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À SOMBRA DO TEMPO

A HISTÓRIA DO

BAR ALFREDO, RESTAURANTE QUE

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COMPLETA 70 ANOS

EM PORTO ALEGRE

Do lado de fora a arquitetura desperta olhares: a fachada vermelha em estilo retrô, com janelas muito grandes espalhadas por toda sua extensão, me faz lembrar cenas das lanchonetes dos filmes norte-americanos da década de 1980. Estaciono o carro na Cristóvão Colombo, em frente a um casarão antigo, onde hoje funciona uma boate. Descobriria mais tarde que ali, no passado, já funcionara uma casa noturna melhor frequentada. E afamada, me confidenciam. Caminho até a porta de vidro emoldurada em madeira e, quando a abro, sou arrebatado por um pensamento que me acompanhou por muito tempo depois desse dia: quem entra no Alfredo não consegue sair dali indiferente. Sento na segunda das 10 banquetas de um balcão antigo, daqueles que vemos nas cenas de qualquer filme de Martin Scorsese. Entenderia, depois, que ali é o coração do restaurante. Toca um telefone – com fio – do outro lado do balcão. Quem atende é um homem de boina e óculos, semblante muito sério – Alex Macchi. Olho em volta, estupefato, e percebo a diversidade que ali habita: homens, mulheres, transgêneros, crianças – acompanhadas dos pais! –, velhos, punks, policiais, jornalistas e políticos. Todos são bem-vindos. E todos se sentem bem-vindos. Boa noite, dona Patrícia, berra Alex na minha frente, enquanto a garçonete Val corre pelos corredores entre as 17 mesas do salão, anotando um pedido aqui, entregando um café acolá. Um à parmegiana, dona Patrícia, pode deixar. Lhe aguardo, completa Alex.

Municipal, à Assembleia e ao Palácio Piratini

São onze da noite e enquanto espero o prato do dia que pedi para o Docinho - um garçom matreiro da capital, na casa dos 60 anos, mas “estagiando” no Alfredo por indicação do Alex – bebo uma xícara de café com leite. Um homem chega ao balcão e o Alex, que exerce, na prática, a subgerência do restaurante, o recepciona com um sorriso largo e uma sacola com seu pedido. Dona Patrícia já deixou o pedido pronto, queres uns pasteizinhos daqueles que vocês gostam?, leva logo três, quentinhos. O homem leva os pasteizinhos. Não era o marido da Patrícia, como inferi, mas seu irmão. O marido, Milton Cardoso, deveria estar saindo da redação da tv Band. São clientes fiéis, confidencia o dedicado “subgerente”.

Enquanto coordena a casa, espalhando ordem em um ambiente um tanto caótico, Alex me conta um pouco da sua relação com o Alfredo: começou em 2004, como garçom. Ascendeu na estrutura do negócio, mesmo não sendo o funcionário mais antigo, título que pertence a Maria Catarina, uma senhora atarracada que ostenta tantas tatuagens quanto anos de vida. O semblante dela, invariavelmente sisudo, parece ser sua marca registrada. Uma forma de se blindar do machismo estrutural, haja vista que é uma mulher trabalhando em um ambiente noturno há décadas? Não pergunto, vai que a mulher simplesmente não anda bem-humorada ou tem uma dor de dente que não passa. Essa dúvida me parece mais poética que qualquer realidade.

É quase meia-noite e há umas 20 pessoas no salão. Peço uma fatia de pudim – que tem uma cara ótima – e um cafezinho. Alex conta que nos tempos áureos pré-pandemia o movimento era muito maior. Havia quatro agências bancárias a uma quadra dali, além de um sem fim de pizzarias – era a região da pizza em Porto Alegre, explica Alex. Nessa época o Alfredo funcionava 24 horas. Era o ponto de encontro do fim de noite da capital, um faroeste na cidade. Usando alguns eufemismos, Alex conta que habitavam ali clientes da gruta mais famosa da cidade, homens com o hábito de passear de madrugada pelo Parcão e pela Redenção, jovens que vinham da Cidade Baixa. Hoje fechamos à uma da manhã, completa. Termino meu doce e meu café e peço a conta, já é quase hora de fechar. Hoje em dia a noite termina mais cedo.

Quem é esse Alfredo?

Os proprietários do restaurante são Patrício e Vera e seus dois filhos, Artur e Marcelo, todos eles Aleixo Ferreira. O patriarca, com 85 anos, não trabalha desde 2019, vítima de Alzheimer e prisioneiro do próprio corpo. A esposa, com 83, vai todos os dias pela manhã trabalhar. O olhar inquisidor é

(D) acompanha o patrão Artur (E) no caixa do Alfredo implacável: nenhum detalhe lhe escapa. Entra no salão fiscalizando o chão e as mesas, as fatias do bolo de cenoura e a finura da massa dos rissoles. Nada nem ninguém – absolutamente ninguém – está a salvo das suas críticas vorazes. Veste seu avental azul e fica junto ao caixa. O filho caçula, Marcelo, 53, não é muito afeito a conversas. Consegui, contudo, com muito trabalho e insistência nas três vezes em que nos vimos, lhe arrancar um ríspido e gelado “boa noite”. Para minha sorte – e dos leitores também – foi o primogênito, Artur, 56, quem sempre trabalhou com os pais no comércio. É ele que me atende, solícito, enquanto a mãe pragueja contra a funcionária que cortou um bolo com a faca errada.

O homem que deu nome ao Alfredo já não existe mais. Na verdade, pouco se sabe sobre ele. Abriu, em 1953, uma loja de armarinho e alguns poucos anos mais tarde a vendeu para Carlos e Manoel Branco, irmão e primo de Patrício. Esse último recém havia deixado Portugal nessa época. Voltaria alguns anos mais tarde para visitar a família na região de Aveiro, e foi nessa visita que conheceu Vera. Acredita-se que se apaixonaram. Patrício voltou ao Brasil e, por questões legais à época, foi seu pai quem casou com Vera no papel para que a mulher pudesse deixar o país luso. Casado e estabelecido em Porto Alegre, o português trabalhava com a venda e entrega de pães: o pai tinha um reparte e entregava pela cidade usando uma mula, detalha Artur.

Foi só no final dos anos 1960 que Patrício se tornou dono do antigo armarinho e já então Bar, Café e Restaurante Alfredo. Comprou a parte do irmão Carlos e se tornou sócio de outro irmão, José, que havia comprado a cota do primo Manoel. Em 1967, inauguraram a Casa de Carnes Alfredo, na rua Ramiro Barcelos, ao lado do bar, com uma proposta comercial à frente do seu tempo: o açougue funcionava como uma espécie de atacarejo de carnes, atendiam restaurantes da cidade inteira. Eu cresci fazendo entregas perto do Mercadão, detalha Artur. Chegaram a montar uma churrascaria no mesmo lugar, que teve fim nos anos 1990. Para administrar os dois negócios, os sócios adotaram uma política um tanto curiosa: se revezavam entre os dois comércios, cada um trabalhando um ano em cada negócio. Com idade avançada, em 2013, os irmãos Aleixo Ferreira desfizeram a sociedade. José ficou com a Casa de Carnes e Patrício com o Restaurante. Foi nesse momento que Artur se tornou sócio do restaurante e ganhou maior poder de decisão. Mais tarde, cedeu parte de sua cota ao irmão, até então servidor da EPTC.

O pavor do empresariado

Não só no comércio de pequeno porte, mas no mundo corporativo em geral, um temor que tira o sono de muitos empresários é a sucessão dos negócios. O Bar Alfredo, que completa 70 anos de existência, sempre no mesmo endereço e há mais de seis décadas sob o controle da mesma família, se encontra em um limbo sucessório. As duas filhas de Marcelo e a de Artur não têm vocação para o comércio. Como um bolinho de batatas com carne junto ao balcão enquanto o primogênito Artur – que levaria a mãe a uma consulta médica – confessa antes de se despedir: Acho que quando os Irmãos Coragem se forem, a novela acaba. n