Enfoque Porto Alegre Lomba do Pinheiro 2

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ENFOQUE

LOMBA DO PINHEIRO

PORTO ALEGRE

#2

NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2023

EDIÇÃO DIGITAL

RAMIRO LEMOS

LAURA DRIEMEIER

JULIA FERLIN

KiLomba: o prévestibular gratuito do bairro

Esporte como aposta para inclusão dos jovens

Página 4

Página 11

Páginas 12 a 17

VITÓRIA RIBEIRO

CPCA ajuda a desenvolver o potencial criativo da juventude

AS JUVENTUDES DÃO O TOM A Lomba do Pinheiro tem projetos sociais que envolvem cultura e cidadania voltados para crianças, adolescentes e jovens adultos


2. Personagem

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O sonho de Eddy Oleste O haitiano que trabalha como zelador no Centro Cultural da Lomba, quer ser engenheiro

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ddy Oleste, de 45 anos, é o zelador da Pracinha da Cultura, no centro cultural da Lomba do Pinheiro, onde cuida dos banheiros comunitários. Ele é haitiano e veio para o Brasil em 2013, pois em seu país houve um terremoto que destruiu sua morada. Eddy teve que deixar sua família para trás em busca de uma vida melhor. O zelador aprendeu a falar português em uma pastoral do migrante, em Porto Alegre, cidade onde mora atualmente, juntamente com a esposa e o filho. Há um ano, ele trabalhava em um delivery, porém, por questões financeiras, o lugar acabou fechando e, desde então, Eddy trabalha na Lomba do Pinheiro. Até hoje, Eddy não conseguiu nenhum trabalho de carteira assinada. Ele trabalha na pracinha

nos finais de semana apenas. Nos dias de semana, ele fica sem emprego e renda para sustentar sua filha que ainda mora no Haiti. Ele tem ensino médio completo e fala fluentemente português, o que mostra que as oportunidades de um emprego melhor para pessoas de outro país são poucas e, nesse caso, Eddy é mais uma prova dessa estatística. Seu sonho é se tornar engenheiro um dia, desejo que sempre teve desde quando morava em seu país natal: “Eu quero ser um engenheiro, mas não realizei porque o meu país tá quebrado, então eu não consegui fazer faculdade”, conta Eddy. Mas isso não é motivo de desistência, pois ele ainda tem esse sonho vívido dentro de si: “Mesmo com a idade, o sonho não para, eu nunca parei de sonhar e, se tiver uma oportunidade, eu quero aceitar, porque eu tenho muita saúde e esperança”. n

Eddy zela pela qualidade dos banheiros e, em seu tempo livre, visita a biblioteca para continuar estudando

BEATRIZ SCHLEINIGER

Editorial

E

sta é a segunda edição do Enfoque no belo território que é a Lomba do Pinheiro. Em outubro, as turmas de Jornalismo Comunitário e Cidadão e Fotojornalismo, da Unisinos, retornaram ao bairro da zona leste de Porto Alegre, desta vez, com os olhos no futuro. Mais uma vez, o apoio dos freis franciscanos e demais integrantes do Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA) foi fundamental para a produção e execução das reportagens. Graças à mediação deles, presentes há mais de 40 anos na comunidade, que os estudantes chegaram às fontes, ou seja, aos membros dos projetos e organizações

Sinfonia de juventudes que povoam a Lomba. Este auxílio incluiu acompanhar as saídas de campo e guiar alunos e professores pelo bairro. Tudo isso é ouro para o jornalismo e, em especial, para as relações de afeto e responsabilidade que se criaram. Para dar conta das 16 páginas desta edição, as turmas se dividiram em três grupos – com saídas em diferentes dias, e, desta vez, sem chuva! Em diálogo com os princípios do jornalismo comunitário e cida-

dão, o desafio foi produzir um material à altura do que presenciamos in loco: histórias de personagens e projetos da Lomba que revelam o poder transformador do esporte, da arte e da educação na vida de todos os participantes. Acima de tudo, essa edição é um convite para celebrar as juventudes, porque para além de uma faixa etária, ser jovem é um estado de espírito, presente no trabalho dos professores, treinadores e

personagens de nossas reportagens. Gente que não deixou morrer o questionamento, a inconformidade e o desejo de construir um mundo melhor. Nos últimos anos, vimos crescer o protagonismo de jovens na ciência, em premiações esportivas, na luta contra as mudanças climáticas e pelo acesso a serviços básicos. Movimento necessário para transformar o ensino e a cultura, e tornar as relações sociais cada vez menos afetadas por marcadores de classe, gênero, cor e, claro, territorialidade. O que é a periferia senão um espaço de criação e potência para resolução dos problemas urbanos? Nesta edição, o Enfoque mostra a força de vários pro-

jetos que estão em sintonia para desenvolver os jovens. O IPDAE, o Centro da Juventude, a Orquestra Villa-Lobos, a escolinha de futebol e os seus treinadores, o KiLomba e seus professores voluntários que trabalham para ver os alunos na universidade, e um sem-número de moradores que foram tocados pela percussão, pelos acordes e o ritmo dos sonhos destes personagens que fazem a Lomba. Escolha um lugar nessa plateia e deixe que as palavras se transformem em imagens e sons. As cores desta sinfonia são de pura esperança. n ALANA SCHNEIDER LUCIANA KRAEMER

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Porto Alegre - Lomba do Pinheiro é um jornal-laboratório dirigido ao bairro com o mesmo nome localizado na Capital gaúcha. A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus Porto Alegre).

enfoqueportoalegre@gmail.com

| REDAÇÃO | REPORTAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário e Cidadão. Orientação: Luciana Kraemer (lucianakr@unisinos.br). Repórteres: Alana Schneider, Laura Santiago, Lorenzo da Costa Mascia, Max Ramírez e Nícolas Córdova da Silva. IMAGENS – Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Beatriz Sallet (bsallet@unisinos.br). Repórteres fotográficos: Bianca Moraes, Beatriz Schleiniger Mello, Felipe dos Santos Machado, Giovani do Prado Baltezan, Júlia Ferlin, Laura Driemeier, Leonardo Martins, Lucas Goulart, Maria dos Anjos, Nathalia Santos, Ramiro Lemos, Taiana Souza e Vitória Ribeiro. Monitora: Laura Goulart. | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Campus de Porto Alegre (RS): Av. Nilo Peçanha, 1.600, Boa Vista (CEP 91330 002). Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vice-reitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Cristiano Richter. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret.


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Educação musical .3

IPDAE: a formação de jovens músicos na Lomba A

música, que tem quase 20 anos, oferece uma variedade de cursos, abrangendo instrumentos como violino, viola, violoncelo, contrabaixo, flauta transversa, oboé, piano, flauta doce, clarinete, fagote e trompete.

Acima, André Alves da Silva, aluno do IPDAE; abaixo Fátima Flores Jardin, coordenadora da instituição

significativa do trabalho é realizada por voluntários, tanto da comunidade local quanto de fora do bairro.

COMPROMISSO COM OS ALUNOS

O plano futuro para a entidade é continuar oportunizando que mais jovens ingressem nela, além de aumentar o número de instrumentos para as aulas. A instituição tem o grande objetivo de expandir a sua sede, incluindo espaços apropriados e um auditório,

LUCAS GOULART

escola de música do IPDAE é recente, existe desde 2007 e conta VIDA PROFISSIONAL com a presença de 160 alu- E ACADÊMICA nos. Os cursos duram, em “O IPDAE é uma ponte que média, oito anos. “Nossos liga os jovens da periferia a alunos concluem os cursos oportunidades acadêmicas bem formados, por isso, e profissionais, mesmo para muitos estão saindo da ins- aqueles que desejam seguir tituição para ingressar na outras áreas”, enfatiza o prouniversidade federal”, en- fessor de piano, Oséias Pefatiza uma das fundadoras reira. Em 2016, Oséias havia e atual diretora do IPDAE, se matriculado na escola de Fátima Flores Jardim. música da instituição com o Kamily Duarte de Sou- propósito de aprender teclaza, aluna que ingressou no do, porém, encontrou sua verIPDAE em 2013, se prepara dadeira paixão no piano. Hoje, para o vestibular na Univer- aos 21 anos, deseja iniciar sua sidade Federal de Santa Ma- carreira profissional e está ria (UFSM). Ela se preparando conta que sua para conquis“O IPDAE é trajetória na tar uma vaga instituição couma ponte que no vestibular m e ço u co m o de Música da liga os jovens acompanhante U n i ve r s i d a d e de uma amiga Federal do Rio da periferia a interessada em Grande do Sul oportunidades aprender a tocar (UFRGS). flauta doce. No Uma caracacadêmicas e entanto, com terística do Insprofissionais, o passar dos tituto é a diveranos, seu intesidade de seus mesmo para resse pela múalunos, pois aqueles que sica aumentou, são oriundos descobrindo de diferentes desejam seguir uma afinidade bairros e cidaoutras áreas” especial pelos des do estado. instrumenEssa dedicação Oséias Pereira Professor de piano tos de sopro. demonstra a Determinada, importância da Kamily decidiu desafiar-se educação musical proporcioainda mais, escolhendo ini- nada ali. “Desde a adolescênciar a aprendizagem no oboé. cia, eu reconhecia a importânPrecisou superar o obstácu- cia e a necessidade de criar lo da timidez, especialmente ambientes nos quais os jovens pelo instrumento escolhido pudessem crescer como pesser poderoso e expressivo: soa. A música desempenha “No Rio Grande do Sul, o um papel fundamental nisinstrumento oboé é tocado so, expandindo perspectiprofissionalmente apenas por vas e enriquecendo suas viquatro pessoas, uma delas é das”, conta a diretora. o meu atual professor do IPAlém de sua dedicação à DAE”, afirma Kamily. música, a instituição é um As expansões das ativida- modelo exemplar de solidades do Instituto vieram com riedade. Por meio de doações, a fundação da escola de mú- parcerias locais, rede de amisica, do museu comunitário gos, associados e projetos e da biblioteca, atendendo aprovados pelo Funcriança, o às necessidades da comuni- IPDAE vem mantendo a quadade. Hoje, a entidade abre lidade de seus serviços, garansuas portas também para a tindo o pagamento da equipe terceira idade, demonstrando docente, a manutenção dos um compromisso contínuo instrumentos e das instalacom a inclusão. A escola de ções. Além disso, uma parte

BEATRIZ SCHLEINIGER

O Instituto Portoalegrense de Arteeducação foi fundado em 1998 para promover educação musical e assistência social

com o intuito de ampliar o número de alunos e aprimorar sua capacidade de captação de recursos. Tudo isso, dentro da própria Lomba do Pinheiro, conforme compartilhado pela diretora. “Muitos alunos entraram aqui quando eram crianças, hoje são jovens e aspiram seguir na carreira musical. Nós temos a responsabilidade e o compromisso de bem formar esses estudantes que ingressam na escola de música.” O IPDAE é um verdadei-

ro exemplo de como a arte, a educação e a solidariedade podem se unir para transformar comunidades. Enquanto continua a nutrir talentos musicais e proporciona educação gratuita e de qualidade, o Instituto também deixa uma marca no coração da Lomba do Pinheiro, inspirando um melhor futuro para todos os seus moradores. n GIOVANI DO PRADO BALTEZAN BEATRIZ SCHLEINIGER LUCAS GOULART


4. Novas perspectivas

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Diretor pedagógico, Everton Silveira se dedica ao CPCA há 32 anos, e é querido pelos jovens

CPCA: um lugar feito para (e pelos) jovens Presente há mais de 40 anos na comunidade, trabalho pedagógico e social do CPCA com a juventude busca gerar oportunidades para além do bairro

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uando criada na Lomba do Pinheiro, em 1979, a “Creche dos Freis”, ou Centro de Promoção do Menor (CPM), visava garantir aos pais da comunidade um espaço para deixarem os filhos enquanto trabalhavam. Mais tarde, a instituição passou a oferecer aos jovens cursos profissionalizantes por meio de parcerias com entidades privadas. O desenvolvimento desse trabalho voltado à juventude foi acompanhado pelo diretor pedagógico do CPCA, Everton Silveira, que já dedica 32 anos à instituição. “Queria ser religioso e como já tinha uma experiência com educação popular, trabalhava enquanto experimentava

a vida religiosa ao lado dos freis. No início, a instituição era bem pequenininha, tinha uns 12 funcionários. Hoje são cerca de 240.” Everton desistiu de ser religioso, mas não de trabalhar pelas crianças e pelos adolescentes. A partir da década de 1990, com a mudança no marco regulatório - quando criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - e de posterior transição de século, foi entendido como uma necessidade reavaliar o nome da instituição. “A comunidade ainda nos via como a ‘creche dos freis’, mas já não éramos creche há muito tempo”, destacou Everton. A visão foi constatada numa pesquisa de imagem de marca contratada pela entidade. A partir de 1998, a mesma passou a ser denominada de Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA), fazendo jus, enfim, ao trabalho realizado no bairro.

ONDE TUDO COMEÇA

Um dos braços do CPCA na Lomba do Pinheiro é o Centro da Juventude (CJ), um espaço que atende jovens de 15 a 24 anos da região e integra o Programa de Oportunidades e Direitos (POD) do Rio Grande do Sul. Ele é divido em três eixos para melhor desenvolver as potencialidades da juventude. No eixo socioafirmativo são realizadas oficinas de teatro, dança, grafite, além de diálogos sobre gênero, sexualidade e direitos humanos, gerando um espaço de convívio e autoconhecimento. As atividades ajudam os jovens na definição de suas preferências e num possível ingresso na aprendizagem profissional, segundo eixo do CJ. Nele são ofertados cursos de Gastronomia, Embelezamento, Auxiliar Administrativo e Informática. Para o ingresso, é realizado um processo seletivo online, e após, uma dinâmica em grupo para defi-

“Somos muito limitados no bairro, e quando as coisas não são ditas, não tem por que se aprofundar no assunto. No CPCA a gente recebe essa formação que não temos na escola” Evellyn Cruz

Jovem multiplicadora

nição dos candidatos. Devido à estrutura limitada, a entidade consegue atender 22 jovens por turma e faz todo o possível para garantir que os estudantes já entrem cotizados, ou seja, empregados como jovens aprendizes. O curso tem duração de dezessete meses e ao final todos recebem certificação. Quem vive a expectativa da formatura é a Ketlyn Vitória de 19 anos. Apesar de não ser moradora do bairro, ela garantiu uma vaga no curso de gastronomia e trabalha três dias na semana como jovem aprendiz num restaurante do shopping Praia de Belas, zona central de Porto Alegre. “É a minha primeira experiência profissional. Entrei no curso sem uma razão específica, mas fui aprendendo e gostando da gastronomia. A parte favorita foi panificação. Já preparar peixe, não gostei”, contou ela sem hesitar.


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JOVENS MULTIPLICADORES

Ao longo de toda jornada, os estudantes são orientados por profissionais do Plano Individual de Realizações (PIR), que já no primeiro contato buscam entender quais as expectativas do jovem para com a entidade. “Muitos vêm buscando a profissionalização, mas nem estão preparados para o mercado de trabalho. Descobrem que na verdade querem um espaço de vivência com seus pares e a partir dali passam a refletir sobre o que gostam e não gostam”, comenta a técnica de acompanhamento do PIR, Valéria Nascente. Ela explica que participar de oficinas e realizar a aprendizagem profis-

“Quando vemos que eles estão bem, ou que foram efetivados, a gente chora e vibra junto. É bonito acompanhar essa evolução. É um sentimento de ver os filhos voando” Graziela Costa

Técnica de relação InstituiçãoEmpresa do CPCA

Conexão dentro e fora da sala de aula: alunos do Centro da Juventude em mais um dia de curso

sional são pré-requisitos para o terceiro eixo do CJ, o dos jovens multiplicadores (JMs). O grupo, de até 57 estudantes, é responsável por articular a juventude do bairro, divulgar o trabalho do CPCA, captando novos jovens, além de orga-

nizar eventos e alimentar as redes sociais da entidade. Em paralelo, os selecionados permanecem estudando. Apaixonada por Filosofia e pela escrita de poesias, Evellyn Cruz tem 18 anos e é jovem multiplicadora há oito meses.

Segundo ela o projeto ajudou a ampliar seu olhar sobre o mundo: “somos muito limitados no bairro, e quando as coisas não são ditas, não tem por que se aprofundar no assunto. No CPCA a gente recebe essa formação que não temos

À esquerda, Graziela Costa, que faz articulação com as empresas para os jovens do CPCA estagiarem; à direita, Valéria Nascente

na escola. Isso é fundamental para nós, jovens, que vivemos essa transição da adolescência para o mundo adulto.” Na tarde de nossa visita à instituição, o grupo havia acabado de retornar da cidade de Viamão, onde receberam


6. Novas perspectivas de outros JMs o cartão referente à bolsa de estudos do programa. A agitação do passeio deu lugar a timidez, tão logo começamos a conversa. Mas as poucas palavras ditas revelam a importância da entidade dentro do bairro. “Tem muita diversidade aqui dentro. As vezes não somos ouvidos na comunidade, e no CPCA a gente tem voz. É um espaço onde podemos nos expressar de verdade, porque provavelmente alguém vai te entender, pois já viveu o mesmo que você”, contou Sárah Mallmith de 17 anos, jovem multiplicadora há um mês. Demograficamente, a Lomba do Pinheiro é uma região densa, com quase 60 mil habitantes. O diretor pedagógico do CPCA, Everton Silveira, explica que desde sua formação, o bairro se constituiu predominantemente adulto e só nos últimos cinco anos é que as juventudes – no plural, pois elas são múltiplas – passaram a ter maior destaque. “O território não se preparou para essas juventudes. Se tu fores olhar, são poucas escolas e a maioria dos empreendimentos são voltados ao público adulto. Nossos jovens carecem de oportunidade e espaço.” O CPCA é, hoje, um dos poucos espaços dentro da Lomba a oferecer estrutura metodológica para trabalhar com a juventude.

JOVEM APRENDIZ

Juventude é sinônimo de criatividade, inquietude e rebeldia, mas também a fase de maior insegurança e medo. Por isso, a educação é utilizada pelo CPCA como uma ferramenta de empoderamento, ao mesmo tempo que contribui para trabalhar o pertencimento e a autoestima dos jovens. “Capacitar os jovens é torná-los destemidos. Tivemos de fazer uma hiper vitaminose de autoestima, pois eles não se sentiam capazes e competentes diante dos desafios”, relatou Everton. Segundo o diretor, o índice de reprovação de jovens nas séries finais do ensino fundamental é gigante, e o motivo não é pedagógico, mas social: o jovem da Lomba se sente protegido dentro do território. “Eles são ótimos alunos, mas chega nessa etapa escolar e fazem de tudo para serem reprovados. Pois sair daqui representa enfrentar uma realidade que eles não conhecem.” Dentro do CJ, esse contexto se reflete, especialmente, na aprendizagem profissional. Associado ao receio de sair do território, os jovens ainda lidam com o preconceito, fator que dificulta a inserção no mercado de trabalho. A técnica

de relação Instituição-Empresa do CPCA, Graziela Costa, explica que apesar da legislação que obriga empresas de 5 a 7 funcionários a contratarem um aprendiz, os empregadores preferem pagar a multa – de valor baixo – a investir num

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jovem. “Temos dificuldade de abrir vagas cotizadas nas empresas. E hoje ainda concorremos com instituições maiores e centrais. Então nossos jovens saem por último”, contou. Segundo ela, a grande maioria dos jovens da Lomba nunca

saiu da comunidade, o que dificulta o senso de pertencimento com a cidade. Para contribuir nesse processo, o CJ trabalha na aprendizagem profissional com dois currículos, sendo o primeiro voltado ao ensino técnico do

“As vezes não somos ouvidos na comunidade, e no CPCA a gente tem voz. É um espaço onde podemos nos expressar de verdade” Sárah Mallmith

Jovem multiplicadora

As habilidades artísticas são estimuladas nos cursos, assim como a defesa de ideias

curso, e o segundo denominado Aprender a Ser, onde o objetivo é desenvolver o autoconhecimento e a autoestima dos jovens. “Por mais que eles sejam comprometidos e tenham vontade de fazer, eles barram na autoestima e na insegurança. Então nosso papel é dizer que eles são capazes, que eles podem e conseguem”, afirmou Graziela. Para além de uma escola, o CJ cumpre um papel de acolhimento, de segunda casa, ou como Graziela mesmo chama, um porto seguro. Cada pequena conquista é celebrada por toda a equipe. “Quando vemos que eles estão bem, ou que foram efetivados, a gente chora e vibra junto. É bonito acompanhar essa evolução. É um sentimento de ver os filhos voando.”

EU ME RECONHEÇO NOS JOVENS DA LOMBA

O CPCA é uma soma de muitos esforços e não há como não ficar admirado com o trabalho e o zelo de cada profissional, que traz como premissa o respeito às pessoas. Andar pelos espaços externos da instituição, adentrar as salas de aula e conversar com estudantes e técnicos, ajuda a dimensionar o impacto gerado pelo CPCA na vida dos jovens. Ser jovem é carregar nos ombros um mundo de expectativas, incertezas e sonhos. É ser mal compreendido e por vezes desacreditado. Sentimentos compartilhados por essa repórter, que em circunstâncias e realidades distintas, também teve receio de sair de seu território, em Santa Catarina, para estar em Porto Alegre. Que também sentia ser menos, por vir de uma cidade do interior. Mas ao final, na conversa com cada jovem da instituição, vejo que compartilhamos da mesma teimosia, ou talvez, do mesmo sonho: viver e ser feliz. n ALANA SCHNEIDER LAURA DRIEMEIER


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O lapidar de um jovem A educação é solo fértil, e germinar foi natural para o auxiliar bibliotecário do CPCA

N

atanael. Do hebraico, “dom de Deus”, ou “presente de Deus”. Para os mais céticos, pouco tem importância o significado de um nome. Mas se nada na vida é por acaso, por que a palavra que nos identifica, seria? Aos 24 anos, Natanael da Silva Oliveira é auxiliar bibliotecário no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA) da Lomba do Pinheiro. Seu dom? Talvez, o de se deixar tocar pelo aprendizado e inspirar os demais pelo exemplo. Natanael é a exemplificação do poder transformador da educação e da importância do CPCA para a comunidade. Mas não romantizemos sua história, pois o sucesso vem envolto em camadas de dificuldades que não cabem nesse texto. Como o jovem mesmo ressalta, chegar aonde ele chegou não foi resultado da sorte, mas da luta e dedicação de muitas pessoas.

O GERMINAR DA SEMENTE

Há oito anos, Natanael ocupava o outro lado do balcão da biblioteca, e era ele o estudante. Natural de Camaquã, cidade a 130km de Porto Alegre, o jovem de “cabelinho na régua” e flor tatuada na mão, se mudou ainda criança para a Lomba. Na infância, adorava brincar de pega-pega e esconde-esconde, período em que conheceu seu melhor amigo. Foi ele que teve o primeiro contato com o CPCA e anos mais tarde incentivou Natanael a ingressar em um curso de aprendizagem. “Meu amigo era jovem aprendiz e disse que a experiência era incrível, pois a instituição abraçava o jovem”, conta. Ver o amigo se desenvolver e ingressar no mercado

“Eu percebi que na verdade também exercia o papel de acolher e contribuir na formação deles” Natanael da Silva Oliveira

Auxiliar bibliotecário do CPCA

de trabalho fez despertar seu interesse em participar. Natanael realizou os cursos de Auxiliar Administrativo e Informática, tendo sido jovem aprendiz na biblioteca, onde ao final do ciclo de estudos foi efetivado. “Eu me encontrei no CPCA. Amadureci muito nesse período. O Natanael criança cometia vários erros. E aqui aprendi a ter mais respeito e paciência.” O jovem, que havia desistido dos estudos no ensino médio, encontrou na instituição o estímulo necessário para voltar à sala de aula e concluir o segundo grau. Sua supervisora, a bibliotecária Andréa

Fontoura, juntamente do Frei Rômulo (que não atua mais na organização) tiveram papel fundamental nesse processo, que segundo Natanael não foi nada fácil. “Eles me fizeram ter o desejo de estudar e de aprender. Essa paixão pelo conhecimento adquiri deles.” O jovem conta que um de seus grandes sonhos é entrar na faculdade e fazer um curso de Biblioteconomia, a fim de ampliar seu conhecimento na área.

AO BROTAR, PASSOU A INSPIRAR NOVOS JOVENS

Para ele é gratificante poder ajudar a transformar

a vida de outros jovens, por meio da leitura e do aprendizado, expandindo os horizontes para além dos muros da Lomba. “Eu não me via como um professor. Mas então os jovens começaram a me chamar de ‘sor’, e eu percebi que na verdade também exercia o papel de acolher e contribuir na formação deles.” Natanael diz se tratar de uma relação com via de mão dupla, onde cada indivíduo ensina e aprende, entregando um pouco de conhecimento para fazer o todo crescer. Atualmente, o jovem reside em Viamão, município que faz divisa com a Lomba

Natanael: de aluno a funcionário do CPCA

do Pinheiro. Nas horas livres, gosta de estar em contato com a natureza, tocar violão e saborear um bom chimarrão, isso quando não está à procura de outros empregos para melhorar sua renda. Se pudesse, Natanael diz que também trabalharia aos finais de semana na biblioteca. “A gente atende de segunda à sexta-feira, das 8h às 17h. Mas queria dar mais tempo às pessoas para acessar o espaço e pegar os livros.” Junto da supervisora, Natanael é responsável pela categorização e organização dos mais de 26.500 exemplares da biblioteca. O espaço, em funcionamento há 50 anos, atende estudantes e também o público externo, tendo recebido, por exemplo, a visita de uma equipe de Oxford, dos Estados Unidos. Ele explica que os livros podem ser reservados de forma virtual e que se empenha ao máximo para conseguir exemplares ainda não disponíveis na biblioteca. No início dos cursos, a equipe pedagógica estabelece planos de leitura para conectar os estudantes à biblioteca, considerando, inclusive, leituras obrigatórias para vestibulares de universidades da Capital.

SEMEAR NOVOS SONHOS

Natanael nutre grande carinho pelo CPCA e reforça a importância de divulgar o trabalho da instituição, a fim de reter maior número de jovens. “Quando as pessoas chegam no CPCA elas podem crescer na vida.” A instituição, por meio da dedicação de seus profissionais, resgatou Natanael de uma vida que poderia ter sido envolta de violência e ilicitude. A educação trouxe perspectivas, tornou possível a ideia de um futuro, e ajudou a lapidar o dom desse jovem. “Eu era um jovem sem esperança, mas graças ao CPCA não fui para aquele outro mundo. Trilhei o caminho do trabalho e do conhecimento.” Durante os mais de 40 anos de atuação no bairro, muitos foram os “Natanaéis” que o CPCA ajudou a formar, e hoje, são eles que semeiam o sonho de um amanhã na vida de tantos outros jovens. n ALANA SCHNEIDER LAURA DRIEMEIER


8. Sinfonia

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Uma orquestra para muito além dos acordes Trabalho coordenado pela maestrina Cecília Rheingantz Silveira já impactou mais de 20 mil pessoas

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rotina maçante muitas vezes nos impede de enxergar a verdadeira essência das coisas. O que uma vez nos maravilhou pode se tornar comum com o passar do tempo. No entanto, é nos detalhes do cotidiano, do esforço para seguir a rotina das horas, que muitas vezes reside o extraordinário. Este é o caso da Orquestra Villa-Lobos de Porto Alegre. Com mais de três décadas de existência e mais de 1.300 apresentações, a Orquestra já é um símbolo da capital gaúcha, e vai além: se constitui das múltiplas vivências de cada integrante que por ali está ou já passou. E é exatamente aí que mora o extraordinário! “Hoje eu olho para trás e vejo não só a Cecília professora, mas a Cecília pessoa, ser humano, que tem certeza de que os caminhos que tomamos na vida, mesmo com percal-

ços e desvios que não desejamos, todas as crianças, adolescentes, jovens conseguimos desviar e construir e adultos sejam curiosos, se motivem aquilo que realmente acreditamos”, a aprender, e expandam os seus coexplica Cecília Rheingantz Silveira, nhecimentos”, complementa. que idealizou e fundou a Orquestra Villa-Lobos, há 30 anos. AS PRIMEIRAS MELODIAS A musicista explica que desde a Há mais de 30 anos a comunidainfância demonstrou uma forte afi- de Vila Mapa, mais especificamente nidade pela música, a Escola Municipal influenciada por fiFundamental Hei“A gente não guras importantes tor Villa-Lobos, no imaginava que esse em sua vida, como bairro Lomba do Pia avó, também pronheiro, é palco desPrograma fosse fessora de música, tes jovens artistas. tão querido pelas e o irmão mais veO promissor Clube lho, que já integrava de Flautas da propessoas e que elas uma banda de rock fessora Cecília só enxergassem nele quando ela era apepassou a ser a então nas uma criança. E uma potencialidade de Orquestra Villa-Locomo nada acontebos quando completransformação social” tou 18 anos. De lá ce por acaso, Cecília entende que a forpara cá, muita coiCecília Rheingantz Silveira mação de um ser sa mudou. Porém, Musicista, idealizadora e fundadora da Orquestra Villa Lobos humano é moldada segundo Cecília, “a pelas experiências proposta da Orquesque ele tem ao longo da vida. “Isso tra foi e continua sendo uma proacaba sendo o fio condutor do nosso posta de enfrentar desafios”. projeto: dar oportunidade para que Isso porque desde as primeiras

aulas, tanto Cecília quanto os alunos, tiveram que se desdobrar para manter o projeto em pé. “A escola não tinha absolutamente nada referente à música. Nem instrumentos, nem material pedagógico, apostilas, livros, nada! Então, foi um processo em que eu fui construindo aos poucos. E claro que um dos instrumentos que eu sempre trazia era a minha flauta”, acrescenta.

HARMONIA EM TEMPOS DIFÍCEIS

Com o passar do tempo, novos desafios foram se colocando à frente do projeto, e um deles foi a pandemia de Covid-19. Cecília explica que a orquestra foi fortemente impactada de duas formas: o isolamento, afinal, como fazer música à distância? Além disso, o corte repentino no quadro de educadores foi um grande baque. Em abril de 2020, quando a pandemia tinha sido recém anunciada ao mundo, era também o mês de renovação de um convênio anual que a prefeitura de Porto Alegre tem com

Os ensaios da Orquestra ocorrem em uma das salas da Escola Municipal Heitor Villa-Lobos


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o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA), parceiro de longa data do projeto. Na época, o projeto contava com 22 educadores que não eram servidores da prefeitura, e sim contratados pelo CPCA, uma vez que as atividades da Orquestra também ocorriam por A maestrina e lá. Porém, justamente no fundadora da momento em que todo plaOrquestra, Cecília Rheingantz Silveira neta enfrentava o mesmo desafio, a prefeitura não renovou o contrato, alegando que havia “inconsistência jurídica” em decorrência da pandemia. “Literalmente, de um dia para o outro, o CPCA precisou demitir todos os educadores”, relembra Cecília. Ela ainda conta que isso nunca tinha acontecido com a Orquestra. “No dia seguinte, foi um dia de choro, mas logo depois pensamos: 'Não! Temos que fazer alguma coisa!”, complementa. Foi só em novembro de 2021, mais de um ano e meio depois, que a Prefeitura assinou a renovação do convênio. Então, de abril de 2020 até novembro de 2021- graças à mobilização da sociedade civil e às arrecadações - a Orquestra não parou de dar aulas online para as crianças.

ORQUESTRA MUDOU A COMUNIDADE

Foi durante a pandemia e toda a crise de sustentabilidade que se instalou, que tanto Cecília quanto os demais educadores se deram

conta de que o projeto conseguia transcender e chegar à sociedade. “A gente não imaginava que esse Programa fosse tão querido pelas pessoas e que elas enxergassem nele uma potencialidade de transformação social”, revela Cecília. Essa virada de chave é o resultado de uma grande mudança cultural e comportamental desencadeada pela ação da Orquestra. Quando chegou na escola Heitor Villa-Lobos, na década de 1990, Cecília não via a comunidade participando da escola. Até então, o que existia ali era uma cultura assistencialista, explica. Hoje, diz ser completamente diferente. A comunidade, aos poucos, se deu conta de que existem outras formas de participação, ou seja, de se entender enquanto cidadãos de direitos e que a cultura e educação fazem parte disso. Então, a comunidade foi mudando o seu olhar e se colocando de maneira diferente também na sua forma de participação. “Aqui essa cultura está enraizada. Então, se agora eu pegar as minhas coisas e ir embora, essa cultura vai permanecer. Não depende mais de mim. Depende de um coletivo que foi construído, dessas crianças que começaram aos oito anos, que hoje tem mais de trinta, e que mantém essa máquina funcionando”, afirma Cecília. n LAURA SANTIAGO VITÓRIA RIBEIRO


10. Sinfonia

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As vozes da orquestra Com mais de trinta anos, muitas pessoas e histórias passaram pela Orquestra. Algumas delas foram para longe da música, enquanto outras seguem com a mesma paixão de quando tocaram seus primeiros acordes

A

os 21 anos, Maria Eduarda Lemes Pereira é uma das instrumentistas da Orquestra Villa-Lobos. Desde que entrou para o projeto, aos oito anos, se encantou com a música. “Quando a gente entra, é um mundo todo colorido. Então, eu quero levar isso adiante. Quero fazer esse tipo de coisa”, explica Maria Eduarda. Pensando nisso é que ela decidiu cursar Música, com ênfase em Cordas ou Sopros, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para isso, Maria Eduarda concilia uma rotina agita-

da. Entre ensaios e oficinas, ainda encontra um espaço na agenda para as aulas do cursinho pré-vestibular. Ao seu lado na Orquestra está sua xará, só que com 13 anos: Maria Eduarda Jacobsen Cardoso também é uma multi-instrumentista no projeto. Ainda que seu instrumento oficial seja a flauta doce, ela também domina o violino e a percussão. E assim, como ocorre com outros integrantes, a Orquestra já fazia parte da história da família dela, mesmo antes de chegar ao mundo. “A minha mãe fazia parte na adolescência, e foi ela quem me incentivou a entrar no projeto”, explica. Próxima de completar um ano na Orquestra, Maria Eduarda ganhou um prêmio: participar da apresentação da Villa-Lobos no Chile. “Foi uma experiência muito incrível. Nunca pensei que eu ia pegar avião.

Fiz amizades novas, foi bem legal”, relembra. Quem também participou da viagem foi o Nathan da Luz. Aos 20 anos, sua jornada com o projeto já é de longa data. Há cerca de 12 anos, quando ainda era criança, ele passou a frequentar as oficinas de instrumentos na escola. Também multi-instrumentista, Nathan começou na flauta doce, porta de entrada comum entre os alunos do projeto, e logo depois se dedicou ao violino, para então chegar à viola, seu instrumento principal. Assim, além de fazer parte da Orquestra, Nathan também é monitor do projeto e ministra aulas de viola. O jovem também estuda Música na Escola de Música da OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre).

DA LOMBA AO CHILE

Há algumas semanas, toda a comunidade da Vila Mapa

“Quando a gente entra, é um mundo todo colorido. Então, eu quero levar isso adiante” Maria Eduarda Pereira Instrumentista da Orquestra Villa-Lobos

Ela conta que foi uma grande oportunidade para ficar ainda mais próxima de seus amigos. Além da apresentação, a turma aproveitou para participar de uma série de oficinas que estavam ocorrendo por lá. “Aproveitamos também para fazer alguns passeios e experimentar novas comidas”, relembra Rubi. O evento faz parte do calendário de ações do Fórum Latino-americano de Educação Musical (FLADEM). Há quase 30 anos, o FLADEM é uma organização independente composta por educadores musicais de dezoito países da América Latina. O objetivo central do fórum é impulsionar as práticas destes profissionais, buscando destacar a relevância do ensino de música. n LAURA SANTIAGO VITÓRIA RIBEIRO TAIANA SOUZA VITÓRIA RIBEIRO

VITÓRIA RIBEIRO

TAIANA SOUZA

Alunos da Orquestra Villa-Lobos Vitor Charão e Rubi Santos (acima); Nathan da Luz e Maria Eduarda Cardoso (abaixo)

se viu envolvida e engajada para alcançar um objetivo em comum: tornar realidade o sonho dos 38 instrumentistas em se apresentar no Chile. Isso porque a Orquestra Villa-Lobos foi selecionada para se apresentar no XXVII Seminário Latino-americano de Educação Musical, que ocorreu em outubro na cidade de Valparaíso, no Chile. Uma das violinistas da Orquestra, Rubi Cardoso Santos, de 16 anos, também se apresentou em terras chilenas.

VITÓRIA RIBEIRO


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Sonho acadêmico .11

KiLomba, o pré-vestibular gratuito da Lomba Iniciativa surgiu do movimento comunitário da região para auxiliar os jovens a entrarem na universidade

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ualificar o conhecimento e promover o acesso para moradores da região, principalmente jovens, ao mundo acadêmico e ao mercado de trabalho são objetivos do KiLomba. Criado pelo Conselho Popular da Lomba do Pinheiro, o Curso Pré-Vestibular Popular busca preparar jovens e adultos para as provas de vestibulares e do ENEM. O KiLomba está no seu quinto ano de funcionamento e disponibiliza aulas presenciais ministradas por professores voluntários. O curso é gratuito e ocorre de segunda a quinta-feira, das 19h às 22h no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA). No segundo semestre do ano, devido à proximidade dos exames, as aulas acontecem também às sextas-feiras. Atualmente, o cursinho possui doze professores e atende cerca de vinte alunos assíduos, oferecendo disciplinas como História, Geografia, Português, Biologia, Física, Química, Matemática, Filosofia, Sociologia e Língua Estrangeira.

"QUE LOMBA NÓS QUEREMOS?"

Em uma conversa realizada de forma remota, a coordenadora pedagógica do KiLomba e professora de História, Tavama Nunes dos Santos, destaca a importância do Cursinho para a juventude e explica a origem do nome. “Tem duas histórias que a gente conta, uma em relação à Lomba do Pinheiro, no sentido de nos indagarmos sobre que Lomba nós queremos, ou seja, uma Lomba com a juventude na universidade. Mas a inspiração maior é em relação aos Quilombos no Brasil, que remetem ao espaço de promoção da vida, resistência e inclusão.” Quando perguntada sobre o processo de fundação do Cursinho, Tavama conta que o KiLomba não existiria se não fosse o trabalho do movimento comunitário, e enfatiza a singularidade do projeto, já que os integrantes da fundação eram pessoas comuns do Clube de

Mães, da Associação de Moradores e da Escola de Samba. Ou seja, não eram professores formados, mas sim pessoas que acreditavam num futuro melhor da juventude do bairro. No início do curso só existiam dois professores e o movimento comunitário foi o grande responsável por encontrar e chamar novos voluntários. O Cursinho é exclusivo para os moradores da Lomba. De acordo com a coordenadora, o KiLomba recebe cerca de oitenta inscrições em seus editais, abertos no começo de cada ano. As inscrições são feitas pelos alunos de maneira online, que depois passam por um processo de seleção pela coordenação com base em critérios regionais, raciais e de gênero. Tavama enfatiza que para ser estudante do KiLomba, é imprescindível residir na Lomba do Pinheiro. Infelizmente, o Cursinho dispõe apenas de uma sala de aula, e por essa razão, são selecionados em média cinquenta alunos. Destes, cerca de trinta efetuam a matrícula de forma presencial e gratuita no CPCA. Além disso, a média de idade dos estudantes é de aproximadamente 20 anos, mas há exceções. A professora de História ainda fala sobre o comprometimento dos professores voluntários do KiLomba. “O trabalho voluntário é uma coisa bem delicada e muito séria para nós, as pessoas acham que vão fazer uma caridade, um bem para o próximo, e não sabem o quanto é árduo, no sentido de disciplina e de frequência. É um trabalho sistemático, é um compromisso.” Apesar de terem professores para todas as disciplinas, ela explica que ainda há necessidade de mais profissionais, o que ajudaria a coincidir seus trabalhos remunerados com o KiLomba, aliviando a rotina dos voluntários.

TAXA DE APROVAÇÃO É DE 100%

No quesito taxa de aprovação do Cursinho, a coordenadora relata que estudantes com boa frequência de aulas, geralmente passam no vestibular. Ou seja, a taxa é praticamente 100% se não contar com a evasão. Conforme Tavama, no último ano, o KiLomba aprovou

Maria Eduarda Lemes concilia ensaios de violino com sua preparação no KiLomba para prestar vestibular cerca de dezessete alunos nos vestibulares, dado que mostra a importância do Cursinho na vida dos estudantes da Lomba que sonham com uma formação acadêmica, assim como um futuro melhor. Quando questionada sobre os maiores desafios do KiLomba, Tavama cita a baixa divulgação, umas das razões é a falta de tempo para pensar e planejar a área de marketing. Além disso, outro problema enfrentado é a falta de recursos, já que o curso não recebe apoio de instituições. Os equipamentos utilizados para ministrar as aulas são dos próprios professores, que chegam a arrecadar dinheiro para fornecer lanche aos alunos. Mas o principal desafio é a evasão e a pouca frequência dos alunos. “Infelizmente, a evasão ocorre, pois, muitos deles precisam trabalhar e estudar. A vida dos moradores da Lomba é difícil e por vezes precisam abrir mão de seus sonhos para conseguirem sobreviver”, conta.

PREPARAÇÃO PARA O VESTIBULAR

Maria Eduarda Lemes Pereira, 21 anos, é violinista da Orquestra Villa-Lobos e aluna do KiLomba. Moradora da Lomba do Pinheiro, ela conheceu o cursinho pelas redes sociais em 2022. Este é seu segundo ano frequentando as aulas, e a jovem acredita que o Cursinho tem ajudado em sua preparação para o vestibular. Maria toca violino e tem o sonho de cursar Música na UFRGS. Ela diz que chega nas aulas do KiLomba em 15 minutos, mas que é necessário o uso de transporte público pois o bairro é muito grande. Sobre as expectativas para o ENEM, em novembro, a musicista se diz ansiosa, mas muito confiante na aprovação.

O SONHO DE ESTUDAR MEDICINA

Outra aluna do Kilomba é Isabel Adriana Klein, 47 anos. Além do cursinho pré-vestibular, ela se dedica a um curso de reaproveitamento de alimentos. Determinada, Isabel expressa seu interesse em seguir carreira na área de medicina, visando ingressar na universidade. Ela conheceu o projeto KiLomba através

dos movimentos populares da região. Segundo Isabel, os procedimentos de inscrição foram simples e rápidos e demonstra confiança e determinação na busca pela aprovação no vestibular. Durante todo o período de estudos, ela contou com o apoio do marido, o que lhe possibilitou comparecer a todas as aulas, administrando as tarefas do dia a dia e o curso de reaproveitamento de alimentos. Isabel destaca a qualidade das aulas, das quais tem muito apreço - as de Química são suas preferidas -, no entanto, manifesta o desejo por uma maior carga horária em todas as disciplinas. A estudante chega ao CPCA, onde o curso é ministrado, após cerca de 20 minutos de caminhada até a parada 4, onde pega o transporte público até o seu destino, na parada 10. Para ela, o KiLomba é uma chance única de entrar na universidade, sem a oferta de cursos populares como este, as chances de ingresso no ensino superior seriam limitadas para os moradores da região. Destaca que o curso ajuda em todos os sentidos e que os professores acreditam no potencial dos alunos. O projeto gera impacto positivo no aprendizado e na preparação dos estudantes para o ingresso na faculdade.

O FUTURO DO KILOMBA

No final da nossa entrevista, Tavama comenta que almeja conseguir instalações melhores para oferecer maior conforto aos alunos, além de maior número de professores e alunos, fazendo o projeto crescer ainda mais. “Queremos que este projeto faça parte da comunidade, e se espera uma vida longa para o KiLomba. Eu olho para vocês (nós, acadêmicos de jornalismo fazendo a entrevista) e vejo os nossos alunos, e que bom que vocês já estão incluídos no ensino superior. A gente deseja muito que os nossos alunos experimentem essa experiência que vocês estão desenvolvendo. Esse sabor da aprendizagem, da cultura, do conhecimento tem que ser para todos”, diz emocionada. n TAIANA SOUZA


12. Projeto social

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MARIA DOS ANJOS

No campo do Pinheirinho, crianças e adolescentes se reúnem para treinar futebol

Como o esporte atua na vida dos jovens da Lomba O projeto social Amigos das Crianças e Adolescentes da Lomba do Pinheiro (ACALP) reúne, aos sábados, mais de 50 participantes em um dos campos do bairro

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projeto ocorre na parada 16 da Lomba. O campo do Pinheirinho fica localizado em uma parte mais baixa do bairro, sendo necessário descer algumas lombas, geografia característica do território. O gramado em que eles jogam é bem cuidado, tem goleiras instaladas com rede, grade de proteção e um espaço com banco de reservas. O Brasil é o país do futebol. E para o presidente e coordenador da ACALP, Rodrigo Neves da Silva, o trabalho deles é muito mais do que a prática de um esporte. “Foi um proje-

to desse tipo que tirou meus irmãos, outros meninos e eu do lado ruim da comunidade, mostrando um novo caminho. Tentamos fazer o mesmo para as crianças e os adolescentes que participam desse projeto”, relata. Junto dele, estão os professores Henrique Viana e Marcos Ferreira. Iniciado em 2015, o projeto social conta com 134 inscritos e inclui diversas atividades como amistosos e campeonatos entre as comunidades. “Nós convidamos outros projetos sociais para participarem de jogos, seja da região ou não.” Segundo Rodrigo, o objetivo é integrativo, sem visar somente a competitividade. Antes dos treinos é servido café da manhã, além de ser realizada conversa com os participantes sobre condutas extra-campo e durante os jogos.

Chegando lá, notei que, antes de cada treino, é enfatizado ao grupo algumas regras para a participação. “Aqui a gente cobra disciplina deles, como respeito, tratamento em casa, participação escolar e ser um bom cidadão. Buscamos desenvolver e tirar o melhor deles”. O projeto atende crianças de

“Foi um projeto desse tipo que tirou meus irmãos, outros meninos e eu do lado ruim da comunidade, mostrando um novo caminho” Rodrigo Neves da Silva Presidente da ACALP

5 até os 17 e 18 anos.“Tem umas duas, três exceções que tem uma questão de autismo, assim fazemos a inclusão deles junto a outras crianças e outros adolescentes”, complementa. Antes de começar o treino, os professores levam os jovens para o grande-círculo do campo e realizam uma oração, sempre puxada pelas crianças. “A maioria daqui ainda está na fase da inocência. A gente vive numa área de extrema vulnerabilidade social, assim como outros vários bairros em Porto Alegre e no Brasil afora. É uma comunidade mais peculiar, logo a gente tenta justamente aproximá-los do projeto, aos sábados, e ocupar a cabeça deles com outras coisas, visto que o tráfico é muito forte”, fala Rodrigo.

QUEM É RODRIGO?

Atualmente jogando futebol amador em quatro municípios

diferentes, Rodrigo foi atleta profissional do esporte, passando pelas bases do Cruzeiro e São José. Ele também conta que já jogou em Goiânia e que quando a esposa ficou grávida, retornou para o Rio Grande do Sul. Tempos depois, começou a jogar no futebol amador com uma remuneração e posteriormente migrou para o futebol de areia, que é a sua paixão. Convocado duas vezes para a seleção brasileira de Beach Soccer, participou de duas Copas das Nações, uma na Tunísia e outra em Frankfurt, na Alemanha. Após um tempo na areia, resolveu migrar novamente para o futebol amador, agora com uma melhor remuneração. Inspirado em sua própria trajetória, muito do que é construído no projeto é com a renda pessoal, tirando do próprio bolso aproximadamente mil reais para seguir


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com tudo. O projeto tem ajuda de alguns amigos que as vezes doam o café e, o salgadão da 16, outro local que ajuda semanalmente com 100 massinhas. “Alguns meninos, que passaram por aqui, já se encontram tentando a vida no esporte. Tem jovens que estão em avaliação no Figueirense, outro no Juventude, no Grêmio, mas mesmo não sendo nossa prioridade, procuramos esti-

mular que sigam, pois aqui tem muitos com qualidade e quem sabe não se tornam jogadores profissionais”, comenta. Ele também salienta que a palavra principal do projeto é a inclusão, mas sempre pregando pela disciplina para que tudo ocorra bem. “Aqui a gente mostra que todo mundo é igual, não é porque um joga mais que o outro que tu não vai participar do projeto. Outra coisa é tentar

colocar esses jovens no mercado, seja como jogador, barbeiro, ou dentista, pois mesmo se não der certo no esporte, está tudo certo, porque existem outras profissões no mundo.” O projeto também inclui meninas, que, por enquanto, são minoria. Ao todo, são 21 inscritas. “Desde que iniciamos o projeto, a ala feminina sempre esteve presente porque a inclusão é a base de tudo. Tem

muito machismo no esporte, então aqui procuramos deixar de lado, misturando os times e, assim, se divertindo.”

NOTA DO ALUNO E REPÓRTER

Como estudante de Jornalismo e adepto do esporte, fiquei feliz em conhecer um projeto deste tipo, que é um exemplo a ser seguido dentro e fora das quatro linhas. Con-

vivendo desde pequeno com o futebol, já vivenciei diversas situações em que é notável a diferença que um simples jogo pode fazer na vida das pessoas. No campo, com eles, senti leveza e alegria, sentimentos que parecem vir dos professores e dos jovens. n LORENZO MASCIA FELIPE MACHADO MARIA DOS ANJOS FELIPE MACHADO

FELIPE MACHADO FELIPE MACHADO

Rodrigo treina os adolescentes aos sábados pela manhã

O caminho do Iarlei Dentre os mais de 50 jovens que treinam aos sábados na escolinha Amigos das Crianças e Adolescentes da Lomba do Pinheiro (ACALP), a maioria tem entre 5 e 10 anos. Como nem todos podem jogar ao mesmo tempo, parte da garotada fica na arquibancada, esperando a vez de entrar em campo, a exemplo do Iarlei dos Santos Gomes. O adolescente, que tem o nome de um ídolo do Internacional, parecia tímido, e quando o encontrei, estava sentado no banco ao lado do campo. Iarlei tem 15 anos e está na escolinha desde os 8 anos. Como boa

FELIPE MACHADO

O estudante de jornalismo entrevista o adolescente Iarlei, de 15 anos

parte dos garotos que estão aqui, sonha em ser jogador profissional. Quando perguntei quais eram seus ídolos, a resposta veio de pronto: Cristiano Ronaldo. “Me inspiro porque ele também vem de uma fase ruim, vida difícil, com muitas dificuldades e carências.” E o adolescente sonha alto: no Brasil, quer jogar no time do Colorado e, quem sabe, até mesmo brilhar no exterior, jogando no Real Madrid.

MAIS DO QUE UM ESPORTE

Na escolinha de futebol, Iarlei contou que tem a chance de participar de vários campeonatos dentro da Lomba, que lhe permitem aprimorar suas habilidades e se destacar no campo. No Brasil, o futebol é, por vezes, a chance de os jovens saírem de uma situação difícil, motivo pelo qual muitos decidem praticálo. Nesse sentido, o esporte está para o Brasil assim como o boxe está para o México, país de onde venho. É por meio deste esporte que muitos mexicanos encontram uma forma para escapar das dificuldades sociais. n MAX RAMÍREZ LAURA GOULART


14. Bate-bola

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Vitória para a juventude Marcos Ferreira busca ajudar os jovens da Lomba do Pinheiro a vencerem dentro e fora do campo

Marcos estuda Psicologia, e é um dos coordenadores da Escolinha de Futebol

N

ascido e criado na Lomba do Pinheiro, Marcos Ferreira é um dos três coordenadores do projeto ACALP. Ele conta que foi pai ainda jovem e optou por priorizar a criação dos filhos. Mas o sonho do diploma permaneceu vivo. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a graduação em Psicologia, além dos desafios, orgulhos e vitórias que o projeto tem conquistado em um dos maiores bairros de Porto Alegre. Enfoque: Como surgiu o projeto ACALP na tua vida? Marcos: O projeto foi desativado em 2016. Era um projeto bem pequeninho, que tinha uma ideia parecida com a nossa. Aí o Rodrigo (Neves da Silva) me chamou, pois nós já havíamos conversado sobre a ideia de fazer algo no bairro para as crianças. Juntamos o Henrique (Viana) também, e, como nossas ideias são muito parecidas, a gente meio que se completa. Pensamos que era hora de abraçar e tocar o projeto, e ele tomou essa proporção. Na verdade, era só uma escolinha de futebol aos sábados. Hoje a gente já tem outra ideia de projeto. Preparar as crianças e os adolescentes para questões de educação, respeito, disciplina e humildade para a vida deles. A gente prega muito isso, trazemos palestrantes quase toda semana e como o esporte de referência é o futebol, a gente já trouxe alguns jogadores. Temos amigos do meio do futebol, então a gente os mantém sempre acesos, querendo buscar, querendo mais. Enfoque: E quais são os obstáculos que o projeto enfrenta e, pessoalmente, quais são as dificuldades de viver na Lomba? Marcos: Aqui a gente trabalha com crianças em situação de vulnerabilidade social e o bairro tem um histórico de violência muito grande. A nossa ideia é resgatar essas crianças para que elas não cheguem a pender para o lado ruim da coisa, para o lado do crime. Recebemos vá-

rios relatos de rebeldia dos pais e nós tentamos auxiliar esse grupo de pais da melhor forma possível. Como os alunos gostam muito de estar aqui, usamos isso como barganha: “Se não estiver comportado em casa, não vai participar dos torneios, não vai participar dos passeios e não vai participar dos eventos”. Então isso para

nós é uma grande dificuldade. A verdade é que a gente não consegue atender como deveria, já que temos nossas vidas pessoais, nossos trabalhos e tem também uma questão de falta de apoio da rede, sabe? Do governo. Tem muitos que estão desassistidos nas questões de não ter pai, não ter mãe, faltas na escola. É bem complicado,

tem muitos obstáculos, mas a gente está lutando. A ideia principal é expandir. Estamos com projeto para no ano que vem acolher eles no turno inverso: quem estuda de manhã, vem na parte da tarde. Quem estuda de tarde, vem na parte da manhã. A gente já conversa com algumas professoras para oferecer reforço escolar,

aula de informática e outras coisas que estão no projeto para o ano que vem. Enfoque: O que difere a Lomba dos demais bairros, principalmente periféricos, de Porto Alegre? Pontos positivos que fazem da Lomba do Pinheiro um bairro único.


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ENFOQUE PORTO ALEGRE | LOMBA DO PINHEIRO | NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2023

Marcos: Na verdade, a Lomba é um bairro de grande extensão. É bastante gente. O que tem de muito bom aqui é a questão do parque. Então, ele tem uma fronteira todinha com o Parque Sant’Hilaire, que pega toda a extensão do bairro. E temos também aqui uma condição de crescimento muito grande, tem muita gente talentosa aqui. É periferia, mas tem muitos talentos. São muitas as pessoas envolvidas na música, no futebol. Um dos nossos coordenadores, o Rodrigo, é jogador. Então temos muitos talentos. Aqui na Vila Mapa temos a Orquestra Villa-Lobos. Eles têm um projeto bem legal, vêm nos visitar, trazem a orquestra. Há muitas joias aqui para serem lapidadas. Tem muita coisa boa. Enfoque: E como a psicologia, que é a profissão que futuramente tu irás exercer, te ajuda no projeto? Marcos: Ajuda muito. Na verdade, o Henrique é professor de educação física, o Rodrigo trabalha com administração e eu venho na linha da psicologia. Então a gente juntou os saberes e acabou se completando. Cada um faz uma parte no projeto e a parte de instruir as crianças, a questão de comportamento, de emoções, fica pra mim. Acaba que eu pratico o tempo todo, me ajuda muito e ajuda os alunos também. Conversamos muito sobre emoções, sobre tomar decisões em momentos de emoção e não decidir nada em momentos de emoções negativas.

e tivemos algumas notícias de que ele estava bem envolvido na questão da violência. Isso foi muito forte. Rodrigo, Henrique e eu conversamos sobre a situação. Nos sentimos impotentes, pois não temos estrutura para fazer mais e poderíamos ter evitado se tivéssemos essa estrutura. Foi por isso que criamos todo um projeto para o ano que vem. Tentar amplificar para buscar evitar esse tipo de situação. Aquele menino escapou das nossas mãos, era um guri muito querido e agora já não temos mais acesso a ele. Enfoque: E como vocês, coordenadores, fizeram para preservar os demais jovens da influência que essa história poderia ter sobre eles? Marcos: A gente pontuou muito a situação aqui. Foi justamente o momento em que eu preparei todo um material para eles sobre escolhas e decisões. Trouxemos a nossa própria história, que também somos crias do bairro, também temos nossas dificuldades, também crescemos em um meio de vulnerabilidade social e tomamos outro caminho. Pontuamos muito isso com eles, principalmente com os mais velhos (dos 15 aos 17 anos). E sempre ressaltamos que tem outra opção e até então estamos mantendo os jovens que estão aqui, no caminho.

Treinador de projeto social relata as motivações e os desafios de trabalhar o esporte com crianças e jovens da Lomba do Pinheiro

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epois de algumas semanas chuvosas, a manhã do sábado, 21 de outubro, estava nublada e quente, animando crianças e adolescentes para um encontro esportivo e festivo. Os meninos e meninas da Escolinha se reuniam em grupos pelo campo do Pinheirinho e, enquanto conversavam, os coordenadores do projeto Amigos das Crianças e Adolescentes da Lomba do Pinheiro (ACALP) organizavam os materiais, primeiro para o café da manhã (sempre servido antes do treino), e depois para o jogo. É nesse momento, antes do jogo, que as crianças e os jovens procuram seus treinadores para um abraço ou conversa. Um dos três coordenadores do projeto é Henrique Viana, que, aos 28 anos, é professor de educação física e proprietário de um espaço de treinamento funcional, sendo o principal responsável pelo preparo físico dos jovens. Mas seu trabalho vai muito além: foi ele e o Marcos Ferreira que procuraram Rodrigo Neves da Silva, fundador do projeto, para retomar as atividades da Escolinha que foram interrompidas na pandemia. Resultou então que Henrique, Rodrigo e Marcos ergueram o projeto novamente, dessa vez com mais potência, utilizando as redes sociais para

Enfoque: Você imagina uma longevidade para o projeto? Como acha que ele vai estar daqui uns anos?

Recebemos muitos feedbacks positivos dos pais. Eles sempre falam: “Bah, fulano mudou, ciclano melhorou”. A gente tenta né?! E tem aquele período que eles ficam afastados. Se um não vem, a gente busca. Mas acredito que ser aluno de psicologia tem me ajudado muito e ao projeto também.

Marcos: A imagem já está pronta e estamos buscando concretizar. Se Deus quiser, não vai demorar não.

Enfoque: Tem alguma situação delicada que viveu com algum jovem? Um momento que pensou que poderia ter feito mais?

Marcos: Excelente pergunta! Eu me sinto pertencente à Lomba. Na verdade, eu não penso em sair daqui. Mas se um dia eu sair, vou voltar ao menos para tocar o projeto. Eu tenho um sonho para a Lomba do Pinheiro, tenho várias questões positivas aqui, muitas joias, muita gente talentosa. Então meu sonho é, no mínimo, enraizar a Lomba do Pinheiro e fazer ela crescer. n

Marcos: Temos uma situação muito forte que aconteceu conosco. Um dos meninos. Ele tinha 16 anos na época e participava do projeto até dezembro do ano passado. Ele tinha um histórico de envolvimento, por parte dos familiares também, na questão de tráfico. Infelizmente, não conseguimos trazê-lo de volta

Trabalhando corpo e mente para construir oportunidades

Enfoque: Tu vês a Lomba do Pinheiro como um lugar para permanecer, ou apenas um lugar passageiro na tua trajetória? Se vê longe desse espaço algum dia?

NATHALIA DOS SANTOS MARIA DOS ANJOS

Jovens escutam e conversam com o coordenador Henrique Viana antes do treino

atender a uma maior quantidade de crianças, além de angariarem mais recursos. Nascido e criado na Lomba, Henrique conhece os problemas e as dificuldades do bairro e sempre teve interesse em trabalhar com as crianças da comunidade. Antes da escola de futebol, o profissional de educação física colaborava com arrecadações ou festas comunitárias voltadas a apoiar os jovens da região. Henrique conta que a principal dificuldade enfrentada pelas crianças da Lomba é a falta de recursos financeiros, que, muitas vezes, impede que elas estudem e se dediquem às suas aptidões, como a prática do esporte. Outra questão que afeta a comunidade é o tráfico de drogas. “Falando até mesmo por mim, muitas vezes tu olha pela janela e vê a bola e, logo ao lado, o tráfico”, explica o coordenador. Dessa forma, Henrique tem como objetivo utilizar o projeto para desenvolver o grande talento que muitas das crianças apresentam em campo. Ele conta ver benefícios do projeto na rotina dos jovens, como a melhora das crianças em relação aos estudos e relações familiares. Juntamente com seus colegas, ele aconselha e direciona os jovens, apresentando a eles novas oportunidades e possibilidades para o futuro. Nutrindo sonhos, e incentivando-os a escreverem novas páginas em suas vidas. n MARIA DOS ANJOS


DO ENFOQUE LOMBA PINHEIRO PORTO ALEGRE

NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2023 EDIÇÃO 2

Os bastidores da reportagem P

MARIA DOS ANJOS

articipar do Enfoque foi uma experiência incrível. Nos trouxe uma nova perspectiva, vivências únicas e momentos que jamais esqueceremos. Conhecemos pessoas, iniciativas e sonhos que promovem o crescimento de um bairro e de uma comunidade. Fazer parte disso vai muito além de um texto ou de uma fotografia, nos comove e nos move a seguir adiante, como estudantes de jornalismo e como pessoas. Estar na Lomba, vivenciando a pauta, dando risadas e se emocionando, mostrou que a rua é o nosso lugar. n VITÓRIA RIBEIRO FELIPE MACHADO LUCAS GOULART MARIA DOS ANJOS TAIANA SOUZA

VITORIA RIBEIRO

TAIANA SOUZA

FELIPE MACHADO

MARIA DOS ANJOS

LUCAS GOULART TAIANA SOUZA


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