Josefa 4

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ano

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edição 4

jul/2020 Revista experimental do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre

IGUAL, MAS

DIFERENTE

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Ajude a fazer a diferença para a vida de 10 mil famílias de São Leopoldo (RS).

Para Doar Banco Intermedium S.A (Código 077) Agência 0001-9 Conta 5596022-7 CPF 42629314049 Isamara Della Favera Allegretti Também aceitamos PicPay: @redesolidariasaoleo Ou peça seu boleto pelo email: redesolidaria.sl@gmail.com redesolidariasaoleo

redesolidariasaoleo


A

reportagem é um texto jornalístico marcado pelo encontro: primeiro, repórteres encontram um tema que seja de interesse amplo e que tenha um papel a cumprir no contexto em que a matéria está sendo produzida; depois, buscam encontrar-se com aqueles ou aquelas cujos conhecimentos e histórias vão contribuir para a construção da reportagem; a seguir, os e as repórteres provocam o encontro e o diálogo entre essas pessoas por meio das ‘costuras’ que propõem no texto – e, claro, já incluindo aí uma ideia de leitores e leitoras a quem o texto se dirigirá depois de pronto; e, finalmente, o público se junta a esse grande diálogo. Mas e como se produz esse tipo de ‘encontro’ jornalístico num momento em que estamos em isolamento social em razão da pandemia do novo coronavírus? Tendo essa pergunta em mente é que nós – jornalista experiente e jornalistas em formação – buscamos modos de su-

perar o que eram obstáculos e chegamos a esta edição da Josefa. Ela é, assim, um retrato desse tempo que vivemos. Não só pelo tema ou pelas pautas, mas pelo seu modo de preparo. Depois de muito pensarmos sobre o que nos sensibilizava neste ano de 2020, chegamos a uma ideia que, de certo modo, reunia um pouco de tudo que debatemos: “fora da curva”. O que

Juliana Coin

Cartaaoleitor

é, afinal, fora do eixo, do padrão, da norma? Descobrir isso e juntar histórias que traduzissem essa ideia foi um desafio e tanto! E se 2020 é provavelmente o ano mais ‘fora da curva’ que a maior parte de nós vais conhecer, pois que esta edição da Josefa nos ajude a sair lá adiante ainda mais renovados e cada vez menos querendo que o mundo ao nosso redor seja “normal”. Já é hora de aceitarmos que muitas novas possibilidades são possíveis sem que necessariamente elas sejam superiores ou inferiores com relação às demais. Por isso, é vital que o jornalismo se proponha a falar da diversidade do mundo. Quem sabe, assim, a diversidade nos faça ver que há muitas mais “curvas” possíveis, e que a realidade pode – oxalá! – tornar-se muito mais justa. Everton Cardoso Professor

A gaúcha Maria Josefa Barreto Pereira Pinto foi a primeira mulher jornalista brasileira. Mãe, feminista, poeta, escritora e professora, dirigiu dois jornais, sendo proprietária de um – o Belona Irada Contra os Sectários de Momo –, que circulou em Porto Alegre entre 1833 e 1834. Josefa não teve uma vida fácil. Foi abandonada quando nasceu, mais tarde seu marido a deixou e ela viu seus dois filhos morrerem. O nome desta revista é uma homenagem a ela.

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ndice

06

Diversão sem beber

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Mudança para recomeçar

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Amor sem prender

18

Locadora com clientes

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Gordas e autoestima

26

Artistas visuais negros

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Filhas não saem ao pai

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Medo de avião

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Pessoas não binárias

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Poker como trabalho

Juliana Coin

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COMPORTAMENTO

NEM UMA

gota

D

urante o agito da festa, entre dança, música e muita conversa, Lucas Mello dirigia-se à copa – local em que eram servidas as bebidas – para se abastecer de energético. O objetivo era aumentar a disposição e o ânimo em meio à multidão de cerca de 200 universitários. Foi na fila da copa, contudo, durante a espera pelo atendimento, que ele, novato na universidade, sentiu-se pressionado a beber pela primeira vez: um aluno veterano, já sob o efeito de algumas doses, questionava com indiscrição o fato de um aluno novo da faculdade não consumir álcool. “Cara, não bebo, não posso”, esquivou-se o estudante de Jornalismo. O interrogatório durou alguns minutos enquanto ambos esperavam na fila, mas foi o suficiente para o novato sentir-se constrangido e até mesmo forçado a consumir álcool. Lucas não bebeu, porque não bebe. E, mesmo na companhia de outros colegas novos, ele sentiu-se, de certa forma, excluído daquele ambiente universitário pelo simples fato de dizer não à bebida. A festa, realizada com o dinheiro arrecadado pelos bixos – apelido dado aos novatos – dos cursos da Faculdade de Biblioteconomia e 6

Jovens abstêmios contrariam tendências e não cedem às pressões sociais para o consumo do álcool Texto

Thiago de Loreto

Comunicação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), marcava o começo das aulas do segundo semestre de 2014, período no qual Lucas ingressou na faculdade. Era um grande encontro entre os estudantes: a Confra dos Bixos, evento organizado pelos próprios alunos, naquele ano realizado no Sítio Trilha do Sol, em Viamão. No dia 22 de agosto, sexta-feira, um ônibus fretado esperava em frente à instituição. Às 21 horas, partiu rumo à cidade metropolitana recheado de alunos que, assim como Lucas, teriam sua primeira festa universitária e,


Juliana Coin

consequentemente, suas primeiras experiências sociais com os colegas fora do ambiente acadêmico. A sensação de exclusão que Lucas pôde perceber durante o interrogatório do colega veterano é embasada pelo Panorama de 2020 do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa): o álcool é a substância mais consumida pelos universitários, sendo que 90% já relatou ter consumido pelo menos uma vez na vida uma cervejinha ou até mesmo ter passado do ponto. A interação com álcool entre os jovens, inclusive, preocupa órgãos ligados à saúde. O beber pesado episódico (BPE), um padrão de consumo elevado avaliado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 60g de álcool – cerca de 4 doses – em uma ocasião de 2 horas pelo menos uma vez por mês, é maior em grupos de jovens universitários do que a média geral entre a população da mesma idade. Por vários motivos, ainda não tão definidos, o ambiente acadêmico é mais propício ao uso da substância. E Lucas percebeu isso, inclusive, antes mesmo de as aulas começarem. Cerca de duas semanas antes do início do semestre, em uma noite fria de julho, os bixos se encontraram em um shopping na região central de Porto Alegre, para se conhecerem de perto, antes do começo das aulas. O destino da noite, no entanto, não era fazer compras, mas, conforme combinado pelas redes sociais, juntar-se aos veteranos dos cursos da faculdade em um bar nas proximidades do shopping, o Bambu’s, um dos locais boêmios mais conhecidos entre aquele público. Ao chegar ao bar, repleto de estudantes, Lucas Mello tentava se enturmar com os novos colegas. E, no desenrolar da noite gelada do inverno gaúcho, algumas perguntas surgiram para ele. “Tu não vai beber?”, disparou um. “Ué por que | julho/2020 | 7


COMPORTAMENTO

Apoio emocional

A ligação entre os universitários e o álcool durante os encontros e as festas tem relação com a busca pelo aumento da confiança, a facilitação da interação social com os pares e também intensificação de experiências como, por exemplo, comemorações. Esses são alguns fatores apontados pela pesquisa realizada pelo Cisa, que tem como objetivo analisar a relação da população com a substância e medir os seus níveis de consumo. Além disso, a pressão so8

Instagram / João Cerbaro

tu não bebe?”, inquiriu outro. Isso porque, diferentemente da maioria, ele evitou se esquentar com goles de vinho ou de vodca, tampouco desafiou a fria estação bebendo cerveja gelada. Preferiu água para matar a sede, em vez das bebidas alcoólicas que embalavam a noite. Para Lucas, a diversão do evento, além do primeiro contato com os futuros colegas, era entender como funcionavam os encontros entre os estudantes universitários fora das grades da faculdade. Em fila, jovens recebiam doses generosas de bebidas alcoólicas diretamente na boca. Porém, do ritual de iniciação, o calouro guardou apenas as boas risadas que a brincadeira rendeu. Um problema renal congênito impede Lucas de consumir álcool, pois a substância, além de prejudicar todos os órgãos, traz danos, sobretudo ao fígado e aos rins. A decisão por se tornar abstêmio, então, acabou por estar de acordo com os cuidados com o organismo e também se encaixava perfeitamente na sua vida social. Antes dos episódios no início da faculdade, ele nunca havia sido incomodado por seus amigos por ser abstêmio. Passadas mais algumas festas, os colegas não mais questionaram a decisão de Lucas de não beber e, aos poucos, ele realmente integrou-se aos círculos sociais da universidade.

cial e a aceitação pelo grupo Lucas Mello na completa: “Questões psicológicas e psiquiáde amigos também incen- festa Confra tricas, uma fobia social, por exemplo, e, com tiva o uso da bebida. O am- dos Bixos, no o uso do álcool, o jovem momentaneamenSítio Trilha do biente universitário, muitas Sol, em Viamão te relaxa e consegue ir para a festa”. vezes, corresponde ao priAlém de reforçar os pontos abordados pelo meiro lugar onde o jovem explora Cisa sobre por que o jovem bebe mais, Nino compara: outros grupos, com características “O jovem, por conta do cérebro ainda em desenvolvisemelhantes, sem a supervisão dos mento, é como se fosse um carro sem freio descendo pais, ou seja, uma experiência nova a Avenida Lucas de Oliveira – via famosa em Porto cujas relações interpessoais ganham Alegre por conta da topografia muito íngreme –, ou novos limites e responsabilidades, seja, desce em grande velocidade, esbarrando, colio que pode torná-los mais vulnerá- dindo, batendo nos obstáculos das drogas”. Ele ainda veis emocionalmente ao consumo argumenta sobre a constituição incompleta do cérebro, de drogas lícitas ou ilícitas. cujo o lobo frontal – uma das regiões responsáveis Os fatores que relacionam os pelo planejamento das ações – é uma das últimas áreas jovens universitários ao uso do ál- cerebrais a se desenvolver. O cérebro ainda imatucool também preocupam o psicólogo ro, portanto, pode contribuir para maiores níveis de Nino Marchi, que tem dez anos de impulsividade entre os jovens, o que pode levá-los, experiência em pesquisas relacio- muitas vezes, ao abuso de drogas como o álcool. nadas às drogas. Sobre a relação da juventude com o álcool, ele afirma Elas têm bebido mais que o jovem tem necessidade de se O elevado consumo de bebidas alcoólicas pelos jovens envolver em grupo, tem insegu- universitários, no entanto, não é a única preocupação ranças, desejo de se autoafirmar. E do órgãos de saúde mundiais. De acordo com a última


O consumo de bebidas alcóolicas entre jovens universitários está ligado a fatores sócio-econômicos e tem apresentado crescimento maior entre as mulheres pesquisa em relação ao consumo de álcool, houve um aumento significativo de jovens mulheres com o consumo considerado pesado, entre 2010 e 2018. O que é muito surpreendente, uma vez que o consumo da população geral diminuiu 11% no Brasil, em um período semelhante, entre 2010 a 2016. A bancária Ana Paula Uflacker acredita que as pessoas bebem por força do hábito, além do fato de o álcool ser uma substância viciante. Ana não bebe, nem nunca teve vontade de experimentar. Com 27 anos, relembrou que, durante a adolescência, não chegou a se sentir pressionada pelos amigos a beber. Ela vivia em Torres, cidade do litoral gaúcho. Ana explica que se sentia preservada a não consumir álcool, porque, como todos sabiam que não bebia, respeitavam sua decisão tanto em festas quanto em encontros casuais com os amigos. Embora Ana não acompanhe essa escalada dos números, os índices preocupam Nino, na medida em que, como argumenta, é um fator decorrente da estrutura social contemporânea, pois, conforme as mulheres se inserem no mercado de trabalho e no mundo acadêmico, elas também estão mais expostas aos ambientes propensos ao uso de álcool. Consequentemente têm mais problemas, porque o álcool agride mais o corpo feminino, por conta da constituição física, da quantidade de água e de enzimas que metabolizam a substância. Aliás, há uma relação entre a condição socioeconômica e o consumo de álcool. Grande parte dos países europeus figuram nas primeiras colocações de maiores consumidores de álcool, ou seja, o poder aquisitivo é um fator influente na ingestão. O noivo de Ana, o engenheiro cartógrafo Ramon Egídio Lepeck, é categórico. Para ele, qualquer evento que tenha água ou refrigerante está de bom tamanho. Com os mesmos

26 anos de Lucas, ele nunca se interessou em beber por que não via nenhum benefício. A desinibição, principal reação do álcool, cujo efeito muitas pessoas procuram para se relacionar melhor em eventos, não era um grande atrativo para Ramon, porque ele já se sentia desinibido naturalmente. Em festas, sempre dançava, divertia-se e socializava com facilidade. Por outro lado, neste sentido, Ana se sente um pouco diferente quando o assunto é a relação social entre as pessoas, sobretudo em eventos em que se reúne um grande número de amigos. “No começo dos eventos está todo mundo na mesa, zerado, aí todo mundo conversa com todo mundo e tal. Mas à medida que vai passando o tempo, as pessoas começam a beber e acabam te escanteando, porque tu não tens muita conversa, muito papo com quem já está bebendo, já passou do ponto, sabe?” Além dos malefícios físicos e mentais, tanto Ramon quanto Lucas identificaram que o consumo de bebida faz as pessoas perderem a consciência, o que muitas vezes desencadeia atitudes violentas, sobretudo ligadas ao machismo. O pensamento de Ana conflui com o dos rapazes. Para ela, “o álcool aflora sentimentos nas pessoas que podem gerar agressões domésticas, principalmente em homens contra mulheres”. As afirmações dos jovens são muito pertinentes e vão ao encontro do que os números mostram: a OMS estima que o consumo nocivo de álcool esteja atrelado a cerca de 18% dos casos de violência doméstica. Devido à elevação do consumo entre os jovens universitários e as mulheres, os principais órgãos de saúde têm trabalhado para frear e diminuir os índices. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, estipulou a Estratégia Global de redução do uso nocivo do álcool, em que traz metas de políticas públicas

em todos os países, a fim de evitar doenças e óbitos decorrentes do excesso de bebida. Um dos pontos de destaque da Estratégia da OMS é o suporte aos abstêmios: “Todos que optam por não beber devem ser apoiados em seu comportamento e protegidos das pressões para o consumo”. Desde que este plano global iniciou, em 2010, viu-se bons resultados, mas ainda há dificuldades para atingir a meta de redução de 10% do consumo mundial, estendida para até 2025. Nino acredita que uma das possibilidades de trazer maior suporte aos abstêmios é promover o convívio em ambientes livre do álcool e também atendimento médico e psicológico para lidar com toda a complexidade da abstinência. Lucas diz que o fato de ser abstêmio pode ser uma barreira em amizades e relacionamentos por conta de preconceito, principalmente nos primeiros contatos interpessoais. Ele ainda acrescenta que a melhor forma para se proteger quem não bebe álcool parte de uma mudança de cultura. “Querendo ou não, os abstêmios se sentem um pouco acuados por conta da pressão e de como as pessoas reagem ao fato de você não beber”.

OLHAR DO

REPÓRTER

Levantar discussões. Esta, talvez, seja minha principal preocupação ao propor uma pauta. Qual é o sentido de abordar o tema? Qual a relevância do assunto para as pessoas? Bom, a pauta que escolhi para desenvolver a reportagem para a revista Josefa foi sobre algo que me intriga há um tempo: o consumo abusivo de álcool por jovens. Embora, à primeira vista, possa soar careta, o tema é capaz de gerar discussões maiores, como na área da sociabilidade, da cultura e da psicologia. Assuntos relacionados a comportamento sempre me chamaram a atenção e, nesta reportagem, sem dúvida, foi de muita importância para mim. Foi importante, especialmente, porque me encontrava em um momento de reavaliação do meu consumo de álcool. Ao desenvolver a matéria, portanto, pude absorver muitos ensinamentos das minhas fontes – abstêmios de carteirinha –, e, com isso, entendi a urgência do debate sobre o assunto. E, apesar de todos os desafios impostos pelo isolamento social, acredito que a reportagem chegou ao seu destino.

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Juliana Coin

MUDANÇA

O RECOMEÇO DE UMA

vida em 10


família A distância e as dificuldades do passado foram superadas pelo amor Texto

Tuane Moreira

A

cortina azul marinho empoeirada era o que separava o grupo de adultos farristas das demais pessoas que optaram pelo sossego naquele ônibus. Foi assim que o motorista decidiu, em uma das suas primeiras paradas naquela longa viagem, dividir o grupo de oito jovens adultos, que fazia barulho constantemente como se numa excursão escolar. Ora com músicas acompanhadas de violão e pandeiro, ora com piadas e narrativas das suas histórias de vida, o grupo ia descontraindo o tédio de passar três dias sacolejando rumo

ao Rio Grande do Sul, após terem saído de Brasília às dezenove horas do dia quinze de dezembro de 2009, quando o sol ainda iluminava o início da noite de quarta-feira. Com a barriga à mostra pela blusinha curta que vestia, Irismar Sousa, mais conhecida como Íris, fazia parte do grupo do “fundão” que, apesar de terem se conhecido ao embarcar no ônibus, tinham adquirido uma afinidade mútua. Esse entrosamento é que permitiu que Íris contasse com a ajuda dos parceiros desde o primeiro dia de viagem: ela havia saído de | julho/2020 | 11


MUDANÇA

casa somente com a passagem de ida, uma mochila e uma necessaire. Além da pouca bagagem para quem estava indo de mudança para outro estado, as calças jeans e os tênis já gastos também indicavam a humilde vida que a cearense levava até então. Os novos amigos, ao verem que ela não portava dinheiro sequer para a alimentação, iam se revezando para lhe proporcionarem as refeições, os banhos e até mesmo cigarros e recargas de celular. Oito meses antes dessa viagem, ao entrar pela primeira vez em um site de troca de mensagens pela internet, Íris conheceu o canoense Jeferson Trindade, um jovem que nunca lhe escondera a própria história de vida, mesmo sendo ela de difíceis superações, como a da dependência alcoólica e do uso de drogas. Ele chegou a precisar de meses de internação para a sua reabilitação. Jeferson contou a ela também sobre o período de mais de três anos em que morou na rua, mesmo depois de ter atuado como baterista de bandas famosas como Tchê Garotos, Jota Quest e também do cantor Armandinho. Foi por não ter superado uma grande desilusão em sua vida que ele seguiu o caminho solitário e triste das ruas, chegando a ser preso durante esse período. Mesmo sabendo desses relatos pessoais de Jeferson, que traduziam momentos difíceis da sua jornada, Íris aceitou o relacionamento virtual com ele e, desde a primeira conversa, começaram a conversar todos os dias. Em Brasília, cidade em que Íris fora morar com uma tia, deixando para trás os pais e oito irmãos aos 12 anos de idade, ela sofreu muito com as agressões físicas e psicológicas do seu segundo marido – pai de seis dos seus nove filhos. Nessa época, só ela trabalhava para sustentar a família, enquanto o ex-marido vivia bêbado e lhe agredia quando retornava para 12

Cruzar metade do país para viver uma história que teve início virtual foi, para Íris, a busca por uma vida melhor em um novo lugar casa. No limite da sua capacidade de suportar aquela situação de forma passiva, Íris decidiu ficar morando com os patrões, levando consigo apenas seu filho Agenor. Era uma situação provisória, até conseguir alugar uma casa para morar com ele e os outros filhos e não precisar mais sofrer agressões. Após quatro dias, quando finalmente, com a ajuda da patroa, conseguiu uma casa para alugar, ao retornar para buscar as demais crianças descobriu que seu ex-marido havia fugido com elas para a Bahia. Em desespero e uma depressão profunda pela situação, ela teve que se manter firme. Ainda tinha um filho para sustentar. Agenor, o único filho que lhe sobrara por perto, sentia muita falta dos irmãos, que na época tinham entre 2 e 12 anos. Vivendo em meio a dificuldades com a mãe, ele sempre pedia para ir morar com os irmãos. Mesmo com muita tristeza por ter de se afastar de mais um filho, Íris pensou no bem-estar e na vida melhor que ele poderia ter ao lado da família paterna. Deu um jeito de conseguir o dinheiro da passagem e permitiu que o filho Agenor também fosse morar na Bahia. Sozinha, sem nenhum dos seus sete filhos, pois o mais velho deles, o único que teve com o seu primeiro marido, sempre morou com o pai, a nordestina que se encontrava numa situação de sofrimento e dor,

chorou por quinze dias sem conseguir trabalhar. Nessa situação, acabou se relacionando com pessoas que a influenciaram a beber e usar drogas. Essas amizades deram início a uma vida sem pretensão de mudanças, até que conheceu o gaúcho pela internet. Com a referência da mudança levada adiante por Jeferson, que passou oito meses internado em uma fazenda para se curar da dependência química, ela foi deixando de lado as noites de festas e entorpecentes, afinal fora ficando mais interessada nas conversas com ele ao telefone do que nas saídas com os amigos. Ana Lídia, uma de suas filhas, fala com muito orgulho do quanto sua mãe era trabalhadora e fazia de tudo pelos filhos enquanto moravam juntos. Ela, que viu a mãe pela última vez aos 9 anos de idade, conta também que sonha em trazer o filho para conhecer a avó no Sul e conhecer seus irmãos mais novos, viagem que estava programada para acontecer neste inverno, se não fosse a pandemia. “Quando eu tinha 16 anos, tinha planos de ir morar com ela, mas aconteceram alguns imprevistos na minha vida que me levaram a decidir ficar, mas se Deus quiser, logo vamos visitá-la”, diz a filha. Para Jeferson, muitas eram as incertezas até o dia do encontro presencial com Iris. A ansiedade de tê-la por perto misturava-se com o medo dela não vir: “Eu disse que daria o dinheiro pra ela vir, mas ela não aceitou, então eu falei que se ela não viesse eu iria até lá para buscá-la, mesmo arriscando ser preso, por estar proibido de sair do estado naquela época”. Desde o primeiro encontro virtual, não houve mais distância entre os dois, e o recomeço juntos criou uma nova família que hoje inclui também dois filhos em comum, Jackson e Israel.


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RELACIONAMENTO

elxs

EU, TU,

Dois homens e duas mulheres, que moram em cidades distintas, não compartilham a profissão e nem mesmo a cor de cabelo. Em comum, a opção por relações não-monogâmicas. Prática antiga, voltou às rodas de conversa recentemente 14


Juliana Coin

Texto

A

Tina Borba

mesa posta para um almoço de domingo. Ao redor dela, Tatiana, seus dois irmãos e as esposas deles, sua mãe e a avó de 82 anos e cabelos curtos e brancos. Tatiana estava fazendo o trabalho de conclusão do curso de Psicologia e começou a explicar o tema – poliamor – para a família. A vó estava confusa com a “novidade” e perguntava como isso funciona, o que é, se é semelhante a “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Um dos irmãos de Tatiana resolveu se pronunciar, divertindo-se: “ah Tati, muda de assunto, para de dar ideia, não quero que a tua cunhada tenha ideia e queira abrir a relação”. A graduanda olhou para a avó na intenção de tranquilizá-la e disse que, para entender esse assunto, era preciso ter a mente aberta. A senhora, ainda inquieta, argumentou: “Tati, tu me desculpa, mas não tem que ter a mente aberta, não, tem que ter a mente arregaçada!”. Relacionamentos não-monogâmicos geram dúvidas, não só entre os mais velhos. A questão também surgiu para Luiz Mazoni, o engenheiro convidou a moça com quem estava saindo para uma comemoração de Páscoa em sua casa. A moça, Vitória Garcia, não queria ser chamada de

namorada, ela não era namorada de ninguém e nem queria ser. Mas sabia que não era só amiga. Mazoni ficou confuso com a questão, pegou um Uber a meia-noite e foi até o apartamento dela, que na época morava na Avenida Salgado Filho, bem no centro da Capital. Num daqueles prédios altos, com apartamentos pequenos, ela morava com o Ralph, seu cachorro da raça shih tzu, branco e preto, e um tanto nervoso. Ele chegou, sentaram-se na sala e ele perguntou à queima roupa: “Quer namorar comigo?” Vitoria se sabia bissexual desde os 14 anos de idade. E afirma que ter uma expressão sexual diferente da comum a ajudou a olhar para tudo que está “fora da curva” com olhos compreensivos e curiosos, mas que nem de longe foi um fator determinante para que ela preferisse estar em relações nas quais a monogamia não é um fator relevante. Assim como ela, William de Carvalho, 30 anos, designer, solteiro e praticante do amor livre, atribui à bissexualidade o olhar despido de preconceitos para outras formas de amar. “Eu acho que como a bissexualidade é uma coisa que é fora do comum, às vezes ajuda você a interpretar as coisas fora do comum”, diz o jovem de cabelos azuis. William aponta os motivos que o levaram ao amor livre: “Eu não vou deixar de gostar de outras pessoas só porque eu me apaixonei por alguém. Sempre estou conhecendo gente nova, olhando gente nova, e se isso despertar alguma coisa em mim, por que não tornar real? Por que eu vou limitar essa parte da minha vida se ela não vai afetar outras partes?”, questiona.

Descobertas

Já Mazoni, quando indagado sobre sua sexualidade, relembra saudosista o primeiro carnaval que passou com Vitória. Disse que foi de experimentação. “Cheguei a uma definição: acho outros caras atraentes, mas não é um desejo ardente, sou muito mais hétero, mas se tiver oportunidade eu também não | julho/2020 | 15


dispenso”, pontua ele a respeito da bissexualidade recém-descoberta. O que corrobora a ideia de que a bissexualidade, apesar de comum em pessoas que se relacionam de forma mais livre, não está necessariamente atrelada a este tipo de relação. Ele e Vitória estão em um relacionamento aberto há dois anos e meio. Conheceram-se por meio do aplicativo de relacionamentos Tinder. No espaço disponível para a descrição, o jovem de cabelos compridos escreveu: “1,67 de pura decepção, carinha de humanas, mas o coração é de exatas”. Eles deram match e se encontraram pela primeira vez na escadaria do Viaduto da Borges, em dezembro de 2017, pouco antes do Natal. Desde então estabeleceram uma relação com dois cachorros – Ralph e Ravena –, mais recentemente uma gata – Maga – e um apartamento, no qual moram juntos há quase um ano. Quando baixou o Tinder, Vitória estava conhecendo o aplicativo, depois do fim de um namoro de quatro anos. E Mazoni estava solteiro fazia quase dois anos. “Eu estava procurando sexo casual”, brinca ele. Ela, desde o primeiro beijo, já sabia que não queria mais estar em um relacionamento monogâmico. Na época, tinha começado a fazer terapia, e a psicóloga a ajudou a entender que o desconforto com as suas relações anteriores e com o simples pensamento de entrar em outra estava justamente nos acordos estabelecidos com os pares. Independente do acordo, a comunicação é fundamental, como aponta a psicóloga Tatiana Perez, nômade digital e especialista em terapia sistêmico cognitiva de casais e famílias pelo INTCC. “Tu tens que conversar o tempo todo, tem que ter um diálogo”, argumenta ela. A primeira grande conversa para chegar nos termos que satisfizessem Vitória e Mazoni aconteceu no primeiro ano em que estavam juntos. E um dos principais pontos definidos por eles foi justamente a comunicação e a sinceridade. A psicóloga 16

Tatiana salienta ainda a importância do diálogo em todos os tipos de relações. “Qualquer relacionamento deveria ter um diálogo constante e a relação não-monogâmica torna evidente esse comportamento que todas as relações deveriam ter”, pontua. Tatiana tem um projeto virtual chamado Paradoxopsi, no qual conforme a bio do perfil do Instagram, ajuda casais a se conectarem com a sua forma de amar. Ela também tem um projeto no qual oferece cursos para que outros psicólogos saibam atender casais. No Paradoxopsi, atende pessoas que estão descobrindo novas formas de se relacionar, que iniciam relacionamentos não-monogâmicos ou que enxergam essa possibilidade com mais curiosidade. “São várias formas que levam a pessoas a viver uma relação não monogâmica, desde um questionamento político a respeito do amor romântico e dos estereótipos de gênero, já outras pessoas conhecem relações não-monogâmicas depois de dores em outros relacionamentos, e tem aquelas que simplesmente se dão conta de que não querem a exclusividade”, detalha. A psicóloga tem 32 anos e prefere ficar reservada quanto a sua sexualidade. Ostenta um ar calmo, conferido pelos óculos de grau ou talvez pela fala extremamente didática, e afirma que existem pessoas não-monogâmicas e relações não-monogâmicas. Afinal, nem sempre precisamos encaixar tudo nos rótulos que conhecemos. “Quando a gente fala de relações não-monogâmicas, umas das primeiras coisas é entender que nós somos inteiros, que a minha vida transborda sobre o outro, que eu não espero que aquela pessoa vai encher o meu copo, nem sempre estamos acostumados com esse conceito”, compara ela.

Julgamentos familiares

Lais, 28 anos, moradora de Curitiba e dona de um rosto com traços finos e sobrancelhas grossas, compartilha da

Arquivo pessoal / William de Carvalho

RELACIONAMENTO

opinião de Tatiana, e por isso pratica formas de amar não-monogâmicas. “Atualmente diria que sou poliamorista, preciso de mais uns anos para chegar aonde eu quero, a anarquia relacional, que é a favor de que não existam hierarquias nos relacionamentos, afinal por que uma relação romântica tem que ser o foco da minha vida? A ideia é não colocar esses rótulos, porque eles também causam opressão, quando você falar que o seu parceiro é mais importante que os seus amigos, você pensa menos na comunidade”, esclarece a moça de fala rápida. Vamos chamá-la apenas de Lais, pois apesar de sentir-se confortável em falar sobre o relacionamento poliamoroso que tem com uma parceira, que por acaso é uma mulher trans, ela ainda tem ressalvas com a família consanguínea, e solicitou que seu sobrenome fosse preservado. “Eu estou exatamente numa fase da minha vida em que me preparo pra me rebelar pra eles. Eles sabem que eu sou bi, mas não sabem que a minha parceira é uma mulher trans e do poliamor. Eu não falo para eles que eu namoro, eu falo que eu estou num relacionamento, eu estou preparando eles pra um dia sentar e falar sobre essa ideia da monogamia, que eu e a minha parceira não seguimos ela, não temos exclusividade afetivo-sexual”, planeja. Vitoria também aponta a família como um dos desafios ao assumir um relacionamento livre. “O mais difícil muitas vezes é lidar com o problema que as pessoas têm com a nossa relação. Tipo a minha mãe me pergunta onde está o Mazoni, eu digo que ele saiu. E ela fica estranhando porque eu não fui com ele, e coisas desse tipo”, comenta a publicitária. São muitas as formas de se relacionar, que não são aceitas com tanta naturalidade pelas famílias. Não-monogamia, relação William de Carvalho busca ter um olhar sem preconceitos para relações


Relações que fogem da normatividade desafiam quem decide encará-las e ainda são alvo de dúvida e preconceito por parte de muita gente aberta, poliamor, anarquia relacional, são nomenclaturas possíveis – dentre tantas outras – para identificar os vínculos amorosos e sexuais entre os seres humanos. Sua importância está em ajudar as pessoas a entender que existem outros sentindo o mesmo que elas, não para encaixá-las nessa ou naquela “caixinha”. Inclusive o mais comum é que nos primeiros relacionamentos as pessoas sejam monogâmicas, afinal esse é o padrão de relacionamento aceito na nossa sociedade, o que acaba tornando a opção por ele compulsória. “A monogamia compulsória é muito comum para a mulher e não é um traço de personalidade, porque as pessoas vivem sem se dar conta dessa construção. Já os homens, a nossa sociedade aceita que traiam”, reitera Tatiana. Vitória, Mazoni, Wiliam e Lais não escaparam disso, e começaram as suas vidas amorosas em relacionamentos monogâmicos. E mesmo vivendo em relações livres há anos, eles ainda encontram situações inusitadas pelo caminho. Um desses casos foi relatado pela psicóloga. Um amigo dela comentou da vez que foi encontrar uma moça que conheceu pelo Tinder. “Ele tinha uma relação aberta de anos, e contou para a crush que tinha uma namorada. A crush comentou que tinha uma relação em que era amante de outro cara. Ele então esclareceu que a relação dele era aberta, e que a companheira sabia que ele estava ali. Ela não tolerou aquilo, e foi embora. Era muito mais aceitável que ele estivesse traindo a esposa com ela do que isso”, conta Tatiana. O susto e o desconhecimento com esse tipo de relação ainda são Vitoria Garcia comuns. Quando ouvem falar sobre e Luiz Mazoni o tema algumas pessoas dizem que experimentam é depravação, uma vontade inconrelacionamento trolável de estar com várias pessoas. aberto

Contudo, Laís esclarece que tais afirmações não poderiam estar mais erradas. “A não-monogamia não é sobre a quantidade de pessoas com quem você fica, é sobre proibir o seu parceiro de se envolver afetiva ou sexualmente com outras pessoas. Tem gente por exemplo que quer ter um único parceiro para o resto da vida, mas não o proíbe de se relacionar, eles são não-monogâmicos, nunca é sobre quantidade”, conta ela.

Implicações sociais

A lógica da monogamia está muito atravessada por uma questão sociocultural, ela traz consigo um viés machista, de relação de poder, aspectos sobre os quais geralmente as pessoas não param para pensar. “Ela surge de uma forma junto com as famílias burguesas. Até os nobres começarem a ter propriedades privadas, a família tinha um âmbito de comunidade, aberto. Isso muda quando as pessoas passam a ter acesso a propriedade e à mulher se impõe a monogamia compulsória porque o homem não tem como saber de quem é o filho que ela vai gerar, a não ser que ela seja só dele, mulher casta, obediente, virgem”, rememora Tatiana. Arquivo pessoal / Vitoria Garcia e Luiz Mazoni

Lais também acredita que a prática da monogamia está imbricada de preconceitos, não só no seu surgimento, mas na atualidade, e externa com palavras e gestos contundentes seu ponto de vista. “Essa questão de que a gente só tem que ter um parceiro para o resto da vida transforma os relacionamentos numa espécie de mercado. Você só pode ficar com uma pessoa, então você tem que ficar com a melhor. E numa sociedade como a nossa, com tanta diversidade e preconceito, o melhor é branco, com dinheiro, a ‘Barbie ou Ken’, por exemplo. E isso indiretamente causa a exclusão de qualquer pessoa que não está nesse padrão”, evidencia ela. Lais continua e propõe uma reflexão: “As mesmas pessoas que falam que não têm preconceito vão atrás de um parceiro, inconscientemente. E o reflexo disso é muito fácil de ver no grupo de pessoas tidas como desconstruídas. Afinal, amigos temos de todos os tipos, mas e com quem nos envolvemos amorosamente? Aí é que está!”, argumenta ela. Seriam os relacionamentos não-monogâmicos a solução de alguns dos problemas sociais e amorosos que observamos todos os dias? Tatiana afirma que há espaço para todas as formas de ser, basta querer, até mesmo para a monogamia, afinal como está bem claro, as pessoas são diferentes umas das outras. E quando indagada sobre o futuro dos relacionamentos considerando a grande capacidade de mudança que o nosso contexto engendra, ela cita a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins: “Ela entende que no futuro os relacionamentos não vão mais acontecer pelo gênero, por caracteres que são impostos socialmente, e sim por quem o outro é. Teremos a liberdade de poder nos apaixonar por quem o outro é. E do mesmo modo como fazemos coisas diferentes com amigos diferentes, porque não nos amores. Eu espero que sim, que ela esteja certa”. | julho/2020 | 17


Arquivo Pessoal / Ă lvaro Bertani

AUDIOVISUAL

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A VIDEOLOCADORA QUE SE Com a ascensão do serviço de streaming, lojas como a “E o vídeo levou” precisaram se reinventar para se manter com os seus clientes ativos Texto

Alexsander Machado

recusa fechar Á

lvaro Bertani, que é proprietário e balconista da videolocadora E o Vídeo Levou, lembra dos anos 2000, época em que a sua locadora estava lotada de pessoas para locar DVDs e VHS: “Formavam filas no caixa, um caos total. Nós não ficávamos um minuto parados, inclusive, o atendimento era das 10h às 22h. Eu ainda quero ver este local como antigamente, quando chegamos a alugar 18 mil títulos de diversos DVDs”, relembra. Hoje, a média é de 3,5 mil títulos por mês. Porto Alegre, 03 de setembro de 1999. Uma tarde de sexta-feira chuvosa que caia sobre a cidade. O dia que foi inesquecível para muitas pessoas, não por causa do dia gelado. Mas, para os fãs do filme Titanic que o aguardavam ansiosamente em uma fila de dobrar o quarteirão – cerca de 30 pessoas – a abertura da videolocadora. Na data anterior, havia chegado a remessa de DVDs do filme e, na loja, havia um caderno de fila de espera. Desde então, os dias foram ficando mais corridos para a locadora, porém, em alguns anos a locadora quase fechou. Conforme o Milton do Prado Neto, Coordenador de Curso de Realização Audiovisual da Unisinos, as videolocadoras passaram por cinco momentos que foram causando o fechamento das lojas. “O primeiro round, que era final do século XX. O mercado se viu ameaçado pela popularização dos DVDs piratas, que são as cópias feitas sem autorização dos produtores dos conteúdos. O preço de um DVD desses era mais barato do que alugar uma cópia na videolocadora, ou seja, a metade do preço”, comenta. Em 1990, as videolocadoras de “garagem” começaram a fechar as portas, a partir do surgimento da TV a cabo. As pessoas tinham a comodidade de assistir filmes em casa, sem precisar se deslocar. Escolhiam o filme com a variedade de canais que estava disponível. Esse foi o segundo soco que derrubou as videolocadoras.

Segundo Milton, foram os vídeos pirata que impulsionaram o cinema no Brasil. Pois, na década de 90 houve uma operação da Polícia Federal e cerca de 80% de cópias piratas foram retiradas do mercado. “Após a operação as pessoas começaram a gostar mais de filmes e foram procurar muito mais os cinemas”, comenta. Nessa mesma década, chega o terceiro momento de falência das videolocadoras. “A chegada da maior rede de videolocadora do mundo, a norte-americana Blockbuster, que inclusive, chegou ter suas ações avaliadas em cerca de US$ 8 bilhões na década de 1990”, comenta Milton. O quarto momento de velório das videolocadoras foi nos anos 2006 e 2009, por conta da volta da pirataria e os downloads ilegais de filmes pela internet. Sites clandestinos ofereciam aos usuários a ferramenta para baixar o arquivo do filme. A qualidade não era em HD, pois muitos eram gravados direto da tela de cinema. Com toda essa concorrência, as videolocadoras começaram a sumir. O quinto round e a gota d’água para várias videolocadoras fecharem as suas portas foi a chegada do streaming. São locadoras on-line, ou seja, é um site que disponibiliza centenas de filmes para assistir. O usuário tem todos os acessos | julho/2020 | 19


AUDIOVISUAL Fotos Arquivo Pessoal / Álvaro Bertani

a qualquer filme, e paga somente uma taxa mensal. Poderia se pensar: é o fim das videolocadoras. Milton acredita que as lojas físicas ainda possam voltar, pois as plataformas on-line não possuem atendimento diretamente ao cliente e não tem o “namoro” da pessoa com o filme que irá escolher. “Hoje em dia está muito bizarro, eles (sites de streaming) oferecem muito pouca coisa, ou seja, esses sites têm dinâmica algorítmica. Eles escolhem o filme para você e, por isso, acredito ainda na volta em massa das videolocadoras. Na volta de ter o prazer de levar para casa 3 a 4 filmes”, comenta.

O começo de tudo

Bertani estava com 22 anos quando cursava faculdade de Ar20

Álvaro tem a quitetura e fazia estágio em videolocadora há uma empresa de fachadas mais de 30 anos. Nas e letreiros e começou a deprateleiras, os DVDs senvolver outro olhar para estão posicionados em o mundo dos filmes. Desde uma forma estratégica para que o cliente então, ele e sua irmã alugapossa ver a capa vam filmes para assistir em casa. Alguns eram de faroeste, como Os Pistoleiros do Oeste (1989). Suas atenções eram fixadas em filmes com ação. Com isso, buscava o corredor na sessão que ele desejava. As prateleiras de madeira com centenas de filmes em VHS diversificavam a locadora. Álvaro saía da faculdade e seu destino era a loja. Inclusive, já no ônibus, pensava em qual seria o próximo filme para alugar. Chegando no local, se sentia como uma criança em um parque de diversões, pois queria todos os que ali estavam. “Neste mesmo ano, eu e minha irmã tivemos a ideia de abrir uma videolocadora, pois víamos que o mercado de VHS estava no seu auge. Era a grande oportunidade da minha vida de fazer o que eu mais amava”, comenta Álvaro.

A seguir, conseguiram alugar um espaço de 30m2, que era suficiente para começar o negócio que tanto desejavam. Mas, havia dois problemas para ter tempo de trabalhar na loja: o primeiro era a faculdade no turno da manhã; o segundo era o estágio que fazia a tarde. Foi então que convidou a sua irmã para dividir o turno no balcão da videolocadora. O próximo passo era encontrar um nome para a empresa. Álvaro gosta de palavras com duplo sentido ou que tenham algum significado. Por isso, o nome é um jogo de palavras com o clássico norte-americano E o Vento Levou , lançado em 1939. Porém, para escolher contou com ajuda de seus colegas universitários: “Nós começamos a brincar com nomes de filmes, fizemos uma votação com meus colegas e esse ganhou. A única coisa que eu não queria é que fosse um nome em inglês. Mas esse eu gostei”, lembra. Após alguns meses nessa corrida diária, decidiu que precisava ter prioridades na sua vida. Foi então que optou por trancar a faculdade e deixar o estágio na empresa de produção de fachadas. “Era necessário focar em meu negócio. Além disso, a venda de VHS estava em alta na década de 90”, comenta Bertani. Durante as décadas de 1980 e 1990, as videolocadoras eram sucesso de público. Muitas crianças tiveram o seu primeiro contato com um VHS por meio desses estabelecimentos. Nessa época muito distante, quando a internet praticamente não existia, as videolocadoras reinavam no Brasil e no mundo. “As locadoras chamavam a atenção dos clientes, não só com os filmes, mas também, com marketings criativos que chamavam a atenção, pois as capas de plástico dos VHS eram como se fosse um desenho em 3D”, comenta Milton.


Fatores econômicos, culturais e tecnológicos vêm mudando o modo de consumir filmes e séries e, assim, o negócio de videolocadoras A loja sempre localizada no bairro Jardim Botânico, em um prédio com dois andares preenchidos por 32 mil DVDs e Blu-rays de filmes, séries e shows distribuídos em diferentes categorias como gêneros, diretores, países e escolas cinematográficas. A fachada da locadora chama muita atenção de quem passa no local. As cores deslumbrantes de um cinza escuro, as vidraças com um design retangular e as colunas gregas.” A ideia sempre foi dar um conceito de cinema, que chamasse a atenção de qualquer pessoa. Além disso, vale salien-

tar que o interior da loja foi desenhado para que o cliente não precisasse caminhar muito, ou seja, os filmes estavam de fácil acesso para os clientes encontrar o que deseja”, comenta Álvaro.

Fidelidade

Ao entrar na locadora, o cliente se depara com uma fileira de diversos filmes DVDs em cima do balcão. Atrás da mesa, o proprietário está usando uma calça jeans, camisa casual e uma máscara protegendo o rosto e tapando a barba branca, já que não possui uniforme. Ele alerta: “Hoje, claro, nosso fluxo maior é a venda no site, por telefone e WhatsApp. Inclusive, a nossa venda de títulos, que é para o Brasil inteiro, representa 40% da receita da locadora”, comenta. O que fez se manter essa ‘’clientela’’ é o perfil da empresa: a ideia sempre foi vender e alugar obras que as pessoas têm dificuldades de encontrar em qualquer lugar, ou seja, o foco não é a venda de lançamentos de filmes logo após saírem dos cinemas. É o caso do Felipe Ewald, de 39 anos, que é um cliente assíduo há quatro anos da videolocadora, desde que a Espaço Vídeo fechou as portas. Desde então, aluga diversos filmes por mês. O último a alugar foi na primeira semana de junho: seu filho queria assistir à franquia Esqueceram de mim 2 (1992). “Ele viu o trailer desse filme, acho que em um canal fechado, e queria ver o filme. Por isso, fomos à locadora procurar. Lá a gente

encontra todos os filmes antigos etc”, comenta. Disposto a se atualizar sobre as novas formas de consumo, Felipe também costuma dar uma “espiadinha” na Netflix, porém não abandona o seu velho jeito de escolher filmes. ”Não gosto do streaming, apesar de eu ver alguns na plataforma, mas não é a minha preferência. Gosto do material físico. Eu quero escolher com meus olhos e ficar mais de 40 minutos passeando pelos corredores, lendo as capas dos filmes e pensando em quais vou levar. Não gosto que escolham por mim (referindo ao streaming)”, comenta Ewald. E o Vídeo Levou, tem cerca de 34 mil pessoas cadastradas no sistema, porém cerca de 2.300 clientes ativos, ou seja, aqueles que continuam adquirindo alugando ou comprando filmes. Com a queda das vendas, foi necessário dispensar alguns funcionários. Bertani ainda lembra que, um certo momento, os funcionários chegavam a se esbarrar um no outro atrás do balcão, pois era tanta gente para atender. A loja já chegou a alugar 18 mil títulos por mês e para conter essa demanda, era necessário ter 15 funcionários para atender o cliente. Atualmente a loja conta com três atendentes, sendo que um deles é o próprio Álvaro e um motoboy para entrega dos filmes. Agora, a loja aluga em média cerca de 3,5 mil títulos.

OLHAR DO

REPÓRTER

Escrever uma matéria sobre videolocadora em meio a uma pandemia foi um grande desafio para mim. Tudo foi a distância, as entrevistas via celular, as fotos enviadas pela fonte e as conversas com o professor e editor. Porém, consegui usufruir e aprender diversas coisas sobre como fazer jornalismo totalmente on-line. Obrigado, tecnologia! Eu nunca havia realizado uma matéria sem ter ido ao local, sem conversar olho a olho com a fonte, fotografar o ambiente. Com isso, eu vejo como progresso, pois se um jornalista precisa escrever a sua matéria longe dos entrevistados, precisa ainda assim saber colocar no papel. Como exemplo: ao entrevistar, eu precisava ir ouvindo e digitando no meu notebook e claro, imaginando a cena que ele mesmo relatava. Foi muito interessante contar as estratégias utilizadas por Bertani, pois foram diversas situações de mercado.

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CORPO

gordas

E MARAVILHOSAS

R

ainha de bateria, professora, dançarina, modelo e blogueira. Verdadeiramente empoderada, bem resolvida e dona de si. Como você imagina essa mulher bem sucedida: loira, branca, alta, extrovertida, bem humorada e, o mais importante de tudo, magra? Doris Macedo, de 43 anos, é uma mulher gorda, branca, com 1,79 cm de altura, cabelos longos, ondulados e pretos, e com uma risada inconfundível. Como algumas mulheres, não sentia medo de ser o que era, do que pensava e muito menos do que queria. Professora formada em Letras, com habilitação em Literatura e Espanhol, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nunca se limitou a ter apenas uma ocupação. “Sempre me permiti, sempre fui muito plural”, define. A história de Luana Carvalho, de 21 anos, é diferente. Porque ela sempre se entendeu assim, desde pequena, quando ainda estudava na Escola Estadual de Ensino Básico Gomes Carneiro, no bairro Jardim Europa em Porto Alegre. E também seus vizinhos do bairro, classe média alta com condomínios fechados, não deixavam passar um dia sequer sem dizer o quão inadequada Luana era por ser negra e gorda. “Eu sempre fui uma pessoa gorda. As pessoas têm a mania de entender que as pessoas nascem essencialmente magras, e todo mundo que não é assim está errado”, conta Luana sobre suas observações ao longo dos anos. Mas toda essa pressão vinha da rua, dos outros. Pois, em casa, Luana nunca sofrerá com a gordofobia. Entendia que a diferença dos corpos era normal, pois sua mãe também era uma mulher gorda. Muito amada por sua família, sempre recebia elogios, falavam que era linda do seu próprio jeito, inteligente e que não havia nada de errado com sua aparência. Os pais de Doris, professores do estado, na época considerados uma família de classe média, sempre a incentivaram em suas “loucuras”. Sempre manteve seu corpo ativo. Avalia que, por esse motivo, talvez, o mundo do teatro, da dança, do Centro de Tradições Gaúchas e do carnaval fosse tão próximo, pelo incentivo às atividades físicas. 22

Pensar que mulheres gordas não são felizes ou bem sucedidas é tão errado quanto não admitir suas potencialidades Texto

Josi Skieresinski

O conflito interno de Luana não era porque ela não se gostava, mas porque dentro de casa era recebida com tanto afeto e fora dela com tanta hostilidade. Já na adolescência, reparava que todo seus amigas começaram a ter namoradinhos e ela não. Após esse período, começou a perceber que o mundo de suas amigas e seu mundo eram diferentes, pois a gordofobia fazia parte do seu. Doris também viveu momentos complicados na juventude, quando os meninos com quem se relacionava colocavam como premissa encontros escondidos, para não serem visto ao seu lado.

Mais visibilidade

Mas foi com um grande incentivo do amigo Fábio Verçosa que Doris aceitou o convite para ser

rainha de bateria da Bambas da Orgia. No ano seguinte, Doris também desfilaria na mesma posição, mas não esperava pelo episódio de cyberbullying que sofreria. Em mais uma noite de ensaios, a escola postou em sua página do Facebook um vídeo de Doris dançando em frente à bateria, e isso causou alguns comentários ofensivos e gordofóbicos. A partir deles, uma onda de comentários incentivadores e diversos compartilhamentos chamaram atenção. Ganhou visibilidade e decidiu usar sua exposição para ressignificar o ato gordofóbico para inspirar outras mulheres. Começou sua trajetória de palestrante na luta anti gordofobia e de amor próprio, mas sentiu a necessidade de criar uma ação mais efetiva de conscientização e combate à gordofobia. Em 2019, surge o Fórum de Combate à Gordofobia no Rio Grande do Sul, “espaço de discussão entre a sociedade civil gaúcha e poder público do RS, que busca criar estratégias conjuntas de prevenção e combate à Gordofobia”. Para Luana, foi entre os 17 e 18 anos que identificou que esse tipo de tratamento estava errado e que tinha nome. Foi através do canal da youtuber e jornalista Alexandra Gurgel que descobriu que existiam outras pessoas gordas que também passavam por isso e num curto espaço de tempo absorveu todo o conteúdo possível sobre empoderamento, body positive e gordofobia. “Depois que eu entendi o que tava


Rafael Oliveira

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CORPO

Leandro Leão

acontecendo, comecei a ficar com raiva. Por ter aceitado tanta coisa, por ter desenvolvido tantos traumas por essas relações tóxicas e gordofóbicas”. Luana desfez todas as suas relações de supostas amizades, incluindo com sua namorada da época. Hoje, ela é blogueira, em seu perfil no Instagram tem mais de 40 mil seguidores e fala de suas vivências. Transformou sua dor em trabalho, ajudando milhares de meninas a se libertarem de relações ruins e a se amarem. Luana Carvalho em ensaio para uma marca de roupa como modelo profissional

Militância e Saúde

Hoje, Luana e Doris seguem lado a lado em prol da mesma causa, o combate à gordofobia. Participantes do Fórum e ativamente militantes, engajam pessoas através de seus perfis, fazendo com que cada vez mais pessoas saibam da importância dessas pautas, se descubram e se aceitem. “Ninguém está fazendo apologia a obesidade, nós estamos requerendo nossos direitos de acessibilidade”, relata Doris sobre possíveis mal entendidos em relação ao objetivo do Fórum. Para o endocrinologista Rogério Friedman, o termo gordofobia já vem carregado de preconceito. Explica que a obesidade é um problema de saúde pública muito grave. E que aos olhos da medicina não há diferenças entre pessoas gordas e pessoas obesas. Complementa que essa separação é afirmação carregada de preconceito, além de ser falaciosa, pois se baseia que existe uma pessoa obesa que é saudável. “Ela parte de uma imagem estática, e a obesidade é um filme”, explica. Se analisarem a vida de uma gorda jovem com excesso de peso, ela pode 24

Arquivo pessoal / Doris Macedo

estar com os exames satisfatórios, mas com o decorrer do tempo, as doenças relacionadas à obesidade irão se manifestar e progressivamente irá adoecer. Para a Ana Claudia Delajustine, que é psicóloga clínica e Mestra em Direitos Humanos, com foco nos estudos sobre a saúde mental e direitos humanos das mulheres, a gordofobia é um problema ainda mais grave que a pressão estética. Pois é sustentada por três pilares, principalmente fomentada pelo padrão que se caracteriza por exigir das pessoas as seguintes atributos: uma pessoa branca, magra, com cabelo comprido, loiro, com corpo jovem e depilado. Os outros dois fatores são o patriarcado e capitalismo, que Ana define como o patriarcalismo, uma junção dos dois termos. “A gente não tem como deixar de pensar nessa estrutura econômica de poder que é o capitalismo, que pressiona a mulher o tempo todo a pertencer a um padrão estético. Pois a mulher se torna a principal consumidora dessa estrutura, e ele quer vender para lucrar”. O médico exemplificou alguns tipos de complicações que pessoas obesas podem ter com o pas-

sar do tempo, Doris Macedo desfilando pela como pressão Escola de Samba alta, diabetes, Bambas da Orgia colesterol, triglicerídios. O acúmulo de danos pode desencadear infarto, derrame cerebral e alguns tipos de câncer, como de mama e útero nas mulheres, e de pâncreas nos homens, decorrentes da obesidade. Por isso, é considerada uma doença evolutiva, encurtando a expectativa de vida das pessoas. A luta do Fórum é por acesso e direito das pessoas gordas. Segundo Doris, a questão nutricional é um trabalho de médio e longo prazo, construído pela área da saúde, mas contesta que, até os resultados de saúde física serem alcançados, existe o caminho de curto prazo. “As pessoas que um dia irão chegar a emagrecer vão precisar desses acessos”. Uma questão não deve excluir a outra, mas elas devem, sim, trabalhar em conjunto. E reafirma, criando acessibilidade às pessoas, eles estariam perdendo dinheiro, pois teriam que construir novas rampas e melhorar o acessos. “A indústria do emagrecimento está ganhando 70 bilhões por ano, com o aumento de bariátricas. 55,9% da popu-


Mulheres gordas aprendem a elevar autoestima ao mesmo tempo que buscam uma convivência mais saudável com seus corpos lação é acima do peso ou é obeso e não somos contemplados com acesso”, reivindica Doris.

Soluções alternativas

O endocrinologista afirma que hoje em dia a cirurgia bariátrica ainda é um dos últimos recursos utilizados como forma de tratamento para as pessoas obesas que optam pelo emagrecimento. “A pessoa obesa, junto com a sua equipe médica, tem que tentar com todo afinco outros métodos para perda de gordura. Aumentar a sua qualidade de vida, junto com um apoio interdisciplinar de profissionais”, explana. Nutricionistas, educadores físicos e mais alguns profissionais da área médica foram a equipe ideal no auxílio do tratamento das pessoas obesas, podendo ou não fazer uso de medicamentos. “A cirurgia bariátrica não é um tratamento indicado para todo mundo”, pondera Freidman.

Mesmo com todos esses cuidados, o número de cirurgias vem crescendo exponencialmente ano após ano. Segundo o balanço feito em 2019 pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Metabólica e Bariátrica, o número de cirurgias aumentou 84,73% em sete anos. Estima-se que mais de 13,6 milhões de brasileiros precisem do procedimento. Rogério informa que mesmo após a cirurgia inúmeras pessoas voltam a engordar, por conta do comportamento e pela questão psicológica, que não é resolvida pela cirurgia. “Há inúmeros estudos que já comprovam que uma pessoa gorda pode ser saudável”, diz Ana. Para ela, os profissionais da saúde devem abordar o indivíduo e analisar sua saúde completa. Pensar o ser humano na sua integralidade considerando os aspectos emocionais das pessoas, a saúde mental, a física e a social. Pois, quando um desses

três aspectos é afetado, os outros também acabam sendo negligenciados. Ana destaca as consequências que a gordofobia pode ter sobre as pessoas que sofrem essa violência. A principal delas, que pode desencadear outros transtornos, é o impacto na autoestima. “A autoestima baixa, pode desencadear transtorno de ansiedade e depressão, a entrada num relacionamento abusivo, tóxico, violento, e possibilidade de permanecimento nessa relação”. Sem falar em transtornos alimentares, como anorexia, bulimia, compulsão alimentar e ortorexia. Poucos sabem, mas transtornos alimentares são relacionados a psiquiatria, ligados a depressão. Delajustine observa que não são só mulheres que sofrem com a gordofobia, os homens também. Mas, pelo fato de o padrão estético oprimir de uma maneira mais intensa as mulheres sua fala fica mais direcionada a elas. Um detalhe que também passa despercebido e que vários pacientes já relataram é a violência e negligência médica com pacientes gordos. “Isso é perigoso, pois afasta a pessoa de procurar ajuda. O médico, quando é gordofóbico, acaba relacionando qualquer queixa do paciente, independente do que seja, com o peso. Isso faz com que o paciente não volte a consultar, impactando diretamente sua saúde física e mental”, ressalta.

Rafael Oliveira

OLHAR DO

REPÓRTER

Nunca imaginei escrever uma revista nestas condições. Um trabalho tão aprofundado e que requer tanto cuidado, sobretudo com as pessoas e com as histórias que decidimos contar. Mas acredito que o resultado desse trabalho à distância só serve para mostrar que ainda continuamos com a nossa essência humana e de seres sociais. Que ainda precisam desse olhar sensível por diferentes assuntos, porque somos assim tão únicos, com dores e receios. O tema, para mim em particular, foi algo importante e desafiador. Poder abordar, ouvir e entender um pouco mais sobre como a gordofobia age na vida de tantas pessoas é único, além de poder ajudar a desmistificar e a diminuir o preconceito que paira por esses corpos.

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Fotos Arquivo Pessoal / Mitti Mendonça

CULTURA

arte

PRESENTE

Ancestralidade e negritude trazem o resgate de memórias e a reconstrução da história Texto

Fernanda Romão 26


Denison Fagundes

Mitti Mendonça é a criadora do projeto Mão Negra / Resiste. No centro, trabalho que envolve memória familiar. À esquerda, o retrato bordado pela artista homenageia a prima Eva.

A

textura do pano é sentida pelas mãos que o preparam para o bordado. Sobre a mesa de madeira, estão linhas de cores amarela, dourado e marrom que, junto ao bastidor, farão da foto antiga da prima Eva a inspiração. Nos traços bordados, Eva é uma mulher forte, de cabelo crespo e curto, lábios grossos, expressão séria, com os olhos a fitar intensa e serenamente o observador. Ao escolher os materiais e colocar a linha na agulha para o primeiro ponto, Mitti começa a resgatar memórias e transformar a força familiar em arte. Das mãos negras da artista sai a pulsão da arte que percorre exposições e inclui seu trabalho na trajetória cultural gaúcha. A presença de negros nas artes visuais se apresenta como fora dos padrões estéticos e sociais do ambiente artístico, pois artistas pretos representam 3% dos acervos públicos em Porto Alegre. Mitti Mendonça é uma artista de 29 anos, uma mulher negra de longos cabelos trançados e corpo esguio, nascida e criada em São Leopoldo, onde mora até hoje. Em 2017, a artista criou o projeto Mão Negra / Resiste utilizando o bordado como uma forma de comunicação e expressão. A escolha do nome Mão Negra é uma referência à família negra de bordadeiras e

Resiste é para contrapor o cenário da arte com a importância da poética negra, mostrando o protagonismo de uma mulher preta no contexto artístico, compondo outras narrativas contrahegemônicas. Trabalha há três anos com bordado. Vem de uma família de bordadeiras de carnaval da cidade de Jaguarão, extremo sul do estado, na fronteira com o Uruguai. Cresceu nos anos 1990 vendo as tias bordando quando ia passar as férias de verão e inverno. Todas as irmãs de sua mãe saiam na escola de carnaval que existia na cidade: porta-bandeira, baiana, passista, rainha de bateria. As fantasias eram bordadas com lantejoulas e, para além do carnaval, a produção do bordado se estendia para a fabricação de tapeçarias nas quais utilizavam o ponto cruz. Foi nessa infância que a artista teve

contato com técnicas de trabalhos manuais e a influência familiar se consolidou quando ingressou na escola, onde fez artesanato com papel e plástico, reforçando o exercício criativo. Quando ela tinha 12 anos fez um curso de ponto cruz inspirada nos bordados familiares. Através da mãe descobriu a importância da história oral familiar. “Ela sempre conversou sobre essas memórias comigo, e eu sempre perguntei muito sobre a família também. Minha avó era bordadeira, o bordado está na minha família há 100 anos mais ou menos.” O resgate da ancestralidade, da memória e do afeto é sempre presente nos trabalhos de Mitti. Ao folhear álbuns e recordações, a artista busca, principalmente, histórias das mulheres de sua família. Algumas trabalharam por | julho/2020 | 27


CULTURA Diego Beck

muito tempo como empregadas domésticas e cumpriam a rotina dupla do serviço: depois de chegar em casa ainda bordavam as fantasias para o carnaval. Não que isso fosse um peso, pelo contrário. Era de onde tiravam forças e se preparavam para realizar a grande performance da arte: desfilar na escola de samba e, por algumas horas, serem as protagonistas de suas vidas. Ter a liberdade desses momentos é uma história geracional para a artista que percebe o ciclo que vem desde a escravidão na qual os negros eram explorados ao mesmo que tempo que produziam a história cultural do país. O carnaval é uma narrativa da construção visual, estética e política.

Falta de representatividade

Quando a questão da arte negra surge não há somente uma res28

posta para a falta de uma documentação Izis Abreu, sença de artistas negros histórica que poderia preservar a memó- primeira curadora na arte precisa ser amplaria artística dessa arte. Ao acompanhar a negra no Margs, mente debatida. “Em prihistória da arte em livros de referência no idealizou a meiro lugar, é preciso ter mostra “Estética assunto, é possível ver nitidamente que da Rebeldia”, vontade de resgatar essa a narrativa é branca. Em conversas com do artista negro história. Isso começa por amigos artistas Mitti, percebe que somente Otacílio Camilo uma mudança estrutural criar não é suficiente. “A questão toda é ter mais ampla e profunda autoestima para entrar em espaços que geralmente que começa no próprio currículo têm protagonismo de pessoas brancas. E das técnicas das universidades. É impensável artísticas que são consideradas clássicas no sistema quem em um país cuja metade da de arte como pintura, gravura, xilogravura, nas quais população seja negra, num país o material utilizado tem um custo alto...”. Poucos são que tem sua formação social, ecoos artistas negros citados, quando o são. E as pinturas nômica e cultural alicerçada nos históricas retratam, quase que exclusivamente, os saberes africanos e indígenas, a negros em posição que reforçam a submissão por população não se veja representada eles sofrida: “o que é um artista negro? Que tipo de no sistema de ensino, na produção obra ele produz? Ter essa liberdade de tanger vários epistemológica.” Idealizadora da tipos de linguagens artísticas e poéticas, não se ater a mostra “Estética da Rebeldia” do questão do que é uma arte negra”, reflete Mitti. artista negro Otacílio Camilo, Izis Izis Abreu é historiadora de arte e curadora do trouxe para o Margs, um espaMuseu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Sua tese ço tradicional artístico da capital “Otacílio Camillo (1959-1989): estética da rebeldia” gaúcha, um importante resgate da resgatou a memória do artista negro gaúcho e o incluiu história da arte negra. Em 64 anos na história artística brasileira. Ela acredita que a pre- de existência do museu, Izis foi a


Artistas visuais negros buscam visibilidade num campo cuja história tem sistematicamente apagado aqueles que fogem do padrão primeira curadora preta a realizar uma exposição no espaço. “Curar a exposição foi uma experiência maravilhosa. Uma questão importante é que uma exposição monográfica de um artista racializado como negro, curada por uma mulher negra, causa fissuras na barreira estruturada pelo racismo em todas as instâncias sociais.” Participando ativamente no mercado artístico, Izis vivencia a experiência do limite racial: “Em fevereiro deste ano a Gaúcha ZH divulgou a programação dos espaços públicos de Porto Alegre: não há nem na programação do Margs, com seis exposições monográficas, nem na Pinacoteca Rubem Berta, com três exposições, a participação de um artista negro ou negra. No que diz respeito a pesquisadores do campo artístico, por exemplo, no ano passado a Fundação Ecarta inaugurou uma exposição individual de Milton Kurtz, para a qual os curadores convidaram vinte estudiosos do campo para escreverem textos críticos sobre as obras do artista. Não há nenhum estudioso negro ou negra entre esses vinte.” E a falta de participação de artista pretos na história da arte não é somente no estado Rio Grande do Sul. O Brasil também tem faltas nesse processo.

Identidade como movimento artístico

No decorrer das últimas duas décadas, artistas afrodescendentes brasileiros começaram um trabalho de inclusão de pautas que aproximam a arte de questões sociais e da discussão racial. Professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Eduardo Veras percebe o tema muito presente na produção dos artistas negros contemporâneos. “Rosana Paulino e Mitti Mendonça são artistas de

duas gerações que vêm tematizando. Antes existiam artistas bem importantes que trabalhavam com referências ligadas à religiosidade ou à cultura africana. Rubem Valentim era um pintor baiano negro que obteve sua projeção no país entre as décadas de 1950 e 1970 utilizando abstracionismo geométrico incorporando símbolos de religião de matriz africana.” Ir além de códigos, simbolismos e da temática religiosa anteriormente já utilizados é o que buscam os mais jovens. Leandro Machado, artista visual, exerce sua criação com resistência e construção de identidade. Seu projeto “Arqueologia do Caminho” ganhou premiação em 2017 e foi exposto nos anos seguintes no Uruguai e na França. Em seu mais recente ensaio visual “O Rio Com Nossos Peixes, Devolvam”, Leandro aborda, em texto e fotografia, o racismo que existe na sociedade. O artista contemporâneo percebe a falta de uma memória agregadora de percepções e olhares. “Até pouco tempo, no campo da história da arte, dificilmente o olhar alcançava as reflexões feitas por artistas negros, mulheres e homens. Isso por falta de desejo, desprezo, incompetência estratégica. Portanto, uma história não contada, mal contada, sem a presença necessária. A prática de uma imagem, de uma fala sempre desvirtuada, menor, torta, relegada a não lugares, encoberta. Essa história precisa ser escrita, há muito ainda por ser narrado, sobretudo por seus protagonistas.” Para ampliar a circulação e o alcance de seu trabalho, Mitti busca participar de programas de mediação dos museus: “É uma zona de diálogo com o público que está indo lá entender, ver a arte como educação.” Ao utilizar as redes sociais, as criações podem alcançar um maior número de indivíduos e

consolidar as ideias transmitidas pela arte. Ela usa esse recurso para que as pessoas conheçam suas obras e, dessa forma, também surgem convites para exposições, palestras, feiras, oficinas, aumentando sua relevância no campo artístico. “Gostaria muito que tivesse mais exposições negras com a mesma naturalidade que tem de pessoas brancas.” Construir uma narrativa que inclua todos é fundamental para a curadora Izis: “Afinal de contas, tanto a arte, quanto a história da arte enquanto disciplina são criação e produto do sistema mundo moderno, colonial. Ou seja, um sistema forjado com base na racialização e opressão dos povos, em que Europa se coloca como centro do mundo. Acho que os professores precisam abordar a questão do colonialismo na arte e procurar oferecer aos alunos perspectivas de arte, uma arte descolonizada. Os alunos precisam ter a opção de pensar visualidades outras, formas de pensar e viver o mundo que não as impostas por uma noção universalista de arte e do que é ser humano”.

OLHAR DO

REPÓRTER

A produção da matéria foi realizada de uma maneira distinta da habitual no jornalismo devido à pandemia do vírus covid-19. As reuniões de pauta forem feitas em ambiente virtual. Decisões como qual assunto abordar e quais fontes consultar foram definidas on-line. Uma adaptação necessária para que a revista pudesse ser publicada. As entrevistas foram realizadas por ligações telefônicas, e-mails, mensagens de texto e áudio no aplicativo Whatsapp. Senti falta do contato pessoal com as fontes e da produção do material fotográfico. As informações coletadas somente virtualmente impossibilitou a interação mais intensa com os participantes da reportagem. Os entrevistados estiveram totalmente disponíveis aos quais agradeço muito. O processo de construção da matéria foi difícil por que a modificação do presencial para o virtual trouxe incertezas quanto ao retorno satisfatório da reportagem. Ao concluir o texto percebi que a prática jornalística se adapta e requer um aprendizado maior no ouvir e perceber as fontes.

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TRAJETÓRIA Fotos Arquivo pessoal / Muriel Bernardo

Envolvida com a tradição gaúcha, Muriel Bernardo escolhe ‘dançar’ diferente Texto

Maria Júlia Pozzobon

FILHO DE PEIXE… D

esde pequenos, escutamos histórias de filhos que seguem os passos dos pais. Motivados pelo contexto em que crescem, geralmente, tendem a seguir também os passos profissionais, por afinidade, ou simplesmente por se orgulhar da atividade desenvolvida pe30

peixin

los pais. Porém nem sempre é assim que acontece. Hoje em dia, muitos jovens, apesar de conviverem muito com seus pais, resolveram trilhar seu próprio caminho, muitas vezes indo contra aquilo que foram influenciados dentro de suas casas. É o caso de Muriel Bernardo, 24 anos, esteticista por profissão e tatuadora por amor. Criada dentro de CTGs, hoje segue sua vida distante do meio. Muri, como é chamada, conta que seu envol-

vimento com os Centros de Tradições Gaúchas ocorreu de uma forma natural, desde bebê. Sua irmã mais velha fazia parte dos grupos de danças, então as idas aos bailes eram algo frequente. Patrícia Bernardo, sua irmã, conta que o pai, Artur, sempre foi o maior incentivador da família e que desde


Questões comportamentais

nho é? pequena participava do departamento nativista do seu município, São Luiz Gonzaga. Para Patrícia, o afastamento do meio foi algo super natural, pois apesar do incentivo do pai, ele nunca forçou que nenhuma das filhas seguissem no caminho, sem sua própria vontade. Muri começou a dançar aos 4

anos de idade, na companhia do seu pai, uma figura bem conhecida na cidade como um “gaúcho raiz”. Apaixonado pela tradição, capitão do exército aposentado, hoje leva a vida cuidando de seu galpão e do piquete “Cultivando a Tradição”, do qual já foi patrão por diversos anos.

Profissionais da educação comentam que toda atuação familiar é educativa, um exemplo disso é quando observamos o comportamento dos pais, perante as atitudes e escolhas de seus filhos. A psicóloga Fabiana da Cruz explica que é normal que os pais possuam certos anseios em relação à vida pessoal, profissional e social que seus filhos terão no futuro. “As famílias, de um modo geral, são conservadoras com relação àquilo que trazem das suas heranças familiares do passado”, diz. No ano de 2002, a família de Muriel foi embora de São Luiz Gonzaga, na região missioneira, para Boa Vista, capital de Roraima, em mais uma transferência do pai, que na época ainda trabalhava. No mesmo ano, Muriel que já tinha 6 anos, entrou em um grupo de dança tradicionalista gaúcha, de lá mesmo, por influência da família. No ano de 2005, quando retornou para o sul, começou a perceber que não gostava da forma como funcionavam os CTGs aqui e decidiu se afastar. “Em Roraima as coisas eram mais livres, sem regras. Dançava por gosto mesmo. Para ser bonito e pronto”, conta. Patrícia relata que percebeu que, quando Muriel voltou embora para o Rio Grande do Sul, achou o meio muito burocrático e que hoje em dia também não colocaria seus filhos para participarem, pois acredita que os centros de tradições gaúchas viraram empresas que precisam de peões para funcionar. “Além do envolvimento de quase 100% no CTG, eu acredito que hoje em dia não é um meio em que se cultiva mesmo da tradição. Hoje em dia, uma conversa com meu pai em casa e a convivência com ele no piquete passam exemplos melhores do que frequentar o próprio CTG”, avalia. A psicóloga Fabiana explica que os comportamentos dos filhos perante qualquer situação dizem muito sobre como os pais agiram sobre esse assunto. Muriel sempre gostou bastante das músicas e de dançar, tanto que frequenta bailes até hoje. “Quando meus pais me convidaram para participar dos grupos de danças eu topei na hora. Eu não tinha muitas experiências, mas cheguei a passar 90% da minha semana no CTG quando pequena”, conta.

Várias influências

Além da sua irmã, Muriel tem um irmão que sempre seguiu um estilo mais livre. Para ela, as duas ideias crescerem juntas. “Mesmo na época que eu era do CTG, meu irmão me apresentou várias bandas de rock e eu percebia que gostava daquilo”, relembra. Muriel acredita que talvez nunca tenha ocorrido uma transição completa, pois apesar de ser mais afastada, o tradicionalismo é algo que faz parte da sua vida e que lhe traz muitas | julho/2020 | 31


TRAJETÓRIA

Medo dentro de casa

Muriel relembra a primeira vez que foi pintar o cabelo. Hoje ela vive com os cabelos coloridos, mas na época teve muito medo da reação do seu pai, principalmente do que ele ia dizer. “Eu já tinha sofrido muitos problemas no colégio militar em relação aos cabelos, pois já tinha feito umas mexas coloridas. Tive que descolorir, se não ia ser expulsa. Depois que saí daquela escola, estava decidida a pintar de vez, mas tinha medo do que meu pai ia dizer. Só que, apesar do medo, fiz igual, e a reação dele foi muito melhor do que eu imaginei. ‘Ah, 32

Apesar da insegurança de Muriel, o pai aprovou a mudança da cor do cabelo

Fotos Arquivo pessoal / Muriel Bernardo

lembranças boas. “Acredito que tudo o que eu sou, que eu penso e que eu visto tem um pouco de influência de alguém. Tudo feito de influências de outras pessoas da sociedade, como meu irmão e meus primos. Não era algo que eu tinha acesso para procurar coisas novas por mim mesma, então sempre esperava alguém me mostrar alguma coisa nova, alguma música nova e assim foi indo.” Fabiana comenta que os jovens nunca deixaram de considerar os fatores vivenciados por seus pais, mas também têm cada vez mais considerado a possibilidade de serem diferentes deles, e que portanto podem ter uma experiência diferente da dos seus pais. É o que relata Muriel: “Minha família sempre foi um pouco artista. Minha irmã sempre me fez fazer muitos desenhos, desde nova. Música também. Meu irmão sempre com o violão e meu pai sempre com a gaita. Então sempre tive essa influência artística de todos os lados”. Para ela, hoje o seu hobby favorito é qualquer coisa que envolva música, seja a dançando, tocando teclado, cantando. “Esse é o único hobby artístico que eu ainda não transformei em trabalho”, destaca, pois hoje usa da sua arte e dos seus desenhos para realizar as tatuagens e pintar as unhas de suas clientes.


azul. Gostei’, disse ele. Foi um alívio”, comenta Muriel. Para a psicóloga Fabiana, muitas vezes esse medo vem de uma criação na qual os pais não empoderam ou preparam seus filhos para o mundo, para descobrir coisas novas ou seguir caminhos diferentes dos seus e também pouco desafiam seus filhos para não se assustarem com o novo, com o que é diferente. “Dificilmente as famílias fazem isso”, destaca. Muriel relata: “Eu tinha 10 reais na época, que era o troco do supermercado das compras da mãe. Comprei descolorante e resolvi fazer no banho mesmo. Tinha medo de abrir a porta e eles verem o que eu estava fazendo, mas fiz igual. Depois que eu vi a reação deles, não tive mais medo. O problema maior sempre vinha da sociedade que eu estava inserida. O que eles iam pensar dos meus cabelos coloridos?” Apesar das diversas mudanças de cidade devido à profissão do pai, Muriel viveu boa parte da sua vida em São Luiz Gonzaga. Conhecida como a capital estadual da Música Nativista e com 35.000 mil habitantes envolvidos majoritariamente com o meio rural e o tradicionalismo, representava, para Muriel, uma sociedade que lançaria olhares de julgamento para seu estilo mais livre, com cabelos coloridos e tatuagens. Em relação à primeira tatuagem, Muriel comenta que era algo que sempre desejou fazer, mas era contrariada pelo pai. Porém decidiu emagrecer com 16 anos. O pai apostou com ela que se conseguisse perder 10kg em menos de um ano, a deixaria fazer a tatuagem e ainda pagaria por ela. “Aquilo serviu de estímulo ainda maior. Eu cheguei a perder 16 kg e ele teve que pagar”. Hoje, com 23 anos, Muri tem 12 tatuagens pelo corpo. “Acho que meus pais sempre perceberam o que eu seria. Apesar do medo da reação deles, nunca foi algo que surgiu do nada. Sempre tive minha personalidade em tudo o que eu fazia. Eles não tinham muitas escolhas, aprenderam a lidar com a situação”, analisa.

Tal pai e mãe

Em 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, abordou pela primeira vez como a forma da origem sócio ocupacional pode influenciar a inserção laboral dos filhos. Do total de entrevistados, 33,4% reproduziram as ocupações dos pais, 47,4% melhoraram as condições de trabalho em relação aos pais e 17,2% ocuparam postos com maior vulnerabilidade e menor rendimento. Isso mostra, o quanto a vida profissional dos pais, ainda é influência para as escolhas dos filhos. Muriel destaca que a sua vida gira em torno de dar orgulho para os pais. “Quero que eles gostem do que eu estou me tornando. Quando fui trocar de faculdade, eu falei tranquila com a minha mãe, mas com meu pai eu sentei com ele, chorei e tive que explicar meus

Muriel seguiu um caminho diferente daquele esperado pelos pais, mas ainda assim acredita ter herdado dele valores importantes motivos. Mas era muito mais por arrependimento das minhas escolhas. Não vi futuro no Design para mim. Apesar de que meu foco na época eram as tatuagens, porém eu achava que ela faculdade não iria me ajudar muito para isso”, desabafa. Quando se formou em Estética, Muriel decidiu mudar de cidade. “Falei com meu pai, avisando que queria ir embora procurar uns cursos de tatuagens, só que foi em uma época que a minha vida em São Luiz estava muito parada. Então eu disse que ia procurar emprego para tudo, para me sustentar, até para faxineira eu cheguei a procurar. Tudo para ele não ter que continuar me sustentando”, diz. “Quando eu decidi que iria embora, tive que ir lá no galpão dele conversar, como se não quisesse nada. A primeira versão da história era que eu ia visitar um amigo e ficar uns dias em Santa Maria. Aí já procurei empregos e cursos. Quando voltei para São Luiz foi só para buscar os móveis. Mas fiquei com medo, porém meu pai levou a situação bem de boas, só disse que eu não sabia esperar as coisas acontecerem”. Fabiana explica que quando os filhos apresentam medo em relação às atitudes dos pais é porque existiu uma pressão velada dos progenitores. As crenças do desamor, desamparo e desvalor que carregamos não estão bem resolvidas no interior de cada indivíduo. “Quero dizer com

isso que possivelmente esses filhos têm conteúdos internos a serem trabalhados. Como por exemplo, terão que trabalhar o medo da rejeição, medo de não serem aceitos perante a família e medo de decepcionar os pais. Existe, sim, um medo de decepcionar essa família, porque os pais, de alguma forma, impuseram o ‘desejo deles’ nos seus filhos”, explica. Fabiana diz que a psicologia trabalha o enfrentamento desses filhos perante esses pais ou aos padrões sociais e isso serve para fortalecer a autoestima. “Muitas vezes os filhos seguem a carreira e os costumes dos pais para não decepcioná-los. E é aí que eu digo: Onde há medo, há insegurança”. Questionada sobre a mudança, Muriel explica que não queria criar raiz em um lugar como aquele onde nasceu. “Eu não gosto da rejeição que eu sinto quando estou em São Luiz”. Fabiana diz que outra coisa importante que os pais não observam é como está a autoestima desse filho. “Seguir a carreira ou costumes dos pais poderá gerar uma frustração eminente, pois os filhos farão aquilo que foi imposto, e não o que realmente traz felicidade para eles”, justifica. A psicóloga comenta que um bom diálogo franco e com calma ajuda. “Às vezes, fazer tudo para agradar os pais ou seguir os passos pré estabelecidos pela família gera profissionais frustrados e infelizes”, destaca. Muriel hoje segue seus próprios passos, fazendo tatuagens e sendo manicure em uma estética em Santa Maria. Apaixonada pelo que faz, mora com seus dois gatos e leva uma vida sem muitos planos, mas o que se sabe é que ela está longe de ser “igualzita ao pai”. “A maioria das minhas características vem do meu pai. Apesar da nossa incrível diferença, ele me ensinou a ser tudo o que eu sou. Principalmente a ser honesta e grata por tudo o que tenho. Eu confio muito nele e sei que ele faria tudo por mim”, afirma. | julho/2020 | 33


COMPORTAMENTO

voar É SINÔNIMO DE MEDO? Especialistas falam de procedimentos de voo e tratamento para fobia de avião Texto

Marcelo Valduga

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CrĂŠdito da foto

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COMPORTAMENTO

F

altava uma semana para Roberta Fontana, empresária e influencer, viajar para o nordeste com a família. Suas mãos começaram a suar, e em alguns momentos o choro era iminente. Não era emoção, era medo. Roberta é mais uma das milhões de pessoas no mundo que têm medo de viajar de avião. O medo não é de altura, ela não é claustrofóbica. Roberta acha o avião inseguro e não confia nele. Para ela, viajar de avião é ter a sensação da morte perto. Mas a sensação é outra para Thiago Borges, que usa a camisa branca com 3 listras na manga curta. Ele é copiloto internacional da Latam. E segundo ele, estudos comprovam por números que o avião é o veículo de transporte mais seguro, só perdendo para o elevador. Mas dizer Roberta, o isso para quem marido e a filha tem medo às veAntônia em uma zes não justifidas viagens de ca. “Eu gostaria férias da família muito que essas informações de protocolos de segurança e treinamento envolvidos chegassem mais ao público em geral. Os pilotos não decolam uma aeronave se algo estiver fora do protocolo, mas é compreensível o medo, pela dúvida dos que têm esse problema”, diz. Mas Roberta, cada vez que entra em uma aeronave, reza para a viagem terminar logo. Um dia antes da partida, ela não consegue dormir direito, o sono se confunde com sonhos e sensações ruins sobre a viagem. “O café, que eu tomo todo o dia, não desce direito, não tem o mesmo gosto. A hora vai se aproximando e o meu medo aumentando. Entro no carro em direção ao aeroporto e começo a chorar, me abraço no meu marido, sei que vou enfrentar meu maior medo”, relata. Para Cíntia Deiro , psicóloga que trata também esse tipo de fobia, 36

Arquivo pessoal / Roberta Fontana

o medo faz uma função de auto preservação e sobrevivência muito importante em nossas vidas. É uma emoção que nos permite evitar e fugir de perigos iminentes ou presentes. Normalmente, a aerofobia, o medo de voar, pode estar conectado a outras fobias, como medo de altura, de ficar em locais fechados, de socializar, e pode decorrer até de influências de pessoas próximas. “Geralmente, esse pânico ocorre entre 17 e 34 anos, na época de uma mudança significativa na vida, como por exemplo os ritos de passagem – nascimentos, mortes, casamentos, divórcios ou graduações”, detalha. Mas a saga de Roberta continua e, chegando ao aeroporto, ela fica muda, não consegue se concentrar, fica imaginando como será a viagem, sabe que para ela será mais uma vez desagradável. “No

embarque, pego na mão da minha filha Antônia, de 4 anos, enquanto o meu marido Ricardo, leva o Vicente, nosso filho mais novo de nove meses no colo”, conta. “Eu sei que a Antônia sente a minha mão suada e o meu nervosismo”, complementa. Roberta olha para a filha, tentando fingir que está tudo bem. “Sei que Antônia, mesmo ainda pequena, sente que não está. E eu não quero passar esse meu medo para ela. Tento distraí-la colocando desenhos na tela da poltrona do avião, mas por dentro sinto aquela sensação de que estou em perigo”. O bom disso tudo é que ela enfrenta o temor, mesmo a trabalho ou em férias, pois não deseja perder muita coisa na vida dela e da família.

Lidando com o medo

A psicóloga Cíntia diz que, para alguns, é possível ter pânico de voar por medo como altura, ficar em um lugar apertado, em contato com outras pessoas, experiências ruins em voos anteriores e até histórias catastróficas com pessoas terceiras. Os sintomas da aerofobia se caracterizam especialmente por ansiedade, nervosismo, suor e pânico. Apesar de se saber que a informação pode ser uma grande aliada no tratamento, para uma correta indicação terapêutica,


Arquivo pessoal / Thiago Borges

outros pontos precisam ser analisados. “Deve ser identificada a origem e o grau de fobia de cada indivíduo, da ansiedade (leve, média ou grave), se a pessoa chega a paralisar com a ideia ou ato de entrar num avião e a intensidade de seu sofrimento. Para cada situação existe um tratamento diferente”, explana. Segundo Thiago, normalmente as pessoas pensam que os comissários de voo estão ali só para servir as pessoas. Mas enquanto os pilotos estão sendo responsáveis pela condução da aeronave, os comissários estão a bordo para gerenciar a segurança dos passageiros

e repassar qualquer anormalidade para a cabine. Eles estão preparados para fazer esse “filtro” de situações de passageiros desde o embarque. “Esses que têm pânico em um grau extremamente mais elevado, devem fazer um tratamento com algum profissional antes de pensar em fazer um voo”, aconselha. O copiloto já presenciou várias situações em que o passageiro relata

Pessoas que têm medo de voar normalmente não tem sensação de segurança, apesar de haver poucos casos de acidentes ou imprevistos com aviões

que tem fobia. “Nesse caso, com a aeronave ainda em solo, levamos o passageiro até a cabine, para conhecer melhor os pilotos, o avião, e explicar que é bem seguro”, conta. Situação inusitada que aconteceu com Thiago foi a de um delegado de polícia de uma cidade do nordeste que iria para Orlando, nos Estados unidos, com a mulher. O passageiro relatou que tinha pânico de avião e não queria embarcar. Foi feito então o convite para conhecer a cabine, falar com os pilotos, ficar ciente de todos os procedimentos de segurança do voo. Depois de uns 40 minutos de visita, o delegado foi irredutível e não quis embarcar. O detalhe: a viagem era de lua de mel e a esposa foi sozinha. EventualO copiloto Thiago mente, a fobia Borges sugere pode envolver que pessoas outras questenham mais tões psicolóinformações sobre gicas que vão procedimentos de vôo muito além dos traumas físicos e emocionais, sendo indicado para estes casos, além da medicação, do uso de técnicas para gestão da ansiedade e do medo, a modalidade de psicoterapia. Segundo a psicóloga Cíntia Deiro, os especialistas dividem o medo de voar em três grupos principais e a indicação terapêutica vai variar conforme cada caso: aqueles que nunca voam ou não voam há mais de cinco anos, apesar da oportunidade de fazê-lo; aqueles que voam apenas quando absolutamente necessário com extremo terror; e aqueles que voam quando necessário, mas com ansiedade. Caso a pessoa se enquadre em algum destes grupos ou disponha de outras questões que gerem sofrimento e ansiedade no tema e ato de voar, deve conversar com algum especialista, para que possa ser avaliada e orientada sobre as alternativas de tratamento correspondentes. | julho/2020 | 37


Arquivo pessoal / Júpiter Wieczorek

GÊNERO

Estudante Júpiter Wieczorek se identifica como demigênero

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muitas

formas DE SE VER

Não binários são pessoas que não se percebem dentro do espectro masculino ou feminino Texto

Ulisses Lima Machado

A

pertar o botão, descer até o primeiro andar do prédio de Biologia da UFRGS, entrar em um banheiro pouco higienizado, faltando itens de utensílio básico: esse é o processo de Júpiter quando precisa ir ao toalete no intervalo ou ao fim da aula. Todo esse esforço se deve ao desejo de estar em banheiro que corresponde a sua identidade, neutro, pois Júpiter é uma pessoa não binária, ou seja, não se encaixa completamente nos gêneros masculino e feminino. Quando não tem tempo hábil para ir ao banheiro de gênero neutro, Júpiter opta pelo banheiro feminino. “As vezes eu sinto meio deslocado, contudo acredito ser melhor. Não sei se me aceitariam no masculino”, conta imitando uma reação de choque e raiva que provavelmente ve-

ria se fosse ao banheiro masculino. O não binário pode transitar entre os dois gêneros, transcender os dois gêneros, rejeitar os dois gêneros, usar os dois gêneros de forma igual ou predominantemente um deles. Alguns gêneros dentro do não binário são: agênero, gênero fluído, bigênero, demigênero, poligênero e neutrois É o que diz o coordenador do Grupo Preconceito, vulnerabilidade e processos psicossociais da PUCRS, Angelo Brandeli. “As identidades variam de acordo com cada cultura e momento histórico e podem variar inclusive ao longo do ciclo vital ou mesmo de acordo com o contexto em que indivíduo está inserido”, explica. Estudante de Biologia, Júpiter Wieczorek, 21, se entende como demigênero, pessoas que identificam parcialmente com um dos gênero

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GÊNERO

ou com os dois. Pessoas não binárias decidem seus pronomes, ou seja, a forma em que outras devem se referir a estes, seja masculina, feminina ou neutra, ou mais uma opção. No caso de Júpiter, seus pronomes são neutros ou masculinos. Sua descoberta pessoal foi progressiva: o primeiro contato com gênero não binário foi a partir de sua amiga Catarina, que encontrou sobre no site Tumblr post relacionados a gênero e Júpiter inicialmente não refletiu muito sobre o que ela mostrava. Contudo, aquela ideia ficou borbulhando em sua mente e, aos 19 anos, em sua aula de Fisiologia, ao mexer no celular, se deparou com um post no Instagram, que o fez segurar as lágrimas em seus olhos, evitando derrubar em frente a seus colegas. “O post descrevia as razões de como uma pessoa se sentia e por consequência onde se encaixava. Ali eu vi quem eu era”, conta. Quando começou a contar para pessoas sobre sua identidade, teve em primeiro impacto a confusão de seus pais, que inicialmente não sabiam muito bem do que se tratava. Mas ela conta que logo essa desorientação se tornou aceitação. Como explica Ângelo Brandelli, diversas crianças que tiveram um gênero determinado ao nascimento não crescerão adultos que se identificam com essa designação. Portanto, segundo ele, as transgeneridades precisam ser incorporadas no repertório das condições humanas possíveis por todos. “É necessário que os pais estejam abertos para o fato de durante a infância e adolescência ocorrerem experimentações por parte de jovens e crianças em relação ao seu gênero e sua sexualidade. Essa exploração é natural no desenvolvimento humano e já é descrita na literatura médica e psicológica há muitos anos”, esclarece. 40

A falta de identificação com um dos gêneros gera desconfianças e reações das mais diversas, sobretudo por causa da aparência A aparência que não corresponde a apenas o masculino ou a feminino pode confundir às vezes. Em uma visita a Veranópolis, onde mora boa parte de sua família incluindo seus avós, Júpiter foi parado por um idoso, que o questionou sobre o seu gênero. A pergunta do senhor se delimitava: “Você é homem ou mulher?”, perguntara. Com a resposta de Júpiter de não se identificar completamente nenhum dos dois, o interlocutor, sem entender, pediu para que elu escolhesse, mas que independente de sua escolha teria seu apoio. “Ele realmente queria me ajudar, ele acreditava que aquilo me ajudaria”, relata o jovem em meio a risadas e olhares que denotavam uma confortável lembrança. Contudo, nem todas as coisas são aceitações na vida de Júpiter. Pretendendo ser professor de Biologia, sabe que sua vida escolar estará atrelada a pais e mães conservadoras. Para isso, ela já tem base argumentativa científica suficiente para a resposta: “A nossa base genética não é só de cromossomos XX e XY. Comprovadamente não são a única coisa que forma a gente e outros fatores de predisposição genética já atestam a existência de gêneros diversos”.

Três semanas

No ano passado, quando chegou em casa depois de sair do Tudo

Fácil, local onde se registram documentos, Júpiter lançou à mesa em frente a seus pais um papel verde retangular no qual informava que daquele momento em diante o seu social definitivo. Já em janeiro deste ano, quase um ano após ter o seu documento social em mãos, mas ainda com receio, o jovem solicitou à universidade que oficialmente na chamada esteja escrito Júpiter. Teve seu pedido atendido em 21 dias. Pedido este que irá evitar as explicações intermináveis e repetitivas aos professores sobre como e por que chamá-lo de Júpiter. Seu deadname estaria, assim, cada vez mais dead. Esse é o primeiro passo rumo a conquistas maiores que ainda estão sendo travadas por pessoas não binárias. Atualmente, o Brasil não reconhece oficialmente o gênero neutro, somente masculino e feminino. Júpiter conhece apenas um caso de uma jovem intersexo que conseguiu afirmar seu gênero neutro. “Não havia algum exemplo em que me representasse em como conseguir algo que deveria ser um direito como pessoa não binário”, comenta. Ele conta, justificando o seu receio em pedir os documentos que lhe é de direito, o que aconteceu com uma de suas amigas mais próximas. Não binaria, ela tentou obter sua carteira social, com extremo cuidado para que as informações fossem completas. Mesmo tendo levando todas as documentações necessárias e o pedido foi negado, com o pretexto de que aquele direito correspondia a pessoa trans, ou seja, trans binárias. Júpiter pretendia em 2020 ir pelo mesmo caminho e entrar com pedido junto aos órgãos cabíveis para tornar-se oficialmente Júpiter Wieczorak e enfim matar de uma vez por todas o seu deadname. A pandemia o fez esperar.


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JOGO

Texto

Felippe Jobim

DO HOBBY AO

O caminho trilhado por quem deseja fazer do poker seu sustento e quem já o tem como realidade

sustento C

om a popularização da internet, os famosos hobbies hoje acabam se tornando possibilidades de fonte de renda para quem não se encaixa nos empregos ditos convencionais. O poker é um jogo que vem crescendo no cenário mundial, tanto de forma online através de sites como PokerStars, quanto em campeonatos presenciais em clubes de poker. De famosos a anônimos, o jogo vem ganhando cada vez mais adeptos no mundo. Elias Vidal nunca se adaptou ao mundo da faculdade, já havia trabalhado como tatuador, coach de League of Legends e hoje, com 24 anos, começou a focar no poker buscando a independência financeira através do jogo. Quando a diversão vira sustento, o foco deve ser total no jogo. Isso significa abrir mãos de certas vantagens que a maioria dos empregos convencionais possuem, como jornadas de trabalho e salários fixos, já que o constante estudo e adaptação é extremamente necessário no poker. Estratégias e fundamentos evoluem rapidamente, o que era tendência em 2015 hoje em dia não se aplica mais, o pensamento dentro das partidas mudou e quem leva o jogo como profissão precisa se man42

ter atualizado. “Mês passado ganhei um torneio que me lucrou muito, consegui comprar um computador e uma cadeira nova, mas isso não significa que vou ganhar isso todos os meses, pois ainda não sou um profissional, estou aprendendo e não consigo manter o mesmo nível. Pode ser que mês que vem eu lucre tanto um valor inexpressivo quanto mais do que eu ganhei”, conta Elias. Todo campeonato jogado na plataforma PokerStars tem uma taxa para participar, que é chamada de Buy-In. Quanto mais cara, maior a premiação. Esse preço é pago pela banca, dinheiro na carteira virtual da conta do jogador que pode ser conseguido ganhando os campeonatos ou eliminando outras pessoas da mesa. Além disso, algumas equipes auxiliam os seus jogadores no começo, depositando uma certa quantia para que possam jogar campeonatos menores, geralmente com a taxa de entrada sendo de apenas alguns cents. Esse valor fica permanentemente na conta do jogador e pode ser retirado na hora que quiser via transferência no PayPal. Todo o dinheiro ganho é em dólar, por isso, é importante conferir a cotação da moeda frequentemente para saber quando é um bom mo-

mento para retirar um pouco do dinheiro. Tendo em média de duas até três aulas por semana que duram entre uma ou quatro horas, Elias dedica seu tempo livre apenas no jogo de cartas, de manhã até a noite, já que os campeonatos não possuem um tempo médio definido – enquanto uns podem durar duas horas, outros chegam até sete ou mais. Seus estudos são direcionados ao fator matemático do poker, às estratégias e como aplicá-las. Algumas partidas são revisadas pelos instrutores do time, dando dicas sobre qual jogada seria melhor naquele momento ou a forma como o jogador deveria se portar. Suas anotações em um caderno velho das lições que aprende demonstram o foco e a dedicação de quem sonha em se tornar um jogador profissional de poker.

Só, mas em rede

Uma janela de poker estava aberta no computador, estava jogando apenas uma mesa. Elias vestia uma camisa preta e, a cada jogada, fazia breve pausas nos movimentos do mouse para beber um gole de café na xícara que repousava em cima da sua escrivaninha, na frente do monitor sem que atrapalhasse sua visão da tela. Mudava a aba para um programa onde calculava as possibilidades de cada mão que os outros oito adversários poderiam ter. As fichas virtuais se moviam para o centro da mesa e novas cartas apareciam acima delas. A cada nova carta revelada, torcia como se estivesse assistindo a uma partida de futebol: “Dois, dois, vem dois”. Então, na última carta, o número que ele tanto pediu veio, e a reação foi como se o time dele acabasse de ter feito um gol: “Isso! Vem para o papai!”, bateu as mãos e as esfregou. As fichas que antes estavam no meio dos jogadores, se dirigiram ao 1Eloyy, apelido que


Juliana Coin

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JOGO

A vida de Elias Vidal vem se adaptando à rotina do poker

tagem em razão dos treinos diários em mesas online e com as dicas de seus tutores nas aulas. O que lhe faltava em “malandragem”, como pegar referências nas expressões dos seus adversários ou pressioná-los com provocações, compensou em técnica e capacidade de analisar as possibilidades de mãos que cada um na mesa poderia ter. Os conhecimentos básicos permitiram que ele superasse as adversidades e ganhasse o torneio no fim da noite.

Uma formação diferente

Arquivo pessoal / Rogério dos Santos

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Arquivo pessoal / Elias Vidal

ele usa no site onde joga poker. A cada hora todos os sites de poker pausam durante cinco minutos para que os jogadores possam ir no banheiro, comer algo, fazer algum alongamento ou simplesmente tenham um pouco de descanso. Elias, no primeiro intervalo, levantou-se, foi em direção à cozinha, encheu a xícara com mais café, foi ao banheiro e voltou para frente da tela do computador. Quase que imediatamente as partidas foram reiniciadas e ele voltou a focar no jogo. Depois de quase um ano nessa rotina, resolveu passar pela experiência de jogar um campeonato presencial de poker: chamou João, seu amigo que lhe apresentou o jogo como passatempo e sempre o encorajou para seguir carreira. Elias olhava pela janela do ônibus e via as construções da cidade passarem depressa, olhou para o céu e percebeu que estava escurecendo, não iria demorar para a noite surgir. Estavam a caminho do HU Poker Club, que organiza campeonatos. Segundo Eduardo Fagundes, dono do clube, a casa recebe, em média, de 30 a 40 pessoas por torneio, que acontecem em torno de três vezes por semana. As competições são diferenciadas pelo valor de buy-in e modalidade do poker. As modalidades mais jogadas profissionalmente no poker são conhecidas como Texas Hold’em (cada jogador recebe duas cartas, e na mesa o dealer distribui cinco para formar as jogadas) e Omaha (mesmas regras do Texas, mas os jogadores recebem quatro cartas). Elias estava pensativo, apesar de jogar diariamente na internet, seria a primeira vez que disputaria um campeonato ao vivo. Queria descobrir como funcionavam as estratégias nessa modalidade. Já era noite quando chegou no HU Poker Club e pagou sua entrada ganhando 30 fichas. João o apoiou pagando mais 30. Por ser uma casa

Rogério dos Santos vê o poker como um negócio a longo prazo

pequena, os competidores eram divididos em três mesas. Durante os jogos, havia conversas, provocações e distrações. Por estar se adaptando ao presencial, Elias foi rapidamente taxado pelos adversários como alguém que não arriscava no jogo, conhecido como tight. Porém, com o avançar do jogo e a pressão aumentando, ele se permitiu arriscar mais, por já estar acostumado a momentos assim nas mesas online. Como a maioria dos competidores do clube são pessoas que não usam o jogo como fonte de renda, mas sim como um passatempo, Elias sentiu que teve van-

Elias participa de, em média, dez mesas online por dia, e por estar no início, ainda não consegue se sustentar com o poker. Sua dedicação encontra-se focada nas aulas do time que participa, a Futturo Team. “Poker é um investimento, assim como faculdade ou curso profissionalizante, nós plantamos hoje para colher lá na frente. Muitas pessoas têm medo de começar no jogo por receio de perder dinheiro, por achar que é um jogo de azar, mas paga mais de mil reais em mensalidade (para a universidade) e não é um dinheiro que será recuperado no futuro”, avalia. Além dele, Rogério Santos, de 36 anos, conhecido como Zwinsky, pensa de forma parecida: “Os times de poker geralmente escolhem pessoas que possam jogar por, no mínimo, seis meses. Mas para mim o ideal é um ano, pois é um negócio a longo prazo, você tem todo um processo de amadurecimento até começar a ser lucrativo”. Rogério joga profissionalmente desde 2015, porém conhece o jogo desde 2007. Sua trajetória começou na infância, desde os 11 anos quando se apaixonou pelo xadrez. Jogou profissionalmente durante muito tempo, participou de campeonatos brasileiros e internacionais. Houve uma migração natural das pessoas que jogavam para o poker por causa


Antes de se tornarem profissionais, jogadores de poker buscam aprender durante a participação de torneios para que, assim, aprendam diferentes estratégias do alto investimento e pouco retorno financeiro que o xadrez proporcionava. No jogo de cartas acontecia o contrário, e isso chama a atenção de quem é competitivo. “Vamos usar como exemplo o basquete. A pessoa tem um salário fixo, mas se alguém vier e falar que na NBA ele vai ganhar mais fazendo a mesma coisa, ele vai mudar, financeiramente a pessoa vai ser guiada por esse caminho.” Rogério conheceu o poker depois de um campeonato de xadrez em uma pequena cidade de Santa Catarina. Como o único ônibus de volta só passava no outro dia, ele e alguns outros jogadores que não podiam voltar para casa naquela noite fizeram uma roda e começaram a jogar. Esse evento despertou o interesse em Rogério. Como era em uma época na qual a internet não era um recurso popularizado, pesquisava sobre o poker apenas quando ia a lan-houses. Por essas dificuldades, jogava apenas quando dava e de forma despretensiosa, como um passatempo. Um tempo depois, formou-se em Educação Física, e em 2010 recebeu uma oportunidade de dar aula em uma escola particular de Toledo, Paraná e aceitou a proposta. Lá, encontrou amigos que jogavam xadrez profissionalmente com ele que então haviam mudado para o poker. O hobby começou a ganhar espaço na vida de Rogério. “Fiquei três anos em Toledo, e durante esse período encontrei uma página com informações de poker, o que era mais difícil ter informações sobre o jogo naquela época, a mídia especializada era bem mais fraca, e muito coisa a gente acabava tendo que deduzir pois não tinha o que aprender”, relembra. Quando acabou o contrato com a escola, tentou seguir na área em que tinha diploma. Apesar de buscar fóruns especializados em poker para melhorar, o jogo ainda não era sua principal fonte de renda.

Em 2015, abriu uma academia que acabou não dando certo, teve prejuízo e ficou sem renda. Foi então que um amigo seu o indicou para uma equipe de poker pequena, com apenas dez jogadores. Passados alguns meses esse time acabou e ele migrou para a que está até hoje, a CardRoom. Nessa época, começou a ganhar o equivalente ao que ganhava como instrutor de academia. Hoje é coordenador de três equipes: Futturo Team, MIB Poker Team e uma divisão da CardRoom. “O poker é um jogo muito vaidoso. Basta a pessoa ter um bom resultado e ser ativa em redes sociais, mostrando sua rotina e suas manias na hora de jogar que logo ele vai conseguir vários adeptos, porque as pessoas acham que aquilo fez ele vencedor, pois ele não mostra a parte de estudos e treinos”, relata. Rogério é um dos instrutores de Elias nas aulas que acontecem, em média, de uma até duas vezes por semana e que duram cerca de quatro horas. A rotina de quem vive do poker pode ser diferente para cada jogador: existem pessoas que vão preferir acordar cedo, fazer exercícios físicos para só então começar a grindar (termo que eles usam para jogar). Outros, como o próprio Rogério, preferem trocar o dia pela noite, acordando já no fim da tarde e passando a madrugada nas mesas online. Um jogador competitivo de poker, já consolidado ou não fica cerca de 12 horas grindando de quatro a cinco dias por semana. Quando não está estudando, ele dedica seu tempo livre apenas ao jogo de cartas, de manhã até a noite. “Tem dias que eu tiro o dia para descansar e não poker, mas na maioria do tempo estou pensando no jogo, se não for gridando vai ser estudando. É cansativo, mas eu penso que é melhor me esforçar agora do que trabalhar em um escritório ou lugar onde não vou ser feliz.”

Jogo para elas

Além das dificuldades que todos os jogadores de poker enfrentam, a desconfiança com jogadoras mulheres é um obstáculo a mais na vida delas. Além do preconceito que acabam influenciando no estigma e aprendizado, existe também o desafio de se provar para seus familiares, que em alguns casos demoram para aceitar este caminho, é com isso que Letícia Duarte precisa lidar enquanto constrói sua carreira no poker. Conheceu o jogo quatro anos atrás após trabalhar como dealer em uma casa de poker em Belo Horizonte. Trabalhava como psicóloga e depois de 6 meses fazendo os serviços para o clube e participando de alguns torneios, pediu demissão do antigo emprego e começou a jogar torneios presenciais. Em 2019, decidiu transformar o poker em uma carreira e então dedicou-se completamente ao jogo. Isso a fez entrar no time de base da CardRoom para ganhar experiência. Por ser de uma família de funcionários públicos, todos estão acostumados com o método de salário dos empregos comuns, mas no poker existe uma instabilidade financeira, principalmente para quem ainda não está firmado no cenário profissional. Isso foi uma das coisas a que ela que teve que se adaptar. Além disso, sua recente maternidade também a obrigou a conciliar sua vida profissional com sua vida pessoal. Hoje, sua filha de 4 meses é, junto com o poker, o foco da rotina que vive.

OLHAR DO

REPÓRTER

É importante conhecermos a realidade de quem busca formas alternativas de viver a vida financeiramente. Antes de produzir a reportagem sempre imaginei o Poker como um jogo de azar, onde a sorte era o que definia quem ganhava e quem perdia dinheiro, tornando a carreira imprevisível. Contudo, após me inserir à realidade desses profissionais, percebi o quanto de estudo, foco e empenho é preciso para seguir essa carreira. A matemática envolvida, as rotinas de aulas, jogos e inclusive as dificuldades que superam todos os dias são evidências que o Poker é uma profissão como todas as outras. Todos os jogadores foram muito solícitos em explicar a realidade da carreira, facilitando a compreensão e a produção da reportagem.

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