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Nesta edição l Galgos sofrem com os maus-tratos l Porto Alegre também é local de samba l Escola promove capoeira e cultura afro-brasileira l Os desafios do transporte público l As psicoterapias na cultura digital

Lupa Porto Alegre | Dezembro de 2023 | Edição 17

capital

CÉSAR LOPES / BANCO DE IMAGENS DA PMPA

Cheias surpreendem

Nível do Guaíba ficou próximo da marca histórica de 1941


2 | PETS |

O que torna Galgos suscetíveis a abandonos e maus tratos? IMAGENS: ARQUIVO PESSOAL / MARCELL FERREIRA

Ativista da causa animal no RS explica as características da raça e suas vulnerabilidades Por Marco Antônio de Oliveira Moreira

O

s cães da raça Galgo tem características dóceis e costumam se comportar de forma muito tranquila. Tratam-se de animais que se dão bem tanto em casa como em apartamentos, desde que protegidos com os devidos cuidados. E a falta desta proteção os colocam em situação de vulnerabilidade e abandono. Participação indevida em caças, corridas clandestinas e procriação descontrolada configuram um elenco de fatores que impulsionam essa triste situação . Eles formam umas das raças mais antigas do mundo, caracterizadas pelas pernas e pescoço compridos, além da caixa torácica maior que outros cães. Outra característica diz respeito à velocidade, já que eles são extremamente rápidos e considerados os caninos mais velozes. Do mesmo modo, são calmos, inteligentes, higiênicos, além de ótimas companhias. Para a manutenção destas características, precisam de exercícios diários, visto que são cães atléticos, mas, ao mesmo tempo, amam conforto e sossego, além de interagirem bem com outros cachorros e com as pessoas. “É bom que eles estejam sempre em atividade, com um passeio diário no mínimo, onde possam correr e gastar energia”, reforça Marcell Ferreira, ativista da causa animal e apaixonado pelos galgos. Ele idealizou e fundou a ONG Patrulha Animal que, desde 2021 se dedica ao resgate e cuidados com os animais abandonados, cuja atuação se estende a vários estados brasileiros. Sua organização está atenta aos maus tratos que sofrem as diversas espécies da fauna. Sobre os cuidados específicos com os galgos, salienta que eles também precisam de alimentação composta de muita proteína, na medida em que possuem um porte físico diferenciado. “Consultas de rotina são necessárias, pois ao mesmo tempo que são uma raça atlética, são extremamente delicados”, destaca o ativista. Natural do município de Santa Rosa, Marcell cria galgos há mais de sete anos

Infelizmente a raça é usada para caças, corridas clandestinas e procriação descontrolada” Marcell Ferreira, fundador da ONG Patrulha Animal

e desenvolveu um afeto todo especial pela raça. Ele demonstra carinho e preocupação pela maneira como estes bichinhos são tratados e faz o que pode para ajudar no resgate e cuidados. “Infelizmente a raça é usada para caças, corridas clandestinas e procriação descontrolada, aqui no Sul principalmente! Tudo isso gera danos à saúde do animal, sobretudo, fraturas. E então são infelizmente abandonados em situações extremamente precárias quando não servem mais para seu antigo ‘tutor’, principalmente se quebram e/ou fratu-

Unisinos Porto Alegre) é uma publicação experimental produzida por alunos Lupa (Leia do curso de Jornalismo. REDAÇÃO – T : alunos da disciplina de Jornal e Notícia, extos

sob orientação do professor Ronaldo Henn. ARTE – Projeto gráfico: alunos da disciplina de Planejamento Gráfico (turma 2019/2) Carolina Pinto e Jéssica Montanha, sob orientação do professor Everton Cardoso. Diagramação: Marcelo Garcia (Agência Experimental de Comunicação - Agexcom). Impressão: Gráfica Uma.

Galgos são cachorros dóceis e inofensivos. Acima, Galgo resgatado pela ONG Patrulha Animal

ram a pata”, lamenta. Junto com a sua organização, o ativista faz operações de acolhimento, resgates, salvamentos, busca por lares temporários aos bichinhos e principalmente, dar a estes uma vida digna.

Clandestinidade

Apesar de sancionado um decreto em 2021 pelo Governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que proíbe as corridas de cães da raça Galgo Campeiro, elas seguem acontecendo de maneira clandestina pela região da fronteira. Estas corridas ocorrem em alguns países de forma legal, entretanto as discussões com relação ao uso destes animais para entretenimento, com os consequentes maus-tratos e abandonos se torna cada vez mais ampla. Uma reportagem-denúncia já havia sido apresentada pelo dominical Fantástico da Rede Globo em janeiro de 2021, em que foram reveladas as situações pelas quais os animais passavam por seus “tutores” antes, durante e após as corridas competitivas. Entre os atos incluíam medicamentos energéticos e apostas em dinheiro. Além disso, os eventos desrespeitavam, na época, as medidas de segurança contra a disseminação do Coronavírus. Marcell salienta que, apesar disso, a caça ainda é a principal causa de abandono e maus tratos da raça. O idealizador da Patrulha Animal diz que a ONG está sempre atenta às redes sociais, onde possa haver denúncias de comércio ilegal da raça. “Somos também pioneiros em mostrar que eles são, acima de tudo, uma boa companhia, especialmente para gerar interesse nas adoções após o resgate dos mesmos”, destaca. O ativista, porém, diz que trabalhar com causa animal é bem difícil. “Muitas vezes temos apoio nas redes como Instagram e Facebook das pessoas, nos grupos de WhatsApp de amantes da raça, mas muitas vezes tiramos do nosso próprio bolso. Não podemos deixar os bichinhos inocentes sofrendo e sendo vítimas de maus tratos. Temos galgos espalhados por todo o Brasil, por isso pedimos indicações de bons lares”, finalizou. O trabalho da ONG Patrulha Canina está disponível nas redes sociais como Facebook e Instagram, através do perfil patrulha_animalsr.rs.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Campus Porto Alegre: Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600 - Boa Vista, Porto Alegre (RS) - 91330 002. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vice-reitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Cristiano Richter. Diretora de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Decana da Escola da Indústria Criativa: Laura Dalla Zen. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret.

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Enchentes em Porto Alegre: 82 anos separam eventos históricos CÉSAR LOPES / BANCO DE IMAGENS DA PMPA

Em 1941, o Guaíba alagou o Centro Histórico da cidade, enquanto, em 2023, o sistema de contenção de cheias evitou tragédias maiores Por Rafael Renkovski

C

onsiderada a maior campanha militar alemã durante a Segunda Guerra Mundial, a “Operação Barbarossa” tinha como objetivo a invasão da União Soviética. Do planejamento à incursão no Estado, ocorrido em junho de 1941, os nazistas pretendiam aniquilar o governo comunista “judaico-bolchevique” e os cidadãos soviéticos, principalmente judeus. Apesar de importantes conquistas territoriais, os alemães foram barrados pelo Exército Vermelho e o confronto terminou com a rendição nazista em 1945. Pouco antes do princípio da tentativa Moradores das ilhas são os alemã de conquistar o território soviético, mais afetados. Em 1941, em abril de 1941, do outro lado do oceano água invadiu centro histórico Atlântico, na calma - até então - Porto Alegre, a história dos impactos climáticos na região tomava novas proporções. Não foi o Atlântico, mas as águas do Guaíba que começavam a transbordar para a cidade. Durante mais de 20 dias de intensas tragédia, o evento climático não cipalmente, pelo poder público, na chuvas, que totalizaram 619 milímetros de pode ser considerado uma surpreparte de planejamento para conseguir volume acumulado e o recorde de 4,76 sa, explica Guimaraens. Mesmo enfrentar todos esses desafios”. metros de elevação do nível de água, fez assim, a primeira reunião entre os Defendido pelos atuais gestores com que o Centro Histórico ficasse ala- governantes ocorreu 18 dias após do município e do Estado, Melo e gado. O fenômeno ainda foi intensificado o princípio, o que, segundo ele, Eduardo Leite (PSDB), a derrubada com um efeito de represamento decorrente “demonstra falta de atenção ou do muro da Mauá e a implementação do vento Sul. de planejamento”, em virtude do de um novo sistema de prevenção Por ter começado lentamente, foram quadro considerado gravíssimo. contra enchentes voltou à pauta após poucas as mortes decorrentes da enchenPassados 82 anos e outra grande os acontecimentos deste ano. Posto à ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL te, já que houve tempo para a evacuação enchente, em 1967, quando o Guaíba prova nos últimos eventos, o sistema da região. Mas os estragos, por sua vez, atingiu 3,13 metros, a Capital gaúcha so- bocam no Guaíba apresentaram cheia e de contenção de cheias apresentou falhas, marcaram a cidade e atingiram cerca de freu novamente com as cheias, chegando três deles (Taquari, Caí e Sinos) regis- apesar de ter evitado o pior. 70 mil pessoas. Autor do livro “A Enchente ao nível de 3,17 metros, em setembro de traram cheias de grandes proporções”, O atual diretor-geral do Departamento de 41”, que retrata a história do evento cli- 2023. Não obstante, dois meses depois, em conclui a MetSul. Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Maumático, o escritor Rafael Guimaraens conta novembro, a cota chegou a 3,46 metros, a Contrastando os eventos históricos, a rício Loss, responsável pela gerência das que “os principais serviços públicos foram maior desde 1941. As duas ocasiões ocor- meteorologista Estael Sias destaca que a comportas, diz que a ideia da derrubada interrompidos, como telégrafos, correios e ridas neste ano fizeram com que o atual população e a ocupação urbana aumenta- do muro é de “uma substituição do sistema transportes marítimo, ferroviário e aéreo, prefeito, Sebastião Melo (MDB), decretasse ram significativamente desde 1941, além contra as cheias e não a simples retirada”. além da circulação dos bondes”. situação de emergência na cidade. do aumento do processo de assoreamento Segundo Loss, a substituição seria por um “Cerca de 600 empresas, principalmente Desta vez, a segunda maior cheia des- dos rios, que é o acúmulo de sedimentos, sistema de arquibancadas, “que vai proteger de pequeno comércio, armazéns, bares, de 1941 foi em um dia ensolarado, fato que lixo e outros materiais levados até o leito a cidade e os armazéns, que devem passar fabriquetas e até mesmo grandes indústrias despertou o interesse no mundo das redes dos cursos d’água pela ação humana, da por um grande processo de revitalização”. foram afetadas”, destaca o escritor, com- sociais. A empresa MetSul Meteorologia chuva ou do vento. O escritor Guimaraens comenta que plementado que “muitos explica que “o Guaíba não “o muro é uma consequência da enchente pequenos negociantes é como uma rua, em que Futuro de 1941” e Estael lembra que, todavia, não conseguiram reabrir precisa estar chovendo Alertando para o futuro, Estael diz que “demorou cerca de 30 anos para que viseus estabelecimentos”. para a água subir” e “tra- a tendência é a maior frequência do acon- rasse uma ação de prevenção”, com a Hoje nomes de ruas, ta-se de um corpo hídrico tecimento de eventos extremos. “Algo que construção no início dos anos 1970. “Se Loureiro da Silva e Corque está na ponta final de era para demorar 100 anos para se repetir, tivermos uma enchente da proporção de deiro de Farias eram os vários rios”. Desta forma, acontece numa escala de meses agora. 1941, com níveis tão extremos, o muro vai gestores municipais e “os elevadíssimos volu- Não é mais futuro, é presente”, frisa. Ainda, fazer esse trabalho de ajudar a barrar parte estaduais à época, resmes de chuva da semana para ela, “é preciso preparar as próximas dessa água e, se não proteger a população Estael Sias, pectivamente. Como não anterior fizeram com que gerações para, na medida do possível, se durante toda a cheia, pelo menos vai ampliar meteorologista houve um ciclone ou um os rios subissem muito”. proteger”, acrescentando que “isso não o tempo de reação da cidade”, argumenta vendaval que iniciou a “Todos os rios que desem- passa apenas pela sociedade, mas, prin- a meteorologista.

Não é mais futuro, é presente”

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4 | CARNAVAL |

Samba resiste em Porto A mesmo com a falta de inc PEDRO PIEGAS / BANCO DE IMAGENS DA PMPA

Uma imersão pelo samba e carnaval porto alegrense através do olhar de uma pessoa branca que sempre amou esse universo

Porto Aleg também é local de sam

A

Por Bárbara Neves

pesar de ser conhecida como uma cidade formada por colonização portuguesa e de outros povos europeus, Porto Alegre tem grande influência da cultura africana. Prova disso são lugares como a Banda da Saldanha, o Areal da Baronesa, conhecido como o berço do samba em Porto Alegre e as escolas de samba tradicionais da cidade. Porém, há anos se percebe um movimento de diferentes gestões da prefeitura, que redunda na falta de incentivo financeiro e cultural para o carnaval da capital. Pensando nisso, eu conversei com pessoas que vivem o samba e o carnaval de Porto Alegre para mostrar a importância desses movimentos culturais, assim como para colher a opinião desses cidadãos sobre a invisibilidade causada pela falta de apoio da Prefeitura. Tratam-se de pessoas vinculadas a eventos como o Arrastão da Saldanha, que ocorre todos os anos no dia 12 de outubro e de outras que vivem o samba e o carnaval, nas figuras dos integrantes da Estado Maior da Restinga. Iniciei minha jornada em dois eventos. O primeiro foi o Arrastão da Saldanha, no feriado do dia 12 de outubro. O início estava marcado para às 16h. Cheguei depois das 17h e assim consegui presenciar o Arrastão desde o início. Acredito que devido ao mau tempo, bastante nublado e frio, o que é incomum nessa época do ano, não havia muitas pessoas no local. Olhei nas redes sociais imagens do evento no ano passado e era completamente contrastante com o que eu presenciei, pois aquele foi um dia de sol e calor e havia uma multidão seguindo o trio elétrico em que a Banda da Saldanha toca sucessos do samba e do pagode. Mesmo com pouco público, uma coisa era nítida: a imensa maioria dos presentes era negra. Pude perceber que a celebração não

Renato Dorne jornalista

ARQUIVO PESSOAL / FÁBIO FREITAS

Acima, homenagem à Anastácia garantiu o título. Ao lado, bateria prepara os instrumentos

foi percebida com muito destaque, pois como ela ocorre na Orla do Guaíba, quem estava pedalando, praticando exercícios e passeando no local, olhava com estranheza para o que estava acontecendo. No dia primeiro de novembro fui até a quadra da escola Imperadores do Samba, que fica próxima ao Estádio Beira-Rio, na zona sul da capital. Lá estava ocorrendo o que a escola chama de “Quarta Nobre”, um evento em que agremiações convidadas se apresentam. Naquela noite, ocuparam a quadra a União da Tinga, a União da Vila do Iapi e por último a própria Imperadores. O evento era gratuito para quem chegasse até às 22h e iniciou por volta das 22h30, com a União da Tinga apresentando o seu enredo para o carnaval de 2024: Exú, entidade da Umbanda e do Candomblé, que é orixá da comunicação entre o plano terreno e o espiritual. Foi surpreendida positivamente, pois apesar de saber que esses encontros entre escolas são comuns, nunca havia ido em um para saber que as agremia-

ções fazem um min o público presente. A escola iniciou c são de frente compos pomba-giras, munidos cigarros característico intérprete cantava o sa com apenas poucos da bateria tocando. toda a bateria se apre a vez da porta-estan carnavalesca que é m nas no carnaval de P apresentar o pavilhã da Tinga para a Impe sequência, o casal de e porta-bandeira mo elegante bailado, se par de passistas e dem tes, como as musas O que me chamou a respeito que os inte agremiações têm ent anfitriões sempre beij deira dos convidados de admiração. Houve em que o casal de m porta-bandeira convid com o anfitrião, numa união. Outro fato que a organização das es coreógrafa da comiss e os integrantes respo harmonia ficavam o orientando o desfile escola estivesse pass cabines de jurados. O sente era majoritariam

Berço do samb

Conversei com o j nato Dorneles, que é em samba e carnaval comentarista das trans desfiles da capital. Ele que o samba na cidad década de 1930, atra das de jazz que se apre vivo nos cafés da cida pelas rádios, como a que possuíam auditó LUPA | Dezembro de 2023


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Alegre, centivo

gre um mba”

eles,

idesfile para

com a comissta por exús e s de bebidas e os, enquanto o amba-enredo instrumentos Depois, com esentando, foi ndarte, figura mantida apePorto Alegre, ão da União eradores. Na e mestre-sala ostrou o seu eguidos pelo mais integrane destaques. atenção foi o egrantes das tre si, pois os javam a bans como forma um momento mestre-sala e dado dançou a bela cena de eu destaco é scolas, pois a são de frente onsáveis pela o tempo todo e, como se a sando por três O público premente negro.

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jornalista Reé especialista l, além de ser smissões dos e me explicou de nasceu na avés das banesentavam ao ade e também a Farroupilha, órios em que

essas bandas performavam. Mas foi no início dos anos 1940 que o Areal da Baronesa viria a ser o berço do samba na capital. Renato destaca, nesta cena, a figura de Lupicínio Rodrigues, maior sambista gaúcho, com o seu estilo “dor de cotovelo” ou samba-canção, que o consagrou na boemia de Porto Alegre. O jornalista conta sobre a tradição dos blocos e bandas, que ficaram um pouco de lado durante o período da Ditadura Militar devido à censura por suas críticas sociais e ressalta que a Banda da Saldanha, fundada em 12 de outubro de 1978, hoje possui sede própria que serve como palco para muitos artistas regionais e nacionais de samba. Destaque também para o bloco Maria do Bairro, que já chegou a sair com 40 mil pessoas na época em que desfilava no carnaval da Cidade Baixa. “Muitas pessoas de fora do estado acham que a cidade é um local apenas com espaço para o tradicionalismo e o rock, mas Porto Alegre também é um local de samba” diz Renato. Outro ponto importante na história do samba e do carnaval porto-alegrense é que ao longo do tempo ele sofreu um processo de gentrificação, que é como uma expulsão de segmentos sociais das regiões centrais da cidade, que afetou, sobretudo, as comunidades e populações negras. Em alguns casos houve remoção compulsória, como na Ilhota, e em outros a evasão se deu devido à especulação imobiliária dos locais. Nas décadas de 60 e 70 o carnaval era extremamente centralizado em avenidas como a João Pessoa, a Perimetral e Augusto de Carvalho. Durante esse período, pessoas das mais diversas classes sociais participavam do evento. Renato lista alguns fatores que ao longo do tempo diminuíram o apelo ao carnaval da cidade: a redução da distância para as praias com a construção da Freeway, que faz com que muitos saiam da cidade no feriado, a ida de muitas pessoas para acompanhar o carnaval nas regiões Sudeste e Nordeste e principalmente, o que ele considera um grande equívoco, retirar o carnaval do centro e colocá-lo no extremo norte da cidade. Ele afirma que a distância fez com que muitos frequentadores do evento deixassem de participar.

“Tinga, teu povo te ama” Bairro tem forte tradição no samba, mas sofre com discriminação

do local, que é a Estado Maior da Restinga e a União da Tinga. E aí surge na Restinga o famoso grito ‘Tinga teu povo te ama’. Foi um presidente da época que na hora da arrancada do desfile gritou essa frase e ficou. Todos os intérpretes até hoje usam isso como um grito de guerra”. Renato enumera outras frases marcantes, como “Sou da Tinga e daí?” e “Quem gosta de nós somos nós”, enunciados que combatem o preconceito. “Foi uma escola de samba que surgiu em uma comunidade muito discriminada e se tornou uma potência do carnaval de Porto Alegre. A Restinga é um exemplo de escola de comunidade que virou uma escola fortíssima e motivo de orgulho”, finaliza.

cedor foi sobre a história de Anastácia, escrava que ficou conhecida como uma das mais importantes figuras negras do Brasil. O mestre de bateria, Fábio Freitas, ressalta a Um dos bairros mais popuimportância da comunidade. “A eslosos e carnavalescos de Porto cola não seria a escola que é hoje Alegre é a Restinga, que tem sua se não fosse a comunidade, então origem na Ilhota e na Vila Santa a importância da comunidade para Luzia. O bairro construiu uma tradentro da escola é fundamental dição forte no samba, mas pelo porque eles são a nossa força. A fato dos desfiles acontecerem no gente trabalha aqui dentro por eles, outro extremo da cidade, muitos para eles chegarem lá no dia da moradores deixaram de participar apuração e ficarem felizes como do carnaval. “A Restinga tem um ficaram esse ano com a escola povo vitorioso devido aos desafios sendo campeã”. enfrentados por viver em um local O diretor de bateria, Jeferson com distância de 22 km do cenNeves, reforça a importância das tro, em uma época que do bairro frases de autoafirmação ditas pela Menino Deus até a Restinga não escola durante os desfiles. “Quem existia nada. Não havia iluminação gosta de nós somos nós” é uma nas casas, era necessário o uso frase forte que significa muitas de lampiões, havia frestas nas Comunidade coisas, não é simplesmente quemadeiras das casas, o que fazia O amor pela escola ultrapassa rer ser egoísta com o resto das com que o frio se intensificasse gerações, e Seu Marco Aurélio, pessoas. Mas é a história da codurante o inverno e não havia luz figura histórica da agremiação, munidade da Restinga, do bairro nas ruas, os moradores se guiavam cresceu junto com os pavilhões. que teve origem com moradores pela lua. Existiam apenas duas “O amor que a gente tem des- ‘excluídos’ da capital”. viagens de ônibus para o centro de pequeno, isso aqui não tem Ter essa imersão no samba e da cidade naquele período, a situa- palavras que defina. Eu prefiro carnaval de Porto Alegre com cerARQUIVO PESSOAL / FÁBIO FREITAS ção era muito precária teza me transformou. e as pessoas resistiEu já gostava muito do ram” conta o jornalista tema, mas vivenciar Renato Dorneles. No de fato, estar junto de início dos anos 70, foi quem faz o espetáculo construída a Restinga acontecer me encanNova, um núcleo com tou. O brilho no olhar casas de alvenaria, o de cada componente, que gerou revolta nos o suor que escorria moradores da Restinda pele, o profissioga Velha, pois lhes foi nalismo e dedicação prometido que eles teque cada um tem com riam essas habitações a sua função dentro quando se mudaram da escola, são como para o bairro, coisa que pequenas peças que nunca ocorreu devido fazem uma grande enà empecilhos impostos grenagem rodar. Poder pelo governo como a ouvir Renato Dorneles comprovação de renda foi como ter uma aula via contracheques, o da história negra da que era impossível pois capital. Quando era a maioria da população criança acompanhava se mantinha fazendo os seus comentários Restinga brilha serviços informais. às vezes, muitas vezes es- nas transmissões de desfiles na Renato lembra que, na avenida tar aqui do que estar em TV e nunca imaginei que teria a durante muito tempo, casa”. Considerada musa oportunidade de conversar com assim as pessoas associavam: do Estado Maior, Íris Neto, refor- ele. E ainda fui pela primeira vez quando se falava em pobreza, ça que a escola é movida pela para o bairro Restinga e não achei se falava em Restinga. Ou seja, comunidade, e pelo engajamento tão distante como muitos falam. o bairro era vinculado pejorativa- das famílias. “Aqui tu encontra Foi incrível ver o amor que cada mente à pobreza, o que intensifica- pais, filhos, netos. Que durante integrante tem pelo seu pavilhão, va o preconceito em relação a essa todos esses anos frequentam a a simpatia com que me receberam comunidade. “Por conta disso, escola, são ritmistas, foliões, são e a grandeza da quadra. Diante de hoje os moradores e, principal- pessoas que estão no Barracão. tudo que presenciei, posso afirmar mente, os componentes da escola São pessoas da comunidade que que o carnaval porto-alegrense é de samba, fazem uso de algumas se envolvem, pessoas que vêm negro e popular, feitos por pessoas palavras de ordem e algumas coi- de fora e que são abraçadas pela que trabalham o dia inteiro e ainsas que mostram o orgulho dele, comunidade,” salienta. da assim encontram no amor por o orgulho com a comunidade e o A escola é a atual campeã do esse espetáculo a disposição para orgulho com as escolas de samba carnaval da capital. O enredo ven- ensaiar até altas horas da noite.

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6 | DIVERSIDADE |

Escola de capoeira promove aulas e cultura afro-brasileira IMAGENS: TOBIAS ARAÚJO

Localizada na Avenida Cristóvão Colombo, o espaço é aberto ao público e resgata heranças dos povos negros nas aulas da arte marcial, que une música, dança, luta e fala Por Tobias Araújo

A

capoeira é uma expressão cultural afrodescendente trazida pelos povos escravizados do continente africano para o Brasil. Assim como o candomblé e o batuque, a arte foi por muito tempo proibida no país. Apenas nos anos 1970, a capoeira voltou a ser praticada de forma lícita. Marcada por lutas contra a opressão e racismo, a comunidade afrodescendente em Porto alegre é um símbolo de resistência para quaisquer gerações do povo negro no país. Atualmente, a capoeira é dividida em duas escolas: a angola e a regional. Capoeira angola se aproxima mais da capoeira primitiva, os movimentos são mais lentos, cadenciados e são executados próximos ao solo. Ela tem como expoente o Mestre Pastinha. Já, a regional se origina com o Mestre Bimba, que, para evitar o termo capoeira, quando ela ainda era proibida, a denominou como “Luta Regional Baiana”. Mestre Bimba era um praticante de capoeira angola e desenvolveu o estilo regional, com golpes novos e movimentação mais rápida e alta. Acredita-se que esses golpes tenham sido inspirados em outras artes marciais, como o batuque. Historicamente, o estado do Rio Grande do Sul é essencialmente racista e opressor. Se resgatarmos na história, a base da economia gaúcha nos séculos XVIII e XIX eram os escravizados, submetidos a trabalhos em plantações e charques, principal atividade econômica do estado na época. Ao caminhar por Porto Alegre em 2023, a herança dos povos negros é nítida em diversos monumentos históricos, como a Praça do Tambor ou o Mercado Público, mas a história vai além do material e tangível. Culturas, música, artes são expressões que mantém uma história de resistência e luta por direitos que um dia, foram tomados, e hoje seguem sendo alvos de perseguição racial. Nesta reportagem, eu conheci a Escola de Capoeira Angola Africamente, uma das mais populares da Capital. A Escola existe desde 2014, idealizada pelo Mestre Guto, que dá aulas de capoeira há mais de 20 anos. No dia 07 de novembro, fui convidado a assistir uma aula de perto, e estar de frente com uma das expressões mais notáveis dos

Grupo prepara-se para os movimentos ancestrais. Para Mirela, capoeira é um estilo de vida

povos afrodescendentes. Ao adentrar ao espaço, as cores vívidas, o chão de madeira rústica e os instrumentos típicos como tambores, berimbaus e pandeiros tomam conta de uma visão que exalta as tradições culturais. Nas paredes os desenhos, que se bem pareciam poesias de Carolina de Jesus, ou uma canção do eterno Lupicínio Rodrigues, traziam um ambiente único. Fui recepcionado pelo professor Marco Poglia, 40 anos, que além de dar aulas na escola, é antropólogo e estudioso do assunto em questão. “A capoeira é uma arte ancestral que veio junto com os povos umbandas ao Brasil. A luta como conhecemos hoje é um ato de resistência contra opressão e o racismo”, afirma. Marco também me relata os quatro principais pilaras desta expressão e ensinados pelo Mestre Guto:

cantar, dançar, jogar e falar. “A união destas ações é o que resgata a filosofia e a história da arte”, reitera. Qualquer porto-alegrense que viva nesta terra, conhece os pontos principais da cidade, a Orla do Guaíba, o Parque Farroupilha ou a Estátua do Laçador, entretanto, a você que está lendo esta reportagem, quantas escolas de capoeira você conhece? Questionado sobre o recebimento da arte marcial na cidade, Marco nos explica a razão pela qual há poucas escolas em Porto Alegre. “Essa pergunta é difícil, os registros são muitos antigos. O tempo reprimiu a capoeira no Brasil. Hoje, a capoeira praticada começou nos anos 70. Por um lado, os capoeiristas sempre mantiveram a alma da expressão viva. Por outro lado, o Rio Grande do Sul é um estado de cultura branca. [...] Existem grupos articuladas e investimentos que fomentam a capoeira. Todavia, muito pouco é feito”, lamenta Marco.

A luta como conhecemos hoje é um ato de resistência contra opressão e o racismo” Marco Poglia, professor

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Representações

A aluna Mirella Barros, de 30 anos, reitera a fala do professor: “As manobras políticas precisam se voltar para as representações afro culturais, levando estes valores para mais distante dos grandes centros. Essa capoeira global fala mais que o movimento. As políticas públicas necessitam fomentar mais espaços para o desenvolvimento da arte”, ensina. Egnaldo Neto, 28 anos, comenta sobre a importância da capoeira para a comunidade negra no país. “Eu acho que a capoeira consegue manifestar nos mais diversos corpos que tem por aí, toda sua importância e isso é o valor enquanto resistência, enquanto proteção do valor que o povo preto tem e de mostrar que tem que lutar e a capoeira tem um grande papel. Eu como aluno, como membro do Africanamente, tento seguir esse caminho”, reflete. Ainda em entrevista, Mirella diz que a expressão vai além da luta. “Eu me encontrei na capoeira, me descobri. Não é apenas uma junção de movimentos, capoeira é um estilo de vida”, conclui. Uma aula de cultura, um mar de musicalidades, uma luta que não enfraquece e um povo que mantém sua posição sobre solo brasileiro. Poderia descrever em mil e uma palavras as sensações deste encontro, contudo, somente palavras não são suficientes para contar o que mais há de cinco séculos é lutado, tocado e dançado. O Africanamente, sem dúvidas, é uma viagem a um passado de lutas, um presente de resistência e, um futuro, de justiça.


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A situação dos transportes públicos em Porto Alegre Meios de transportes essenciais, que afetam o funcionamento de uma cidade e a vida profissional de várias pessoas, são alvos de discussão recorrentes Por Giordano Martini

P

romessas não cumpridas, descontentamento com a qualidade do serviço e falta de compromisso. São apenas alguns exemplos de reclamações que vários moradores de Porto Alegre compartilham em relação aos transportes públicos. De acordo com dados da ETPC cerca de 600 mil pessoas usam ônibus diariamente na capital, mas poucas pessoas se agradam com a situação atual.

Ônibus

No dia 2 de outubro, a Companhia Carris Porto-Alegrense foi privatizada. Ela era responsável por 20 linhas em operação, representando 22% do sistema total. Quem comprou foi a Empresa de Transporte Coletivo Viamão Ltda, por 109, 9 milhões de reais. A privatização da Carris era uma promessa de campanha do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. A justificativa para esse projeto era, no argumento do prefeito, para, a partir dessa mudança, conseguir uma maior qualificação e modernização dos transportes públicos. A professora de Arquitetura e Urbanismo da Unisinos, Izabele Colusso, explica detalhadamente sobre esse movimento, numa perspectiva contrária: “A privatização da Carris pode representar um prejuízo para a cidade, uma vez que a Prefeitura Municipal passa a ter menos capacidade de controle da qualidade do serviço, pois a iniciativa privada poderá descumprir questões como frequência, horários, qualidade da frota, porque não vai ter nenhuma pressão de melhoria feita pela empresa pública”, pontua. Porém, mesmo após a venda da Carris, ainda existem muitas críticas aos ônibus de Porto Alegre. O estudante Vinicius Müller usa o transporte público para ir e voltar da faculdade e afirma que o maior problema está na super lotação dos veículos. Outra reclamação recorrente é a demora. “Às vezes tenho que esperar mais de 30 minutos para o ônibus chegar.” Afirma, a também estudante, Ana Carolina Machado. Outro fator que os moradores de Porto Alegre criticam é o fato de muitos veículos operarem com o ar-condicionado desligado. Em janeiro desse ano, a Secretaria de Mobilidade Urbana revelou que dos 690 ônibus que são equipados com ar-condicionado, cerca de 450 circulam com o equipamento ligado. Essa situação gera a suspeita de que o preço da passagem de 4,80 não condiz

com a qualidade da maioria dos veículos que estão em circulação.

Metrô e Trensurb

Há mais de 10 anos, a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, anunciava a construção do metrô em Porto Alegre. O custo total era estimado de 4,8 bilhões de reais. O planejamento também iria conter duas linhas e uma extensão de 11,7 km. Infelizmente esse projeto nunca foi realizado, e o que sobrou foram apenas as promessas iniciais. Apesar de o Trensurb poder ser considerado um metrô, ele serve principalmente para locomoção da Região Metropolitana de Porto Alegre. Um metrô que abrange amplamente a própria cidade de Porto Alegre, como por exemplo, o de São Paulo, seria uma grande ajuda para a população. “Mesmo que fosse cheio seria mais rápido do que os ônibus,” disse Vinicius sobre uma

O principal problema é o ônibus muito cheio” Vinicius Müller, estudante

possível ideia de metrô na cidade. Porém, a professora Izabele pontua que, de fato, o metrô representaria uma melhoria no transporte público de alta capacidade. Enquanto o ônibus seria uma opção de transporte coletivo de baixa capacidade. Mas, eles não devem competir entre si, e sim operar de forma conjunta, não disputando a concorrência. Além da circulação dentro da própria cidade, Porto Alegre também centraliza a ligação de toda a região metropolitana. O responsável por conectar todas essas cidades é o Trensurb. Atualmente esse transporte alcança as cidades de Porto Alegre, Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo e Novo Hamburgo. Porém existem frentes parlamentares para expandir ainda mais esse serviço. Essas ideias de projeto têm como objetivo aumentar o alcance do Trensurb. Em entrevista para a Rádio Guaíba, o presidente da companhia, Fernando Marroni, disse que tem planos de fazer com que a linha da avenida Sertório e Assis Brasil vá até Alvorada. Para isso seria necessário a construção de mais onze estações. Para que tudo ocorra de forma correta, a previsão de ordem inicial é de 6 bilhões de reais. Os recursos ainda não foram garantidos. Junto com essa frente parlamentar, surge outra ideia muito parecida. Ampliar o Trensurb em 42 quilômetros até Taquara. A proposta é do deputado estadual, Issur Koch (PP). De acordo com o parlamentar, 120 mil pessoas utilizam as 22 estações

de metrô por toda a Região Metropolitana, e a capacidade de transporte diário é de 350 mil. O objetivo é desafogar o fluxo das rodovias, fazendo com que o transporte de pessoas sobre os trilhos seja uma opção cada vez mais viável.

Rodoviária

Diferentemente dos ônibus que circulam por Porto Alegre, os ônibus que saem da rodoviária tem um objetivo diferente. Eles são usados para ir a destinos mais distantes. Até mesmo para outros estados. Não funciona como um transporte público de fato, porém é muito buscado por cidadãos A rodoviária da cidade também está aos poucos se reerguendo. Pois segundo o ex-diretor de Transportes Rodoviários do Daer/ RS, Lauro Hagemann, antes da pandemia, no ano de 2019, o sistema transportou 31 milhões de passageiros. Em 2020 o número caiu para 13 milhões. Mas nos dias atuais ele começou a ser mais utilizado, principalmente na época de feriados. Como por exemplo no feriado da Páscoa, a estimativa foi de 26 mil pessoas deixando Porto Alegre para viajar no feriado. Normalmente 240 ônibus saem normalmente na rodoviária, porém, nessa situação mais 180 veículos extras foram posicionados. No feriado de Corpus Christi também houve uma movimentação parecida, onde 16 mil passageiros viajaram durante esse período, com 50 ônibus extras. Os principais destinos foram a Fronteira Oeste e a Serra Gaúcha. GIORDANO MARTINI

Lotação dos coletivos concentra as reclamações

LUPA | Dezembro de 2023


8 | COMPORTAMENTO |

Terapia é pop? Internet abre possibilidades além do divã FREEPIK

Os pontos positivos e negativos do debate sobre saúde mental na atualidade Por Luis Henrique Leite

T

rauma. Tóxico. Gatilhos. Ansiedade. Tantos são os termos do consultório de terapia que expandiriam pela sociedade e hoje são facilmente verbalizados nas conversas do cotidiano. A pandemia da COVID-19, decretada em março de 2020, gerou tamanha insegurança e instabilidade que a terapia, antes vista como “coisa de gente doida”, teve um número considerável de procura. De acordo com dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022, o Brasil lidera o ranking de ansiedade e depressão na América Latina, principalmente após as consequências do isolamento. De acordo com a neuropsicóloga Izabel Cristina Neves, a “popularização” do processo terapêutico possui pontos positivos e negativos: “Antes as pessoas procuravam pelo atendimento por estarem em conflito interno, estresse, ansiedade, depressão por um longo tempo. Hoje, vejo que muitos vem para buscar autoconhecimento. Que visa o conhecimento da sua essência e das suas motivações em todas as áreas de sua vida, clareza dos pontos fortes e fracos através da reflexão de atitudes, análise do comportamento, propiciando escolhas mais assertivas com mais consciência, responsabilidade e autonomia.” Izabel afirma ainda que em meio a expansão do conhecimento, existem problemáticas: “Os efeitos negativos são o uso equivocado de técnicas e teorias, principalmente na internet por profissionais não qualificados. (…) Termos usados de forma equivocada, por exemplo ‘ansiedade’. Ansiedade todos nós temos e devemos estar atentos como um sinal de que algo deve ser feito para se proteger, prevenir. É diferente de um transtorno de ansiedade que deve ser tratado em psicoterapia e muitas vezes com medicação.” Em meio a um cenário de maior acesso a tratamentos e uma diminuição no preconceito à análise, a cultura pop colocou luz sobre o assunto ajudando a democratizar e expandir conversas. Artistas como Billie Eilish e Demi Lovato arrastam multidões gerando identificação com suas canções que falam sobre as dores da existência. Nas telas do cinema e da televisão, obras como “Father” e “This Is Us” retrataram com beleza questões como

Terapias mediadas pelas plataformas digitais crescem

Os efeitos negativos são o uso equivocado de técnicas e teorias”

Izabel Cristina Neves, neuropsicóloga

ansiedade, luto e depressão. O professor de marketing digital da ESPM, João Finamor, aponta os efeitos que a internet causa nesse tipo de discussão: “Toda vez que gera um debate é um caminho positivo. Esse conhecimento faz com que muitas pessoas vão procurar ajuda e muito mais, compartilhando suas ânsias e dores, o que é ótimo. Ao mesmo tempo existe uma banalização desse assunto (...) Também existe muito dado incorreto e informações equivocadas”. Profissionais analisam que a Geração Z, nascida entre a segunda metade dos anos 90 e o ano de 2010, e a Geração Alfa, entre 2010 e 2024, abraçam através das redes sociais o discurso de doenças mentais como muletas para lidarem com frustrações

e problemas. No meio do caminho, surgem as diversas formas terapêuticas para públicos variados, desde a psicanálise até tratamentos holísticos, medicações e contato com a natureza. Na rede social mais popular do mundo atualmente, o TikTok, as hashtags #saúdemental e #psicologia possuem cerca de 3 bilhões e 23 bilhões de visualizações respectivamente, virando nichos de conteúdo e refletindo o interesse dos usuários pelo assunto. O problema surge quando muitos vídeos de até 1 minuto, sem contexto e base científica, buscam trazer diagnósticos complexos como ansiedade, depressão e TDH. As terapias alternativas têm sido buscadas com maior intensidade na plataforma, principalmente pelo fator curiosidade, como o Visagismo, que busca uma melhora através de uma análise corporal do paciente, e o queridinho da internet nos últimos tempos, o Ayahuasca. A bebida se popularizou nos últimos anos e trouxe um aumento considerável nas rotas turísticas para experimentá-la na Amazônia. Apesar de ser autorizado pelo Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) somente em cerimonias religiosas, especialistas alertam que o consumo da bebida precisa ser com cautela, principalmente por quem é usuário de medicamentos e possui problemas psicológicos, podendo causar crises

LUPA | Dezembro de 2023

e até mesmo a morte. A neuropsicóloga Izabel Cristina Neves reforça que as terapias alternativas são positivas quando possuam evidência cientifica comprovada, e que elas são um reforço ao processo de psicoterapia: “O cuidado que precisamos ter é justamente saber que terapia é essa, e se o profissional que está divulgando o trabalho como terapeuta holístico, que ele realmente tenha formação adequada e especialidade para realizar o tratamento. As terapias alternativas são importantes para além da psicoterapia (...) ter o atendimento com o médico e buscar outras como reforço”. É importante não demonizar criadores de conteúdo e terapeutas alternativos, mas sim entender que um conteúdo que gera perguntas é mais válido do que um que traga respostas. Do outro lado da For You do TikTok ou da Timeline do Instagram, é necessário buscar ajuda para lidar com angústias e sofrimentos, procurando um psicólogo, psicanalista ou psiquiatra. Estes profissionais poderão lhe ajudar a entender o melhor caminho para seus processos internos. Lembrando, existem opções acessíveis, e gratuitas através do SUS, para quem não consegue pagar uma consulta cara. Não deixe sua saúde mental de lado, afinal, para além das telas, a vida é ao vivo e real.


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