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O INGREDIENTE DO DESTINO

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MARIA SAIU DE CASA AOS 15 ANOS, NO INTERIOR DO TOCANTINS, PARA VENCER O PRECONCEITO EM UMA COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL n O bolinho de batata, feito pela própria Maria, não pode n O ambiente é grande, com muitas opções no buffet. Na cozinha, Maria comanda, a filha ajuda e o esposo assume a chapa

Num verão escaldante no norte do país, Maria, de nove anos, resolve preparar um bolo para ela e seus sete irmãos. Sem planejar muito, começa a juntar ovos, açúcar e farinha num pote. “Não tem azeite”, descobre ela. Ao lado do fogão de barro, encostado num bule de café, ela pega um vidro de pimenta curtida em óleo. Derrama uma quantidade do líquido na mistura de bolo e coloca-o para assar. Jorge, o irmão do meio, pega o primeiro pedaço, dá uma mordida com muita vontade e logo grita “Não presta não! Não dá pra comer!”, e sai cuspindo o bolo. Os demais, curiosos, sem entender, provam o bolo e assopram para tirar o gosto apimentado da boca. Em meio a gargalhadas, Maria recorda dizendo: “Ninguém gostou do bolo, mas comemos tudo”.

Maria Pereira Barbosa, uma menina de pele negra, nasceu em 7 de maio de 1977, em Paranã, uma cidade pobre do Tocantins (na época, pertencente a Goiás). Ela, os pais, as três irmãs e os quatro irmãos moravam numa casa pequena, de chão batido, paredes de tijolos de barro e telhado de palha. À noite, dormiam todos juntos em duas camas trançadas com couro de boi ou em redes. “Não tem eletricidade até hoje, e o banho é no rio”, conta Maria. O primeiro vizinho morava a duas horas. Nenzico, seu pai, trabalhava muito. Em troca, ganhava o alimento para a família. “Nunca faltou comida, mas só tinha arroz, feijão e abóbora”, recorda Maria.

“Sempre gostei de cozinhar, para a família, desde a infância”, conta. Mas como eram uma família pobre, às vezes faltavam ingredientes. Quando não estava na cozinha, Maria estava lá fora no pátio, onde fazia os bolinhos de argila, com todo carinho, e deixava secar no sol.

O sentimento de abandono

Outra tarde de muito calor, debaixo da sombra de uma laranjeira. Sentadas, Maria e a mãe, Joana, uma mulher baixinha, séria, que não gosta de abraços. Maria, já com sentimento de abandono, é pega de surpresa pelas palavras de ordem da mãe: “Chegou sua vez de seguir seu caminho sozinha. Você vai morar e trabalhar de babá com outra família”. Nenzico não é muito favorável à ideia, tenta ajudar a filha para deixá-la em casa. Mas Joana, persistente, continua: “Tu vai ir junto com eles para Goiânia, vai obedecer, para ser alguém na vida”. Maria, com 15 anos, não tem opção, e precisa ir. Joana, hoje com 78 anos, ainda diz “quero um futuro melhor para meus filhos”.

Aos 18 anos, Maria conhece um rapaz em Goiânia, e, em meio a conversas, percebe que, onde ela estava, não teria um futuro melhor. No dia 7 de junho de 1995, ela e seu amigo embarcam em um ônibus e vão para o Rio Grande do Sul. “O pessoal do norte elogia muito os gaúchos, diz que são gente do bem”, conta Maria.

No dia 10 de junho de 1995, Maria chega a Santa Maria do Herval, uma cidade pequena onde a grande maioria é de cor branca e descendente de alemães. Desesperada, percebe que ela é diferente das outras pessoas.

No começo, passa por dificuldades em conseguir um trabalho. Ao pedir emprego em duas fábricas de calçados, a resposta que ela ganha é:

Chamada de Schwarz

“Não estamos contratando gente de fora!”. Mas Maria entende que o real motivo é o preconceito por ser negra. Ela não se deixa desanimar, e pede para falar diretamente com o gerente da fábrica Maide, conhecido como Pinduca. Dias depois, Pinduca chama Maria para uma entrevista.

“Eu vim de muito longe até a cidade, e preciso do emprego!”

“Vai na recepção da Maide, estamos contratando!”, diz Pinduca.

“Mas eu já fui lá, eles falaram que não estão pegando gente de fora”, retruca Maria. Pinduca balança a cabeça, desapontado, e fala:“Me dê uns dias, vou ver o que posso fazer por ti!”.

Dez dias depois, Maria recebe uma ligação. Era chamada para trabalhar na Maide. Foi lá que Maria recebeu o apelido: “Schwarz Maria” (Maria preta). Um apelido com um tom preconceituoso, mas que nunca alguém imaginou que um dia seria um nome bastante conhecido e parte de um sonho realizado. Maria trabalhou por 11 anos na fábrica. No dia 2 de abril de 2007, a fábrica fechou.

Servido em cima do fogão a lenha

Sérgio Kolling, pedreiro, está construindo uma parte da casa onde Maria mora com a filha, Mirian Schneider. Certo dia, Maria está fazendo bolinho de chuva. Sérgio aparece na casa dela para receber o pagamento da obra. Maria, sempre querendo mostrar suas habilidades culinárias, oferece um bolinho a Sérgio, que aparentemente gosta, mas não fala nada. Dias depois, Sérgio, sem perder a oportunidade, aparece de novo na casa de Maria. “Vim aqui pois gostei do teu bolinho de chuva, queria comer de novo!”. E foi assim: através de um bolinho de chuva, Sérgio e Maria estão casados até hoje.

Em 2008, Maria realiza um dos sonhos dela, feliz e ao mesmo tempo em desespero. Enquanto cursava corte e costura, abre um negócio próprio. Uma malharia, onde vende as peças produzidas por ela mesma. “Época de inverno vendia de 80 a 100 kg de roupas”, conta Maria. A loja fica anexo ao restaurante, com o mesmo nome: Malharia Schwarz Maria e Restaurante, Pizzaria e Panquecaria Schwarz Maria. Meses depois, Maria e Sérgio tomam uma decisão: fechar a malharia e seguir somente com o restaurante, pois a malharia não estava dando retorno. “Quando você abre um negócio próprio, não pensa nas dificuldades que pode passar, só pensa nas coisas boas”, diz Maria. Fica somente com o restaurante.

Hoje, o Schwarz Maria tem 24 mesas, capacidade para 100 pessoas sentadas, e serve almoço de segunda a domingo. Comidas servidas em cima de fogão a lenha, com várias opções tentadoras. Diversas saladas, lasanha, massa alho e óleo, arroz, batata, feijão, carne de panela, bifes, ovo frito, batata doce caramelada, batata frita, bolinho de arroz, bolinho de batata, entre outros. Além das sobremesas. Aos sábados à noite, acontece o rodízio de panquecas ou o rodízio de pizzas com acompanhamentos.

Em fevereiro de 2023, o restaurante ficou de cara nova. Além da pintura da cascata, na entrada, as paredes amarelas em tom claro recebem 10 frases motivacionais e reflexivas – “A mente cozinha e a alma tempera”, “Ame o que você faz”, “Barriga cheia coração contente” –, com desenhos de pessoas e pratos.

Clientes de outra cidade

Noite de temperatura amena, 6 de maio, dia de Rodízio de Pizzas, com acompanhamento de buffet e bifes na chapa. Onze minutos antes de começar o rodízio, às 19h49, entra uma turma de sete pessoas – quatro homens e três mulheres –, a maioria idosos. Viajaram cerca de 39 quilômetros de Kombi até o restaurante. Ida, de 74 anos, é a mais alegre. Está de bengala, é um pouco corcunda, de cabelos escuros e curtos. Os sete se sentam em uma mesa, e o diálogo entre eles é em Hunsrik (dialeto alemão).

O ambiente é silencioso, tem duas televisões ligadas em noticiário, em volume baixo. Aos poucos chega mais gente. Na cozinha, Maria, com seu avental e touca de pano florido, dá as coordenadas, mas sempre carismática, alegrando o pessoal em volta. “Posso colocar o arroz?”, pergunta Mirian, a filha de 23 anos, que também ajuda no restaurante nos finais de semana. Maria responde: “Pode!”. A garçonete Angela de Moura, 43, serve as bebidas. Maria fica no preparo das pizzas. E Sérgio, 59, de pele clara e mais reservado, também de avental e touca branca, fica responsável pela chapa – cuida dos bifes, de frango e de gado, com opção de queijo. Maria dá uma última checada no buffet. Mirian dá um sinal de positivo para Angela, mostrando que está liberado.

Mariane Weber, 45, com movimentos ágeis, serve as pizzas, começando pela de calabresa, passando mesa por mesa e anunciando o sabor. Não demora muito, Mariane começa a servir os doces. Ela para do lado de Ida e oferece: “Pizza de abacaxi com chocolate branco”. Ida aceita um pedaço com n As paredes são repletas de frases reflexivas. Entre elas, porém, destaca-se o pequeno texto em que Maria conta, orgulhosa, a própria história um aceno de cabeça. Mariane prontamente lhe serve. “Awer soo en kroos xtik!” (“Mas um pedaço tão grande!”) Mariane fica sem jeito, dá um sorriso de canto e segue para a próxima mesa.

A receita mais pedida

Numa sexta do mês de abril, às 11h27min, a cozinha já está a todo vapor. Maria prepara o que é mais pedido no restaurante: bolinho de batata. Confere o moedor e pede para Sérgio ligar a máquina na tomada, “Tenho medo de colocar essas coisas”, diz ela. Com as batatas já descascadas, coloca-as no moedor. Embaixo dele saem as finas tiras de batata que caem numa bacia. Feito isso, Maria acrescenta a farinha, os ovos, o sal e o “amor” (como é chamado o tempero que ela não revela). “O segredo é não contar a quantidade.” Com as mãos mesmo, ela mistura tudo. “Se a massa ficar seca, pode colocar água. Só não pode ficar com bolinhas de farinha”, diz, e separa as tirinhas de batatas embolotadas. Já com o óleo quente, e ainda com as mãos, Maria esmaga uma porção com os dedos, ficando bem fininha, e coloca no óleo. “Aí você escolhe se quer mais branquinho ou mais douradinho”, fala Maria enquanto tira os bolinhos e serve no buffet.

Nas mesas ouve-se os clientes elogiando o bolinho. Um senhor alto, acompanhado do pai, coloca um bolinho no prato dele e lhe diz. “Prova esse bolinho. É muito bom!”

Uma mulher, baixinha de cabelo loiro, com um pote de sobremesa, ao voltar para a mesa observa as paredes, lê com atenção. Embaixo de uma das televisões, há uma história de vida contada por Maria. Um texto muito inspirador, com 210 palavras, que encerra com: “Desde então estou muito feliz, por me expressar através da comida!”. n