.º de 1868. Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos, Gov.or do Bispado». or

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«Circular do Snr. Vig.º da Vara de 24 de Agosto de 1867 sobre mapas etc. Ill.mo e R.mo Snr.: Estão em meu poder os Mappas estatís(ti)cos dos Ba(p) tismos, cazam.tos e óbitos, q. V.as S.as terão a bondade ou o incómmodo de aqui mandar procurar p.ª os preencherem em relação ao anno de 1864 e devolver-mos athé ao dia 5 de Outubro próximo. Não os mando conjuntamente com esta p.r serem volumozos mas aq.les R.dos Snr.s q. preferirem recebê-los na Rezidencia de Oliver.ª de Azemeis declarem-nos nesta Circular, q. p.ª lá os remetterei, esperando do R.do S.r Abb.e dahi q. os distribua. Todavia a entrega deverá ser feita aqui em Romariz p.ª eu verificar se os referidos mappas fôrão preenchidos conforme as instrucçoens de 2 de Abril de 1862 e he conveniente q. esta entrega seja feita na semana q. decorre de 29 de Setembro a 6 de Outubro seguinte. O Vig.º da Vara João Soares de Azevedo».

«Cópia do Mappa Diocese do Porto Freg.ª de Pigeiros N.º das pessoas falecidas sem dispozição de suffragios p.r Quantias devidas ao párocho p.ª taes suffragios segundo os uzos suas Almas legaes 1863

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1864

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1866

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1867

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Observaçoens: Eu entendo q., não havendo suffragios, nada se me deve por esse motivo e por isso não tenho a fazer conta alguma mas deve-se-me a restituição de 52$920 rs. por anno e q. há dez annos vem a ser o total de 529$200 rs. como se pode ver no reverso deste Mappa. A quantia total supra devedida (sic) p.r 5 dá a média de $ (sic). Por mim vai datado e assinado no reverso. No reverso escrevi: A côngrua desta paróchia foi arbitrada em 200$000 rs. dos quaes em dinheiro só me pagam 30$000. O mais está estabelecido no rendimento do passal, conhescensas (sic) e premissas (sic). Nessa arbitração abatêrão-me 105 alm.s de vinho q. o passal costumava produzir e 42 alm.s de premissas q. o povo pagava; vem a ser o total 147 alm.s q. a 360 rs. o alm.e como foi calculado dava cada anno 52$920 rs. q. há mais de dez a.s eu não recebo, porq. nesta terra há mais de dez a.s que não há vinho. A Côngrua foi estabelecida no restrictamente (sic) necessario só p.ª se não morrer de fome. Desde então para cá tudo dobrou e quadriplicou de preço como a (carne de) vaca, o bacalhau etc. etc. Os párochos das pequenas paróchias como esta têm de lutar com a grande subida dos géneros, com o abatimento de mais da 4.ª parte da sua côngrua com as despezas do Registro (sic) parochial e comprar todos os a.s os Livros à sua custa; a ser mão-pusteiro (sic) das Bullas sem dahi colher proveito algum mais q. prejuízos, enganos e calotes. E demais disso acrescem as Vezitaçoens episcopaes q. tanto a miúdo vêm dar nova sangria na tízica bolsa dos Párochos!!! Há mais de cem annos q. não tinha vindo Bispo algum vizitar esta Igreja p.r q. todos queríão evitar as despezas, apezar de cahirem sobre os rendeiros dos dízimos. Mas nós há tres a.s q. tivemos a honra de ser vezitados pelo Snr. B.º e já estamos em vésperas de 2.ª Vezita!!! Para isto he q. se devia olhar e não para suffragios, os quaes mui pouco prejuízo podem dar ao párocho! Os Párochos das grandes Igrejas, os grandes comiloens não querem a Dotação eccleseástica e têm razão p.r q. com ella elles perdem e os párochos pobres gánhão. Só com a dotação se podia remediar tudo, porém eu já não creio na Dotação mas sim na Destruição22(202) do Clero. Rezidencia p.al de Pigeiros, 15 de Março de 1868. O Abb.e A. C. Ozorio Gondim».

(202)

No texto não está sublinhado mas está em tipo maior.

188 «Circular de 31 de Março de 1868 assinada pelo Snr. B.º D. João. Esta Circular manda fazer preces “ad petendam pluviam” com oração nas Missas athé q. a chuva venha. Nesta Circular diz o Snr. Vig.º da Vara q. vai remetter p.ª o Porto os mappas de q. acima se trata: os de Arrifana, Avanca, Cezar, Couto, Escaris, Fajoens, Fermedo, Gandra, Louredo, Macieira, Mansores, Nogueira, Pereira, Pindelo, Romariz, S. Thiago e Vila-Chám. Romariz, 3 de Abril de 1868. E diz q. em seu poder estão os mappas relativos a Baptizados, Cazam.tos e óbitos com relação ao anno de 1865 e remettê-los athé 10 de Maio seguinte». 189 97

| 32

«Circular do Snr. B.º D. João de 20 de Abril de 1868. Mandando q. os R.dos Párochos entreguem o dinheiro das Bullas bem como as q. se não distribuírão e isto por todo o mez do prócimo (sic) Maio e receberem o recibo do Vig.º da Vara. Junto a esta circular manda o S.r Vigº da Vara q. os Mappas séjão enchidos com exactidão respeito aos Nascimentos, Cazam.tos e óbitos e manda hum mappa p.ª modelo p.ª todo o círculo. Em 24 de Abril de 1868». 190

«Bullas. «Circular de 27 de Abril de 1870 do Snr. Vig.º Cap.ar Vasconcellos, mandando q. p.r todo o mez de Maio entreguem os P.cos o produto das Bullas distribuídas ao Vig.º da Vara». 191 (Ver Apêndice n.os 20, 23, 34 e 49) «Circular do Adm.or deste Con.co de 28 de Junho, intimando a Junta e confrarias p.ª darem contas, digo darem contas à Adm.ão athé às (sic) 16 de Julho».


192

98

«Circular de 15 de Dezembro de 1870: Registo de ónus riaes (sic), servidão e quinhão etc. Em observancia do q. me he recommendado pelo Governo de S. M. advirto a todas as corporaçoens e pessoas eccleseásticas sujeitas à minha jurisdicção q. para manutensão (sic) de seus direitos e evitarem futuros prejuízos sem remédio devem effectuar athé 22 de Março de 1871 (último dia da pro-roga de tempo)23(203) o registo dos ónus riaes de servidão e quinhão, de enfiteuse, sub-enfiteuse e censo, exigencia de foros vencidos ao tempo da promolgação (sic) do Código Civil e hipotecas em conformidade com os respectivos artigos do mesmo Código e Regulamentos. O m.to R.do Vigº da V.ª faça girar com urgencia esta Circular e ma devolverá com o simples visto e assignado dos R.dos pa.cos e prezidentes das indicadas curpuraçoens (sic), havendo-as, sem q. lhes seja lícito escrever coiza alguma nesta Circular além do dito visto, o q. sempre se observará em cazos semelhantes. Porto, 15 de Dezembro de 1870. Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos, Deão e Vig.º Cap.ar. Está conforme ao original q. fielmente copiei. Pigeiros, 14 de Janeiro de 1871. Hoje mesmo recebida nesta paróchia, tudo por mim Abb.e Antonio Caetano Ozorio Gondim». 193 «Circular sobre o novo rito de S. Joze de 12 de Março de 1871. Achando-se declarado Padrueiro (sic) da Igreja o Gloriozo Patriarcha S. Joze com o rito de 1.ª classe pelo S.to Padre, ordeno q. nesta Diocese se reze delle e celebra a sua Festa no dia 19 do corr.e, q. no dia 23 se reza de S. Patrício, do q.l tinha a rezar-se no dia 27 e q. neste dia, tudo deste mez, se reze da féria, ficando desta forma alterado o Calendário deste anno. Assim se cumpra p.ª o q. se publique e gire esta Circular na forma do costume. Porto, 12 de Março de 1871.

203)

O parêntese consta do texto.

Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos, Deão e Vigario Capitular. Mandada girar e cumprir pelo comp.e Vigº da Vara em 16 de Março às 6 horas da manhám. E recebida aqui em 16 de Março pelas 7 horas da manhám e no m.mo dia remettida às 9 horas da manhám p.ª Milheirós. Está conforme. Ozorio». 194

| 32 v

«Circular de 1 de Abril de 1871. Sobre as contas das Bullas. Aprocimando-se (sic) o tempo p.ª o apuram.to das contas da Bulla da cruzada, recommendo aos m.to r.dos vig.os da V.ª q. apurem as contas com os R.dos Pa.cos das Freg.as dos seus destrictos por todo o mez de Maio seguinte, p.ª elles m.to r.dos vig.os da Vara poderem liquidar suas contas com a effectiva entrega do produto das esmolas dos seus destrictos dentro do mez de Junho a fim de ser fexada (sic) a conta g.al da Bulla do corr.e anno económico de 1870 a (18)71 no fim do dito mez de Junho em conformid.e com a exigencia do Ex.mo e r.mo Snr. B.º Commissario g.al e recommendação feita na Circular p.r mim expedida em 17 de Junho de 1870. Remetto os autos da abertura das caixas p.ª serem preenchidos com as quantias existentes ou sem ellas, sendo humas e outras assinadas segundo o indicado nos autos. Remetto mais os novos recibos q. têm de ser passados aos R.dos párochos das quantias por elles entregues das Bullas distribuídas e do produto das caixas como nos m.mos se menciona, ficando em virt.e delles desnecessarios os duplicados q. érão remettidos p.ª o cartório. Espero o comprim.to (sic) do acima recommendado, do zelo e bons serviços já prestados à bula pelos m.to r.dos Vergalhos (sic) da Vara. Ao r.do J.e da Purificação de Souza Ribeiro, encarregado do expediente do cartório da Bulla serão aprezentados os cadernos e autos de abertura das Caixas p.ª a verificação das contas de cada Distr.º na forma athé aqui praticada, p.ª depois serem por mim passados recibos geraes a cada hum dos m.to r.dos Vergalhos (sic) da Vara. Porto, 1.º de Abril de 1871. Joaq.m J.e Correia de Vasconcellos, Deão e Vig.º Cap.ar».


195 «Circular de 3 de Julho de 1871 sobre contribuiçoens – Meretrizes, digo, Matrizes. Tendo-se expedido pelo Ministerio dos Negocios da Fazenda em Portaria do 1.º do corr.e publicada no Diario do Gov.º n.º 145 de hoje as necessarias Ordens aos Delegados do Thezouro p.ª q. em observancia do art.º 4.º do Decreto de 25 de Outubro de 1870 procederem por forma q. da affixação à porta da Igr.ª p.al do mappa do rendim.to collectavel dos predios de cada Freg.ª se tirem as possiveis vantagens p.ª o aperfeiçoam.to das respectivas Matrizes, sendo certo q. p.ª este aperfeiçoamento m.to podem concorrer os contribuintes, examinando aquelles mappas a fim de reclamarem dentro do prazo legal contra qualquer dezigualdade absoluta ou relativa q. se dê na dezignação do dito rendim.to e podendo os párochos das diversas Freguezias prestar o grande serviço de os esclarecer sobre o assunto da mencionada Portaria, manda Sua Mag.de El Rei pela Secretaria de Estado dos Neg. os Ecclezeásticos e de Justiça recommendar ao Vig.º Cap.ar do Bispado do Porto q. hoje dê ordens aos Párochos da sua Diocese q. por occazião da missa Conventual lembrem aos respectivos parochianos a conveniencia de procederem ao referido exame, fazendo-lhes sentir q. são elles os principais intressados (sic) na melhor avaluação (sic) do rendim.to dos prédios, p.r q. só com a exactidão desta baze poderão conseguir a justa repartição do imposto predial. Paço em 3 de Julho de 1871. Joze Marcelino de Sá Vargas. Gira p.ª ser prez.e a todos os R.dos Párochos e p.ª os competentes effeitos. Porto, 12 de Julho de 1871. Deão Vig.º Cap.ar». «N. B. Com esta Portaria vinha tambem huma Pastoral do m.mo Snr. Verg.º Cap.ar, concedendo Indulgencia Plenaria p.ª o dia 15 de Agosto e a Bênção Papal em n.e de Pio 9.º p.r ter completado os 25 a.s do seu Papado etc.». 196 «25 de 9br.º de 1871. Circular do Snr. B.º de 25 Novembro de 1871 sobre Bullas. Declara q. na prócima (sic) 3.ª Dom.ª do Advento terá

lugar na Cathedral do Porto a publicação da Bula. Q. os R.dos Párochos em 3 Dom.os consecutivos não só annunciem q. se áchão munidos de Bullas suff.tes mas q. exortem seus Freguezes p.ª q. as tomem. Manda 1.º q. toda a correspondencia sobre Bullas seja dirigida ao R.do encarregado Joze da Purcificação (Purificação)24(204) de Souza Ribeiro; 2.º he relativo aos Vig.os da Vara; 3.º q. tambem sem demora seja dado conhescim.to desta Circular aos R.dos Párochos p.ª se proverem das Bullas; 4.º finalm.te q. a entrega do produto das esmolas com a liquidação das contas à face dos Cadernos será aqui effectuada por todo o mez de Maio pois q., segundo o último regulamento | 33 , a Conta Geral desta Diocese deve ser fechada em 30 de Junho seguinte. Porto 25 de 9br.º de 1871. Américo, B.º do Porto». 197 (Ver Apêndice n.os 6, 7, 9, 17, 22, 26, 38, 48 e 54) «1.º Officio sobre a venda destes passaes e trabalhos da Lei sobre a sua venda em q. acuzo de novo a parte q. tenho dado à Administração sobre o perigo q. ameça toda a caza da Rezidencia. Ill.mo S.r Adm.or: ao seu Officio do 1.º do corr.e tenho a responder que os passaes desta Igreja, contendo campos e matos, são m.to extensos, pertensem (sic), digo, extensos, partem com muitas e differentes propriedades de diversos indivíduos, muito melhor confrontados podem e devem ser pelos Louvados q. se escolherem. As cazas da Rezidencia há muitos annos ameáção ruína e parece q. só por milagre se consérvão. Eu tenho-lhes feito os concertos a que posso chegar mas agora dizem os peritos q. ellas já não são susceptíveis de mais concertos e q. estão ameaçando ruína por toda a parte e he por isso q. nem os mesmos cazeiros lá querem morar. Só nestas cazas habítão por permissão minha duas famílias muito mizeraveis, por não terem meios de pagar habitação em outra parte. Eu em tempos fis (sic) todas as diligencias com esta Junta para que se fizesse huma nova e modesta rezidencia mais perto da Igreja emquanto (sic) nos

(204)

O parêntese consta do texto.

99


100

podíamos approveitar da telha e de alguma madeira mas não pude mover nem a Junta nem o povo. De tudo isso se lavrou Actas25(205) e tudo apprezentei a essa Adm.ão para, no cazo de sinistro, fosse a imputabilidade a quem competisse. Os matos dos meus passaes não têm madeira alguma. M.el Maria da Roxa (sic) Colmieiro uzurpou-me os passaes e cazas e nesse tempo tirou todo o partido q. podia tirar. No fim da demanda, q. durou treze annos, vendi eu o resto para me indemnizar das muitas despezas q. fiz com a demanda e com o procurador em Lisboa. Têm estes passaes hum campo ao sul desta Igreja e a ella contíguo, por nome Condeixa26(206), mas este está destinado p.ª o cemiterio da paróchia a q. se vai proceder. Têm outro ao Norte da mesma Igreja denominado Tortim27(207), este he muito grande mas pouco fértil. Q.to às rendas ou foros pagos aos ditos passaes não há aqui outros q. não seja de doze galinhas q. os quatro cazaes do logar (sic) da Varzea desta Freguezia situados ao fundo dos mesmos passaes págão aos ditos pela água de q. se approvéitão e são os seguintes: (1.º) – Manoel Henriques, lavrador, cazado, do dito logar da Varzea paga pelo seu cazal 3 galinhas. E o mesmo paga por outro cazal q. obteve por conta outras 3 ditas. 2.º – João Joze d’Almeida, cazado, lavrador, do logar de Sobreiro, desta mesma freg.ª, Pelo (sic) seu cazal da Varzea (paga) 3 galinhas. 3.º – Joaquim Joze Valente, cazado com Brízida Marques, moleiros rezidentes no m.mo logar da Varzea, paga 3 ditas. Total 12 doze galinhas. Que dizem ser pela água do passal mas disto não há títulos | 33 v ; sinto muito dizer q. não posso dar mais informaçoens a V. S.ª a q.m D.s g.de por m.tos a.s. Pigeiros, 7 de Março de 1872. Ill.mo Snr. Adm.or deste Con.co. e O Abb. Antonio Caetano Ozorio Gondim. Está conforme o Original: era ut supra. Ozorio Gondim». No texto não está sublinhado mas sim em tipo maior. No texto não está sublinhado mas sim em tipo maior. O cemitério só apareceria em 1910 (embora a poente da Condeixa). (207) No texto não está sublinhado mas sim em tipo maior.

198 «Circular impressa de 20 de Janeiro de 1873 Do (sic) Snr. D. Américo Ferreira dos Santos Silva 28(208) e aqui recebida em 17 de Fever.º. Concede a despensa (sic) de carne na prócima (sic) quaresma com as costumadas condiçoens e, além dellas, concede mais por sua própria auctoridade e jurisdicção concede (sic) as seguintes Graças pelas suas seguintes palavras: Pror(r)ogamos o tempo da dezobriga quadregesemal (sic) athé às Festevidades (sic) dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Aos Rev.mos Párochos e Confessores q. tênhão Licensa (sic) nossa ao menos de hum anno concedemos a faculdade de, pelo tempo da dezobriga, absolverem dos peccados e cazos a nós rezervados, precedendo sempre a restituição da fazenda ou crédito, quando for devida e pelo tempo do corrente anno applicarem aos moribundos a indulgencia Plenária, concedida pelo Santo29(209) Padre Bento 14. Não he da nossa mente exigir como condição destas nossas concessoens que os Fieis, q. dellas se utilizarem, estéjão munidos das Bulla(s) da S.ta Cruzada, o q. somente he condição essencial para o uzo do indulto apostólico; todavia esperamos do zelo de todos os R.mos Párochos e confessores q. não deixarão de exortar aquelles de seus penitentes, que não forem absolutam.te pobres, a que com o seu óbulo auxiliem a Igreja no seu louvável e justo empenho de restaurar, aumentar ou conservar os Seminarios e as Igrejas pobres. Está exa(c)to. Ozorio Gondim». 199 «Circular. Constando-se que no 4.º Districto Eccleseástico da Feira não se cumpre a Nossa Pastoral de 21 de novembro de 1907 na parte relativa à música nas Egrejas (sic), que deve ser executada por cantores ou músicos de profissão e não por mulheres, e Considerando que da não-observancia das instrucções, que estabelecemos com carácter permanente, resulta grande desordem na Disciplina d’esta Deocese (sic) e desprestígio para os R.dos Párochos, fieis cumpridores das

(205) (206)

(208) (209)

Não está sublinhado no texto mas sim em tipo maior. No texto está “Sanlo”. Sobre “l” por “t” ver nota 53.


ordens do seu Prelado, Havemos por bem declarar mais uma vez que é expressamente proibido que | 34/35 se executem cantos ou músicas, no coro, plano ou corpo das egrejas ou capellas, por outras pessoas que não sejam cantores ou músicos de profissão (vulgarmente dezignados por músicos de capella). Não podem, Portanto, tomar parte as mulheres nas missas solemnes executando músicas bem como nos enterros, novenas, septenários ou outros exercícios piedosos. Somente é permittida a execução de cânticos religiosos no plano ou corpo da Egreja ou Capellas, por coros formados por todo o povo, com ou sem acompanhamento d’órgão ou harmónium. Esta Circular será enviada ao Rev. Vigario da Vara do 4.º Distr.º eccl.º da Feira, que a remetterá a cada um dos Rev. Párochos d’esse Districto e com as assignaturas do Rev. Vigario e Rev. Párochos será devolvida a esta Secretaria, para, no caso de qualquer transgressão no futuro, adoptarmos outras medidas. Porto e Paço Episcopal, 14 d’abril de 1910 e dés. Antonio, Bispo do Porto. Copiada fielmente em 24 d’abril de 1910. Abb.e Antonio Ignacio da Costa e Silva». | 35 v até 139 v estão em branco 200

| 140

«Negocios da Bula da Cruzada. Athé 1857 nada devo às bulas nem as Bullas a mim mas no principio deste anno de 1858 fiz o seguinte Título: Ill.mo e R.mo Snr. Vig.º da Vara deste 4.º Distr.º da Feira: Tenha a bond.e (de) entregar-me as seguintes Bullas: 40 de 80 rs. cada huma no valor de 3:200 80 de 40 rs. cada huma “ “ “ 3:200 total 6:400 He o total seis mil e quatro centos de q. me constituo devedor a V. S.ª no corr.e anno de 1858. Pigeiros, 1.º de Janeiro de 1858 oito. O Abb.e A. C. Ozorio Gondim. Paguei as referidas Bullas: o recibo está archivado». «Em 8 de Janeiro de 1859 officiei pedindo ao m.mo acima dito Snr. as seguintes Bullas pelas quaes me tornei responsável:

45 de 80 rs. cada huma no valor de 3$600 85 de 40 rs. cada huma no valor de 3$400 total 7$000 Fica sendo a dívida deste anno às Bulas sete mil rs. N. B. Viérão mais 24 de 80 rs. mais 12 de defuntos de 50 rs. cada huma A 1.ª requezição foi de 7:000 A 2.ª

1:920 0:600 (2:520)

“ de 2:520 9:520 – 2:960 6:560

Sobejárão: 29 de 80 rs. 6 de 40 defuntos 8 de 50

2:320 0:240 0:400 2:960

Tezouraria geral, digo, Thezouraria geral da Bulla da Cruzada N.º 2. Párochos ou Thezoureiros parochiaes. Recebi do R.do An.to Caet.º Ozorio Gondim. P.co da freg.ª de Pigeiros desta Comarca Ecclezeástica da Feira, distr.º do Porto, diocese do Porto a q.ta de seis mil quinhentos e sessenta rs., provenientes dos summarios, escritos e Bullas da Cruzada distribuídos na dita Freg.ª p.ª entregar ao agente do Banco de Portugal da capital deste destrito etc.. Declaro q. como este recibo passei outro etc. Comarca Eccleseástica da Feira em 19 do mez de Maio de 1859 nove, João Soares Azevedo; no reverso: entregou sumamrios de 40 rs. – 6, ditos de 80 rs. – 29, Bullas de defuntos – 8, era ut “retro”, Azevedo». «1860. Sirva-se mandar-me as seguintes Bulas: de 80 rs. – 65 importe 5:200 de 40 rs. – 85 “ 3:400 de defuntos de 50 rs. – 8 0:400 9:000 Importando todas nove mil rs. pelas quaes me torno responsável. Pigeiros, 10 de Fever.º de 1860. Ill.mo Snr. Vig.º da Vara deste 4.º Distr.º».

101


«Copiei o m.mo officio p.ª (o) anno de 1861 em 30 de Dezembro de 1860.». «Copiei o m.mo officio em Dezembro de 1861 p.ª (18)62.». «Circular do Snr. Vig.º Cap.ar Joaq.m J.e Corr.ª de Vas.cos de 26 de Abril de 1862 pelo Snr Vig.º da Vara em 10 de Maio do m.mo anno, mandando entregar o produto das Bullas e as q. se não vendêrão, p.r todo o mez ao d.º Snr. Vig.º da Vara».

102

«Circular em Abril de 1863, mandando entregar as contas das Bullas por todo o mez de Maio ao S.r Vig.º da Vara, cobrando delle o comp.e recibo. | 140 v Bullas q. mando vir p.ª o corr.e anno de 1863: Digne-se V. S. mandar-me as seguintes Bullas p.ª esta Freg.ª de Pigeiros: De 80 rs. – 65 no importe de 5:200 (fa(l)tárão 2)30(210) De 40 rs. – 85 “ “ “ 3:400 De defuntos de 50 rs. – 8 “ “ “ 0:400 De 200 rs. huma “ “ “ 0:200 9:200 He o total nove mil e dozentos (sic) rs. p.r q. me responsabilizo. Remetto 3 livros p.ª V. S. ter a bondade de rubricar, ordenando ao portador o dia em q. os pode ir procurar. D.s g.de a V. S.ª. Pigeiros, 3 de Janeiro de 1863. Ill.mo e R.mo S.r Vig.º da Vara deste 4.º Distr.º ecclez.º da Feira. O Abb.e A. C. Ozorio Gondim. pg. 3 de Maio de 1863». «1864. N. B. contas p.r todo este mez de Maio ao Snr. vig.º da Vara. Em 16 de Janeiro repeti a m.ma receita no princípio desta Lauda escrita, somando o m.mo valor de 9$200 rs. em 16 de Janeiro de 1864. N. B. Em 17 de Janeiro de 1864 recebi do R.mo Snr. Vig.º da Vara a seguinte receita q. he a q. tenho de pagar e não a q. mandei dar assima (sic):

(210)

O parêntese consta do texto excepto o que envolve a letra “l”.

Bullas de 40 rs. – 86 3:440 de 80 rs. – 60 4:800 de 200 rs. – 1 0:200 de defuntos 50 rs. – 6 0:300 Heste (sic) total 8:740 q. he o q. neste anno fico devendo às Bullas. 1864: contas deste anno: Recebi em 17 Janeiro a conta da somma acima de 8.740. Remetto bulas de 80 rs. – 15 1:200 de 40 rs. – 19 0:760 de 50 rs. – 1 0:050 total das não distribuídas 2:010 remetto em dinheiro 6:730 total 8:740 Pigeiros, 20 de Maio de 1864. Ozorio Gondim». «Bulas no prezente anno de 1865. Ill.mo e R.mo S.r Vigario da Vara deste 4.º Distr.º da Feira: sirva-se mandar-me as seguintes Bulas: De 40 rs. – 86 3.440 De 80 “ – 60 4:800 De 200 rs. – 1 0:200 total 8:440 oito mil quatro centos e quarenta rs. de q. por esta me constituo devedor. Remetto tambem os livros para o visto e espero o favor da remessa dos q. lá estão. D.s g.de a V. S.ª. Pigeiros, 7 de Janeiro de 1865. Ozorio Gondim. Em Circular do Snr. B.º de 21 de Abril de 1865 se manda a todos os P.cos que entreguem o dinheiro das Bullas e as q. não distribuírão aos R.dos Vig.os da Vara por todo o mez de Maio próximo. | 141 Conta q. dou das Bullas neste corr.e anno de 1865. Em 7 de Janeiro de 1865 recebi do Snr. Vig.º da Vara 86 bulas de 40 rs.cada huma na importancia de 3:440 60 ditas de 80 rs. “ “ “ “ “ 4:800 1 de 200 rs. “ “ “ “ “ 0:200 somma 8:440 Remetto 17 de 80 rs. cada huma 1:360 abatendo 1:400 huma de 40 rs. 0:040 . Devo 7:040 1:400 q. remetto.


Pigeiros, 31 de Maio de 1861 (sic). Ill.mo Snr. Vig.º da Vara des(te) 4.º Distr.º. Ozorio Gondim. Fica o recibo no principio deste L.º».

De 40 rs. De 80 rs. De 200 rs.

«Em 7 de Janeiro de 1866 pedi as bullas p.ª este anno segundo a receita q. veio em 7 de Janeiro de 1865 e tambem remetti os Livros. Contas das Bullas deste anno de 1866: Recebi Bullas de 80 rs. – 60 4$800 ditas de 40 rs. – 86 3$440 ditas de 200 rs. – 1 0$200 8$440 Bullas não distribuídas q. remetto: De 80 rs. – 9 720 De 40 rs. – 1 040 .«« 760 0$760 7$680

q. abatidos fica líquido que remetto. Pigeiros, 28 de Maio de 1866. Ozorio Gondim».

Sobejárão neste anno: de 40 rs. de 80 rs. abatendo

18 19

720 1:520 2:240 2:240 6:200

q. vou remetter ao S.r Vig.º da Vara (d)este 4.º Distr.º».

«1868. Hoje 6 de Janeiro de 1868 mandei buscar os Livros a caza do m.to R.do Snr. Vigario da Vara pela criada Carolina e enttre os Livros achei, sem as pedir, as seguintes Bullas:

3$440 4$000 0$200 7$640

«Pedi as mesmas Bullas q. acima, tambem no mesmo valor de 7:640 no 1.º de Janeiro de 186831(211) em carta com a mesma data. Depois requezitou mais o Snr. P.e Firmino as seguintes bullas: 12 de 40 rs. 480 6 de 80 rs. 480 1 de defuntos 050 1:010 o importe de cima 7:640 8:650 Abatendo, cresceram 3 de 80 rs. 240 vou remetter 8:370

| 141 v remetter». tes

«Em 12 de Janeiro de 1867 Pedi (sic) as seg.tes Bullas: De 80 rs. 60 4:800 De 40 rs. 86 3:440 De 200 rs. 1 0:200 8:440

86 50 hua

mais se abate huma de 40 rs., venho a

«Em 4 de Janeiro de 1870 me envia o Snr. Vigario as seg. Bullas: De 40 rs. 100 4$000 De 80 rs. 56 4$480 De 200 rs. 1 0$200 De 50 rs. 2 0$100 8$780».

«N. B. Em 19 de Janeiro de 1871 requezitei o mesmo n.º de Bullas no mesmo valor de 8$780». «Em 5 de Janeiro de 1872 requezitei o mesmo n.º de Bullas q. as anteriores na data de 4 de Janeiro de 1871». «1873 – atrás em 19 de Janeiro requezitei o m.mo n.º de Bullas q. acima e na m.ma importancia total».

(211)

Deve ser 1869 por lapso.

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DESFOLHEM O TEATRO Maria Mar* De tempos a tempos desfolhem o teatro Não basta contemplar a encadernação Magistral e silenciosa da fachada Desfolhem-no como a um livro sacro Reescrito peça a peça Nessa página única que é o palco Desfolhem-no em busca da ressurreição das palavras Pela voz dos que se transfiguram em personagens Num faz de conta onde nos revemos tantas vezes Não tenham vergonha de rir exageradamente Nem tão pouco de chorar as mágoas acumuladas Na áspera existência dos dias mais cinzentos Desfolhem-no como o tempo desfolha todos os seres No culminar discreto de cada dia (Descendo a cortina da noite) Desfolhem-no até ao último acto E à saída do teatro Abracem sempre o papel principal

*Natural de Ovar e residente em Santa Maria da Feira. Licenciada em Contabilidade desde 2000. Amante de poesia desde criança. Em 2007 integrou a Onda Poética, onde é “residente” desde então. Participa ainda assiduamente noutros eventos e tertúlias poéticas.


Apresentação do livro O ALBERGUE DAS LETRAS** de Manuel de Lima Bastos na Biblioteca Pública de S. Paio de Oleiros

Anthero Monteiro* Começo por agradecer ao Dr. Manuel de Lima Bastos, autor do livro que vamos apresentar, a confiança que depositou nesta Biblioteca e no seu Presidente da Direção, que aqui têm a honra de receber um escritor, natural deste concelho, cada vez mais conceituado e reconhecido como um vulto insigne das letras. Para aqueles que não tiveram ainda a dita de conhecer o autor e/ou a sua obra, farei a seguinte resenha biobibliográfica: O Dr. Manuel de Lima Bastos nasceu a 13 de janeiro de 1940 em Fiães, Santa Maria da Feira, e é advogado de profissão. Admirador confesso da vida e obra do grande Mestre Aquilino Ribeiro e seu leitor compulsivo, como confessa, tem-se dedicado a produzir uma série de obras sobre aquele escritor sernancelhense, todas publicadas pela editora Sopa de Letras, de Cascais (À Sombra de Mestre Aquilino, que foi agraciada com o Prémio Literário da Ordem dos Advogados em 2009, De Novo na Sombra de Mestre Aquilino, Na Luz *Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio. ** Apresentação que teve lugar no dia 20 de Outubro de 2012.

da Sombra de Mestre Aquilino, No Esplendor da Sombra de Mestre Aquilino) e julgamos saber que há mais ainda na forja muito para breve. Escreveu ainda Itinerário da Vida de um Homem Comum, da mesma editora, e dois livros de poesia, ambos edição de autor, Rumor no Bosque das Palavras, que também tive o prazer de apresentar publicamente como uma surpreendente incursão no domínio da palavra poética, e Os Amantes Clandestinos e Outras Inutilidades Poéticas. A Câmara Municipal de Sernancelhe, reconhecida pelos serviços que Lima Bastos tem prestado à memória de Aquilino e, por via disso, ao concelho natal do autor de Terras do Demo, prestou-lhe homenagem no último dia 25 de Abril, atribuindolhe a medalha municipal de mérito. E passemos ao livro que hoje nos trouxe aqui: O Albergue das Letras, também da editora Sopa de Letras, de Cascais. Devo dizer antecipadamente que sempre me agradou este tipo de livros, que se me afiguram como uma espécie de miscelânea cultural, um repositório de leituras, apontamentos de viagens e anotações de saberes diversos, onde é possível aos leitores, de um modo quase informal e sem compromissos graves, alargar os horizontes do conhecimento em múltiplas áreas, sobretudo no que diz respeito à história, à geografia, à literatura, à biografia de personalidades ilustres. Lembro-me de ler, em idade ainda adolescente, livros do género, recordandome ainda do nome de alguns dos autores, principalmente Agostinho de Campos e Campos Monteiro.

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E a propósito da localidade da editora de Lima Bastos e deste livro – Cascais – nunca esqueci aquilo que Agostinho de Campos (suponho que era ele e aposto que o título do livro era Ler e Tresler) escreveu, de modo chocarreiro e humorístico, acerca da origem desse topónimo. Contava ele que, vendose Cristo perseguido pelos Judeus, atravessou a Ásia Menor, veio dar à Europa e olhou para trás. Vendo que os seus perseguidores não desistiam, fletiu para a esquerda, cruzou a França, rompeu pelos Pirenéus, atravessou o que hoje é Espanha e entrou no território lusitano. Como não deixassem de acossá-lo os furibundos Judeus, Cristo veio ter a uma praia não muito distante de Olissipo, num local próximo da Boca do Inferno. Os inimigos continuavam atrás dele e desancavamno sem piedade. À sua frente erguia-se, colérico também, o Atlântico e era impossível prosseguir a fuga. Voltou-se então para os perseguidores e perguntou-lhes: Até aqui me cascais? E aquela terra passou a ser conhecida por esse nome: Cascais.

Anthero Monteiro na apresentação do livro.

É sempre uma responsabilidade e um risco apresentar um livro, sobretudo quando se trata de obras de ilustres personalidades literárias, por vezes premiadas, como acontece com o Dr. Lima Bastos, em permanente atividade criativa e em ascensão crescente. Eu, por mim, confesso, preciso sempre de umas semanas para ler um livro que tenho que apresentar, relê-lo, anotar, informar-me, pesquisar o que pode vir a propósito, escrever, rasurar (no computador é mais fácil), reescrever. Preferia fazer, se fosse capaz, como fazem pelos vistos alguns que falam das obras sem as terem lido, a acreditar pelo menos no que sugere um livro de Pierre Bayard, bestseller em França e em Inglaterra e que tem por título Como falar dos livros que não lemos? defendendo mesmo a tese de que isso tem as suas vantagens. Eu, porém, li este livro do Dr. Manuel de Lima Bastos duas vezes, mas senti-me recompensado com o que aprendi e, sobretudo, com o prazer que me deu lê-lo, principalmente


pelo modo como foi escrito que está, afinal, ao nível do que o autor nos tem habituado. Mas escrever sobre um livro com seriedade dá mesmo um pouco de trabalho. É que eu ainda não aprendi a técnica de fazer resumos como tentaram ensinar-ma há dias. Suponhamos o grosso volume de Leon Tolstoi, Guerra e Paz, com as suas 1.200 páginas. O resumo que me apresentaram dizia assim: «Um rapaz não quer ir à guerra por estar apaixonado e, por isso, Napoleão invade Moscovo. A rapariga casa-se com outro. Fim.» Ou as 1600 páginas da obra de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Resumo: «Um rapaz asmático sofre de insónias porque a mãe não lhe dá um beijo de boas-noites. No dia seguinte (pág. 1344, vol. VI) tem um ataque de asma porque a namorada (ou o namorado?) se recusa a beijá-lo. Tudo termina num baile (vol. VII), onde já estão todos muito velhinhos e… pronto.». Só mais um exemplo: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, com 778 páginas. Resumo: «Uma dona de casa põe os cornos ao marido com o padeiro, com o leiteiro, com o carteiro, com o homem do bar, com o dono da mercearia e com um vizinho cheio de pasta. Depois entra em depressão, envenena-se e morre.» Fazer a apresentação de um livro não é, todavia, resumilo. É antes tentar provar que vale a pena lê-lo porque, se não vale, também não interessa apresentá-lo. Vamos então a isso mesmo: convidar os meus ouvintes à leitura destas 150 páginas que trazem por título O Albergue das Letras. O fio condutor destes textos é um conjunto de dados mais relevantes e curiosos da biografia, da obra e de uma série de peripécias vividas por alguns escritores que passaram de alguma forma pela vida do autor, tenha sido através da leitura, tenha sido por alguma convivência e conhecimento direto, e que nela deixaram marcas bem impressivas. Muitos outros perpassam nestas páginas mas o autor concede um pódio a três grandes homens das letras, ocupando o primeiro lugar o romancista americano e cidadão do Mundo que foi Ernest Hemingway; premiado com o segundo lugar neste livro (seja-nos permitido dizer assim) é o poeta galego Don Álvaro Cunqueiro, diretor e cronista do diário Faro de Vigo, um nome abissalmente menos conhecido do que o autor de O Velho e o Mar mas com o qual, diz Manuel de Lima Bastos,

«me rocei e tive o prazer de lhe escutar, de malga de vinho ribeiro em punho, umas histórias que decerto já vinham do tempo em que portugueses e galegos eram irmãos de pai e mãe»; o terceiro posto no pódio coube ao político republicano e publicista alentejano bem conceituado no seu tempo, Brito Camacho, mas que à maioria, tão desmemoriada e tão pronta a injustiças, já muito pouco dirá. Lima Bastos, sempre devotado aquiliniano como dissemos, não quis deixar de fora o romancista maior do século XX, o autor de A Casa Grande de Romarigães e de umas dezenas de outras obras que recriaram a língua portuguesa e pediulhe que acompanhasse ao pódio o seu amigo Brito Camacho, como se ele precisasse de amparo para subir o degrau. Lima Bastos como que pede emprestadas as lentes de Aquilino para ver mais de perto o amigo que ele conheceu em vida. Assim este Albergue das Letras surge-nos dividido em 3 partes, cada uma dedicada a cada um dos autores mencionados, e cada uma subdividida em vários capítulos, onze no total, cada qual com uma dimensão que anda, na generalidade, entre as 9 e as 11 páginas, com uma mancha gráfica nada dissuasora porque há sempre aqui e ali como que uma espécie de um banquinho para quem faz o percurso se sentar e descansar um pouco: são os espaços em branco, essenciais como vitaminas, para reganhar forças e prosseguir o caminho da leitura. Ou seja, os olhos não têm razão para se fatigarem até porque o corpo de letra é simpático e não creio que alguma vez, durante a leitura, haja a mínima aberta para deixar entrar o enfado no espírito dos leitores ainda, para mais, obsequiados no início de cada capítulo com pequenas epígrafes retiradas de obras do poeta Eugénio de Andrade como homenagem ao grande vate da cidade da predileção de Lima Bastos, o que já de si é bem eloquente quanto à sua sensibilidade poética. Tudo neste livro é contado com elegância, com graça, muitas vezes com humor, com profundo conhecimento da matéria abordada e recorrendo à mesma bateria estilística herdada dos grandes mestres e que assenta em três pilares fundamentais: na originalidade de pensamento, na naturalidade de expressão sem demasiado esforço ou afetação e na propriedade da linguagem, que inclui ainda o pitoresco do estilo a que o Padre Abel Guerra no seu livro de estilística, porque se trata da capacidade de bem pintar e colorir a linguagem, dava o nome de pinturesco ou colorido. E estes ingredientes, essenciais nos grandes clássicos da

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O Autor agradece as intervenções já proferidas e a presença dos muitos ouvintes.

nossa literatura, de Vieira a Camilo, deste a Eça e destoutro a Aquilino, nunca perderão de moda – e tudo isto eram coisas que eu estudava ali pelos 14 aos 16 anos, por minha livre recreação, pois não pertenciam à matéria de qualquer disciplina, nos Elementos de Composição Literária do referido sacerdote e a que volto assiduamente para não perder de vista as técnicas fundamentais da escrita. Estamos a aludir à forma e ao interesse e atenção com que lemos este livro, ou qualquer outro de Manuel de Lima Bastos, presos pela sedução das suas palvras, da sua gramática, do seu estilo. Mas não é apenas esse o móbil da nossa cedência ao engodo da leitura – é também o conteúdo que alicia porque, se é importante saber narrar uma história, é indispensável também que ela seja interessante e verosímil,

mantenha atualidade, ensine, divirta, emocione, provoque o riso ou as lágrimas. Ernest Hemingway, por exemplo, é uma personagem da vida real mas essa vida só encontrará paralelo na ficção, eventualmente num Indiana Jones de Steven Spielberg cujas aventuras nos sobressaltam e atordoam a cada momento do filme como se, morfologicamente adultos, continuássemos eternas crianças cinéfilas. Recordo-me também de que, ao ver o E.T. do mesmo realizador, um filme com um êxito de bilheteira até ali sem precedentes, tudo parecia normalíssimo até ao momento em que o garoto que protege o alienígena, ao escapar-se com ele de bicicleta aos serviços secretos americanos, vê o velocípede erguer-se no ar. Continua a pedalar e surge a silhueta do conjunto com uma enorme


Lua a servir de fundo. É aí que os olhos deixam escapar as lágrimas porque conheceram aquilo a que se dá o nome de “sublime”. Há assim muitos momentos nos livros de Hemingway. Confidenciar-vos-ei que, entre os milhares de livros que li na minha vida, o meu romance predileto, porque talvez o mais emocionante e aquele em que mais vezes deparei com o sublime continua a ser “Por Quem os Sinos Dobram” desse escritor americano. Considerado por muitos como um dos maiores romances da humanidade, mereceu do próprio editor, Maxwell Perkins, estas palavras que dirigiu ao autor: «Se a função de um escritor é revelar a realidade, nunca ninguém o fez melhor do que você.» O título da parte primeira do livro de Lima Bastos, alusiva a este escritor sem cotejo, é apropriadíssimo ao que representou a sua existência: “Ernest Hemingway e o sentido trágico da vida”. Não quero antecipar-me à narrativa, roubar-lhe o interesse da leitura, antes pelo contrário, mas Hemingway e os seus romances mais não são, afinal, do que o grande romance ou a grande tragédia da sua existência, cuja estrada percorreu sob risco permanente, como se ela estivesse minada em toda a sua extensão e não fosse possível escapar nunca à visão da morte e ao fedor do sangue: foi o seu alistamento, por sua livre iniciativa, na I Grande Guerra, onde foi atingido por uma bomba; foi uma viagem aventureira em África onde sofreu um grave acidente na queda de um avião junto do Kilimanjaro; foram as marcas deixadas pelo suicídio do pai; foi a cobertura jornalística da Guerra Civil Espanhola onde conheceu bem de

Fernando Sampaio Maia no uso da palavra.

Aspeto da Biblioteca onde decorreu a cerimónia.

perto o terror fascista; foi ainda a participação na II Guerra Mundial como membro da força aérea britânica; foi o sangue dos touros de morte na arena, a Fiesta a que centenas de vezes assistiu e sobre a qual repetidamente escreveu; foi uma cornada que o atingiu numa das corridas de S. Fermín; foram as aventuras dos seus quatro casamentos, do álcool, da vida desregrada, da doença que não conseguiu vencer a não ser pelo suicídio. Tudo isto resumo eu em traços largos mas a narração minuciosa de Lima Bastos é bem mais aliciante e dá-vos a conhecer outras figuras com outras muitas das suas histórias como é o caso, por exemplo, de toureiros com quem o autor de Morte à Tarde conviveu, pelo que vos convido a lê-lo como merece e a saber muito mais. Só estou aqui a entreabrir um pouco a porta para que possam espreitar e logo sintam vontade de entrar. Será então que irão perceber de onde decorre o êxito da obra de Hemingway que lhe permitiu viver mais tarde desafogadamente, que lhe trouxe o Prémio Pulitzer e o Nobel e uma maior divulgação através dos filmes fundamentados nos seus livros: só alguém que viveu turbulentamente e sob tensão contínua até forçar e conhecer os próprios limites pode aspirar a ser um romancista de renome universal. Aprendi ainda com Lima Bastos, neste seu livro, que Hemingway é também um mestre da brevidade e, segundo ele, a sua escrita é «seca e descarnada, a frase curta quase despida de adjectivação ou de floreios vocabulares, os diálogos incisivos na sua intencional brevidade, a concisão

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exemplar capaz de descrever e dar a conhecer ao leitor, com pinceladas rápidas expressas em poucas linhas, uma paisagem ou um estado de alma ou uma situação de conflito psicológico…». Ora a brevidade, que também eu tento cultivar na vertente poética, é considerada uma das maiores virtudes da literatura. O exímio contador de histórias que foi Italo Calvino considerava a brevidade como uma das seis qualidades específicas da literatura. Chamou-lhe “rapidez” e retirou-a das “qualidades decisivas de bem pensar” de Galileu Galilei: «a rapidez, a agilidade de raciocínio, a economia dos argumentos». E Edgar Allen Poe advogava também que, nos tempos da celeridade de hoje, «temos necessidade de uma literatura curta, concentrada, penetrante, concisa, ao invés da extensa, verbosa, pormenorizada. É um sinal dos tempos.» Ora Hemingway praticava (Lima Bastos refere-o com alguma minúcia) os contos curtos, que se designavam na altura short stories, hoje são mais conhecidos por flash fiction e podem ter a diminuta extensão de um tweet que é, como sabem, um post do serviço do microblogging Twiter. Ainda segundo Lima Bastos, Hemingway terá escrito o conto mais pequeno do mundo. Julgava eu, porque estudei isso há algum tempo, que o autor que detinha a fama dessa proeza era o escritor gautemalteco naturalizado hondurenho, Augusto Monterroso, com o conto «Dinosaurio: Cuando despertó, el dinosaurio todavía estava allí.» (“todavía” em espanhol significa “ainda”). Outros contos têm disputado a distinção mas não há dúvida de que o de Hemingway é mais lacónico ainda e porventura mais poderoso na sua sugestividade. Laconismo e sugestividade são, afinal, qualidades inerentes a todas as suas obras. O seu miniconto diz assim: «For sale: baby shoes, never worn.» (tradução: «À venda: sapatos de bebé nunca usados.»). É compreensível que Hemingway, nesta obra de Manuel de Lima Bastos, tenha merecido o lugar cimeiro do pódio: o seu renome internacional, os prémios que lhe foram atribuídos, a amplitude de quem rentou o chão dos vencidos com quem se solidarizou e de quem ascendeu à glória dos vencedores concederam-lhe os dons da intemporalidade e da universalidade de cidadão sem fronteiras. Pertence à classe daqueles a quem o tiro do suicídio outorga a eternidade. Os outros dois escritores a quem o autor abriu a porta destas páginas não têm certamente a mesma estatura e, por

isso, aquilo que Lima Bastos lhes concede é uma espécie de ressurreição. Quem foi, afinal, a personagem principal da segunda parte de O Albergue das Letras? Está hoje injustamente esquecido porque, como explica Lima Bastos, sendo galego é de uma cultura periférica e escreveu numa língua a bem dizer marginal. Fê-lo, porém, por amor à sua própria terra para a qual defendia uma identidade nacional que aliasse os territórios do noroeste peninsular, incluindo Portugal, a Galiza e outros territórios próximos, realidade sonhada para a qual terá inventado aquela belíssima palavra “portugalicidade”. Parece-me pertinente recordar aqui o nome de um poeta natural de Oliveira de Azeméis, Manuel de Olivera Guerra, autor de dois livros de sonetos que, ali pelos anos 30, fizeram história na literatura anticlerical portuguesa que apostou também, mais tarde e ainda que de outra forma, no estreitamento das relações luso-galegas. Dirigiu a revista Céltica que, perseguindo esse objetivo, obtivera a colaboração de outros escritores portugueses e muitos outros do outro lado da fronteira norte. Lima Bastos ter-se-á cruzado com Don Álvaro algumas vezes e ter-lhe-á ouvido a narração de várias histórias e peripécias. Apresenta a sua personagem real como sendo «mestre de cerimónias de todas as artes galaico-portuguesas, sumo sacerdote incontestado de várias gastronomias do ocidente europeu (…), doutorado na cozinha da sua terra galega», novelista, poeta, dramaturgo, jornalista, cronista, autor de uma poesia de vanguarda e simultaneamente neotrovadoresca, porque influenciada pelo lirismo dos cancioneiros galaico-portugueses medievais, que imita apenas no âmbito formal e não tanto no âmbito do conteúdo. A sua figura está presente como uma marca de água nas páginas de toda a segunda parte mas fica-se com a impressão de que falar dele é para o narrador também um excelente pretexto, do qual o leitor sairá largamente favorecido, para divagar sobre o seu acentuado amor pela Galiza e sobretudo pela cidade de Vigo onde iam desaguar muitas das suas deambulações noturnas. Descreve-nos os restaurantes e bares galegos, os seus tempos de glória e os de declínio, a gastronomia local, as iguarias e petiscos mais apreciados, outras casas de lazer e de prazer e leva-nos a calcorrear, sem dores musculares, os vários caminhos que levam à catedral de Santiago, a capital, cujas praças e recantos tão bem conhece.


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Dr. Emídio Sousa no encerramento da Sessão Solene.

Don Álvaro Conqueiro e as histórias que ele contava são também pretexo para o mais longo capítulo do livro – o sétimo – no qual Lima Bastos narra, de forma magistral, um conto da tradição popular galega que terá ouvido a alguém, colocando a hipótese de ter sido mesmo ao escritor e poeta que tutela as páginas daquela parte do livro. O facto de se tratar de um relato não muito complexo mas linear e, apesar de tudo, não muito extenso e cuja diegese é apenas povoada por um número diminuto de personagens que se movem num espaço relativamente limitado e fechado a intrigas secundárias, faz dele um conto e não propriamente uma novela, até porque se lê de uma assentada. É que essa linearidade e essa concentração, aliadas a um clima de um certo mistério e surpresa, emprestam-lhe uma certa aptidão para seduzir o leitor, como aconteceu comigo que o traguei de um fôlego. Não é alheia a essa sedução o modo como o autor domina

a escrita, combinando, em doses bem ponderadas, aqueles predicados estilísticos de que falei no início: a originalidade de pensamento e a propriedade de linguagem sem, no entanto, alguma vez toldar a naturalidade de expressão. E sobre o conteúdo do conto nada mais quero adiantar para não roubar aos eventuais leitores – e espero que sejam muitos porque vale a pena – o prazer da sua leitura. Na terceira parte, como dissemos, pontifica uma figura também de contornos um tanto esbatidos que Lima Bastos de certa forma tenta recuperar da sépia esfumada da memória dos portugueses. Fá-lo socorrendo-se das lentes do seu escritor predileto, Mestre Aquilino Ribeiro, pois, explica, «além de serem amigos desde os primeiros anos da República, o prosador beirão escrevera com algum detalhe sobre Brito Camacho após a sua morte». Tudo isto apesar das diferenças de formação e de caráter até, muito embora, à partida,


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comungassem do mesmo ideário político. Fundamentado, pois, em trabalhos do autor das serranias beirãs, disserta sobre o homem, o político e escritor da planície alentejana, uma espécie de aguarelista daquela antiga província e um retratista a óleo da gente que ali habita. Natural do concelho de Aljustrel, médico-cirurgião do exército, publicista, jornalista e fundador do jormal A Lucta, fundador do Partido Unionista, parlamentar republicano bastante influente no êxito da revolução de 5 de outubro, futuro ministro do Fomento são alguns dos traços emergentes da sua biografia, mas aqui ficamos a saber muito mais, até sobre a sua vida sentimental. Mas, mais adiante, ao ler o anedotário pedido emprestado por Lima Bastos a Aquilino e a outros, iremos rir com gosto ao verificar como aquele homem de caráter bastante rude e ríspido como o seu Alentejo nos consegue fazer rir com as suas tiradas de humor, muitas vezes inesperadas e sempre cáusticas. Para concluir e para abrir o apetite, permito-me ler uma pequena transcrição de um texto que passou de Luís Oliveira Guimarães para uma citação de Aquilino e que Lima Bastos também respigou para o seu livro para gáudio nosso: «Um dia, nas Câmaras, notaram a Brito Camacho que trazia um chapéu de palha velhíssimo, manifestamente indigno dum chefe do partido. Não hesitou um momento na resposta: - Se a palha fosse nova, já mo tinham comido!» Não me vou, porém, daqui embora sem fazer uma derradeira e elogiosa referência ao pensamento aberto e tolerante do autor deste Albergue das Letras. É algo que se observa com facilidade e que muito apreciamos. O Dr. Manuel de Lima Bastos tem um ideário político que talvez se adivinhe em muito daquilo que escreve. Mas é de uma imparcialidade absoluta quando se trata de julgar as ideias dos outros, sobretudo quando tem diante de si gente de caráter, que sabe pensar e agir em coerência. Ter alguém ideias divergentes das suas constitui apenas um mínimo pormenor e afinal também mais um fator de enriquecimento pessoal. Sobre isto mesmo escreve o seguinte, ao falar da ideologia de Brito Camacho, bem diferente da sua, e acho que esta citação se pode generalizar a outras apreciações de muitas outras personalidades: «A vida foi-me ensinando que, mais que as ideias postas nas etiquetas como a classificação dos entomologistas e do

sentimento de repugnância em julgar os outros que com a idade se acentuou, convenço-me cada vez mais que a tudo deve sobrelevar o critério da boa fé, da lisura e da integridade de carácter.» Obrigado, Dr. Manuel de Lima Bastos, por mais esta prenda com que nos mimoseia. Obrigado a todos pela vossa paciência e atenção.


Em roda de O ALBERGUE DAS LETRAS** de Manuel de Lima Bastos Miguel Veiga* No nosso tempo as palavras tinham rosto e, para mim, um rosto da amizade é o de Manuel de Lima Bastos. Somos ambos homens de afectos, a nossa bênção, a nossa maldição. O afecto é o passo mais directo para a amizade e amigos nos tornamos e ficamos para sempre. Creio que a amizade, essa pequena palavra onde tudo está dito, é uma virtude privada que pode confessar-se num belo espaço público, como este da Biblioteca Municipal de Espinho. É a amizade que nos funda e funde nesse acerto de olhares, nesse consenso de linguagens, nessa comunhão de gostos e contra-gostos, nessa cumplicidade de repulsas, de preconceitos, de reflexos e, sobretudo, dos afectos das nossas águas mais silenciadas. A amizade é o lugar na terra onde mais gosto de viver. Por ela também aqui vim hoje. Desde a primeira vez em que pessoalmente nos encontrámos, tornei-me logo velho amigo do Dr. Manuel de Lima Bastos, embora eu já o conhecesse e admirasse através dos seus escritos numa sedutora cartografia em que o cativante feitiço dos seus textos aquilinianos se entrelaçava com o singular murmúrio da sua voz cortante de pão, pão, queijo, queijo.

Senhoras e Senhores: Chegamos sempre tarde aos livros que imaginamos ler: eles estão sempre à nossa frente, à espera de uma impossível coincidência. Este livro de Lima Bastos trouxe-me o gosto e a alegria dessa feliz coincidência. O Albergue das Letras é um livro de saberes. Digo-o sem pestanejar, Lima Bastos é um raro e singular cultor de humanidades. Que nos seus saberes procura a sabedoria, como peregrino e buscador desta nossa aventura humana. E que partilha. Sim, procurar e partilhar. No simbolismo judaico-cristão evoca-se a mesa fundadora e fundante, em que se partilha o pão mas com ele também a autêntica sabedoria. Neste caso trata-se de partilhar o conhecimento, os saberes, no encontro de duas lógicas convergentes, a de peregrino (caminhar) e a da comunhão (partilha). A sabedoria, na interpretação laica que é a minha do Livro da Sabedoria, não é apenas conhecimento científico, não é apenas da scientia mas também da prudentia e de outras qualidades, da inteligência emocional, ou seja, da cultura das emoções, da inteligência do coração (o coração tem razões que a razão reconhece), essencial para comunicar e convencer, neste nosso tempo em que a urgência é afectiva. Hoje as competências técnicas e um QI elevado já não são suficientes para ter êxito. A confiança em si, a criatividade, o desembaraço e desafogo relacionais e a autonomia fazem a diferença. As dinâmicas das redes, a interdependência, o

*Advogado. ** Apresentação do livro na Biblioteca Municipal de Espinho José Marmelo e Silva no dia 3 de Novembro de 2012.

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desafio do nosso milénio que avança é o da cooperação. E nessa cartilha se filia este O Albergue das Letras, ou não fosse a inteligência do coração, a inteligência relacional e emocional, a inteligência do amanhã. Uma das suas gramáticas é este O Albergue das Letras. Mas este livro de Manuel de Lima Bastos remete-me também para o Livro do Desassossego de Pessoa: “Minha alma é uma orquestra oculta, não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia”. E, vai daqui, para o “Livro da Consciência” recentemente dado à luz pelo sábio António Damásio sobre o modo como o cérebro constrói a mente e torna essa mente consciente, abrindo um novo debate sobre a origem e a natureza dos sentimentos e os mecanismos por detrás do eu e uma nova proposta de novos mecanismos para a construção dos sentimentos e da consciência, numa nova ponte entre a biologia e a cultura. Dessa cultura e da sua espessura, de que este livro de Lima Bastos é um excelente exercício discursivo sobre a razão emocional consciente. Este livro, como a verdadeira literatura, é um lugar que não é lugar, um tempo que não se mede pelo tempo, uma língua que não é linguagem. Esse lugar, esse tempo, essa língua podem tornar-se objecto de um desejo, permitem pressentir uma forma particular de conhecimento ou até talvez de revelação, de aparição a si próprio. Este livro de Manuel de Lima Bastos é uma insinuação de um romance de si próprio ainda que ancorado em crónicas sobre cabeças de proa da literatura, nomeadamente Ernest Heminguay, Álvaro Cunqueiro, Brito Camacho, Aquilino Ribeiro & Companhia, magníficos escritores da sua predilecção, afeição e admiração. Ao arrepio do que Lima Bastos tem os seus escritos como sueltos, apostilhas ou glossas, julgo estarmos perante autênticos, lúcidos, inteligentes e sensíveis ensaios no sentido heterodoxo do conceito. Ensaios autobiográficos a pretexto das leituras de outros autores. Lima Bastos não escreve para uma pequena elite nem para aquela entidade platónica adulada que se apelida de massa. Ele não acredita nessas duas abstracções, caras aos demagogos. Ele escreve para si, para os seus amigos e para adoçar o curso do tempo (declaração de Jorge Luís Borges na ocasião do seu livro O Livro de Areia). Sim, porque o tempo envelhece depressa. Situação de um escritor como

ele, igualmente afastado das capelas, das escolas, das modas intelectuais e de toda a publicidade estrondosa, espalhafatosa e mentirosa. Uma recusa categórica do pitoresco barato e de todo o “capelismo” designadamente cultural. Um élan para o pensamento limpo e para o universal. Um gosto concomitante para uma sinuosidade barroca do pensamento e para uma breve perfeição. Tudo isto à margem das grandes correntes do século – naturalismo, populismo, marxismo, psicanálise, surrealismo, nacionalismo, fundamentalismo, militantismo, faz de Lima Bastos um autor contemporâneo digno de suscitar a atenção, o interesse, o entusiasmo de todos os que procuram na literatura outra coisa que não as receitas, as rotinas ou uma simples distracção. A literatura, não o esqueçamos, é a prova que a vida não chega. Surpreende-se nesta obra de Lima Bastos um exercício de admiração, temperado aqui e ali pela inquietação ou pela ironia. Admiração por certos homens, admiração pelas suas obras, admiração pela beleza, pelo mistério do mundo. Numa época mais voltada ao desencanto que à admiração, é um desafio algo audacioso, é certo. É preciso relevá-lo sem receio. Vivemos um período suficientemente preocupante para que, pelo menos de tempos a tempos, tentemos visar um pouco mais alto e dotar a esperança com um ânimo de cores marcantes, tantas vezes desbotadas, pardas e contaminadas como as que hoje nos ensombram. Senhoras e Senhores: Manuel de Lima Bastos é um escritor outonal, embora não sazonal. Direi mesmo que O Albergue das Letras paradoxalmente foi um livro escrito por um homem na força da sua idade mas no momento raro em que a juventude ainda não murchou de amarga nem a maturidade já se fez de triste. Escrito assim, com lucidez sem angústia, ardor sem ingenuidade, segurança sem complacência, inquietação sem azedume, tranquilidade sem ignorância, e com franqueza discreta, elegância viril, naturalidade para além do desafio. Escreveu-o Lima Bastos, cronista doublé de poeta, paredes meias com os belos poemas de Os Amantes Clandestinos, tecido pelas emoções tensas e contidas do entusiasmo erótico, pela melancolia estóica ante o que se perde e se esvai, pela vivência de ar livre, pelo frescor das manhãs, pelo ardor do estio, pelo fluir das noites silenciosas


entre o céu e a terra em que os corpos se alongam ou se aprumam numa nudez sem vergonha ou o contrário dela, o que tudo neste livro surge em estado de milagre momentâneo. Este livro de O Albergue das Letras abraçado aos Amantes Clandestinos, um e outro ficarão para sempre na obra de Manuel de Lima Bastos como um padrão da sua originalidade e da sua dignidade de escritor. Ao ler e escutar Lima Bastos vem-me à memória David Mourão – Ferreira quando disse “chega-se a este ponto em que a gente não sabe”. E ao “equinócio de Outono” de outro excelente poeta, Fernando Pinto do Amaral: E eis que também tu chegaste a essa ponte de onde vês o passado e é igual ao futuro quando a boca de cena é a pedra de um muro quando à luz de um olhar já o teu não responde e depois nem a luz brilha já no horizonte porque até o infinito é o nada mais puro. E eis que também tu chegaste a esse instante a que podes chamar equinócio de Outono quando tudo te sabe apenas a abandono quando tudo o que vês é a luz ofuscante do tempo que se esgota em ritmo galopante e a vida se dilui na promessa do sono. Um sorriso ilumina já a melancolia, já o ardor, a veia criadora do nosso autor. Aquele sorriso que iluminava o rosto do imortal Eugénio de Andrade, poeta da minha cabeceira há mais de meio século e da respiração de Lima Bastos e com que ele escudou e ilustrou esmeradamente o intróito de cada uma das suas crónicas, ao que me permito acrescentar, “et pour cause”, o poema de Eugénio: “Creio que foi o sorriso, o sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz, lá dentro apetecia entrar nele, tirar a roupa, ficar dentro daquele sorriso. Correr, navegar, morrer naquele sorriso”

Navegando pelo sorriso aportamos amiúde pela porta dentro de Manuel de Lima Bastos, à ironia por ele manejada como superior forma e modo de apreensão e conhecimento em que, a par do castiço e gostoso vernáculo, ressoam ecos aquilinianos do seu mestre, tutor e inspirador Aquilino Ribeiro. A ironia é o caminho mais curto de um homem a outro. Fazer humor é transformar a vida numa larga e tolerante benevolência, próxima da caridade. É a faísca que encobre as emoções, que responde sem responder, que não fere e diverte. O único remédio que desata os nervos do mundo sem o adormecer, que lhe dá liberdade sem o enlouquecer e entrega nas mãos dos homens, sem esmagá-los, o peso do seu próprio destino (Max Jacob). É ela que também se alberga nesta obra de Lima Bastos. Querido Manuel de Lima Bastos: a ironia e o humor tenho-os como modos sérios do próprio conhecimento. Tão relevantes quanto as categorias da “Razão Pura” de Kant, sendo de notar que os homens superiores não riem na Alemanha, a acreditarmos em Nietzche que foi quem o disse. O humor, a amizade é, sobretudo, sorrir, rir com o outro, cúmplice dessa partilha. Aliás, podemos sorrir de tudo mas não com qualquer um. Saber sorrir não é apenas uma expressão salutar, é a magnífica exclamação da alegria, a salvação do dia. Lima Bastos nesta sua obra arrisca-se de corpo inteiro nesse jogo em que a escrita é um jogo de verdade e fingimento (nem a verdade nem o fingimento mas um terceiro termo tenso) como a vida e a ficção não serão uma mesma coisa, como uma espécie de baile de máscaras em que a escrita é um terceiro termo de tensão e de apreensão, de captura da fragilidade e incerteza dessa linha divisória que aparentemente separa mas cuja flutuação conjuga, una voce, o real, o imaginário e o simbólico. Posso dizer que Lima Bastos agarra-se à palavra como um animal àquilo que ama. E apaixonadamente, que é a única forma de conhecimento, pois quem não gosta demais não gosta bastante. É, assim, para mim a bela palavra da escrita de Lima Bastos: “um sopro que procura durar” (Guillevic). Fidelidade à palavra é o traço decisivo da escrita de Lima Bastos. Dessa fidelidade que - como o admirável Eugénio a escreveu - é a fidelidade ao homem e à sua esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais profundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.

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Senhoras e Senhores Faz-se tarde e confesso que não sei ver, como os chineses, as horas nos olhos dos gatos. Perdoar-me-ão a minha escrita tremida nas suas porventura incertas derivas mas poderei justificar-me com a amizade e a admiração – que são muitas – que me ligam a Manuel de Lima Bastos e me trouxeram aqui. Vim aqui por solicitação sua, sabendo ele do meu antigo e compulsivo gosto pelos livros e das minhas muitas e experimentadas leituras. Só que a experiência não é a mãe de todas as coisas nem dos talentos e méritos para apresentar um livro como este, ao que temerariamente me atrevo.

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O Presidente da Câmara de Espinho no uso da palavra.

O Presidente da Câmara de Sernancelhe no uso da palavra.

Parafraseando Brito Camacho, a que no Albergue se dedicam fulgurantes páginas, direi como ele que se a prática, a experiência fosse a fonte do saber, então o burro, que anda toda a vida à volta da nora, teria inventado a geometria. Por aqui me fecho, como diria Camilo. E, muito grato pela vossa benevolente paciência, vos deixo e vos entrego à leitura deste excelente O Albergue das Letras. Bom proveito!

Em Espinho, na Biblioteca Municipal de Espinho, aos dias 3 de Novembro de 2012


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O ENSINO NA FEIRA NOS SÉCULOS XVIII e XIX Marco Pereira*

Em 2007 publiquei no primeiro número da revista Terras de Antuã, editada pela Câmara Municipal de Estarreja, um artigo intitulado “História do ensino primário no concelho de Estarreja”. Nessa ocasião só este concelho me interessava explorar no artigo, e ainda assim deixando muito por dizer. Porque algumas das fontes históricas de que me servi para Estarreja informavam igualmente do ensino em localidades vizinhas, calculei que o molde geral do que escrevia ajudasse em pesquisas similares para outras localidades. Sugiro a leitura desse artigo, por mais completo que este e com pistas que directa e indirectamente interessam para o estudo do mesmo assunto na Feira. Tem a Feira a nobre tradição de ver publicada a sua história, para o que muito tem contribuído a LAF – Liga dos Amigos da Feira. É para a competência dos autores locais que se deve remeter um qualquer estudo de fôlego sobre o ensino no concelho, por todas as razões mais a de conhecerem melhor as circunstâncias e fontes da história feirense. Por certo alguns destes autores possuem textos publicados sobre a história do ensino no concelho, que desconheço por não estar suficientemente familiarizado com a bibliografia local. * Advogado. Historiador.

As modestas contribuições que aqui faço pouco adiantam ao que se sabe da Feira, e de modo algum esperam substituir os mais avalizados investigadores feirenses. Cumprirá este texto o seu objectivo se, tão só, motivar alguém a debruçar-se aprofundadamente no assunto, tirando proveito destes modestos subsídios que apenas procuram suscitar curiosidades.

1. SÉCULOS XVIII E XIX 1.1. PROFESSORES DO SÉCULO XVIII Num total de 14 pessoas com licenças para o ensino de Gramática Latina, concedidas entre 1759 -1762 a mestres particulares do distrito de Aveiro (tabela abaixo), conta-se um professor da Feira, o Pe. João de Oliveira Dias (1759). Talvez seja este o professor mais antigo do concelho da Feira, a não ser que os investigadores feirenses tenham já publicado outros nomes mais antigos, e sem prejuízo de futuras pesquisas revelarem melhores informações.


Mapa das licenças da Gramática Latina concedidas a Mestres Particulares (Distrito de Aveiro)

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N.º de mestres

Localidades

Mestres

Despachos

1 (1)

Arrifana de Sousa

Pe. António Ribeiro Barbosa

Lic. int. (3.12.1759)

2

Estarreja

José Gonçalo de Figueiredo, minorista

Idem (11.10.1759)

3

Aldeias, 1. junto de Oliveira de Azeméis

Manuel Carlos de Almeida

Idem (3.12.1759)

4

Feira (Vila da)

Pe. João de Oliveira Dias

Idem, idem

5 (2)

Vale de Arouca, comarca de Lamego

Manuel Gomes Falcão

Idem, idem

5 (3) 6 7 (2) 8 9

Arouca

Idem

Idem, (7.12.1759)

Ovar Idem Estarreja Bemposta, vila da comarca de Aveiro Arrifana de Sousa

Pe. José Rodrigues Campos Pe. Manuel de Oliveira Pe. Manuel Marques Fonseca João Baptista Álvares de Araújo

Idem, (9.1.1760) Idem, idem Idem, idem Vá a exame a Coimbra (17.1.1760)

L.do Pedro Teixeira da Silva

Lic. int. (24.1.1760)

7 (3) 11

Ovar S.ta Maria de Válega, da Vila de Pereira Jusã

Manuel de Oliveira José de Assunção Tavares

Idem (29.1.1760) Idem (1.2.1760)

12

Bemposta, vila da comarca de Esgueira

João Pereira Pinto, minorista

Exame em Coimbra (15.3.1760)

13 (4)

Fonte do Louzo, freguesia de N.ª Sr.ª dos Olivais Aveiro

José de Oliveira, n. de Leiria

Lic. por ano e meio (20.6.1760)

Luís Pedro de Almeida Soares

Lic. para exame de latim e não de retórica (11.3.1762)

10 (1)

14

(1) Deve ser Penafiel, por engano atribuída ao distrito de Aveiro. (2) Se for o mesmo mestre, como parece, terá alcançado licença para leccionar nas duas povoações. (3) Pedira licença para os alunos «fazerem tema todos os dias». (4) Deve estar por engano, talvez Lisboa. FONTE: ANDRADE (1984), p. 646.


Estes professores obtiveram as suas licenças, ficando plenamente habilitados ao exercício do ensino, por determinado período. Outros tentaram habilitar-se à mesma profissão, propondo-se para isso ao exame devido, caso dos que constam

das três tabelas abaixo, respeitantes aos exames realizados no Porto em 1760, 1763 e 1764. Aí encontra-se novamente o nome do professor feirense indicado na tabela anterior, e com ele os de novos candidatos à mesma profissão.

Pessoas que se habilitaram a Professores Régios de latim e sujeitaram-se a provas (Diocese do Porto, na parte respeitante ao actual distrito de Aveiro) – Porto, fim de Março de 1760 Nome

Local

Classificação Gramática Latinidade

Licença

Obs.

Pedro Teixeira da Silva Manuel de Oliveira Pe. José Rodrigues Campos Pe. João de Oliveira Dias

Arrifana (1) Ovar Ovar

Bom Bom Bom

Bom Suficiente Suficiente

Ampla Ampla Ampla

-

Vila da Feira

Bom

Bom

Ampla

40.000 cisas

rs.

Pelas

(1) Deve ser em Penafiel, uma vez que o nome do candidato a professor é o que consta do quadro anterior, com o n.º 10. Nota: Diz ANDRADE (1981), p. 204, que vários destes mestres obtiveram autorização para leccionar particularmente, mas nenhum deles mereceu a honra de Professor Régio, ao que acrescenta: «Alguns deles eram já mestres, apenas 3, com partido das Câmaras e todos, menos os reprovados, leccionariam sem ordenado régio. O Bacharel João de Oliveira Dias, segundo documentação do processo, durante 7 anos ensinava na vila da Feira, “com aceitação do povo e nota de bom estudante”, contando entre os alunos, Clérigos, Frades e Estudantes Universitários.». FONTE: ANDRADE (1981), pp. 202-203.

Exames de professores de Latim (Diocese do Porto, na parte respeitante ao actual distrito de Aveiro), em 28 de Abril de 1763 Nome

Localidade

Alexandre Alves da Costa Mourão, M. em Artes João Afonso Manuel Francisco José António Simplício José Marques Henriques e

FONTE: ANDRADE (1981), pp. 508-509.

Classificação

Licença

Gramática

Latinidade

Feira

Bom

Suficiente

1 ano

Estarreja Feira Feira

Bom Suficiente Bom

Bom Suficiente Bom

S/limites 8 meses S/limites

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Exames de professores de Latim (Diocese do Porto, na parte respeitante ao actual distrito de Aveiro), em 10 de Janeiro de 1764 Nome

Localidade

Leando Lourenço Ferreira António Carlos Almeida

Avanca, Feira Arouca, morador na Arrifana de S.ta Maria Poiares, com. de Feira Avanca, conc. da Feira Porto Carreiro, morador em Estarreja

Francisco José António (bis) Manuel José da Silva Manuel de Araújo Ribeiro

Classificação Gramática Latinidade Suficiente Suficiente Bom c/ Louvor

6 meses S/limites

Suficiente Suficiente Bom

1 ano 6 meses S/limites

Suficiente Suficiente Bom

Licença

FONTE: ANDRADE (1981), pp. 517-518.

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Foi o Marquês de Pombal o governante que instituiu o ensino primário e secundário oficial, por conta do Estado (não apenas os professores particulares ou pagos por algumas Câmaras Municipais), no que o nosso país foi pioneiro no mundo. Tem certa fama e franca divulgação a Carta de Lei de 6.11.1772, de acordo com a qual os professores particulares foram obrigados a conseguir habilitação para as suas funções com exames, prevendo o Estado além disso destinar pela primeira vez professores de ensino público para todo o território nacional. Esta norma criou um total de 837 lugares para professor, sendo 479 destinados a Mestres de Ler, Escrever e Contar, e 358 cabendo a professores do ensino secundário, na grande maioria de Gramática Latina (ao todo 236). A Carta de Lei de 6.11.1772 veio acompanhada de um quadro onde constam todos os lugares de professor que o governo pretendia instituir, sob o título «Mappa dos professores, e mestres das escolas menores; e das terras, em que se achaõ estabelecidas as suas Aulas, e Escolas neste Reino de Portugal, e seus Domínios»1. Nesse quadro eram destinados à Comarca da Feira 13 mestres, entre mestres de ler e professores. Destes, 9 eram Mestres de Ler, Escrever e Contar (4 Feira, 2 Ovar, 2 Cambra, 1 Sousão2), 3 Professores de Grammatica Latina (Feira, Ovar, Cambra), e 1 Professor de Rhetorica para a Cabeça de Comarca.

1 Collecção da Legislação Portugueza… 1763-1774, Lisboa, Typografia Maigrense, 1829, pp. 612-615, e mapa anexo. 2 Por Pereira Jusã, concelho.

Como diversas autoridades locais foram requerendo ao governo a criação de mais escolas, um Alvará datado de 11.11.1773 estabeleceu um suplemento de mais 87 professores, mas nenhum para a Comarca da Feira. Para as escolas previstas em 1772 acabaram por ser nomeados apenas 454 professores e mestres régios, por Despachos de 10.11.1773, dando assim cumprimento à legislação acima. Entre eles constavam os seis seguintes para a Comarca da Feira3: Retórica Feira, Joaquim Gomes Gramática Latina Feira, João de Oliveira Dias, Presbítero Secular Cambra, Francisco José António Ovar, Luís Pereira Fróis de Figueiredo Ler, Escrever e Contar Feira, Flórido José Soares da Silva4 Ovar, Manuel José Moreira Destas escolas previstas funcionaram no início de 1774 a grande maioria das de instrução primária, sendo intenção do Marquês de Pombal estabelecer assim um sistema de ensino estatal e laico, para o que foi necessário acorrer com fundos especiais (novos impostos).

3 GOMES (1982a), p. 49. 4 A carta de nomeação de Flórido José Soares da Silva, datada de 30 de Abril de 1774, como mestre de ler, escrever e contar na Vila da Feira, encontra-se na BIBLIOTECA GERAL DE UNIVERSIDADE DE COIMBRA, Manuscritos, n.º 1329, Carta n.º 42.


Reinando D. Maria I, publicou-se uma nova Lista das terras… destinadas para professores…, por resolução real de 16.8.17791, onde constam a fl. 94 os seguintes mestres e professores para a Comarca da Feira: Grammatica Latina Feira – Joaõ de Oliveira Dias. Ovar – F. Pereira de Susaõ – Francisco Joseph Antonio. Ler, e Escrever Cambra – Joseph de Paiva; Domingos de Sousa e Sylva. Feira – O Convento dos Conegos seculares de S. Joaõ Evangelista. Oliveira de Azeméis – Francisco Joseph Fernandes. Ovar – Manoel Joseph Moreira; Joaõ Félix de Resende Gomes. Pereira de Susão – Manoel Caetano Pereira da Sylva. Santo Antonio de Arrifana – Joseph Francisco da Cruz. S. Vicente de Louredo – Fernando Antonio Lopes Gondim. 1.2. PROFESSORES DO SÉCULO XIX Os professores, em especial os do ensino primário, leccionavam nalguns casos por conta do Estado, outros eram pagos pelas Câmaras Municipais, e outros ainda eram particulares. A cada professor correspondia uma escola, que geralmente tinha instalações pobres, para além de arrendadas e não pertencentes ao Estado ou às Câmaras, quando funcionavam por conta destes. Constituiu uma excepção em Portugal o legado do Conde de Ferreira, que permitiu a construção de uma escola na maioria das sedes de concelho portuguesas. Por seu turno, já o século XIX devia ir alto quando a Feira terá conhecido a sua primeira escola feminina. Para além dos professores primários havia os de Latim, aos quais correspondia no essencial o ensino secundário do tempo. Diversas fontes mencionam os nomes dos professores locais, o que nos permite a identificação e quantificação dos recursos humanos afectos ao ensino, principalmente a partir do meio do século XIX. O governo acabaria por instituir liceus nas capitais de distrito, mas continuaram a leccionar nas vilas os professores secundários, os mais deles de Latim. Em 1857 havia as seguintes cadeiras de Latim fora dos liceus, no distrito de Aveiro2: 1 Collecção de Leys…, 1777-1788, fls. 92-99; ver também GOMES (1982a), p. 67. 2 ABREU (1857), p. 69.

Águeda – José Francisco Rodrigues Pereira; Arouca – António José Lebre; Estarreja – António Teixeira; Feira – Victorino Joaquim da Fonseca; Oliveira de Azeméis – João Patrício da Silva. Sabemos ainda que nesse mesmo ano de 1857 existiam oito escolas do ensino primário no concelho da Feira (e alguma informação estatística das mesmas), nas quais se incluía uma particular em Canedo, paga pelos alunos, e outra em Paços de Brandão, mantida pela Câmara Municipal3. Acrescia a existência da cadeira de Grammatica Latina na Feira, frequentada por 27 alunos4. No ano lectivo de 1864/65 funcionavam no concelho da Feira duas escolas livres (primárias), regidas por professores particulares habilitados e frequentadas por 85 alunos, dos quais saíram prontos 13. Para além disso havia a cadeira de Latim na Feira, frequentada por 24 alunos em 1865, dos quais 6 fizeram exame e foram aprovados5. No ano lectivo seguinte, de 1865/66 continuavam a existir duas escolas livres, para além das oficiais, que foram frequentadas por 65 alunos, dos quais saíram 4 prontos. A cadeira de Latim estava vacante, por jubilação do seu professor Victorino Joaquim da Fonseca6. Consta porém terem frequentado a cadeira de instrução secundária na Feira (Latim), neste ano lectivo, 27 alunos7. As duas escolas livres que então ministravam o ensino primário eram regidas por António Alves Cardoso (Canedo, frequentada por 45 alunos) e Francisco José Pereira Pinto (Vale, frequentada por 20 alunos)8. Começamos enfim a poder nomear quase todos os professores de instrução primária a partir de 1874, ano em que exerciam esta profissão no concelho da Feira, mais vasto do que hoje9: Anta, Joaquim Domingues Pinto de Sá; Argoncilhe, Augusto Ribeiro Leal;

3 PINTO (1857), p. 32 (mapa n.º 7). 4 PINTO (1857), p. 33 (mapa n.º 8). 5 Relatórios sobre o estado da Administração Imprensa Nacional, 1866, pp. 4 e 12. 6 Relatórios sobre o estado da Administração Imprensa Nacional, 1868, p. 13. 7 Relatórios sobre o estado da Administração Imprensa Nacional, 1868, p. 50. 8 Relatórios sobre o estado da Administração Imprensa Nacional, 1868, p. 48. 9 ABRANCHES (1874), p. 35.

Publica… em 1865, Lisboa, Publica… em 1866, Lisboa, Publica… em 1866, Lisboa, Publica… em 1866, Lisboa,

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Arrifana, Abel Toscano Pereira de Rezende; Cortegaça, José Maria Alves; Escapães, Manuel Fernandes Nogueira; Esmoriz, José Lopes Barbosa; Lever, Joaquim Maria Coelho de Amorim; Mozellos, Pedro Leite; Nogueira de Regedoura, Domingos Rodrigues da Silva; Paços de Brandão, José Carvalho; Romariz, Manuel Francisco dos Santos; S. João de Ver, Manuel José de Freitas; S. Jorge, Domingos Luiz da Silva; Silvalde, Francisco Correia Vermelho; Souto, António Francisco Leite; Travanca, Henrique Vicente Correia de Sá; Villa Maior, Joaquim Francisco da Costa Santos; Feira, Miguel André Estrella, D. Carlota Augusta Ferraz de Lima. 122

Os humildes e arrendados edifícios escolares foram progressivamente substituídos por outros pertencentes ao Estado (caso mais notório o dos edifícios do estilo dos Centenários), ou oferecidos por beneméritos (como emigrantes enriquecidos no Brasil). Junto das escolas construíram-se depois algumas cantinas escolares. Distinguem-se escolas mistas, de masculinas e femininas. Os postos de ensino surgidos nos anos 30, dada a falta de professores, garantiam o ensino básico por regentes que se habilitavam ao lugar por exame. Houve ensino nocturno de adultos, eventualmente promovido por associações locais na Primeira República, mais tarde pelo Estado Novo. Enfim a distinção entre o ensino público e particular. A acção das mestras, antecessoras das actuais educadoras de infância. E mais recentemente o ensino préprimário, creche, ATL, e ensino especial. 2.1.1. ESTATÍSTICAS

1.3. ESTATÍSTICAS NO SÉCULO XIX Conhecem-se estatísticas sobre o número de alunos matriculados, frequência, ou aproveitamento nos vários graus de ensino existentes na Feira, para os anos de 1864-18661. Por seu turno, os relatórios dos governadores civis (anos de 1854, 1855, 1864, 1865, 1866) possuem informações sobre os alunos distinguidos por sexos, freguesias, e meses do ano. Anteriormente a 1878 não existem estatísticas sobre analfabetismo, mas poderemos fazer um cálculo aproximado com base na população de facto do recenseamento de 1864 e no número de trabalhadores que sabem ler (homens e mulheres), mencionados no Inquérito Industrial de 1865, o que não abrange toda a população. 2. SÉCULO XX 2.1 ENSINO PRIMÁRIO Porque fica fora do âmbito do que aqui se pretendeu estudar, não se fará mais do que breves reflexões sobre alguns dos pontos que interessam ao ensino no século XX.

1 Relatórios sobre o estado da Administração Pública… em 1865, ed. 1866; e 1866, ed. 1868.

O ensino primário do século XX possui mais fontes estatísticas, que nos ajudam a quantificar escolas, professores (e seus nomes), alunos(as), entre outros dados. Desde o 2.º recenseamento geral da população (1878) até aos Censos actuais, temos informação que permite fazer o cálculo da taxa de analfabetismo masculino, feminino e total, por freguesia, atingindo por esta via a evolução do analfabetismo. São exemplos de fontes importantes para a história estatística: Anuário Estatístico de Portugal, 1900 (ed. 1907); Ensino Primário Oficial, 1910-1915 (ed. 1919), e 1915-1916 a 1918-1919 (ed. 1923); Anuário Comercial de Portugal (do fim do século XIX à década de 70 do século XX); outros anuários; imprensa local; recenseamentos de crianças em idade escolar (nas escolas e talvez nas Juntas de Freguesia ou no Arquivo Municipal). 2.2. ENSINO SECUNDÁRIO E SUPERIOR O século XX trouxe a multiplicação e complexificação do ensino médio. Identificadas as escolas e suas localizações por todo o concelho, muito sobre elas se poderá dizer. Não se justifica explorar aqui este tema, até por desconhecimento da realidade local, remetendo-se quem tenha por ele curiosidade para eventuais informações na historiografia local. Entre as escolas públicas deverá encontrar-se as do tipo: Escola


Preparatória; Escola Industrial e Comercial; Liceu; EB, 2, 3; Escola Secundária. E haverá as escolas e colégios particulares, religiosos ou laicos. Entre ensino público e particular, a educação evoluiu muito ao longo do século XX. Para a estudar será inestimável a consulta sistemática da imprensa local, devendo subsistir poucos arquivos das escolas mais antigas extintas. Interessa ainda saber qual o nível de acessibilidade dos arquivos das escolas públicas actuais, mas pelo menos algumas delas possuem nos seus respectivos sites informações sobre a sua história. No respeitante a estatísticas, algumas das fontes utilizadas para o ensino primário adaptam-se também ao secundário no século XX. Não se esqueça enfim a realidade recente do Ensino Superior. A imprensa local, os sites das instituições e seus folhetos de propaganda darão uma ajuda inicial na pesquisa, mas depois há que procurar outras fontes. 3. FONTES Cada investigador pretende ver respondidas diversas perguntas, para as quais necessita saber em que fontes poderá procurar as respostas correctas. Tal como um jornalista, busca o quem?, o quê?, onde?, quando?, e outras informações. Vamos tomar como fio condutor da pesquisa, na história do ensino local, o que foi escrito acima e respectivas referências bibliográficas, que constam na bibliografia sumária no final deste artigo. E com ou sem o auxílio desta bibliografia procure-se mais publicações e documentos. São importantes para o século XIX: os relatórios do governo civil publicados (autonomamente ou na revista Arquivo do Distrito de Aveiro); os fundos do Arquivo Distrital de Aveiro, do Arquivo Municipal da Feira e arquivos de algumas escolas; as monografias locais; livros do registo paroquial (pode por exemplo registar-se o óbito de um professor, indicando a profissão); os almanaques de José Maria de Abreu (1857) e de Aristides Abranches (1874); e o Anuário Comercial de Portugal (1897 e ss.). Atente-se agora no século XX. A imprensa local costuma noticiar inaugurações de escolas e obras de vulto. No início do ano escolar alguns jornais podem publicar dados estatísticos do novo ano, e pouco antes os colégios poderão publicitarse. Os arquivos escolares (depósitos de “papéis velhos”?),

que ainda existam nas antigas escolas primárias, possuem informação estatística e iconográfica, entre outra. Os arquivos Distrital, Municipal, e das Juntas de Freguesia, em princípio serão menos significativos. Antigos professores e alunos poderão possuir fotografias e documentos (pelo menos com valor iconográfico). E mais recentemente temos a Carta Educativa, da Câmara Municipal. Sobre o Arquivo Distrital de Aveiro em particular, existem ali algumas fontes importantes, por exemplo os dois seguintes fundos: 1.º – Com a extinção do Centro de Área Educativa (CAE), acolheu um fundo documental deste organismo no início de 2007, estando a consulta facilitada pela existência de um índice. Neste fundo encontra-se informação diversa, que inclui os vencimentos de professores (no caso de Estarreja entre 1892-1981), embora o grosso dos documentos seja dos anos mais recentes. 2.º – O Fundo do Governo Civil – Registo de Professores, Regedores e outros funcionários de nomeação régia (1864-1977), onde constam os nomes de mais professores para além dos aqui listados. No que respeita aos arquivos escolares, nos próprios edifícios escolares, incluindo as antigas escolas primárias, devem continuar a existir em muitos casos “papéis velhos”. Podem estar talvez guardados conjuntamente e nem sempre acondicionados da melhor maneira, porventura no sótão ou numa arrecadação de cada escola. É o que se passa em algumas escolas de Estarreja e da Murtosa, mas desconheço o caso concreto da Feira. BIBLIOGRAFIA E FONTES Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Manuscritos, n.º 1329, Carta n.º 42 ABRANCHES, Aristides (1874), Almanach Burocrático, geral, distrital e concelhio para 1875, Lisboa, Empreza Editora – Carvalho & C.ª ABREU (1857), José Maria de, Almanak da instrução publica em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, ano 2 (para 1858), p. 69 ANDRADE, António Alberto Banha de (1981), A reforma Pombalina dos Estudos Secundários (1759-1771), vol. 1, 1.ª parte, pp. 202-203, 508-509, 517-519 ANDRADE, António Alberto Banha de (1984), A reforma Pombalina dos Estudos Secundários (1759-1771), vol. 1, parte 2.ª, p. 646

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Anuário Comercial de Portugal, 1897 e ss. Collecção da Legislação Portugueza… 1763-1774, Lisboa, Typografia Maigrense, 1829, pp. 612-615, e mapa anexo (consulta na BGUC) Collecção de Leys…, 1777-1788, fls. 92-99 (consulta na FDUC) GOMES, Joaquim Ferreira (1982a), “Duas listas de professores: uma elaborada pelo governo do Marquês de Pombal e outra pelo de D. Maria I”, Revista de História das Ideias, vol. 4, tomo 2, 1982, pp. 43-91 GOMES, Joaquim Ferreira (1982b), “O Marquês de Pombal criador do ensino primário oficial”, Revista de História

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das Ideias, vol. 4, tomo 2, 1982, pp. 25-41 PEREIRA, Marco (2007), “História do ensino primário no concelho de Estarreja”, Terras de Antuã, I, pp. 173-195 PINTO, Anthero Albano da Silveira (1857), Relatório apresentado à Junta Geral do Districto de Aveiro na sua sessão ordinária de 28 de Julho de 1856 pelo Governador Civil do mesmo Districto, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1857 Relatórios sobre o estado da Administração Publica… em 1865, Lisboa, Imprensa Nacional, 1866, pp. 4 e 12 Relatórios sobre o estado da Administração Publica… em 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868, pp. 11-13, 48, 50


ALICE MODERNO E A CONDIÇÃO FEMININA Maria da Conceição Vilhena*

1. Pela Mulher Como é de todos sabido, a mulher, em geral, tem vivido numa atmosfera de passividade subserviente, que a mantém impossibilitada de pensar. Adormecidas as suas faculdades intelectivas por séculos de servidão passiva, ora escrava explorada, ora parasita exploradora, a mulher não só ficou parcialmente impedida de desejar elevar-se, como se tornou frequentemente incapaz de revolta contra a acusação de ser inferior. A lei da mulher era a da obediência, disfarce, submissão e resignação. O feminismo do século XIX, porém, deseja as mulheres criaturas de inteligência e razão, educadas de forma a saberem ser dignamente úteis e autónomas, com direito a pensar e trabalhar, desenvolvendo as suas qualidades afetivas paralelamente às suas capacidades intelectuais. Ser feminista é tudo isto; e é também lutar pela promoção das mulheres mais desfavorecidas, combatendo o analfabetismo e a prostituição; lutar para que a mulher tenha o direito de casar ou ficar solteira, sem que isso seja motivo de comiseração ou desprezo.

A feminista deve convencer a outra de que a ignorância é o que há de mais triste e aborrecido. A mulher bonita ignorante começa por ser um prazer para os olhos, mas acaba por se tornar num fastio para o espírito, logo que o revele pela sua tagarelice vazia. O primeiro dever da feminista consiste na luta contra o analfabetismo feminino. Porque a mulher precisa de se instruir; e, para isso, tem de saber ler. Sem estudo não pode haver emancipação feminina, porque a mulher ignorante é incapaz de refletir sobre os seus direitos; incapaz de ver que só na punição, a consideram igual ao homem – ente fraco no que diz respeito aos direitos e forte relativamente a deveres. Se é um ser inferior, como pode receber a mesma punição que o homem, pelo crime que cometer? As escritoras de então afirmam que os antifeministas querem a mulher na sala, no quarto e na cozinha, porque assim serve melhor o seu comodismo egoísta. Mas até para ser apenas dona de casa e frequentemente chamam a atenção para isso, a mulher precisa de instrução e educação, a fim de poder educar os filhos, pois ser bem-educado não é apenas saber fazer vénias. A superioridade do homem vem-lhe da sua instrução e da sua liberdade de realização profissional, a que sempre tem tido acesso. A feminista não pretende ser sua igual em hábitos, vícios ou extravagâncias, escrevem; mas apenas opor-se à exploração e abusos de que tem sido vítima, em razão da sua ignorância.

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

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A mulher, para ser boa dona de casa, não lhe basta saber línguas e música, antes teria toda a vantagem em ter noções de física, química ou botânica, de economia doméstica, a par de uma verdadeira educação moral e cívica. E acrescentam: seria muito mais agradável ter uma companheira culta, com quem o homem pudesse trocar ideias, do que uma ignorante de que se envergonharia de apresentar em público, só sabendo falar de enxaquecas e cozinhados. Mulher ideal será aquela que se sente capaz de substituir o marido falecido ou inválido: a melhor mãe é a que pode substituir o pai junto dos filhos. Interdizer à mulher o direito ao estudo é forçá-la a uma condição de parasita. Ser feminista, proclamam as que assim se designam, não é ser masculinista, procurando imitar o homem em tudo, até nos seus vícios. O facto de a mulher exercer uma profissão, mesmo a de negociante, não a impede de continuar a saber amar, ao contrário do que pensava T. Braga (M. Veleda, A conquista, p. 168). O feminismo defende que todas as profissões são honrosas e compatíveis com a dignidade feminina: medicina, advocacia, comércio, jornalismo, funcionalismo público; na fábrica, como na oficina; na política como na cozinha. A mulher precisa de ter a liberdade de escolher o estado ou o ramo que mais convém à sua maneira de ser, podendo querer, ou não, constituir família. Se a mulher tem falta de civismo, afirmam, a culpa é daquele que a tem convencido de que o seu império é o da formosura, tornando-a frívola; incitando-a assim a só pensar na maneira de agradar àquele que a há de pagar. Disseramlhe que o lugar dela era em casa e que a instrução destruiria os seus nobres sentimentos. Incitaram-na à mediocridade, como melhor forma de encontrar marido. E assim ficou um ser fraco, dependente, vulnerável, inútil, mesquinho. Por isso o feminismo do século XIX e princípios do século XX representa uma revolução na instrução e na educação femininas, com vista à conquista da sua independência pelo trabalho e ao acesso à felicidade, numa integridade moral que se opõe à sua compra pelo homem, como objeto mais ou menos caro. Nem o ser escritora o homem admitia à mulher. Nas Novidades, de 7 de junho de 1909, Sima Laboreiro insurge-se contra a mulher escritora, encerrada no seu gabinete, em vez de estar na casa de costura; empenhada em problemas áridos, procurando soluções políticas, sociais e filosóficas, em vez de

estar a tratar dos filhos. E assim se confundia emancipação da mulher com imoralidade e destruição da família. O homem admitia que a mulher perdesse horas a jogar e a dançar, ou em visitas a amigas, mas não num trabalho digno que a valorizasse. Não era a mulher ociosa e mundana que constituía um perigo social, mas sim a mulher ilustrada, que raciocina e reflete. Escreve Alice Moderno que, no seu tempo, a mulher passava, facilmente, do lugar de deusa inspiradora do apaixonado, ao de cozinheira hábil ou governante útil, quando não era «atirada ao monturo das coisas velhas», logo que se apagava o fogo da paixão dos sentidos. O homem temia a mulher de igual nível intelectual, preferindo aquela que só pensava em agradar-lhe, ignorante e inexperiente, incapaz de decidir dos seus atos, que só sabia falar nos últimos figurinos e nas faltas dos criados. Sempre que encontrava pela frente uma mulher de espírito forte e brilhante, o homem procurava sufocar-lhe as suas aspirações, convencendo-a de que ela é naturalmente inferior e de nada lhe valerá lutar. Existe no espólio de Alice Moderno uma carta enviada de Angra, assinada por Manuel Garcia da Silva e com a data de 31 de agosto de 1883; quer dizer que, quando a recebeu, Alice Moderno acabava de completar 16 anos. É uma carta de 12 páginas, em que o autor, refletindo sobre algumas reflexões de Alice Moderno, relativas ao valor da mulher, fundamentado ele na Bíblia, tenta convencê-la de que a mulher é realmente um ser inferior; e, admitir o contrário, seria uma utopia e um absurdo inqualificável. O homem é o Rei da Criação, enquanto a mulher é culpada de todos os males da humanidade. É maliciosa, ambiciosa e falta-lhe a nobreza intelectual do homem: «O homem é infinitamente superior à mulher. Tudo quanto vemos hoje de admirável é devido à inteligência do homem e à da mulher nada». Podemos imaginar a revolta que tal carta não terá produzido em Alice Moderno, então ainda muito jovem, mas já consciente da sua capacidade intelectual. Este não é um caso único ou raro. Habitualmente, a mulher era depreciada, acusada e atacada na imprensa de então, sempre fértil em historietas e anedotas acintosas, irónicas e satíricas, a respeito dos defeitos femininos; e nem se compreende que o homem tenha posto tantos obstáculos ao trabalho feminino remunerado, fora do lar, uma vez que uma das principais acusações que se lhe fazia era precisamente o facto de constituir um fardo para o marido. No Diário de


Anúncios, de 30-VII-1892, foi publicada uma definição de mulher, em forma de poema, de 30 versos, cada um dos quais constitui um verdadeiro insulto. Ela é «sanguessuga insaciável», «um contínuo cuidado», «a carga mais pesada», «um lamentável dano», «da bolsa o maior ladrão» e «do dinheiro inquisição». Era, pois, lógico, que uma das principais reivindicações das feministas fosse a do direito ao trabalho. Escritoras e jornalistas dão-se as mãos nessa cruzada em defesa da mulher: Ana de Castro Osório, Maria Veleda, Virgínia Quaresma, Ana Castilho, Albertina Paraíso, Olga Morais Sarmento, Maria Amália Vaz de Carvalho... Escrevem, fazem conferências, dão aulas noturnas a mulheres, fundam associações. Assim surgem a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, a Empresa de Propaganda Feminista e Defesa dos Direitos da Mulher, a Associação de Propaganda Feminista, o Grémio Carolina Ângelo, a Comissão Feminina pela Pátria, etc. Algumas destas associações têm os seus órgãos de imprensa, como a Associação de Propaganda Feminista, que publica A Semeadora. Alice Moderno segue atentamente todo este movimento e nele colabora, abrindo em A Folha uma rubrica intitulada Pelo Feminismo. É a partir de 1909 que começam a surgir neste jornal frequentes artigos e notícias sobre o movimento feminista universal, alguns escritos por Alice Moderno, que vai transcrevendo também publicações de outros periódicos, de interesse para os Açores. Em 1910, surge no seu jornal uma rubrica nova, Notas duma feminista, assinada por Teresa Franco, que alterna, por vezes, com Notas dum feminista, da mão de Luís Leitão, aquele mesmo que, já anteriormente responsável da rubrica Por Bem, aí vinha abordando assuntos relativos à emancipação da mulher. Estas notas são constituídas, em parte, por reflexões e opiniões pessoais; mas contêm sobretudo urna informação pormenorizada sobre a luta da mulher, noutros países e suas conquistas: Na Rússia, em fins de 1911, pela primeira vez uma mulher é nomeada chefe duma estação telégrafo-postal; e a Comissão do Conselho do Império aprovou uma lei que permite à mulher exercer advocacia. Na Irlanda, é admitido o voto feminino, nas eleições municipais. Na Hungria, o movimento sufragista é apoiado sobretudo por associações masculinas. Em Los Angeles, é nomeada a primeira mulher-polícia.

Em 1912, as professoras oficiais de Nova Iorque veem enfim os seus ordenados equiparados aos dos professores. Mas nem tudo são rosas. Em Inglaterra, em 1912, ainda as feministas são brutalizadas pela polícia, ultrajadas e expulsas das reuniões, levadas a tribunal, postas na prisão, como se fosse possível «engaiolar o canto das aves», escreveu alguém numa parede, a este respeito. As suas sedes são assaltadas e destruídas; e àquelas que recusam pagar os seus impostos, enquanto não lhes reconhecerem o direito de voto, são-lhes vendidos os bens em hasta pública. Em 10-1-1910, Alice Moderno comunica a inauguração, em Paris, do primeiro clube feminista de recreio: «Chama-se Lyceum e as fundadoras constituem um grupo de senhoras de diversas nacionalidades, que se interessam pelas artes e pela literatura, buscando a maneira de se reunir para trocarem impressões: No clube há salas de leitura e aí se dão conferências e audições musicais». A mulher açoriana que, ao reunir-se com outras, só sabia falar de modas e bisbilhotar sobre as vidas alheias, ficou assim a saber que há maneiras mais dignas e agradáveis de ocupar o seu tempo. Aliás, uma das preocupações de Alice Moderno era levar a mulher a saber preencher os seus tempos livres. Alice Moderno informa ainda sobre a organização e o funcionamento dos trinta clubes femininos que já existiam em Londres. Em Inglaterra, segundo escreve o jornal Enide, o receio principal é de que a jovem, instruída e com direitos políticos, comece a recusar casar-se, por altivez. O articulista, porém, declara que” a situação não é alarmante, pois a ciência antes reveste as jovens de graça e lhes mantém a arte de serem cativantes. O que é necessário é que os rapazes as acompanhem na sua promoção política, intelectual e profissional: «as vossas irmãs avançam, deveis provar-lhes que não dormis» (A. F 21-1-1912). Também nos Açores se reconhece um certo progresso no que diz respeito à instrução feminina. Alice Moderno, a primeira mulher a frequentar o liceu, comunica aos seus leitores, em novembro de 1912, que nesse ano se encontram matriculadas 12 meninas, no liceu de Ponta Delgada; 11, no da Horta; e 8, no de Angra de Heroísmo. Nada há a temer, em países onde já foi concedido à mulher o direito de voto, como a Nova Zelândia e a Austrália, há um progresso social notável, relativo às suas reivindicações: os salários femininos aproximam-se dos masculinos em

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trabalhos iguais, ou idênticos; a mortalidade infantil desceu; o tráfico das brancas reduz-se cada vez mais; a velhice tem direito a pensões, etc. (A.F, 1-XII-1912). Enquanto Teresa Franco realiza preferentemente um trabalho informativo sobre o programa feminista e lutas mantidas para o levarem a bom termo, Luís Leitão toma uma atitude mais didática e doutrinária: «A mulher tem alguma coisa a fazer, no mundo, mais nobre do que enfeitar-se e pôr em evidência as formas de captar as atenções do homem»; «Pois não seria já tempo de se convencerem as senhoras e as meninas de que, para ser-se realmente elegante, a primeira condição é não modificar a impecável obra da natureza?». «À mulher que o sabe ser nunca faltaram dotes naturais que, a despeito da falta de uma grande formosura, a tornam apreciada, respeitada e benquista do homem». Deste rigor contra o embelezamento da mulher, surgiu talvez aquela pergunta de um jornalista «porque será que todas as feministas são feias?», referida pelo jornal A Madrugada, que lhe respondia com outra pergunta: «porque será que todos os antifeministas são idiotas?». Muitas das considerações de Luís Leitão têm em vista convencer os homens de que a instrução da mulher em nada a masculinizará. E que é um erro pretender que a mulher continue a ser um ente fraco, dependente, incapaz de se bastar a si própria, com receio de que se torne impudica e desonesta. A ignorância e a invalidez nunca foram virtudes, pelo que toda a criatura deve ser admitida à comunhão do ensino e do trabalho, sem distinção ou exclusão de sexos. A mulher emancipada não é a rival do homem, mas sim uma preciosa colaboradora na missão social que a ambos compete. A Águeda Pacheco, no seu artigo intitulado Feminismo, publicado em A Folha de 17-IX-1911, parece-lhe impossível que, de boa-fé e estando-se informado, se possa ser antifeminista. Para ela, o primeiro feminista foi Jesus Cristo; e, com a realização do programa feminista, o primeiro a colher vantagens será o homem, pois terá a seu lado uma mulher mais capaz de o compreender: «Para que quererá a mulher, natureza expansiva e generosa, a educação, a ilustração, o saber sentir, pensar, discernir, senão para tornar amena e agradável a vida ao companheiro de todos os dias?», Maria Veleda, Águeda Pacheco, Ana de Castro Osório, Fazenda Júnior e, sobretudo, Luís Leitão e Teresa Franco, são de certo modo o porta-voz de Alice Moderno, em matéria

de feminismo, pelos seus vários artigos que esta folha lhes publica; artigos que, frequentemente são reproduzidos de A Folha, em outros jornais açorianos. Assim se fazia a propaganda feminista de então, através e por Alice Moderno.

2. Alice Moderno e a Moda “Notre grand et glorieux chef-d’œuvre c’est vivre à propos” (Montaigne) Segundo refere João Machado de Faria e Maia, num artigo sobre a vida social nos Açores, no começo do século XIX, publicado em A Folha, de 19 de março de 1905, o açoriano era demasiado formalista; e de tal modo cerimonioso, que o seu convívio se tornava desagradável aos estrangeiros que aqui vinham de visita. O exagero do requinte verificava-se até nas relações entre os amigos e familiares mais íntimos; e não só no gesto mesurado e convencional, como também na forma de se vestir. J.M. de Faria e Maia faz notar que, no final do século, esses hábitos se haviam modificado. No entanto, Alice Moderno faz ainda frequentes alusões aos exageros na maneira de vestir, sobretudo no concernente ao elemento feminino, a quem acusa de frivolidade e mediocridade. Notemos todavia que a mulher a quem Alice Moderno apelida de inútil, fútil e parasita, não é a dona de casa e mãe de família, que faz prodígios de acrobacias domésticas, que todos os dias conta a reconta os magros tostões de que dispõe para sustentar os filhos; frívola, é a mulher abastada, a «fada do lar», que vive rodeada de criadas e só se preocupa com os últimos figurinos. Alice Moderno sempre teve um fino sentido estético; apreciava o belo e dele se fazia rodear. Todos aqueles que com ela conviveram são unânimes nas alusões ao gosto e requinte da sua casa e da sua mesa. Apreciava, porém, a discrição no vestir e, se foi considerada excêntrica quando ainda muito jovem, isso deveuse sobretudo ao facto de usar o cabelo cortado, o que era então considerado como um atentado aos bons costumes. O próprio Joaquim de Araújo lhe diz que, quando chegar a Ponta Delgada, para tratarem do casamento, atirará ao mar a tesoura com que ela corta o cabelo. A.M. explica: «Cortei-o aos 19 anos. Eu estava sofrendo de grandes dores nevrálgicas na cabeça e meu pai receitou-me aplicações de água fria, tratamento pouco fácil de aplicar diariamente com o cabelo


comprido. Cortei-o. Comecei a passar muito melhor, dali a pouco estava boa. Entraram a dizer a minha mãe e as minhas amigas que me ficava bem o cabelo que tenho, naturalmente quedado, assim. Havia nisso, além de tudo, uma vantagem higiénica, a de poder lavar a cabeça todos os dias. Nunca mais o deixei crescer. Será agora, se tu quiseres.» E Joaquim de Araújo não deve ter exigido tal e Alice Moderno continuou a usar o cabelo cortado para o resto da sua vida. Bernardo Costa, um seu admirador, quando ainda muito jovem, diz numa carta admirar nela o ser «desprendida desses adornos feminis, que outros julgam indispensáveis na mulher, isto é, os cabelos compridos». Bernardo Costa via-a passar na Rua dos Mercadores, junto ao arco, com os livros na mão e descobria nela o ideal da mulher sonhada: a mulher resoluta, desprendida dessas fantasias, «sempre a caminhar à frente do progresso». A propósito da moda, poder-se-á aludir à forma de estar no mundo, de Alice Moderno, relativa ao convívio e maneira de ocupar os tempos livres. Uma das grandes paixões de Alice Moderno era o teatro. Quando alguma companhia vinha a Ponta Delgada, Alice não perdia uma única sessão. E justifica-se numa carta a Joaquim de Araújo: «Mas sabes tu o que é a vida da província? Durante o ano, as únicas distrações que aqui tenho, além do trabalho, que é ainda o meu melhor divertimento, e da leitura, que é a mais apreciável delas, são visitas feitas ou recebidas, durante as quais se ouvem comentar os vestidos desta, o modo de vida daquela, o casamento de fulano, o mau procedimento de sicrano e tudo quanto, a respeito da vida alheia, pode ter cabimento em mentes acanhadas. Ora eu, está claro, enquanto falam, penso em outra coisa muito diferente, chego mesmo, incivilmente, a abrir o primeiro livro que se me depara; em suma, estou alheada de tudo quanto à roda de mim se discute» (15-VII-1892). Alice Moderno começou a estudar piano ainda criança, como era moda, mas não gostou; e também aprendeu a dançar. Foi nos tempos de Angra que Alice frequentou aulas de música e dança, em casa das sras. Silvas, D. Mariana e D. Cândida, tia e sobrinha, que moravam na Rua do Infante D. Henrique. Antes de permitirem aos alunos a mais rudimentar contradança, estas senhoras exigiam-lhes um curso completo de posições, terças e piruetas. Havia algumas alunas distintas que dançavam a gavota e o solo inglês. Alice limitou-se a aprender as danças então em voga: quadrilhas, lanceiros,

imperiais, polkas, mazurcas, valsas a dois e três tempos, sicilianas e varsovianas. Na sua juventude ia a bailes, frequentava o Clube Micaelense, dançava, parecia divertir-se como as outras. Ao sabê-lo, Joaquim de Araújo confessa-lhe que não dança, pelo que está receoso que, depois de casarem, isso seja causa de desentendimentos. Ao que Alice responde: «Supunhas que eu te chamaria selvagem por não gostares de dançar? Enganaste. Ao contrário é que eu ficaria surpreendida! Gostares de dançar, tu, um homem superior?’ Não podia ser. «Disseram-te que eu gostava de dançar? Eu não sei se gosto. Tenho ido a muitos bailes e, ali, prefiro dançar a estar num círculo de senhoras que não sabem dizer coisa que nos não enfastie. É verdade que os homens que nos tiram para par também não dizem senão dislates, mas, ao menos, há a diversão do movimento, da música, desse não sei quê que nos entusiasma e nos faz dançar uma noite inteira, sem todavia, gostar de dançar. «Eu nunca te hei de forçar, meu amigo, a ires, por condescendência, a um baile, de onde nós voltaríamos com as forças exaustas e a má impressão de ter empregado algumas horas banalmente e inutilmente. «Bem vês que o meu entusiasmo pela dança não é tão grande como imaginas. Do teatro, sim, gosto muito. De resto, qualquer diversão, por simples que seja, me agrada. Um dia passado no campo é, para mim, um grande divertimento. Também gosto de pescar, e, sobretudo (tu vais rir-te da infantilidade) de guiar um carro. Meu pai teve sempre uma grande paixão pelos cavalos e eu, de pequena me familiarizei com esses bons animais. Ainda me lembro com saudade de uma égua muito mansa, chamada Mimosa, a quem eu levava pão e açúcar e que me lambia as mãos como se fosse um cão. Meu pai ensinou-me, um dia em que estava de pachorra, a guiar o seu carro e isso tornou-se em mim, durante algum tempo, uma paixão. Depois vendeu-se o carro, quando a minha família partiu para o campo e eu despedi-me, com as lágrimas nos olhos, de minha amiga Mimosa. «Tu já me disseste, havemos de ir muita vez ao campo e verás então se me lês nos olhos uma única saudade dos bailes! «Tu não pareces só singular, meu amigo: Parecesme único, eu já to disse. É extraordinário que exista, no último quartel deste século, um rapaz que reúna todas as surpreendentes qualidades que se acumulam em ti.

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«E chamas ao facto de não fumares e de não gostares de dançar, os teus defeitos. Tem graça! «Defeitos, meu amigo, tenho-os eu, infelizmente; mas, ao contacto do teu espírito tão superior, ir-me-ei corrigindo deles, até que de todo me aproxime da altura moral do meu querido Mestre. «Olha, eu fumava muito. Sempre que estava em casa, sem discípulos nem visitas, fumava. Tinha dias que fumava mais de vinte cigarros. Tratei sempre muito dos dentes, para o fumo os não enegrecer e usava uma boquilha, para o contacto do cigarro me não amarelecer os dedos. Assim remediava estas desvantagens, não distinguia outras na satisfação deste capricho. Mas tu disseste-me que o fumo te fazia mal e eu, imediatamente, deixei de gostar de fumar», Alice Moderno não fumava para parecer moderna, nem tomou o hábito de fumar por sua iniciativa. Foi o pai que, no desejo de compensar a falta dos dois rapazinhos mortos à nascença e que precederam Alice, sempre a tratou como um rapaz; pelo que começou a dar-lhe cigarros desde criança e assim lhe incutiu o vício de fumar. Joaquim de Araújo, que não fumava, ao saber que a namorada o fazia, tentou começar também a fumar: «Agradeço-te, meu querido amigo, os esforços heroicos que fizeste para fumar. Entre tu adquirires um vício e deixar eu de o ter, não subsiste a menor dúvida – não fumaremos. Comecei já a fumar muito menos e espero daqui a menos de um mês estar perfeitamente curada disso. «Tu, que não fumas, havias de ter ficado horrorizado quando soubeste que eu fumava, não? Infelizmente isto aqui está muito derramado; 20% das senhoras micaelenses fumam quase tanto como os maridos». Alice Moderno apreciava a beleza, mas detestava o exagero da mulher do seu tempo no vestir-se e pentear-se. Era o tempo do espartilho, tão ridicularizado nas letras da época e tão condenado pelos médicos. Era o tempo dos cabelos compridos e dos penteados longamente artísticos, do chapéu luxuriante de enfeites, das muitas joias, que transformavam a mulher num mostruário de bugigangas. Excentricidade de vestuário que traduzia um desejo enorme de dar nas vistas. Eça de Queirós também protestou contra a moda desse tempo, tão cheia de folhos e plumas. Achava que a mulher, ao seguir fielmente o figurino, abdicava da sua originalidade, desabituando o espírito da sua capacidade de fantasia, invenção e espontaneidade. A mulher escrava do figurino,

como se mandasse vir ideias pelo correio ou praticasse o bom-tom por assinatura. Na última década do séc. XIX a cintura adelgaça-se, as mangas tufadas atingem um volume máximo, os folhas e rendas abundam, as saias tomam-se amplas e tufadas atrás, com armação de vime. O decote é justo, a gola alta, o busto levantado. O chapéu toma-se suporte das mais variadas flores, plumas, rendas e borboletas. É o triunfo da linha curva, em que a silhueta sinuosa da mulher lembra um S. A loucura dos enfeites chegou a tal ponto que Sir Bukland defendeu no parlamento, em Londres, a promulgação de uma lei de defesa de certas aves, em vias de desaparecimento, pelo exagero no uso de plumas em chapéus e leques. Em 1912, só no mercado de Londres se haviam vendido os despojos de 190 000 garças-reais e 28 000 aves de paraíso. A ideia de tal lei foi sugerida por Lord Avebury, presidente da Sociedade Selbourne para a proteção de tudo quanto de bom e interessante há na natureza, o qual sentia a urgência de se proibir a importação de penas de aves mortas expressamente para ornatos, devido aos quais já havia várias espécies completamente extintas. Enquanto jovem, Alice Moderno vestia-se à maneira do seu tempo, usava vestidos enfeitados e joias, como vemos pelas suas fotografias, mas sem exagero. A. M. era uma mulher moderna, capaz de inovação, mas com uma tendência grande para o meio-termo. Como ela própria afirma nas cartas a Joaquim de Araújo, era considerada uma excêntrica, no meio açoriano. Era muito alta, cabelo cortado, fumava, escrevia, teve o arrojo de frequentar o liceu, pouco se preocupava em praticar as artes femininas tradicionais, preferindo enriquecerse culturalmente; tudo isto fazia dela uma rapariga diferente das outras. E nem usava brincos, o adorno considerado essencialmente feminino. Neste ponto, esteve de acordo com o pai, como conta a Joaquim de Araújo: «Efetivamente, eu não tenho as orelhas furadas. Meu pai teve o bom senso de se opor a que furassem as orelhas às suas duas filhas. «Dizes que as orelhas por furar devem dar uma fisionomia de rapaz? Acrescenta-lhe o cabelo cortado e diz-lhe agora o que dá! «Em todo o caso, eu sou uma criatura extremamente despida de pretensões e vaidades.»


Possuía joias, que hoje pertencem ao museu Carlos Machado de Ponta Delgada. Mas, no vestir, afirmam todos os que a conheceram, sempre foi de uma grande sobriedade. Mais tarde escandalizaria, sobretudo pelo seu gosto pela blusa branca, com colarinho e gravata preta, o que, com um chapéu no género do dos homens e usando sempre bengala, mais agravava o seu ar masculino.

Mas ignora essa turba embasbacada Que a denomina: – deusa dos amores – Que esses encantos todos e primores, Não passam de farçola e mascarada. Para ter sedutora palidez, Cold-cream e pó d’arroz usa na tez, Os cabelos nem dela ao menos são ...

2.1. Contra os exageros Alice Moderno, mulher de raciocínio, não protesta propriamente contra a moda, mas contra a escravidão à moda e seus exageros. As fotografias da sua juventude mostram que se penteava com gosto e que usava joias, como já dissemos. No entanto, tinha apenas 18 anos, quando compôs esta sátira à moda: Levanta-se a senhora e incontinente Dá começo à toilette complicada, Mas é em vão que tenta já irada, O espartilho atacar devidamente: Bate o chão com o pé, chama a criada Que vem a rir com modo impertinente E ordena-lhe vermelha e descontente Que a faça mui janota e mui delgada. Obedece a soubrette chocarreira, E após três horas de infernal canseira, O espartilho consegue alfim atar. Como estou elegante, oh! que toilette! – Diz ao ver-se ao espelho essa coquette – Que importa que eu não possa respirar?... Foi igualmente aos 18 anos que compôs esta outra sátira ao desejo de sedução, que levava a mulher a recorrer a toda a espécie de fantasias ridículas, que a transformavam em algo de completamente artificial. Encantos e primores que não passavam de uma mascarada: No baile foi rainha proclamada Por vistoso esquadrão de admiradores, Que a vinham, lisonjeiros e impostores, Chamar: – Flor elegante, alma adorada! –

Os dentes ... vêm de casa do dentista O contorno opulento dá na vista, Mas é devido a ... pastas d’algodão! Em A Folha aparecem muitas vezes artigos sobre a moda, de caráter didático ou informativo: é a moda do ano, no feitio ou em tecidos, segundo cada época; é também o padrão que fica melhor à senhora forte, ou à de cintura mais fina... O que está errado, para Alice Moderno, é a demasiada preocupação com a moda, fazendo dela a única razão de viver e obedecendo a todas as suas prescrições, sem discriminação. Daí um certo «diálogo epistolar» que se estabelece com as suas leitoras. Alguém, que se assina por Joaninha, pede a Alice Moderno autorização para publicar, em A Folha (15-VI-1913), um protesto contra os caprichos da moda. É que considera uma crueldade o ter de ir ao cinema ou ao teatro com esses «respeitabilíssimos chapéus, de avantajadas formas e ornatos avantajados», perturbadores da visão do écran ou do palco. Quatro chapéus enormes que, às vezes, nem cabem pela porta, no limitado espaço de um camarote, tendo as pessoas de manter-se a meio metro da parede, para não dobrar as abas ou amarrotar as plumas! Isto não só as leva a incomodarem-se umas às outras, corno as obriga a manterem-se numa posição forçada. Em Lisboa, já ninguém vai assim ao cinema, porque continuar a fazê-lo em Ponta Delgada? pergunta a Joaninha. Se é por uma questão de distinção, porque tiram os homens o chapéu logo que a sala escurece ou o pano sobe e o põem assim que se acendem as luzes ou o pano desce? «Por mais que cogite, não consigo saber o que tem o subir e o descer do pano, com o pôr e o tirar dos chapéus!» E termina: «Só por incidente falei nos cavalheiros; porque, contra o que eu me insurjo, é contra a moda, que se alastra, de irmos nós, as senhoras, passar 4 horas no teatro com os nossos incómodos chapéus à cabeça, entre as quatro paredes de um estreito camarote que, em alguns casos, nem para caixa de um só chapéu serviria».

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Ora, já em 1906 Alice Moderno havia publicado um artigo sobre a moda em matéria de chapéus femininos, reproduzindo alguns parágrafos tirados do diário lisboeta, O Liberal, sobre o mesmo assunto. Sendo de bom-tom assistir-se de chapéu aos espetáculos, o que perturbava a visão dos espetadores da fila de trás, os costureiros de Paris haviam lançado a moda dos «chapéus de teatro», pequenos e simples, a fim de permitir a todos verem o palco: «A moda de Paris, a caprichosa e enorme sociedade onde estão filiadas as damas de todo o mundo, chama a atenção das suas associadas para um novo modelo de chapéus de teatro, cuja simplicidade seja o último conceito da elegância. As damas parisienses que, como se sabe, assistem aos espetáculos com os seus enormes chapéus, com grande prejuízo dos espetadores que assim ficam privados de ver a cena, não vêm com bons olhos o triunfo da simplicidade». (A F, 17-VI-1906). Certo é que os chapéus continuaram a ser enormes e os jornalistas prosseguiram nas suas críticas, enquanto os costureiros tentam conservar os seus lucros por novos processos. Em 1911 surgem em New York os chapéus sem flores nem plumas, mas com motivos variados, pintados em fitas, variando o seu preço de harmonia com a celebridade do pintor. Alice Moderno permite-se então fazer algumas perguntas, no sentido de tornar a moda mais simples, mais económica e menos dominadora: «Ora sem querermos fazer concorrência às Notas de um feminista, nosso distinto colaborador, Sr. Luiz Leitão, pedimos vénia para perguntar: «Não seria mais lógico, mais racional, mais digno mesmo, que as mulheres adotassem um tipo de chapéu higiénico e leve, gracioso na forma, sim e adequado às estações, mas liberto de enfeites apocalípticos, que só servem para as martirizar e expor à irrisão de todas as pessoas sensatas, com a agravante bem ponderável de sobrecarregar o orçamento doméstico com verbas que, capitalizadas, dariam na velhice de um ménage burguês, com os respetivos juros, uma pequenina reforma? «Pense-se bem no quanto é mal-empregado o dinheiro que se sacrifica nas aras da moda e compreender-se-á a necessidade de uma radical reforma neste sentido. «Mas, primeiro do que tudo, é preciso convencer a mulher de que é bem melhor mobilar a cabeça por dentro do que enfeitá-la exteriormente com flores artificiais e pássaros estufados» (A F, 22-I-1911). O dito Luís Leitão, ao citar o

periódico Defensor de Espinho, que considera os vestidos bonitos a primeira elegância da mulher, replica que estará certo, só que «a elegância é que nunca foi, com certeza, a primeira missão da mulher», Sempre moralista e didata, o responsável da rubrica Pelo Bem insurge-se contra o afã com que o homem tenta fazer da mulher um ente superficial, preocupado só em conseguir um bom casamento pela sedução, em vez de atrair o noivo pelo mérito. E declara que a causa de muitos casamentos infelizes está frequentemente na educação errada que se dá à jovem, preparada na fabricação de redes, em vez de ter aprendido antes a construir gaiolas. A sua principal crítica vai para os homens, que preferem que a mulher ocupe o seu tempo a enfeitar-se e adornar-se, em vez de se preocupar com assuntos sérios. São eles, afirma, os principais responsáveis da frivolidade de que frequentemente acusam a mulher. Se não incitassem a mulher a fazer-se boneca, ela seria bem diferente daquilo que é, declara Luís Leitão com muita frequência, nos artigos que A Folha lhe publica. A mulher de então preocupava-se mais em «ornamentar a cabeça por fora, com plumas, do que em guarnecê-la por dentro, com ideias» e é disso que a acusam as feministas militantes, como Alice Moderno, para quem a formosura reside sobretudo no coração, como um odor discreto semelhante ao das violetas: Nesta quadra do ano, as violetas, Espargindo um perfume encantador, Surgem da terra, tímidas, discretas, Revela-as só o aroma, não a cor ... Sempre que o homem fala da mulher como de uma deusa, um anjo ou uma fada, como algo digno de místicas adorações, Alice Moderno insurge-se e considera tais palavras como uma das maiores injúrias que lhe podem ser feitas. Pois a mulher é um ser humano, com virtudes e defeitos, com falhas e capacidades. Não é de incenso que ela precisa, mas que lhe deem a oportunidade de ser útil à sociedade em que vive e responsável dos seus atos; por isso tem mais que fazer do que enfeitar-se exageradamente e pôr em evidência as suas formas.


3. Direito ao voto Os últimos anos do séc. XIX e primeiros do séc. XX são uma época de efervescência feminina em favor dos seus direitos políticos. Foram as mulheres inglesas, primeiro e as francesas. em seguida, que exigiram o reconhecimento do seu direito ao voto. E é interessante notar como grandes homens de então as apoiaram. De entre eles podemos citar, em Portugal, Afonso Costa, António José de Almeida, Magalhães Lima e Teófilo Braga. Nunca se tinha visto as mulheres a votarem? Também nunca se tinha ouvido a palavra longínqua, pelo telefone, ou o interior dos corpos pela radiografia. Também nunca se tinha visto uma mulher a operar descobertas no campo da ciência, como M.me Curie. Se as mulheres pagavam impostos, protestavam as francesas, porque não haviam de escolher aqueles que deviam gerir o país? Em Portugal objeta-se que o sufrágio feminino não estava nos costumes portugueses, como se o costume fosse algo de inato e inamovível. Chama-se então a atenção para o facto de a mulher, atenta aos problemas políticos e sociais, muito poder fazer pela sua solução. Basta lembrar o quanto fez Harriete Beecher Stowe, em favor da extinção da escravatura, ao escrever A Cabana do Pai Tomás. À emancipação dos escravos negros, seguir-se-ia a da mulher branca, pois as reflexões sobre o direito à liberdade aí levariam fatalmente. E assim é que, a partir de 1869, a mulher americana começa a ter o direito de voto: primeiro em quatro estados, a que sucederiam os outros. A mulher tornava-se leitora e, simultaneamente, elegível. O grande receio era o da desmoralização da família. Ora as leis transformam os costumes, mas não podem mudar a natureza. Por isso a mulher, ao aceder a cargos politicas, nada perderia da sua sensibilidade, continuando capaz de ser boa esposa e boa mãe; e talvez melhor ainda, porque mais instruída, mais consciente da sua missão, mais responsável e mais útil à sociedade. Em 1902, na Noruega, as mulheres participam pela primeira vez nas eleições municipais. Estava dado o grande passo para o reconhecimento do sufrágio feminino; o que faltava era que a mulher se desempoeirasse dos prejuízos da rotina e do ridículo dos preconceitos.

A mulher precisava imbuir-se das ideias democráticas e republicanas, tornando-se consciente dos direitos que os partidos conservadores recusavam reconhecer-lhes. Por isso, em 1909, no regulamento dos trabalhos do «Congresso Nacional do Livre Pensamento», foram incluídas algumas teses feministas a ser desenvolvidas. Teófilo Braga, que presidiu à sessão inaugural, sugeriu e fez acatar a ideia de que, como secretário do congresso, fosse convidada uma senhora. A mulher deixava assim de figurar apenas como membro de cozinhas económicas, asilos ou dispensários. Nesta data, já duas escolas republicanas, a Escola Liberal de Setúbal e o Centro Escolar Boto Machado, tinham eleito senhoras como membros das suas direções (M.ª Veleda, A Conquista p. 229). Se, até então, a mulher era chamada a prestar serviços apenas em associações de caridade, agora torna-se necessário que ocupe esses cargos profissionalmente, como médica, como contabilista, como administradora; e não apenas como enfermeira ou professora, a praticar não uma caridadezinha que avilta, mas sim uma solidariedade que ampara e fortalece mutuamente – o altruísmo. Afirmava-se que assim se liberaria das hostes reacionárias, que a queriam agrilhoar ao misticismo, com o fim de a subtrair a toda e qualquer ação emancipadora; que lhe reconheciam o direito de ser rainha, por um simples acaso de hereditariedade, mas não o de ser eleita ou eleitora, como se a sua capacidade moral ou intelectual dependesse do acaso de ter nascido filha mais velha de um rei. Se uma mulher podia ser rainha independentemente do seu valor e da sua virtude, porque se obrigaria a totalidade das mulheres a viverem numa eterna menoridade de interdições e irresponsabilidades? Alice Moderno recebe habitualmente The Women Voter, revista impressa em Melbourne e órgão da Associação Politica das Mulheres Inglesas. Assim segue atentamente o movimento sufragista inglês, conhece e alegra-se com as suas conquistas; e espera que brevemente cesse, pois, o homem não pode continuar a fingir que ignora o prejuízo que vem para o mundo de manter metade da humanidade acorrentada na ignorância e na inutilidade. Referindo-se aos antifeministas, Alice Moderno acusa-os de manterem um comportamento insultuoso para com as suas mães e as suas esposas, uma vez que o ideal supremo do feminismo é o levantamento moral e intelectual da mulher, para que o melhor possa servir a sua pátria.

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A luta da feminista é primeiramente contra aquela mulher educada para agradar ao homem, para arranjar um casamento que lhe dê uma situação estável; e que não tem um fim determinado na sua vida individual. Espírito frívolo, que serve os caprichos do seu «senhor» como uma escrava e que, como todos os escravos, só pensa em extorquir o máximo e em corromper. Aceitou ser «endeusada», com a condição de se conservar na rotina e no servilismo. «Anjo do lar» que, pela mediocridade da sua vida, se transforma muitas vezes em demónio. Disseram-lhe que a ciência e a instrução eram impróprias para seres delicados; e ela deixou-se ficar no sonho e na fantasia, que muitas vezes a conduzem a romantismos libertinos. A feminista chama a mulher à luta pela responsabilidade, à participação na arte de bem dirigir uma nação, a qual pertence igualmente aos dois sexos. É com isso que a mulher deve ocupar o seu espírito e não com intrigas desonestas, onde muitos homens gostavam de a conservar, a fim de, por seu intermédio, atingirem certos fins, de que as relações com as favoritas dos reis são bem um exemplo. A mulher precisa de se libertar de caprichos e preconceitos rotineiros que lhe deformam a sua força moral; e o dever do marido é ajudá-la a desprender-se desses laços do passado, que a inferiorizam. A alma feminina, preconizada pela feminista, não é negativa nem demolidora, mas transformadora do mundo; uma alma que se eleva construindo, irredutível e forte, capaz de fugir às trevas e procurar a luz. O homem português, dizia Ana de Castro Osório, tinha nessa altura um terror instintivo da mulher culta e intelectualmente independente. Até mesmo os espíritos mais cultos tinham muitas vezes receio das bruscas mutações dos costumes. E temia-se que a mulher, ao entrar na política, trouxesse como consequência a desunião da família e a dissolução do lar. No entanto nos Açores, cedo se começa a aceitar como possível a participação da mulher na política. No Diário de Anúncios, de 12 a 17-VIII-1891, sob o título, «Capacidade política da mulher», alguém tenta fazer compreender que a mulher não seria completamente absorvida pela política, podendo continuar a dedicar-se às atividades que, segundo a tradição, lhe eram próprias. A mulher também faz parte da Pátria; se lhe negam o direito ao voto com o pretexto de que não está preparada, então ter-se-ia de abolir o sufrágio

universal, sendo o voto um privilégio de sábios, de uma pequena classe aristocrática, o que é incompatível com as tendências democráticas das sociedades modernas. O articulista sugere que se faça a experiência e o futuro dirá se a mulher é ou não capaz de exercer o direito de voto; e termina afirmando que «recusar, porém, a experiência, em nome de imaginários receios, é uma tirania, contra a qual protestam os mais santos direitos e as mais legítimas aspirações». Estava-se em 1891 e devia ser tão arriscado tomar tal posição que o autor se assina sob o pseudónimo de Ignotus. Seria Alice Moderno? Não nos parece impossível, dado que, por essa altura, já tinha entrado no jornalismo. Entretanto iam aparecendo notícias sobre o que se passava nos outros países, relativamente a direitos da mulher: emancipação, sufrágio, trabalho fora do lar ... Em 1906, com a morte do escritor norueguês Henrik Ibsen, os jornais falam da sua obra; e falam sobretudo do drama Casa de Boneca, um dos brados mais eloquentes que então se soltou a favor da emancipação feminina e contra a educação tradicional, que, adormecendo-lhe o espírito, a transforma numa sedutora boneca ... Em 11 de março de 1906, A Folha refere os resultados de um inquérito, aberto pela revista de Filadélfia Women Life, sobre o sistema de educação feminina a adotar. Obteve uma grande maioria a opinião de que «à mulher deve ser dada uma educação perfeitamente idêntica à que recebe o homem». Alice Moderno acrescenta que é este o sistema adotado na América desde há já muitos anos; e é convicção geral que a tal é devida a superioridade do povo americano. Em seguida reproduz as palavras que o bispo de Peória, Mr. Galding, grande defensor da emancipação feminina, pronunciou sobre o assunto. Segundo este dignatário da Igreja, «se há alguma coisa de incompleto na vida do homem, se a raça humana se contenta ainda com um ideal medíocre, precisamos de procurar a causa principal destes factos na grave injustiça de que a mulher é vítima. Durante muito tempo considerou-se a mulher como um ser inferior, e, para dar a esta opinião a sanção dos factos, quis-se que ela ficasse ignorante, entravou-se o seu desenvolvimento, trataram-na como um meio em lugar de a tratar como um fim». E porque não há um mundo para o homem e outro para a mulher, a melhor educação para esta é «a que fizer dela, em maior grau, um ser humano completo, ilustrado, generoso e forte», convindo-lhe como trabalho, todo


aquele «que lhe garanta a independência e a personalidade»; e devendo ser-lhe proibido apenas «o que possa degradá-la ou envelhecê-la». Os seus direitos consistem em poder praticar “todos os atos belos, bons e úteis, que derivam das suas aptidões e não se arrisquem a prejudicar a sua dignidade ou a diminuir o seu valor como criatura humana”. Quase a terminar, afirma que «no dia em que a mulher possa desenvolver plenamente os dons que recebeu, brilhará sobre a terra um fogo mais puro e o amor da pátria tornarse-á uma nobre paixão, pois a mulher “não tem deveres somente para com o seu lar, tem deveres, também, para com a sociedade inteira, religiosa e civil». E termina com estas palavras: «A grande questão não é ser-se homem ou ser-se mulher; é ter sabedoria, virtude e amor”. Sendo a sociedade açoriana profundamente imbuída de um forte sentimento de religiosidade, podemos imaginar a impressão causada por tais palavras, proferidas por um bispo. Todo o mundo está em ebulição; e até a vizinha Espanha reacionária faz cedências ao progresso. Em 12 de setembro de 1910, graças a uma decisão do Ministro da Instrução, Sr. Borell, é proclamada a igualdade intelectual feminina; isto é, foram reconhecidos os diplomas femininos, podendo então a mulher começar a ocupar, por concurso, os mesmos cargos que o homem, no respeitante ao ministério da instrução pública.

3.1. A república e o voto feminino A implantação da república tinha sido para a mulher portuguesa como um sol de novas esperanças. O programa do Partido Republicano, enquanto oposição, incluía o sufrágio universal. No entanto, em março de 1911, falavase de eleições para breve, mas não constava que o voto fosse conferido à mulher. A imprensa discutia o assunto e a justificação dada pelos opositores ao voto feminino em Portugal, é que «a mulher não está preparada para exercer no presente momento, um direito de tão grande magnitude e de tão suprema responsabilidade». Alice Moderno concorda que, realmente, muitas mulheres não estão preparadas; mas o mesmo se pode dizer de muitos homens que, por tal facto, não são esbulhados desse direito. Apóstolo da alfabetização e da responsabilidade

individual, Alice Moderno escreve como conclusão ao seu artigo: «desejaríamos que, de futuro, as urnas só servissem para afirmar as opiniões de um povo consciente e livre e deixassem as eleições de serem sinónimo de carneiradas; que só pudessem votar, sem distinção de sexo, os indivíduos que tivessem exame de instrução primária elementar. «Negar o voto à mulher pela simples razão de o ser, é uma aberração que, mais dia, menos dia, tem de desaparecer e dá perfeitamente a síntese do atraso intelectual de quem o confessa. «Se a mulher paga contribuições talqualmente como o homem, se está sujeita às mesmas leis e penalidades do que este, porque não há de gozar dos mesmos direitos cívicos? «Continuar a cercear-lhos” seria, além de um absurdo, uma iniquidade que o atual regime não pode nem deve praticar» (A F., 19-III-1911). No número seguinte (2-IV-1911), Alice Moderno volta ao assunto, para contestar um artigo de A República em que, contradizendo as afirmações do artigo de A Folha, afirma não terem havido promessas à mulher, por parte do Partido Republicano na oposição e que, se a esta fosse concedido o direito de voto, as divergências políticas entre marido e mulher levariam a um grande número de divórcios; e cita Louis Léger, cujo parecer é de que só deve votar a mulher com um mínimo de seis filhos. Alice Moderno responde-lhe reproduzindo um artigo de Ana de Castro Osório, em que são referidas as promessas de António José de Almeida, proclamadas aquando da primeira reunião da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, discurso que foi publicado na revista A mulher e a criança, órgão daquela agremiação. Todas essas promessas haviam sido confirmadas por Bernardino Machado e Magalhães Lima. Nas considerações que faz, sobre os pretextos justificativos da não atribuição do direito de voto à mulher, apresentados no artigo de A República, Alice Moderno não aceita que o exercício deste direito venha a ser causa de divórcio. Essas causas já existem, são muitas e independentes da política. Tanto que, a fazer fé na imprensa da capital, há já em Lisboa uma média de 14 divórcios por dia. Os inconvenientes que há, em conferir o voto à mulher, são os mesmos que em conferi-lo «à maior parte dos homens, que votam inconscientemente, por imposição, por timidez, por subserviência ou condescendência». E Alice Moderno cita o nome de grandes proprietárias micaelenses, como a

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Condessa Jácome Correia, Ermelinda Gago da Câmara, Isabel Maria Raposo de Andrade, Maria da Conceição de Fonte Bela, senhoras que não podem votar, mas que têm centenas de homens ao seu serviço, analfabetos ou quase, que votarão segundo a orientação destas, o que é um absurdo. Se há medo da influência reacionária junto da mulher, através do confessionário, esta influência continuará a ser exercida do mesmo modo, indiretamente, junto dos homens que a servem e lhe obedecem. Quanto ao exigir-se à mulher que tenha filhos para poder votar, Alice Moderno lembra que muitos dos grandes homens não deixaram descendência; e cita, entre outros, Alexandre Herculano, Fialho de Almeida, Antero de Quental, Fontes Pereira de Melo, Hintze Ribeiro. Seria justo que lhes tivessem cerceado os seus direitos políticos pelo facto de não terem filhos? Alice Moderno acha que o parecer do Louis Léger, citado por A República, é “um paradoxo de mau gosto” e, para mostrar que há em França grandes figuras cuja opinião é totalmente oposta, apresenta uma longa série de citações favoráveis à participação da mulher na política, muitas das quais atribuídas a membros da Academia Francesa: Marcel Prévost, Henri Poincaré, Emile Faguet, Urbain Gohier, Henri Monod, etc., etc. Alice Moderno também não aceita que se atribua à mulher uma superioridade que não tem: «Não há superioridade de sexo. Há superioridade de aptidões e esta superioridade manifesta-se independentemente do sexo. «Nem todas as mulheres devem votar, mas nem todos os homens deveriam votar. E desde o momento em que se não exigem habilitações literárias ao homem, não devem exigir-se tão pouco à mulher. Ou então teremos de confessar e reconhecer que é preciso restringir a significação de universal, aplicada a sufrágio ... » (A F, 2-IV-1911). É precisamente em fevereiro e março deste ano que Alice Moderno publica em A Folha um longo trabalho de Antero, intitulado «A indiferença em política», que poderá ter sido um grande incentivo no despertar da consciência feminina açoriana para os problemas que então agitavam o país. Notemos todavia que o governo republicano não esquecia completamente as reivindicações femininas. Sob o título Feminismo, A Folha, de 26-III-1911, publica a notícia de uma saudação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em Lisboa, ao Sr. José Relvas, ministro das Finanças, por este

lhes ter permitido ocupar lugares do Estado. Ao manifestaremlhe a sua gratidão, declaram que tal iniciativa lhes dá «bem fundadas esperanças» de que, dentro da República, a mulher portuguesa não continuará a ser o pária que foi «durante a monarquia, sem direitos nem garantias de existência laboriosamente autónoma». A saudação é assinada por várias mulheres, uma das quais Ana de Castro Osório, sendo a lista encabeçada pela Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher que votou em Portugal. Quase um ano depois, novamente a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas se dirige ao governo para apresentar agradecimentos. Desta vez a saudação dirige-se ao Dr. Alexandre Braga, por ter apresentado no parlamento um projeto de lei sobre a emancipação civil e económica da mulher, a qual até então «tinha vivido numa situação de escrava, igualada aos irresponsáveis nos direitos, comparada aos idiotas, submetida a uma tutela deprimente». Saúdam igualmente Afonso Costa, «aquele a quem as mulheres portuguesas devem os primeiros fulgores da justiça, na aurora da sua libertação», pois (não se compreendia que mães de homens livres continuassem sendo escravas» (Rev. Pedag., 22-II-1912). Como entretanto os chefes políticos não tomam qualquer decisão, a Dr.ª Carolina Beatriz, médica viúva, apresenta o seu requerimento para votar nas próximas eleições para as Constituintes. O recurso foi julgado no tribunal da Boa Hora, tendo cabido ao juiz da 1ª vara, Dr. João Batista de Castro, ocupar-se do assunto. Este deu despacho favorável, acompanhado de muitos considerandos justificativos da sua deliberação e invocando vários artigos, provando assim que, perante a lei, a requerente podia votar. Também Ana de Castro Osório fez idêntico requerimento, o qual não pôde ser apreciado pelo mesmo juiz, por ser pai da requerente e que foi indeferido. Revoltada, Alice Moderno supõe que o juiz que o indeferiu talvez não tivesse capacidade para escrever nenhum dos trabalhos da autoria daquela escritora (A F, 14-V-1911). A autorização de voto concedida à Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo suscitou as reações mais contraditórias. Invoca-se o trabalho sobre a competência da mulher, «Le Gouvernement dans la démocratie», de Emile Laveleye; louva-se Stuart Mill, segundo o qual «conceder às mulheres direitos políticos era conduzi-las a tratar dos interesses da nação e arrancá-las aos egoísmos da família e às frivolidades da ociosidade»;


ataca-se Herbert Spencer, contra cujos preconceitos, todavia, os direitos políticos das mulheres se encontram felizmente radicados em todas as consciências independentes. Sob o título “A mulher e a política”, insere A Mocidade, revista quinzenal, propriedade da Academia de Estudos Livres, as seguintes palavras: «Muitos se assustam porque a mulher portuguesa se embrenha na charneca árida da política. A nós não nos traz pavor o facto. Achamos preferível exprimir ideias a tecer enredos». E Alice Moderno acrescenta: «Sem contar que a mulher, logo que concentre o espírito em coisas graves, deixará de se preocupar com muitas frioleiras que bastas vezes, sob a forma de contas da modista, toldam a limpidez do céu conjugal. (A F, julho de 1911). No continente, outros jornais, ainda, militam a favor do voto feminino; de que A Vanguarda é um dos melhores exemplos. Nos Açores, A Folha segue-lhe as pegadas, transcrevendo e comentando favoravelmente os seus artigos. Em todos os países onde a mulher foi autorizada a frequentar a universidade não deu ela já provas evidentes das suas capacidades? Porque não hão de, pois, as mulheres colaborar na elaboração das leis por que se hão de reger? Porque hão de continuar a ser equiparadas aos menores, aos interditos e aos condenados? Esta situação já acabou em muitos países da Europa; no Brasil e na América as mulheres estiveram sempre na vanguarda da campanha contra a escravatura; e neste último país já têm direito ao voto. Porque se há de, pois, manter esta situação de exclusão em Portugal? Entretanto, durante o ano 1911, Alice Moderno tem o prazer de publicar no seu jornal, repetidas vezes, o seguinte anúncio: «BILHETES POSTAIS. Com o retrato da Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo, 1ª mulher que votou em Portugal. À VENDA nesta redação». Mas é também neste mesmo ano que Alice Moderno tem a dor de comunicar o falecimento desta ilustre cidadã, apenas com 33 anos idade. Carolina Beatriz Ângelo, primeira mulher que votou em Portugal, fundadora da Liga Sufragista das Mulheres Portuguesas, Venerável de uma Loja Maçónica e Presidente da Liga Feminista, baixava à terra no dia em que Portugal festejava o primeiro aniversário da implantação da república. Em 23 de julho de 1911, num artigo intitulado Duas Vitórias do Feminismo, Alice Moderno conta como decorreu a votação da Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo, no bairro de Arroios, da cidade de Lisboa, onde residia. A ilustre médica ia acompanhada por

algumas senhoras suas amigas e correligionárias, entre as quais Ana de Castro Osório. O presidente da mesa consultou a assembleia sobre se devia ou não aceitar uma lista feminina; o que não tinha razão de ser, uma vez que o requerimento da votante havia sido deferido por um magistrado da Nação. Houve ainda os protestos do Sr. Joaquim Beja, perante os quais a Dr.ª Carolina Ângelo teve de invocar o artigo 54º da lei eleitoral, que preceitua só não poderem votar os indivíduos loucos ou embriagados. Após ter lançado a lista na urna, o presidente proferiu um discurso sobre a legalidade de tal ato e declarou estar de acordo em que todas as mulheres intelectuais e chefes de família tinham o direito de votar. Alice Moderno cita, a este respeito, algumas considerações de O Independente, jornal da responsabilidade de Machado dos Santos, segundo o qual a Dr.ª Carolina Ângelo poderá vir a ser candidata à presidência da república. Alice Moderno supõe que tal alvitre poderá fazer sorrir muita gente; quanto a ela, parece-lhe perfeitamente aceitável, pois já houve em Portugal, durante a monarquia, duas mulheres que reinaram. Com a diferença de que essas subiram ao poder pela cegueira do destino, o que não sucederá com um regime republicano. Esta é a primeira vitória do feminismo, referida neste artigo; a segunda vitória diz respeito à nomeação de Carolina Michaelis de Vasconcelos, para professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Todas as vezes que uma mulher sobe na vida, pelo esforço, Alice Moderno regozija-se com o seu triunfo; e comunica-o às outras mulheres, para que lhes sirva de estímulo e encorajamento. Pouco tempo depois, no primeiro número de A Folha, de 1912, Alice Moderno dá início à publicação, em folhetim, de um trabalho de Ana de Castro Osório, intitulado “As mulheres e a política”, em que esta escritora, sem desânimo, continua a defender «o direito e até o dever, que a mulher tem de se ingerir na política geral, como na do seu país, quando o seu temperamento, o seu gosto, o seu caráter, como até as circunstâncias de certos momentos históricos, a levam para esse campo». Com a agudeza de espírito que lhe é própria, Ana de Castro Osório faz uma exposição histórica sobre a presença da mulher portuguesa na política, utilizada pelo marido hipocritamente, às escondidas, quando teria sido mais honesto ter tido a sua colaboração por uma forma mais franca e leal.

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No mês seguinte, é publicado em A Folha um longo artigo assinado por Ribeiro de Carvalho e intitulado Emancipemos a mulher. Deste modo, o dever e a necessidade de libertar a mulher da escravidão secular são afirmados por uma pena masculina, o que lhe confere peso e credibilidade. Não se trata de proteger a mulher, proclama Ribeiro de Carvalho; a palavra «proteção» envolve a ideia de esmola, o que é sempre uma humilhação. A mulher precisa de se emancipar pelo emprego das suas faculdades de inteligência: «Só assim a mulher deixará de ser a eterna escrava, a eterna explorada». Só assim deixará de precisar vender-se. Condorcet afirmava que, quanto mais interrogamos o bom senso e os princípios republicanos, menos encontramos um motivo sério para afastar as mulheres da política. É que, se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, também tem o direito de subir à tribuna. É também neste ano (7-11-1912) que Alice Moderno publica um extrato do romance inédito A Esfinge, de Mariana Belmira de Andrade, poetisa jorgense e sua grande amiga. Esse trecho, intitulado “Republicanismo feminil”, põe em cena uma jovem republicana, de caráter revolucionário no que é apoiada pelo avô. Já quase a fechar o ano de 1912 e pela pena de Maria Veleda, os leitores de A Folha, tomam conhecimento da posição de Theodore Roosevelt, relativamente ao sufrágio feminino, através de uma carta que o ex-presidente americano escreveu a Miss Jane Addams, delegada à Convenção Nacional: «Sem restrições nem ambiguidades, eu sou pelo sufrágio feminino, o Partido Progressista é pelo sufrágio feminino e creio que, dentro de uma meia dúzia de anos, não teremos absolutamente uma opinião contrária nos Estados Unidos». Seguindo o pensamento do Padre António Vieira, segundo o qual «as coisas não são grandes se quem diz não é grande», Maria Veleda chama a atenção para o alcance das palavras de uma tão importante personalidade política como o é Theodore Roosevelt e espera que terão um peso enorme na opinião pública. Em Ponta Delgada, a admiração por Theodore Roosevelt era tão grande que, poucos dias após a implantação da república e na primeira reunião da Comissão Republicana Municipal, presidida por Francisco Machado de Faria e Maia, foi determinado que o Alto da Mãe de Deus passasse a chamar-se Alto de Theodore Roosevelt. Assim se procurava reparar a indiferença com que havia sido recebido o grande presidente americano, (exceção feita aos estudantes)

aquando da sua passagem por S. Miguel (Rev. Pedag., 20-X1910). Alice Moderno usa, pois, de uma certa tática literária, para levar as suas leitoras a refletirem sobre a situação da mulher no mundo, e, igualmente sobre os seus deveres políticos. Como escreve Antero no seu artigo “A Indiferença em Politica”, que Alice Moderno publicou na Secção Anteriana do seu jornal, «quando se fala, já não do fim individual de cada homem, mas sim do fim duma nação inteira, toma-se mais palpável esta necessidade de velar sempre, de ter sempre o olho e a mão no gládio contra tudo o que se oponha a essa livre busca dos meios de realizar a sua missão, tanto mais quanto é somente na sociedade que cada indivíduo pode realizar as justas tendências da sua natureza». A publicação deste texto, em fevereiro de 1911, no momento em que Alice Moderno mais se preocupava com a condição feminina, é revelador do quanto a jornalista nele deve ter sentido de atualidade, na medida em que podia servir de incentivo à participação da mulher na vida da nação. No entanto a mulher teria de esperar ainda alguns anos para que lhe fosse reconhecido o direito ao voto. E no último número de A Folha (15-IV-1917), Alice Moderno pergunta ainda «para quando o voto feminino»? 4. Programa Feminista De que consta o programa dos princípios do nosso século? Em primeiro lugar, lutar pelo reconhecimento dos direitos políticos da mulher, de forma a poder ser eleitora e elegível. Em segundo lugar, promover uma série de reformas sociais, relativas ao direito à instrução e ao trabalho, à indiscriminação de salários masculinos e femininos em trabalhos idênticos, proteção à infância, pensões na velhice, luta contra a criminalidade, o vício e o pauperismo. Alice Moderno admira a coragem e a fé que põem na sua luta as feministas inglesas; mas não apoia a violência, como modo de fazer reivindicações, até porque as mais lesadas são elas próprias. Alice Moderno, corno as feministas portuguesas, luta com a pena, procurando fazer refletir e compreender. Também relativamente ao divórcio Alice Moderno tem uma posição moderada. Acha-o legítimo e necessário, deseja a sua permissão em Portugal, mas espera que os laços familiares sejam cada vez mais fortes. É o que concluímos da leitura do seguinte artigo (A F., 30-X-1910):


«Informam telegraficamente que em dezembro próximo será decretada a lei do divórcio. Assim devia ser e semelhante medida está perfeitamente de acordo com a perfeita orientação do governo provisório da República Portuguesa. O divórcio é permitido em todos os países em evidência pela sua supremacia intelectual, e, muito longe de contribuir para a dissolução da família, é, pelo contrário, um incentivo para a perfeita constituição da mesma. «Porque é preciso frisar bem a teoria exposta na espirituosa peça Divorciemo-nos, que não há muitos meses aplaudimos no Teatro Micaelense. «Não se divorcia sem motivo, não se divorcia por capricho, simplesmente porque um dos cônjuges deixou de agradar ao outro. É necessário uma causa bem fundamentada, em que se prove a absoluta incompatibilidade dos dois seres que impensadamente se uniram sem se haverem estudado e expiam amargamente as consequências da sua leviandade certamente culposa mas não imperdoável. «Todo e qualquer argumento em prol da indissolubilidade de casamento desaparece por absurdo em face de um motivo grave e não representa senão a absoluta negação dos direitos da parte contratante, que lealmente cumpriu com os deveres de que assumira o compromisso solene e se vê prejudica nos seus brios, nos seus haveres ou na sua tranquilidade, pelo sócio remisso ao cumprimento dos seus. «As leis providenciam de modo a resolver, tanto quanto possível, os direitos dos filhos, sendo, aliás, sabido que raramente divorciam os casados que têm a uni-los o sagrado amor da prole. «De resto, estamos certos de que em Portugal, onde existe radicado, com profundíssimas raízes, o amor da família, poucos serão a utilizar-se das vantagens do divórcio e os que o fizerem já se encontram de há muito moralmente divorciados, sendo consequentemente o ato oficial o complemento lógico da desunião do lar. «E, quando levantados os níveis de educação e da instrução, quando na posse da absoluta compreensão dos seus deveres morais e civis, quando enfim a luz tiver iluminado todas as camadas sociais, poder-se-á realizar o ideal sonhado, na consubstanciação de integridade do lar, ao ver que em Portugal, país cujas leis abrangem a do divórcio, não há ninguém que divorcie.» O seu feminismo era no género do de Ana de Castro Osório, assim apreciado por Francisco Machado de Faria e Maia, na Revista Pedagógica de 23-VI-1910:

«Feminista como Ana de Castro Osório, não é ter a pretensão ridícula daqueles que adotam este nome como um reclame espaventoso a ganhar a notoriedade pública de intelectuais perante o pasmo invejoso ou irascível do burguês rotineiro e bronco; mas é trabalhar conscienciosamente por qualquer forma (mesmo dentro do lar) para elevar e dignificar a mulher pelo hábito do trabalho e pela cultura da inteligência, à categoria de colaboradora consciente e indispensável do homem no progresso social, em todos os seus ramos, quer de ordem material, quer afetiva, quer intelectual. Não é bastante, como diz Ana de Castro Osório, para ser feminista dizê-lo a rir entre dois pastéis e uma chávena de chá, mas caminhar serenamente para a elevação do sexo feminino pelo trabalho e auxílio moral dado às mulheres que tantas vezes se veem impelidas para o vício por falta de emprego onde honestamente possam exercer as suas faculdades de inteligência e de trabalho.» Uma das finalidades da luta pelo direito à instrução e ao trabalho, é a de combater a prostituição, aceite muitas vezes como meio de ganhar a vida. Nessa época, o tráfico de brancas já constituía uma calamidade, que a feminista procurava prevenir e combater. Por isso se sugere e se apoia a nomeação de mulheres para o cargo de polícia. Ocupando esse lugar, mais facilmente poderão vigiar o comportamento das jovens e defendê-las desse perigo. Além de que, podendo as mulheres, no exercício das suas funções, fazer sindicâncias às prisões, casas de reforma e hospícios, um grande passo será dado para a moralização dos costumes. É o que se estava a verificar nas cidades da Califórnia, graças à ação das mulheres-polícia. Também na Austrália, um dos primeiros países a conceder à mulher a autorização do votar, esta está a realizar um importante trabalho social: por sua iniciativa não se vendem mais livros pornográficos ou bebidas alcoólicas às crianças e proibiram-se os tribunais infantis. Os chefes dos partidos políticos reconhecem que, do voto feminino, só vieram vantagens para o País, pois há muitos problemas graves, para cuja solução se precisa tanto do poder cerebral como da doçura do coração; e a mulher, ao ocupar-se de tais problemas, não se torna menos afetuosa ou digna de respeito (Rev. Pedag., 21-9-1911). É com vista ao cumprimento do programa proposto, que a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas promove ao Senado, em 1912, uma representação, a fim de que

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seja promulgada uma lei proibitiva da venda de tabaco a menores. Alice Moderno louva-lhes a iniciativa, que «não só contribuirá para o robustecimento da raça, mas também para a moralidade infantil», visto que muitos pequenos latrocínios praticados por crianças têm como causa principal o desejo de entrar no vício; e a jornalista convida todos os seus leitores que queiram apoiar tão simpática iniciativa, a virem assinar as listas que se encontram na redação de A Folha. Antero de Quental poderá ser considerado como um militante feminista, na medida em que começou a vislumbrar os problemas da condição feminina, segundo uma ótica diferente, como revelou ao escrever sobre “A Educação das Mulheres”, trabalho que Alice Moderno: publicou na Secção Anteriana: «Já se não peleja pela formosura da mulher, mas

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Alice Moderno.

sim pela inocência da sua natureza pura e sem mácula; mas sim por seus direitos; mas sim pelo lugar de honra, que de jus lhe compete no banquete social. «Aos atrevimentos céticos de Byron, às impurezas insultantes de Voltaire, ao cinismo nauseabundo do século de Luís XV, responde a nossa era com a filosofia reverente d’Aimé Martin, com a poesia consoladora de Lamartine, com todas as almas elevadas, que sabem sentir e crer nas virtudes, dedicação e amor. «A era é melhor: o meio de discutir e convencer – mais racional e próprio de homens. «A vitória d’outrora estribava-se no terror ou na admiração, a de hoje cala no coração e na inteligência, estriba-se na razão e na verdade» (A F, 15-I-1911).


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MINHA APRESENTAÇÃO Filomena Pinheiro*

Caracterizando-me como pintora: faço uma seleção intimista, sobre o tema “Mulher”, centralizo-o em todas as minhas obras. “Mulher” é personagem expectante, mística, solene, silenciosa, mágica, transbordante de interioridade… Transmite espiritualidade, alude ao inconsciente onde tudo se dissolve e regenera. Esta “Mulher” faz-me penetrar em mim própria, reencontrando fantasmas e ilusões, repensando a essência do meu ego… Através dela questiono o meu “ser”, a dimensionalidade da existência e da morte, seguindo os “seus” itinerários e reconstituindo os “seus” imaginários… A expressividade não tem fronteiras, não é algo que podemos plasmar num só quadro, por isso se converte numa busca contínua e numa contínua descoberta, que evolui, progressivamente, até uma visão cada vez mais perto da alma… Quanto mais nos aproximamos dessa essência mais descobrimos que não existem limites e que o processo criativo pode ser uma experiência maravilhosa e inesgotável.

Acompanhada apenas pela música, desenho minuciosos e repetidos gestos, que construindo peças densas, carregadas de significados latentes, são uma celebração do amor ou um protesto silencioso!...

“O melhor da pintura não se vê, contempla-se!” Termino citando: Auguste Rodin “A arte é a contemplação, é o prazer do espírito que penetra a natureza e descobre que ela também tem uma alma. É a missão mais sublime do homem pois é o exercício do pensamento que busca compreender o universo e fazer com que os outros o compreendam…”

* Foi Professora de Educação Física e Empresária. Está reformada. Dedica-se com entusiamo à pintura.


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Emoção - Óleo sobre tela 100X100X4


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Ilusão - Óleo sobre tela 100X100X4


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Partilha - Ă“leo sobre tela 100X100X4


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Panis Populi - Ă“leo sobre tela 100X100X4


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VIAGEM Manuela Correia*

Embarco num barco de bambu sem saber muito bem se quero ir Aos ombros apenas um saco de memórias e um endereço na mão a palpitar As gaivotas baloiçam no convés uma onda oscila sorrateira O porto está amplamente vazio como vazio o meu instinto nesta hora Não há um lenço branco a acenar-me nem uma só palavra escrita na areia E uma sombra que me adivinha a incerteza me diz ter já sofrido do mesmo mal Da âncora um grito sem regresso e o vento que acordou faz transviar o barco já de nada e de soluços As nuvens não são mais de algodão o céu é uma hipérbole indecifrável nos meus olhos névoa bruma lágrima no meu corpo angústia suor grito e eu entre a água e a areia em letargia

Muito ao longe um eco uma sirene fardas caras lâmpadas vagas Uma mão a deslizar na minha mão e uma voz em surdina “está a acordar”.


MEDIDAS DO TEMPO Jorge Augusto Pais de Amaral*

Todas as pessoas têm noção da passagem do tempo, mas dificilmente o saberão definir. Somos capazes de reconhecer e ordenar a ocorrência dos eventos através dos sentidos. Porém, da mesma maneira que já presenciámos, em algum momento, uma ilusão ótica, também já tivemos a sensação de que, em certos dias, determinados eventos transcorrem de uma forma muito rápida, parecendo-nos que os mesmos eventos, em outra ocasião, se desenvolvem de forma mais lenta. O tempo tem interferência na vida das pessoas. Se as estruturas do tempo fazem distinguir entre jovens e velhos, é natural que, desde épocas muito recuadas, o homem tenha procurado medir o tempo. O primeiro cronómetro foi inventado por volta do ano 3.500 a.C., localizando a sombra do sol. O primeiro relógio foi inventado em 1510. Alguns anos depois, Galileu notou que os pêndulos tinham um comportamento regular e, em 1665, foi construído o primeiro relógio de pêndulo. Desde a clepsidra ou a ampulheta até aos nossos dias os progressos neste campo são enormíssimos. Mas a hora difere de lugar para lugar, em conformidade com o fuso horário. Inicialmente cada País tinha a sua hora, que *Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Jubilado.

era a do seu meridiano principal. A Inglaterra tinha a hora do meridiano que passava por Greenwich, enquanto a França tinha a hora do meridiano que passava por Paris. Como a diferença de longitudes entre os meridianos escolhidos não eram horas e minutos exatos, as mudanças de horas de um País para outro implicavam cálculos muito incómodos. Para os evitar adotou-se o convénio internacional dos fusos horários. Cada fuso compreende 15º, o que equivale a uma hora de diferença. Convencionou-se, assim, um ponto fixo onde começasse o primeiro minuto das 24 horas que a Terra demora a rodar sobre si mesma. Partindo do fuso zero (que corresponde ao meridiano de Greenwich) para Leste aumentase uma hora (por cada fuso) até 12 horas. Para Oeste do fuso zero diminui uma hora até 12 também. Antes do estabelecimento dos fusos horários, era fácil imaginar o que aconteceria a um qualquer viajante. Se ele se deslocasse de Leste para Oeste, iria perdendo uma hora em cada 15º de longitude que percorresse. Assim, se o viajante partisse de Londres, quando chegasse a Nova Iorque, a cerca de 75º para Oeste, teria recuado 5 horas. Se esse viajante continuasse a avançar para Oeste, acabaria por recuar 24 horas ao percorrer 360º. Mas, após 360º, estaria de regresso ao ponto de partida. Encontrar-se-ia com um dia de diferença em relação ao resto dos seus compatriotas. Foi exatamente o que aconteceu à expedição de Fernão de Magalhães, como nos conta Umberto Eco pelas palavras arcaicas do padre Gaspar, personagem de A Ilha do Dia Antes:

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“Tu não sabes que cousa aos marinheiros de Magalhães aconteceu quando hão acabado a sua volta ao mundo, como conta Pedro Mártir? Que tornaram e pensavam que fosse um dia antes e era ao invés um dia depois, e eles criam que Deus havia punido eles roubando-lhes um dia, porque não haviam o jejum de sexta-feira observado. Afinal, era muito natural: haviam para poente viajado”. Sendo atualmente mensurado por meio de relógios de extrema precisão, como é possível ouvirmos dizer frases como esta: “o tempo corre” ou “esta hora demora muito a passar”? Neste caso, estamos a referir-nos ao tempo subjetivo. Como escreveu William Shakespeare, o tempo é muito lento para os que esperam, muito rápido para os que têm medo, muito longo para os que lamentam, muito curto para os que festejam. Mas, para os que amam, o tempo é eternidade. A “velocidade” do tempo pode parecer aferir-se em função das mais variadas circunstâncias: Para entender o valor de um ano, pergunta a um estudante que repetiu o curso. Para entender o valor de um mês, pergunta a uma mãe que olha para um bebé prematuro. Para entender o valor de uma semana, pergunta ao editor de um semanário.

Para entender o valor de uma hora, pergunta aos amantes que esperam por se encontrar. Para entender o valor de um minuto, pergunta ao viajante que perdeu o comboio. Para entender o valor de um segundo, pergunta a quem esteve na eminência de ter um acidente. Para entender o valor de uma milésima de segundo, pergunta ao desportista que ganhou uma medalha de prata nas olimpíadas. A propósito de tempo, escreveu Fernando Pessoa no Livro do Desassossego: “Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada: neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro… Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem ao mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada”. Muito haveria para dizer acerca do tempo, mas por aqui nos ficamos por escassez de espaço e de tempo.


APRESENTAÇÃO DE UM CERTO PORTO** de Helder Pacheco Alfredo Barbosa*

Um Certo Porto é o 19.º livro dos 45 que foram publicados. Tudo começou com Porto (Novo Guia de Portugal), da Editorial Presença, editado em 1984 e que teve mais duas edições, em 1988 e 1990. Foi em 1991 que Helder Pacheco passou a ser publicado pelas Edições Afrontamento, com Nós, Portugueses. Deram-se bem, pelos vistos, e aqui estão eles, no 12.º ano do Terceiro Milénio numa relação intimista que promete continuar. Helder Pacheco é homem de relações duradoiras, no casamento, no trabalho e na amizade. Pelo menos a História do Porto que se fizer daqui a largas dezenas de anos evidenciará Helder Pacheco como historiador do Porto, não por ter nascido no Burgo, não por ser um tripeiro * Jornalista. Acessor da Universidade Fernando Pessoa. Doutorando na área da comunicação. **Apresentação feita na Fundação Eng.º António de Almeida, Porto, em 19.11.2012.

até às entranhas, mas pelo conhecimento que soube transmitir sobre a cidade, os seus cantos e recantos, os seus odores, as suas pessoas e os seus linguajares, sentimentos e saberes. A História do Porto sublinhará que Helder Pacheco é um narrador com sensibilidade rara e uma autenticidade reveladora de carácter vincado, de amor, simpatias e paixões, outrora tangendo o fundamentalismo. Helder Pacheco é um contador de histórias meticuloso, descritivo, na linha dos escritores que nos põem a ver os lugares e as gentes, mais o que as corporiza e envolve. Sente-se, assim, ao embrenharmo-nos nos lugares e nas personagens que Helder Pacheco nos apresenta ou reapresenta, o perfume das magnólias ou das tílias; ou vemos as costureirinhas e até podemos imaginar, entre a timidez e a alegria, a rainha delas, a costureirinha da Sé. Arthur Schlesinger (1917-2007), historiador e escritor norte-americano, autor da Teoria Liberal Americana, que se notabilizou, também, pelo que escreveu sobre Truman, Nixon e, principalmente, Kennedy, de quem foi amigo e colaborador confidente, deixou em páginas impressas um pensamento que pode consubstanciar, simultaneamente, esta magnífica obra de Helder Pacheco e a Cidade Mágica à qual tem dedicado grande parte da sua vida. Disse Schlesinger: “Ignorância do

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presente, ignorância do futuro – estas são desculpáveis. Mas ignorância de quanto somos ignorantes é imperdoável.”

e entretecer de tempos com ideias luzidias e imperdoáveis vilanezas.

Um Certo Porto é o olhar e os sentimentos de Helder Pacheco e das personagens, mais ou menos ilustres, que ele convoca para a memória da Invicta, a cidade que desapareceu e aquela que pode morrer, e a outra, a que está à vista, elegante ou feia, apelativa ou desagradável, bela ou horrível, débil ou pujante, do passado ou do Terceiro Milénio.

O Porto e Helder Pacheco mimetizam-se numa proporção fantástica de acontecimentos e pensamentos ao longo de mais de três centenas de cativantes páginas. Sem se esgotarem, porque é possível que a cidade e o seu entranhado historiador tenham muito mais para contar.

Do mesmo modo que se pode tocar, tanger ou pressentir, por vielas e ruas, pracetas e praças, alamedas e avenidas, entre o arruinado, o vetusto, o reabilitado, o novo-velho, a modernidade e a pós-modernidade, uma identidade portuense, que é tripeira e cosmopolita, aristocrática e burguesa, operária e elitista, também se sente o historiador na sua inteireza, com as suas convicções mais do que certezas, os seus dilemas existenciais e científicos (das Humanidades, pois!), as suas preocupações e angústias, mas, acima de tudo isso, o tecer

Helder ama o Porto e o Porto, seguramente, ainda não percebeu quem é este homem que fotografa e escreve sobre jardins que nos povoam, bronzes da posteridade, um azul celestial, uma mágica cidade que, depois de tantas inspiradas criações, também sublinha o culto universalista com um Bairro de Livros. Um Certo Porto é o que foi feito, desfeito e está por fazer. E, neste último aspecto, torna-se um desafio muito exigente para quem vier a governar a cidade-concelho: porque nela só se pode tocar, seriamente, com profunda memória.


Nesta obra, Helder Pacheco serve-nos para memória futura a memória do passado de um certo Porto fotografado por 15 amigos, sete ou oito dos quais fotógrafos profissionais. Helder Pacheco põe de lado, mais uma vez, o seu próprio conhecimento fotográfico da cidade, os seus mais de 6 000 diapositivos sobre o Porto, para dar expressão a quem também tem a alma portuense e complementar a liturgia da narração com cinzentos escuros e claros ou paletas de cores. Nunca houve tanta gente a escrever e fotografar sobre o Porto, mas ninguém com o espírito de historiador de Helder Pacheco nem a autenticidade dos seus amigos que lhe cederam imagens. Um Certo Porto quer dizer um Porto especial, ao gosto e medida do Helder Pacheco. Conforme o entende e, sobretudo, conforme gosta dele. Porque, como ele diz, as cidades são assim: ou se gosta ou não se gosta delas. Ou, dizendo como Helder Pacheco entende que deve ser dito: ou se amam ou não se amam. E ele gosta deste Porto. Assumindo os riscos que isso comporta nos tempos que correm. Gosto de um Porto rebelde, inconformado. De um Porto insatisfeito com o que tem e aspirando ao que não tem, como o Helder Pacheco escreve: “Um Porto refilão, às vezes inconveniente, de língua afiada e intransigentemente bairrista (que, apesar do que dela dizem os cosmopolitas de serviço, resiste como palavra essencial ao sentido portuense de entender a realidade mais próxima). Helder Pacheco

Aquele melro que passou por mim, aquelas redes sociais à moda da Vitória, aquela rainha das costureiras, ou aquele tempo da Ribeira, as memórias das Eirinhas e de S. Brás, de gente inesquecível do tempo esquecido, da construção de uma identidade portuense que se faz com uma festa de S. João de que o historiador afirma ter de se falar muito a sério. Isso tudo e um imenso mais se plasma em Um Certo Porto.

Helder Pacheco gosta de um Porto orgulhoso, ciente do que é, em vez de suspirar pelo que não é. Gosta de um Porto de entusiasmos fáceis e rejeições atávicas, adquiridas como herança de família. Gosta de um Porto politicamente incorrecto, conservador daquilo que vale a pena conservar e que, a par, se renova em cada gesto de cada dia. Um mal dos nossos dias, que afecta a nossa juventude, é a ausência de passado. Em geral, os jovens deste tempo não têm memória nem do País nem das suas terras e das

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suas gentes. É um problema sério com que se confrontam os docentes mais velhos, que não se limitem a mais ou menos complexas leituras teóricas ou experimentalistas, como as que podem ser apresentadas em Excel ou PowerPoint, tal qual como um Orçamento Geral de Estado que corporiza os negrumes e agruras de milhões de cidadãos.

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Helder Pacheco, com esta obra envolvente, persegue a memória e conclui que “só um cego (do cérebro, e não da visão) não vê que o Porto está a começar a dar a volta por cima das suas dificuldades”. Esperançoso, avança que a cidade que andou, pelo menos, 70 anos a ser destruída e precise de 40 ou 50 para operar o seu renascimento, evidencia sinais da regeneração. Assiste-se “a um verdadeiro «boom» turístico, temos a Universidade quase entre as cem melhores da Europa e aspirante a colocar-se entre as melhores do mundo, e temos o Douro – Património da Humanidade, o Vinho do Porto, o FCP, a movida nocturna, a animação das galerias de Miguel Bombarda, as feiras, e muitas outras atracções”. Tudo numa profusão que fez palpitar de expectativas o seu coração de «imbecil feliz», como ele se considera.

Um Certo Porto...

Mas a memória é tramada, sobretudo se ela vier do registo de uma ribeirense de 78 anos, como a Dona Etelvina, para despejar um balde de água gelada na fervura do entusiasmo do historiador. Dona Etelvina escreveu a Helder Pacheco dizendo: «Já não se ouvem os sons que só a Ribeira nos dava, hoje só se ouvem aqueles sons de gritos mudos; são os sons amargurados de uma vida tão diferente que nos dói!… Não se ouvem os sons dos remos na forqueta dos barcos de pesca quando havia sável, e o som dos gritos felizes, quando o rio dava fartura e o som do Funileiro batendo a chapa para pôr um fundo novo num tacho velho, o som do Tanoeiro que batia os arcos de ferro contra as aduelas das pipas da azeitona (…), o som do riso e das vozes dos catraios que jogavam a bola no Larguinho do Barredo, ou na Praça da Ribeira, se era Domingo lá vinha o som da corneta do Caramileiro que dizia “vai caramilo e torrão de Alicante”, sons que os catraios ouviam, mas faltavam 5 tostões para comprar um. Os sons de o bater nos testos, ou numa lata velha, sons que as sirenes dos barcos a vapor ancorados no cais acompanhavam porque


era dia de Ano-Novo e que dizer do som dos pregões das peixeiras que diziam que tinham “olha a sardinha vivinha do nosso mar” e a Hortaliceira que tinha “Pencas… ou nabos…”, o som das mães que chamavam os filhos porque estava na hora de comer, e o som do Tango e do Malhão ou da Rumba que no altifalante nos dizia que era S. João, hoje esses sons foram trocados pelo clic do computador mas, esses eu não ouço, só ouço o som que sai do meu peito que é um grito de revolta e de saudade». Ah!, Dona Etelvina, como a percebemos bem! Como, muito particularmente, a percebe tão bem o Helder Pacheco, que não quer que desapareça a memória das Eirinhas… «(…) Não é precisa muita imaginação e ainda menos grande fantasia para fazer uma ideia do que seriam as Eirinhas há uns cento e cinquenta, duzentos anos. Não tendo eu propriamente a idade da Sé de Braga, ainda nos meados do século XX conheci ali perto, ao lado, no chamado Monte das Feiticeiras, um moinho de vento. Juro pela luzinha dos meus olhos que sim, havia-o – já sem velas e há muito sem moer, mas lá estava –, no alto descampado onde depois construíram enormes reservatórios do abastecimento de água à cidade. Tendo eirinhas como diminutivo de eiras, não custa, portanto, ver o sítio como arrabalde rústico do Burgo que, entretanto, para ali foi crescendo ao longo de oitocentos e sobretudo depois da criação, em 1842, da freguesia muito civilista (quero dizer, formada administrativamente, sem raiz antiga, mediévica na paróquia – que, aqui, não existia) do Senhor do Bonfim.” Temos de falar muito a sério disso, desse Porto desaparecido, da memória esquecida de um certo Porto, que os jovens não têm culpa de não ter. A culpa é dos sábios que os têm educado, é dos doutos orientadores que se suportam em paradigmas e modas e têm vindo a pôr todos os ovos no cesto das novas tecnologias, que tudo querem resumir a algoritmos, à combinação de zeros e uns, que querem todo o mundo amancebado com as redes sociais e a almoçar e jantar smartphones e ipads, esquecendo-se de ouvir o outro, de se relacionar com o outro, de perceber o outro, e de ver o que está à sua volta ou à simples distância dos seus olhos. Com Um Certo Porto não nos faltam memórias, designadamente a do S. João ou daquilo em que a Festa do Porto foi transformada, como escreve o Helder Pacheco:

«(…) A mania de transformar o S. João do Porto em festa cosmopolita, própria de classe média consumidora de vodka com laranja e caviar, festa de imitação e não de assunção da sua verdadeira essência, festa de manifestação com livro de ponto, expediente e protocolo, percorrendo a solidão da cidade desabitada enquanto os subúrbios empolgam e absorvem a tradição, retrata, na sua vertente actual, a acção de gestores de pacotilha, burocratas encartados (e envergonhados) da tradição a recibos verdes, e lembra-me a frase de Firmino Pereira (1914): «Onde pensaste conquistar um aplauso poderás ouvir simplesmente o estrondo de uma irreverente gargalhada…” O historiador insiste e volta a dizer, para que se ouça bem: “sonho com as arcadas de Miragaia – como ainda as conheci – cheias de lojas, comedoiros, artesãos e música de categoria. Coisas recatadas que enobreçam aquele espaço fantástico. (Basta ver as galerias das arcadas da Place Vandôme e percebe-se a diferença entre a magia dos nossos lugares, soberbos mas mortos, vazios, que agradam a quem gosta de cidades fantasmas, e a dos ambientes carregados de cultura, sentido e identidade).” É verdade, vendo bem, como pensa Helder Pacheco, “num mundo de normalização, hipermercados, cimento, alumínio anodizado e multibancos, a magia também pode tornar a cidade competitiva. Também pode ajudar a criar empregos, a fazer a diferença, a qualificar a nossa vida e os lugares que habitamos. (Claro que quem tem emprego e vive bem prefere a magia arqueológica da ruína, da cidade-museu, do jardim zoológico social, do gozo individual do ambiente urbano. Eu, como sou da Vitória e a vejo despovoada e abandonada (basta passar nos Caldeireiros)…”. Nessas metafísicas não alinha Helder Pacheco, que, por isso, cita Manuel Bandeira: «Estou farto do lirismo bem comportado, / do lirismo comedido/do lirismo funcionário público / com livro de ponto/expediente e protocolo». O historiador acha que “tem de ser dado um murro na mesa e lutar encarniçadamente contra a desertificação que o terciário mal assimilado, juntamente com a incompetência na leitura dos fenómenos de desenvolvimento urbano dos finais de novecentos, trouxeram ao nosso território das magias. Irra! Quase iam matando o Porto – e, ainda por cima, matando-nos a nós.”

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Estaremos de acordo com Helder Pacheco: “Esta cidade tem de sair da cepa torta emancipando-se pela cultura, a ciência, o conhecimento, e orgulhosamente afirmar os seus princípios e a sua matriz”. As conivências com o centralismo são mais que muitas – repara, e muito bem, o historiador - (designadamente as conivências dos políticos que se bandeiam com o nacional-lisboetismo), ridículas e, se não fossem caricatas, davam vontade de rir pelo desconchavo, o provincianismo e, sobretudo, a incompetência”. Acusa Helder Pacheco que “dentro desta linha estão, por exemplo, as dezenas de documentários que correm na internet sobre o Porto, aparentemente para o promover”.

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Precisa o historiador portuense: “Com belas imagens e motes bairristas, mostram a sua incultura cívica quando, como fundo musical, incluem fados de Lisboa, baladas coimbrãs e outras escolhas completamente alheias à cidade. A última pérola, neste lote de abastardamento da personalidade tripeira, é dedicada ao Museu Romântico da Macieirinha, acompanhada por um fado de Coimbra.” O libelo acusatório atinge o despovoamento da cidade, que constituiu verdadeira tragédia do nosso tempo. Constata Helder Pacheco: “Todos a vivemos, uns com relativa indiferença, outros com a mais completa insensibilidade e muitos agentes políticos assobiando para o lado ou convencidos que com mais obra menos obra estavam a reconstruir a urbe do futuro. Neste processo todos somos culpados. Por omissão, colaboração, desatenção, desinteresse.” É, para Helder Pacheco, difícil compreender como foi possível, em muitos locais, reabilitar os espaços físicos provocando, em simultâneo, o êxodo sem retorno dos moradores. Incúria, incapacidade, inoperância, propósito? Helder Pacheco não sabe. Mas, diz, a verdade é que, se todas as freguesias do Centro Histórico viram dramaticamente a sua população decrescer em milhares de pessoas, algo correu mal na reabilitação e algo correu pessimamente na capacidade da urbe para regenerar, social e economicamente, os seus bairros antigos e carregados de História e tradição. Basta ver os números. Hoje, ilustra Helder Pacheco, “não nasce no Barredo quase ninguém, não se vêem catraios na rua a jogar a bola de trapos e a pedir um tostão à mãe para ir comprar um pirolito

à Lindinha. Catraios pobres que comiam a sopa e o pão que a Escola de S. Nicolau dava ao meio dia, mas à sua maneira eram felizes porque eram livres, até o rio era todo deles, para nadarem à vontade e não tinham vícios maus. Hoje os poucos que lá estão, vivem presos ao rato do computador, ou às teclas de qualquer telemóvel que tem jogos e mais não sei o quê”. Voltamos a uma personagem de Helder Pacheco, à Dona Etelvina: «Há pessoas que, ainda hoje, querem voltar para o Barredo. Daqui foram para os Bairros e para cascos de rolha. Qualquer dia, na Ribeira, não há moradores, só turistas» (não sentem os sinais de alarme a avisar-nos de algo que dramaticamente atinge e ofende a alma de uma cidade que chamávamos naçom e que, por este andar, vai a caminho de se tornar uma 2.ª via do Marais ou da Rive Droite parisiense, do Bairro Alto lisboeta, da Grand Place de Bruxelas ou de outro qualquer local muito cosmopolita?).” Do Porto que desapareceu e está a desaparecer, há ainda, neste Um Certo Porto, um sr. José Teixeira Fernandes, também conhecido pelo «Zé Ferrugem», mor da sua antiga profissão de operário metalúrgico”, como o retrata Helder Pacheco. Cheio de orgulho bairrista, o sr. Fernandes considera Lordelo do Ouro «a freguesia com a maior concentração produtiva do país». É “uma apreciação empírica e subjectiva, mas, atendendo à dimensão territorial daquela implantação, grosso modo entre o Ouro e a Boavista, a Arrábida e a Pasteleira – nem sequer muito extensa –, tal afirmação não será completamente desajustada da realidade”, considera Helder Pacheco, que narra: “Desapareceram as indústrias e oficinas lordelenses. No seu lugar construíram-se (em excesso) bairros ditos sociais e empreendimentos imobiliários (alguns, diga-se, de qualidade). Um dia destes, da paisagem fabril e do dinamismo industrial de Lordelo nada resta (poderia, ao menos, na antiga Central Termo-Eléctrica do Ouro, ser instalado o, que tarda em concretizar-se, Museu da Indústria em memória de tudo quanto, no século XIX, o Porto possuiu. Mas pressinto que, mesmo isso, não seja mais do que uma utopia sabotada pela curteza de vistas)”.


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Momento musical

Custa passar no Ouro – frisa, de dedo em riste, Helder Pacheco – e perceber não já a agonia mas o abandono, a destruição dos estaleiros que, desde a época de AlcácerCeguer, Argila e Tânger, representaram, até quase aos finais do século XX, uma tradição de construção naval de onde saíram milhares de embarcações que ajudaram a corporizar o progresso da cidade e do país. E sublinha que custa vê-los a desaparecer sem um gesto, memória, marca de atitude e reconhecimento para o futuro. Assinalando a história do seu inestimável património de saberes e competências, nada ficará. Um dia destes só existirão fotografias e lamentos pela morte anunciada de uma herança cultural (o que, em cidade de grupos de pressão prenhes de fundamentalismo e sempre prontos para Providências Cautelares, custa a entender).”

O Porto, todos o sentimos ou pressentimos, como observa Helder Pacheco, precisa de qualidade, rigor, inovação e exigência; eis um bom programa para o futuro no relançamento de profissões naquilo que se convencionou chamar «indústrias criativas» (cujo significado semântico lhe escapa um pouco), que afirmem o Burgo e o tornem competitivo, criando novos empregos a partir das velhas artes que faziam parte da sua própria essência – aduz o historiador. O Porto precisa de mudar, de se reabilitar, mas, também, de conservar a memória. Com outros meios e os olhos de quem não queira destruir um Património que é da Humanidade – digo eu. E tenho dito.


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DE REPENTE UM BARCO Anthero Monteiro*

sacio os olhos no oceano até ao refúgio dos peixes laminares sinto que o papel se deixa embeber que as linhas se diluem e se requebram em ondas paralelas voluptuosas mulheres fabricantes de êxtases

de repente uma proa soergue-se da mesa irrompe de trás da chávena do café rasga-me a folha húmida interrompe-me o poema e pesca-mo na rede para a lota infinita dos sonhos irrealizáveis

*Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.


GRUPO MUSICAL DE FIÃES Salvador S. Silva*

Fundado em 1933 Estatuto de Associação de Utilidade Pública desde 20 de setembro de 1987.

Em 1922 existiu um movimento musical em Fiães, que no entender de alguém, teria sido o gérmen para a criação do Grupo Musical de Fiães. Outros contestam essa hipótese, alegando não haver ligação entre as duas iniciativas. Em 1932 um grupo de amigos, fianenses amantes de música, deslocaram-se a São Paio de Oleiros, durante as festas da freguesia, para assistir a um concerto musical apresentado por duas afamadas tunas das redondezas. Essa deslocação despertou no grupo, mais vontade e entusiasmo de criar em Fiães uma associação de amadores para o ensino e prática da música. Ali mesmo, ficou decidido abordar o maestro Joaquim Teixeira, regente de uma das tunas presentes, para saber a possibilidade de assumir o encargo. Do grupo forasteiro, fazia parte Joaquim Costa, incumbido para falar com o maestro que por sua vez, aplaudiu a ideia e aceitou o convite, assumindo a responsabilidade artística, mediante uma pequena compensação monetária. *Reformado. Interessado pela História da sua Terra.

No dia 21 de Janeiro de 1933, teve lugar o primeiro ensaio do Grupo Musical de Fiães, (Tuna de Fiães), com a presença dos senhores: José Duarte Ribeiro, Elísio Ferreira Nunes (Elísio do Grande), Leonel da Costa Santos, Augusto Fontes (Ramalhete), Reinaldo P. Pinheiro Joaquim Costa e Silva, José Soares de Amorim e Elísio Fernandes Coelho Júnior, que passaram a ser considerados os fundadores. Ao longo dos tempos, tem aparecido na imprensa um ou outro nome como pertencendo ao grupo dos fundadores, mas não foram encontrados registos oficiais a confirmar tais pretensões ou boatos. No início, a sede ficou instalada no r/c da residência do Sr. José D. Ribeiro, situada na atual rua Dr. Mário de Castro. A seguir e durante dezenas de anos, passou a ocupar parte do primeiro andar no edifício (adquirido por alguns amigos ligados à coletividade, situado na rua Principal, com frente para a rua Dr. Mário de Castro, no lugar do Souto, onde permaneceu até à construção da sua sede. A primeira atuação da “tuna”, em público, teve lugar no largo do lugar do Souto em Fiães, durante a festa realizada em honra a S. Pedro. O reportório era composto pelas seguintes peças : «O Fanfarrão», «O Careca», «A Rosinha dos Limões e um trecho da suíte Portuguesa». O Grupo Musical de Fiães, tem mantido ininterruptamente a atividade desde a sua fundação, contando no seu historial, centenas, para não dizer milhares de atuações, ou participações

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1958 - Comemorações do 77º Aniversário

(entre elas, contam-se várias participações nas festas das

Numa das deslocações à sede do concelho foi apresentada

Fogaceiras e a presença no primeiro cortejo de oferendas

«Saudação à Vila da Feira» com música de Joaquim Teixeira e

a nível concelhio realizado em 1968 para a construção do

letra de Elísio Oliveira e Sá, que diz:

Hospital de S. Sebastião). Organizou e participou em inúmeros concertos de boa música, em muitas localidades do país, com destaque para os famosos concertos realizados na Igreja de Fiães, bem como em Espanha e França.


VILA DA FEIRA Tu Tens O brazão mais nobre e Belo Honra, Trabalho e Paz À sombra do Teu Castelo Desde os alvores da Pátria O Teu Castelo altaneiro Foi baluarte Fiel Ao Rei Afonso primeiro II Guardada pelo Castelo Vivas afoita e calma

Coro Infantil de Fiães fundado em 2002

Trabalhando cada dia

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Com mais Fé e com mais alma Remoçada vais surgindo Mais formosa cada dia És a mais bela entre as Lindas TERRAS DE SANTA MARIA Coro Em nosso alegre cantar Ó Linda Vila da Feira

Grupo Musical de Fiães em Santiago de Compostela.

Queremos hoje saudar Enaltecer, exaltar Tua gente hospitaleira É a nossa saudação Amor, carinho, respeito Que saiem do coração Que sentimos bem no peito Sede do Grupo Musical de Fiães


Na década de 1940, constituiu um Grupo Cénico, (de elevado valor artístico) dedicado ao teatro amador, com apresentações das operetas:« Entre Duas Avé Marias», «Corações que Cantam» e a mágica «O Poço do Bispo». O Grupo Musical de Fiães, fez parte do agrupamento

Eia pois p’lo nosso grupo Que não pode ter rival Viva, viva a nossa terra Viva o nosso Portugal

musical “Amigos da Música”, composto por cerca de duzentos executantes que pertenciam às “tunas” orientadas pelo saudoso maestro Joaquim Teixeira. Desde 1957 e durante treze anos consecutivos, no último domingo de agosto, a caravana constituída por autocarros e carros particulares, conduziram os músicos e acompanhantes a cidades e vilas do país, onde receberam significativas homenagens de agradecimento por parte das autoridades 160

locais e do público em geral, normalmente surpreendidos pelo número de executantes e qualidade do concerto que lhes era proporcionado. Ainda hoje são recordados os «famosos passeios da Tuna». O Hino dos “Amigos da Música”, escrito pelo Prof. José Fortuna dos Santos e musicado pelo maestro Joaquim Teixeira – “Cantando se passa a vida” – tem a seguinte composição:

Esta alegre mocidade Que procura a felicidade Estes corações ardentes No amor à sua terra Estes cérebros de crente Em suas canções sentidas Pelo mesmo ideal Torna assim bem conhecidas Nas notas soltas do vento As beleza que ela encerra. Têm um só pensamento Que é o nome de Portugal

Estatutos do Grupo Musical de Fiães Associação musical, recreativa e beneficente, cuja fundação teve lugar no ano de 1933. Preâmbulo dos estatutos Em princípio do ano de 1933 (em data de 21), um grupo de rapazes, dentre os quais Joaquim Costa e Silva, cujo nome é justo realçar, resolveu lançar na freguesia de Fiães, deste concelho de Vila da Feira, o rastilho para a constituição de uma associação musical, recreativa e beneficente. Tinha ouvido falar, aquele Costa, de um senhor da freguesia de Grijó, de nome Joaquim Teixeira, pessoa de grandes qualidades artísticas e totalmente devotado ao fim em vista. Ao Costa foi incumbida a missão de contactar com aquele maestro, e imediatamente o fez, aparecendo Joaquim Teixeira, no dia imediato, junto do grupo em embrião. Impressões foram trocadas e, sem mais delongas, começou o maestro a desenvolver a sua acção, de tal forma meritória que atingiu proporções extraordinárias no grupo que passou a dominar-se «Grupo Musical de Fiães» Moço ainda, homem de carácter impoluto e de fé inquebrantável, Joaquim Teixeira de tal modo se houve no desempenho da sua missão que, com cinzel da sua arte, conseguiu burilar e tornar uma grande parte de centenas dos seus alunos, quais verdadeiros calhaus, em músicos e sobretudo em homens, - sua preocupação dominante, - do ponto de vista social e cívico. Com este preâmbulo, que não poderá esquecer-se e que se lega às gerações futuras. Por escritura pública de 21 de Fevereiro de 1976, lavrada, no 1º Cartório Notarial da Feira, sendo notário Lic. Alfredo Bosch da Graça, foi dada forma jurídica à associação criada nos termos atrás referidos e, consequentemente, elaborados os respectivos estatutos, nos termos que se seguem:


Estatutos Art.º 1º -- Com o número ilimitado de sócios, é ratificada e efectivamente criada na freguesia de Fiães, deste concelho de Vila da Feira, uma associação musical, recreativa e beneficente, com sede no lugar do Souto. Art.º 2º -- Os Associados obrigam-se ao pagamento de uma quota mensal, que será fixada por deliberação da assembleia geral. Art.º 3º -- São órgãos do Grupo Musical de Fiães, a Assembleia Geral, a Direcção e o Conselho Fiscal. Art.º 4º -- A competência e forma de funcionamento da Assembleia Geral são prescritas nas disposições legais aplicáveis, nomeadamente, nos artigos 175 a 179, do Código Civil. Art.º 5º -- A mesa da Assembleia Geral é composta por três elementos associados, sendo um presidente, um vicepresidente e um secretário; compete-lhe convocar, dirigir e redigir as actas dos trabalhos da Assembleia Geral. Art.º 6º -- A Direcção é composta por três associados, sendo um presidente, um tesoureiro e um secretário. O presidente representará o grupo. Art.º 7º -- O Conselho Fiscal é composto por três associados, sendo um presidente, um vice-presidente e um relator, compete-lhe fiscalizar os actos administrativos e financeiros da Direcção, verificando as suas contas e relatórios, e dar parecer sobre os actos que impliquem aumento de despesas ou diminuição de receitas sociais; reunirá o mesmo Conselho Fiscal ao menos uma vez por trimestre. Art.º 8º -- Á Direcção compete a gerência social, administrativa, financeira e disciplinar, devendo reunir semanalmente. Art.º 9º -- Na falta de qualquer elemento nos órgãos directivos, será chamado o mais votado em Assembleia Geral. Art.º 10º -- Naquilo em que forem omissos estes estatutos, regulará o regulamento geral interno cuja aprovação e alterações são da competência da Assembleia Geral. (A publicação necessária foi feita no «Diário da República», III série, nº 127, em data de 31 / 5 / 1976). Em 1983, por ocasião das Comemorações do Cinquentenário da fundação do Grupo, a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, sob a Presidência do Senhor Alfredo Oliveira Henriques, atribuiu-lhe a Medalha de Prata de Mérito Municipal. Desde 20 de Setembro de 1987 que esta Associação passou a usufruir o estatuto de Associação de Utilidade Pública. No dia 5 de Abril de 1997, teve lugar a inauguração da 1ª

fase da nova sede social em edifício próprio, sito na “Barroca” lugar da Chousa de Cima que, no dizer do seu presidente Elísio Cardoso, «a inauguração representa um dos factos mais importantes da história da coletividade». Na inauguração estiveram presentes o Presidente da Câmara de Santa Maria da Feira, Alfredo Henriques, o Delegado do Instituto Português da Juventude em Aveiro, Manuel Melícias, o Presidente do Grupo Musical de Fiães, Elísio Cardoso, para além de outras individualidades públicas, sócios e simpatizantes. A sede inaugurada possui oito salas para aulas, uma secretaria de apoio à escola de música, uma sala de reuniões, uma sala de ensaio e um salão polivalente. Os custos desta primeira fase rondaram os 35 mil contos, tendo o IPJ contribuído com 17 mil contos. Em 1988 foi criada uma Escola de Música frequentada por 120 alunos, distribuídos por 9 graus distintos. Esta iniciativa merece louvores pelo trabalho desenvolvido ao longo destes anos, pois formou muitos músicos, alguns com destaque nos meios artísticos. Em 1999 pela primeira vez no seu historial, o G.M.F. ultrapassou a fronteira portuguesa com o seu Coro e Orquestra, para atuar no Gran Teatro de Cáceres, no espetáculo para a entrega dos prémios de poesia Ibero-Americana. Em Novembro de 2002, foi fundado o Coro Infantil de Fiães com mais de 50 crianças, provenientes da Escola de Música e das escolas EB1 da cidade. O 75º Aniversário, comemorado em 2008, foi assinalado com atuações na Sala do Senado da Assembleia da República e na Igreja da Santíssima Trindade em Fátima. No ano de 2004, o Grupo Musical de Fiães, deslocou o coro e orquestra à cidade francesa Joué-Les-Tours, (cidade geminada com a cidade de Santa Maria da Feira), a convite de L’Orquestre d’Harmonie, com concerto no dia 19 de Março, no Espace Malraux, (auditório para 1025 espectadores) completamente cheio. Entre as personalidades presentes estiveram o Maire local, o Presidente do Comité de Geminação e o Cônsul de Portugal em Tours. Mais recentemente, em 24/06/2012), a convite do pároco de Betanzos (La Corunha), participou com coro e orquestra na Eucaristia dominical das 12 horas na Catedral de S. Tiago de Compostela. Ao terminar o Ato Solene, o principal celebrante e responsável daquele templo sagrado, manifestou o seu agradecimento com palavras de elogio pela atuação e desempenho do Grupo Musical de Fiães. Sendo uma das Associações mais antigas de Fiães, é também uma das coletividades mais conceituadas e respeitadas pela população da Cidade.

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TERNURA Mário Anacleto*

Não me esqueci desses teus olhos fundos nem dos lábios que nunca mais me deste nem desse sorriso aberto sonhador de desejos finos que já me leste

Vi um mar negro em denso nevoeiro e ao fundo dele um farol de luz guiando os barcos, como eu, perdidos de vela erguida e um sinal da cruz. Vi tristezas, vi muita esperança ardendo nos lábios tensos de moças airosas e sempre ali teus olhos ao redor ...

Na noite no leito me torturavam como as cócegas das mariposas buscando mil beijos em cada flor! ...

* Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mestre em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto sob o tema “Arquitectura e Música em S. Bento da Vitória”. Diploma de Estudos Avançados em Comunicação Organizacional pela Universidade Complutense de Madrid, com o Prof. Dr. António Sanchez Bravo. Doutor em Musicologia e interpretação pela Universidade Nacional de Música de Bucareste. Professor; Cantor; Investigador; Conferencista. Faleceu em 08 de Novembro de 2010.


POSTAIS DO CONCELHO DA FEIRA Ceomar Tranquilo* A - Postais Ilustrados

Série de postais fotográficos editados pela Casa Plácido nos anos de 1950/1960, impressos na Casa Marinho, em Fátima. Informação do Senhor Manuel Plácido 163

126 - Vila da Feira - Portugal.

* Caminheiro por feiras, lojas e mercados.


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127 - Alameda Roberto Vaz de Oliveira.

127 A - Reverso do mesmo postal. Circulado para Lisboa com selo de $50 da sĂŠrie Caravela. 15-01-1953.


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128 - Entardecer. Vila da Feira - Portugal.

129 - Aspeto parcial do parque na Alameda Roberto Vaz de Oliveira.


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130 - Castelo de Vila da Feira - Portugal.

130 A - Reverso do mesmo postal. Circulado de Vila da Feira para Lisboa. Selo de autoridade do Rei D. Dinis. 50 ctvs. 05-10-1959


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131 - Aspeto parcial do parque na Alameda Roberto Vaz de Oliveira.

131 A - Reverso do mesmo postal. Circulado para Lisboa em 29-08-1960. Selo de autoridade do Rei D. Dinis de 50 ctvs.


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132 - Fumos do entardecer. Lugar de Picalhos. Vila da Feira.

133 - Quinta do Castelo - Lago.


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134 - Castelo visto de Sul.

134 A - Reverso do mesmo postal. Circulado para Lisboa, em 2-9-1956, com selo de autoridade do Rei D. Dinis de 50 ctvs.


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“Aqui” Ilda Maria* Aqui, de asa cortadas Querendo voar na imensidão do céu O coração liberto e renovadas Cortar com asas mais, que nunca aladas O azulado véu! Aqui, de mãos paradas Querendo dar, receber, Querendo achar e perder De mãos pesadas! Aqui, flor apanhada sem florir, De alma feita pr’a sonhar e rir E dar-se toda, amar! Aqui, flor a secar, flor a secar….

12-3-76 Hosp. Famalicão

*Poeta Faleceu em 20/07/1981


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Liga

dos Amigos da Feira


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