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OU COMER AQUI? É PRA LEVAR

CLIENTES SE AMONTOAM EM FRENTE AO CAIXA PARA PEDIR OS LANCHES DO XIS DA ALEMOA, NO CENTRO DE SAPUCAIA DO SUL

Faz 17 graus, mas, dentro da cozinha do Xis e Hot Dog da Alemoa, todas as quatro funcionárias estão de camiseta curta, um uniforme da lancheria. As três mesas de pedra estão lotadas, os clientes sentam em bancos frios de azulejo. No caixa, quatro pessoas aguardam para fazerem os pedidos. “Nome?”, pergunta a funcionária depois de escutar as pessoas da fila.

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O clima é descontraído. Depois de me apresentar, escuto: “Só não tira foto minha porque hoje eu não alisei o cabelo”. Quem brinca é Katia Andrade Conrado, a funcionária do caixa. Além do Xis da Alemoa, mais duas lancherias estão abertas naquele horário: a Top Lanches, na entrada, e a Hot Dog

Darling, ao fundo. A praça de alimentação é composta por uma série de trailers de comida (food trucks, para ser gourmet), que formam quase um labirinto logo abaixo da passarela da Estação Sapucaia.

Além dos clientes das três lancherias, pessoas em situação de rua também circulam pelo local. Entram pelo corredor iluminado, percorrem galerias escuras - outros estabelecimentos que não estão abertos naquele horário - e saem do outro lado da passarela. Conhecem aquelas esquinas.

Diana Albuquerque Duarte nos aborda já nos primeiros minutos. Ela pede moedas a todas as pessoas que estão ali. Mas a curiosidade faz que ela fique mais tempo ao meu lado. “Escreve aí: a bicha de Sapucaia. Todo mundo me conhece”, se apresenta, enquanto abraça o cobertor que usa para dormir à noite. Ela posa para fotos, quer aparecer “no jornal”. “Famosa, ai que feliz! Valeu mais que moeda”, se despede, com um sorriso, enquanto corre para o balcão da Alemoa e pede para uma das funcionárias guardar um exemplar da revista para ela.

Ao terminar o lanche, devolva a bandeja no balcão

Diana segue a jornada de pedir moedas, desta vez, em outros estabelecimentos. Ao sair, cruza com uma mulher de legging escura, casaco branco e óculos. Ela interage com Katia: “Tenho uma encomenda”. “Qual o nome?”, pergunta Katia. E, logo, o pedido se transforma em nome: “Liliana”.

Além das pessoas que resolvem comer ali mesmo, os carros não param de chegar para buscar lanches – como foi o caso de Liliana. Nesse horário, não há mais ônibus passando, por isso, a parada, sempre lotada durante o dia, serve como um grande estacionamento para os clientes do Xis e Hot Dog da Alemoa. A lancheria também oferece tele-entrega, mas o motoboy é tão rápido que quase não o vejo.

Katia, além de atender os pedidos feitos no balcão, também cuida de dois números de Whatsapp: um para tele-entrega e outro para telebusca. A noite dela é cheia. São poucos os minutos em que não há ninguém para ser atendido. Ela também se preocupa com o estado das mesas. “Até os bancos têm milho e ervilha”, comenta no pequeno espaço de tempo que consegue sair do caixa para passar um pano nas mesas que ficaram vazias – mas que logo serão ocupadas por novos clientes.

O balcão do xis é comprido, maior do que os outros dois estabelecimentos. A palavra “caixa” fica no canto esquerdo, em led vermelho – esse é o lugar de Katia, que trabalha ali há cerca de sete anos. No restante do balcão, encontramos avisos para os clientes e vários prendedores azuis – é ali que ficam os pedidos, que mais tarde viram nomes.

“LEONARDO!”

Na sequência, “É pra levar ou comer aqui?”. E, depois de um diálogo inaudível, Leonardo sai com uma sacola para casa.

Do outro lado da avenida, a Fruteira da Bel também está aberta. É de lá a única música que se escuta em toda a rua. Na Alemoa, apenas o barulho da chapa, que trabalha sem parar, e de nomes sendo gritados. Para um município que parece ter sido pensado para ser uma cidade-dormitório, o Xis da Alemoa é uma opção que não deixa a cidade dormir.

Cristianinho, o Severino

Cristiano Chagas passa várias vezes na frente da lancheria. Pede moedas para os clientes. Tenta vender torrones. Recolhe sacos de lixo. Até que para. Ele, que observa diariamente o movimento da Alemoa, quer saber o que eu faço ali, com um bloco e uma câmera na mão. É ele quem me apresenta as funcionárias. “Esse é o melhor trio!

A Katia é temperamental, a Tati é explosiva e essa aqui é centrada.” “Essa aqui” é Lisiane dos Santos Xavier. Cristiano esquece de apresentar Ivonete Scheffer, a funcionária mais nova dali, que começou há apenas um ano e meio. Lisiane e n A praça de alimentação fica embaixo da passarela do trem e reúne diversos estabelecimentos de comida rápida

Ivonete não falam tanto, estão sempre ocupadas realizando os pedidos que não param de chegar.

Cristianinho, como prefere ser chamado, é o “Severino”. Em troca de lanches, auxilia as funcionárias da Alemoa buscando troco nos outros estabelecimentos ou até pintando o local. Além disso, Cristianinho controla “a gurizada, pra não incomodar”. Hoje com 36 anos, está em situação de rua desde os 18. Ele também representa as pessoas em situação de rua no CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas) da cidade. Participa de reuniões e comenta sobre a criação de uma espécie de albergue no município. “Muita gente não entende, acha que a gente é vagabundo, mas tem outras coisas que fazem a gente ficar na rua”, explica.

“Até eu fui entrevistado”, conta sorrindo enquanto pega uma vassoura e sai para varrer a calçada.

“ED!”

Tatiele Freitas segura um copo de plástico na mão. Contém café. Ela chama mais uma vez: “Ed!”. Um homem de calça cargo camuflada, coturno e um colete preto, onde se lê “combate corpo a corpo”, aparece. Pega o café e vai para um corredor vazio. Ed é o segurança contratado para fazer a ronda do local. Ele chega três minutos antes das dez da noite e circula por todos os corredores.

“A segurança é mais pela briga da madrugada, o pessoal chega bêbado e se passa”, conta Katia. Exatamente 55 minutos depois de Ed chegar, acontece a primeira briga: dois cachorros se estranham na calçada. Alguns rosnados e uma batida de pé depois e tudo volta ao normal.

Tatiele também entrega um copo de café para a funcionária da lancheria do lado. “Aqui não tem concorrência de valor, todos os preços são iguais. Se precisar alterar alguma coisa, os donos dos três estabelecimentos se juntam e decidem… Mas a Alemoa é a que mais vende”, confessa Katia.

É fácil de comprovar que Katia está certa. Os clientes se amontoam no corredor, esperando ouvir seus nomes. “Eu brinco que elas [as colegas] têm Alzheimer, porque eu lembro do nome e dos pedidos da maioria do pessoal que vem aqui”, conta Tatiele. Enquanto as colegas de trabalho têm mais dificuldade em transformar pedidos em nomes, Tatiele conta que os clientes abrem um grande sorriso quando são reconhecidos por ela. Tati, que é responsável pela prensa e montagem dos lanches, trabalha aqui há 10 anos. Ficou quatro anos longe daquele balcão, mas, há cinco, voltou.

“Eu comecei com a Tia Alemoa, na madrugada, aprendi tudo com ela.” Tatiele, além de ser a funcionária mais antiga presente, também tem um bordão. Entre um pedido e outro, quando nomes não estão sendo gritados do balcão, é possível ouvi-lo vindo de dentro da cozinha: “Ai, senhor dos anéis”.

A Tia Alemoa abriu a lancheria há cerca de trinta anos. Ela morreu há alguns anos e quem seguiu com o negócio foi o filho, Luciano Bortolotti. “Os patrões são bons, por isso são os mesmos funcionários há anos”, explica Katia. Além dos donos, são dez funcionários, no total, que se dividem nos diversos horários de atendimento. O Xis e Hot Dog da Alemoa funciona todos n Tatiele é responsável pela prensa e montagem dos lanches, mas, no tempo vago, publica vídeos no Tik Tok. Diana (ao centro), “a bicha de Sapucaia”, vaga pelas ruas do centro da cidade pedindo por moedas e encarando olhares preconceituosos. Cristianinho ajuda as funcionárias em troca de comida os dias das nove da manhã até meia-noite e meia. No entanto, nas sextas-feiras e aos sábados, fica aberto 24 horas.

O senso de comunidade permanece no local de trabalho. Todos os funcionários são próximos e se ajudam. Dentro da cozinha, sempre tem alguém rindo. “Elas riem de mim porque eu faço TikTok”, conta Tatiele. Os vídeos de dublagem são feitos com a filha e são motivo de descontração entre as colegas.

Tatiele, segundo as colegas, é a que mais gosta de “dobrar”. Ou seja, que junta dois turnos e fica responsável pela prensa, também, na madrugada. “Eu sou mãe solteira, tenho dois filhos pequenos. No final de semana que eles ficam com o pai, eu dobro”, conta.

Nomes, casamentos e lanches

Entre os clientes fiéis, há aqueles que frequentam a lancheria desde criança. Agora, depois de, pelo menos, três décadas, os papéis se invertem e são eles, hoje adultos, que trazem os filhos para o local. Não existe um tipo específico de público na Alemoa. Eles atendem desde o rico até o humilde.

Passado das dez da noite, porém, todos parecem estar com o mesmo tipo de roupa: calça e moletom. Um homem se destaca na multidão: está de camisa preta e sapatênis. Ele espera pelo pedido. “ANDRÉ!”

Ele não é cliente fixo. Ao pegar o lanche, as funcionárias entregam um cartão e explicam o horário de atendimento, além de ofertarem os outros tipos de comida que servem.

“Bebida? Maionese extra?”, Katia, com certeza, já perdeu as contas de quantas vezes fez essas perguntas nas últimas horas.

São dez e quinze da noite quando alguém pede o primeiro latão de cerveja. O homem é alto, usa o capacete da moto na cabeça e veste um corta vento preto. Ele espera o pedido virar seu nome. Depois, vai embora. Os clientes que ficam para comer, naquele momento, são todos compostos por famílias. Há, pelo menos, uma criança em cada mesa.

Em uma das madrugadas, um dos clientes chegou com uma marca roxa no pescoço. Ao ouvir a brincadeira de uma das funcionárias, o homem ficou nervoso. “Onde, moça? Eu sou casado!”, dizia assustado. Katia e Tatiele relembram rindo. Com certeza, já salvaram casamentos.

Mas não só de relacionamentos em crise vivem os clientes da lancheria. Há alguns anos, uma ex-funcionária sempre reclamava de um freguês para os chefes. Tatiele conta que um sempre implicava com o outro. No final, acabaram casados.

Para levar até no avião

O carro-chefe do Xis e Hot Dog da Alemoa é o xis bagunça: frango, calabresa, coração, bacon, vários tipos de carne. Milho, ervilha, alface. Molho de alho, pimenta, catchup e mostarda. Maionese (por mais três reais, ganhe uma porção extra). Queijo e orégano, se quiser. Ainda assim, outros pedidos fazem parte da rotina da madrugada. É o caso de outro cliente, que chega no caixa parecendo familiarizado com as conversas de Katia: “Me dá um cachorrinho sem tomate”, diz. A funcionária já responde com uma novidade: “Não vai mais tomate”. Sem se abater com a mudança, o cliente fica feliz. “Que bom, já posso pedir completo”, finaliza. Ele aguarda o “cachorrinho sem tomate” se transformar em “MICHEL!” - o nome saindo com naturalidade da garganta das funcionárias que nunca perdem o fôlego. Michel fica na primeira mesa de pedra e come ali mesmo, ao lado de um cachorro preto e branco que circula pelo local.

Os clientes vêm de longe. Sapucaia, Esteio, São Leopoldo, Canoas, Cachoeirinha. O diferencial, segundo Katia, é a maionese. O sabor é tão bom que elas também oferecem a porção extra, em um recipiente separado. A receita? Fica o mistério para atrair a clientela. A fama do Xis da Alemoa ultrapassa, inclusive, as fronteiras do estado. “Hoje mesmo um senhor comprou e pediu pra embalar. Eles vêm de longe, pedem pra gente embalar bem fechadinho, pra levar no avião.”

Diana atravessa a avenida, ainda procura um local para dormir. Um casal dança na parada de ônibus. A Floricultura Bety, do outro lado da rua, está aberta, mesmo depois da uma da manhã. A música ainda toca na Fruteira da Bel. Cristianinho me chama, um cigarro em cada orelha. Ele carrega uma sacola cheia de comida, uma de cada estabelecimento aberto: um xis, um churrasquinho na caixa, uma porção de batatas. Seu turno de trabalho acabou, se despede. Somente os cachorros dormem. O Xis e Hot Dog da Alemoa segue firme, pronto para receber novos clientes e contar novas histórias. n