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UNISINOS - PORTO ALEGRE EDIÇÃO 10 - NOVEMBRO DE 2017

Lembranças de uma vida aprisionada Ex-detenta, Carolini Alves reconstruiu a vida após a saída da prisão, e é um caso raro na sociedade brasileira TEXTO: Maria Júlia Pozzobon FOTO: Fernanda Garrido

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á quem pense que a prisão é o preço que se paga pelo crime, mas a verdade é que esse preço vai muito além. A reinserção do ex-detento na sociedade tem como principal barreira o preconceito, principalmente na hora de se candidatar a uma vaga de emprego. “tive sorte de ser defendida pela minha família, que sabe o verdadeiro motivo da prisão, depois deixei a sociedade de lado e recomecei do zero”, conta Carolini Alves. Aos 31 anos ela é um caso raro no meio de muitos brasileiros que não conseguem reconstruir a vida após a saída da prisão ou não têm oportunidades no mercado de trabalho. Hoje, ela é casada com Cristiano, tem dois filhos, Ana Carolina, que completou o primeiro ano, e Gabriel, com 10, que na época em que foi julgada, tinha apenas três anos e chorava

diariamente de saudades da mãe. “Não existe lugar pior, eu riscava os dias em um calendário e eles não passavam nunca. Fazia planos para sair e recomeçar de novo como se eu estivesse nascido novamente, começar uma nova vida em outro lugar, ao lado de pessoas diferentes e do bem”, relata a ex-detenta. Apesar dos obstáculos, o índice de reincidência entre as mulheres é considerado baixo em relação ao dos homens. Elas geralmente estão relacionadas ao tráfico de drogas por causa da influência dos companheiros, como foi o caso de Carolini. “Com certeza, não desejo isso para ninguém, mas para mim foi o preço que paguei por ter me envolvido com pessoas erradas, e o custo foi alto. Senti meu coração doer de verdade e fiz muitas pessoas sofrerem com isso”, contou. Fabiana Cruz Parizzoto, psicóloga formada pela Universidade Tuiuti do Paraná- UTP, pós-graduanda em psicologia clínica, já foi coordenadora na área dos recursos humanos em duas empresas multinacionais. Ela conta que patrões geralmente exigem antecedentes criminais dos funcionários que serão contratados. “Algumas empresas acreditam que o ex-detento já cumpriu sua pena na cadeia e está aberto a uma nova vida, com direito a uma ressocialização,

mas infelizmente, esse número é muito pequeno no mercado de trabalho”, contou a psicóloga. Carolini relata que no momento em que estava realmente livre, após 10 meses detida no presídio estadual de São Luiz Gonzaga e mais quatro cumprindo o regime semiaberto, estava preparada e disposta para se tornar outra pessoa e conseguir mudar a sua vida. “Vivenciei muitos fatos, mas o meu foi um grande aprendizado”, ressaltou. FAMÍLIA É ESSENCIAL Para Carol, apoio foi mais do que fundamental. Hoje ela é agente de viagens na empresa de turismo da família. Conta que sua força maior vinha do filho, na época uma criança, que não entendia a situação, mas motivava a mãe pelo simples fato de ela saber da importância que tinha na vida dele. “Ele não merecia ser criado pelo mundo ou pelos avós e sim por uma mãe. Então, quando a tristeza batia, ele vinha me visitar, me abraçava, me beijava e pedia para eu voltar logo para casa, pois ele sentia muitas saudades da mamãe”. Segundo a psicóloga Fabiana, muitos jovens relatam verdadeira realidade nas entrevistas de emprego, porque desejam sair do tráfico e lutam por um emprego com carteira

assinada. Em contrapartida, eles comentam que o que ganharão na empresa, eles tirariam em uma semana trabalhando com o tráfico. “Muitos chegam a procurar um emprego de carteira assinada para, pelo menos, provarem que todo o dinheiro que ganham, sai de alguma fonte”. A mãe de dois filhos, esposa e agente de viagens relata que perdeu o medo de tudo, apenas por estar livre. Considera que se talvez não tivesse passado pelo o que passou, não teria se tornado a mulher que é hoje. “Reconstruí uma família linda que depositou uma confiança em mim ao ponto de que hoje sou a chave principal da nossa casa. Tenho meu marido, meus dois filhos, meu trabalho e vivo imensamente feliz”, finalizou. Quem passa pelo Sistema Penitenciário Brasileiro, mesmo após ter cumprido a pena que foi estabelecida pelo Estado, está marcado para sempre pelo estigma de ser um ex-presidiário. O medo é justificável, tendo em vista que cerca de 42% de ex-penitenciários, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), voltam a praticar crimes e acabam na prisão mais uma vez. Carolini é realmente um caso raro perante a realidade brasileira, na qual muitos ainda seguem na jornada atrás de um emprego.


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