Caixão não tem gaveta
E
ra Sábado de Aleluia, numa manhã amena e com ocasionais pancadas de chuva, quando fui pela primeira vez no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Chegando lá, subi ao terceiro andar, onde se encontra o setor de Serviço de Dor e Cuidados Paliativos do Grupo Hospitalar Conceição. Foi naquele cenário que encontrei personagens de histórias que me surpreenderam por não falarem só de dor, mas de esperança e de superação. Elbert Jagnow tem 49 anos, cabelos claros, barba bem aparada e olhos pequenos. É ele quem me recebe. Pastor luterano, trabalha na assistência espiritual dos pacientes e explica o trabalho realizado por ele e por seus colegas: “Os cuidados paliativos são os cuidados necessários quando não se tem mais uma perspectiva de cura. É um trabalho para dar qualidade de vida enquanto ainda há vida”. Segundo Jagnow, a dor que pode ser encontrada nesse setor é a “dor total”, em que o ser humano está em um ponto alto de seu sofrimento, tanto biologicamente, quanto espiritual, psicológica e socialmente. A equipe, que é composta por diversos profissionais, tem o papel de absorver essa dor, ouvir e prestar atenção no que os pacientes estão sentindo e precisam. É mais que receitar remédios, é dar atenção. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 54 | JULHO DE 2016
Nada se leva dessa vida. Nos cuidados paliativos isso fica ainda mais evidente Por Natália Scholz Fotos Marco Prass
Iraci Jagnow é meu guia no setor. É ele quem fala com os pacientes, pergunta se querem ou se têm condições de falar comigo. Na segunda visita ao hospital, conheci Iraci Hoerlle, de 82 anos, que recém havia descoberto um câncer no intestino. Ela vestia o avental do hospital, exibia sobrancelhas desenhadas, batom nos lábios, cabelos presos e um sorriso doce. Ainda não sabia se poderia ser operada ou não, mas encarava a situação com tranquilidade. Ela já estava ali fazia oito dias. A descoberta da doença começou depois do processo de mudança de apartamento. “O excesso de trabalho me derrubou”, lembra. Durante a entrevista, em muitos momentos, ela sentia dor e, mostrando a finura da perna, contou que perdeu 15 quilos. “Eu não era assim magrinha”, confidencia baixinho. Iraci gosta do serviço do hospital, mas não nega: “A minha cama é melhor, né?!”. Ficar parada é um desafio para ela, que sempre teve uma vida
ativa. Durante 25 anos trabalhou em um cargo de chefia da Porcelana Renner e se aposentou aos 40 anos. Depois trabalhou mais 10 em outra empresa. “Vou fazer o quê? Ficar em casa? Eu não sirvo para isso!”, declara. Com 50 anos, Iraci resolveu viver uma aventura internacional. Por dominar três idiomas (inglês, alemão e português), trabalhou como recepcionista em um restaurante chique nos Estados Unidos. Só voltou ao Brasil depois de viver uma cena digna de Hollywood: ela e alguns colegas de trabalho estavam em um carro e nevava. O veículo perdeu o controle e ficou com a traseira presa em um trilho de trem. A traseira foi arrancada, mas todos ficaram bem. Iraci, no entanto, tomou uma decisão. “O país mais lindo do mundo é o Brasil, não importa o governo. Eu vou é pra casa”, lembra. Iraci também conta que foi casada com um homem viciado em jogar cartas, o que a levou a pedir divórcio depois de acumular tantas dívidas do marido. Na época, a separação era chamada de “desquite”, e ela lembra como o juiz a questionou por não ter filhos. “Eu não ia botar um filho no mundo para passar trabalho. Com o dinheiro que eu ganhava, não dava para pagar uma babá – porque creches não eram comum naquela época –, sustentar minha sogra e o vício do meu marido.” No processo