Homenagem Casa dos Estudantes do Império | 50 anos | Testemunhos, Vivências, Documentos

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homenagem

Casa dos Estudantes do Império

lativamente bem aceite, pelo menos até certa altura, pelos próprios estudantes filhos dos colonos. Manuel dos Santos Lima Antigo associado da CEI

Minhas senhoras e meus senhores, boa tarde. Saúdo a Senhora Presidente da Assembleia da República, representada aqui pelo Doutor António Filipe, e o Dr. Vítor Ramalho, Secretário­ ‑Geral da UCCLA. Dizem que os últimos são os primeiros mas eu dou graças a Deus por ser o último, porque assim falarei muito menos tempo. A Casa dos Estudantes do Império (CEI) continua a ser, para os estudantes africanos lusófonos do meu tempo, uma referência, um marco indelével pelo que representou. Pertenço à geração independentista, aquela que nos anos 50 do século passado, em termos políticos, militava clandestinamente pela emanci‑ pação dos seus povos e que, num plano literário, exprimia a sua mensagem poética numa perspetiva messiânica, isto é, partindo da memória do passado e da vontade de futuro, anunciava a nação, inventando­‑a e apelando ao combate redentor. Recorde­ ‑se que, no pós­‑guerra, o conceito de luta armada estava muito em voga e a caneta foi a primeira arma que conhecidos nacio‑ nalistas empunharam. Pertenço à geração que seguiu de perto a emergência dos povos afro­‑asiáticos e que teve como bali‑ zas o pan­‑africanismo e a negritude. Pela CEI passaram alguns nomes sonantes já aqui evocados, tais como Mário de Andrade, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Gabriel Mariano, Alda Espírito Santo, Tomás Medeiros, Carlos Veiga Pereira, Correia Mendes, Edmundo Rocha, Rui Mingas, Pedro Pires, etc. Na década dos anos 40, a colónia africana de Lisboa repartia­‑se por pequenos grupos, os residentes, os desportistas, os embarcadiços e al‑ guns estudantes. O primeiro agrupamento de que me lembro chamava­‑se a Casa da África Portuguesa, uma associação re‑ creativa, animada maioritariamente pelos cabo­‑verdianos e san‑ tomenses radicados na capital, cujos encontros se davam na tal famosa Rua Actor Vale, n.º37, a casa da tia Andreza, assim como na Rua Carlos Mardel, n.º 111. A futura CEI surge em 1943, com o nome oficial de Casa de Angola. Mais tarde surgirá o Clube Marítimo Africano, frequentado, sobretudo, por embarcadiços angolanos que nos traziam lembranças da terra e as novidades do que se passava lá fora, por causa da censura. Foi assim que Paris se tornou a nossa grande referência cultural e política, pois era na capital francesa, ou pela rádio Moscovo, que os coloniza‑ dos lusófonos e setores da oposição portuguesa tinham acesso ao que era proibido em Portugal. Se bem que unidos pela soli‑ dão e certa irreverência e até oposição anti­‑situacionista, a Casa

dos Estudantes do Império era, para nós, um porto de abrigo, embora não deixasse de refletir algo da realidade socioeconó‑ mica colonial vigente e de base epidérmica, a mesada. Quanto mais claro, mais folgada. Assim, independentemente das festas da “malta” na Casa dos Estudantes do Império, havia as festas restritas dos mais claros; do mesmo modo, certas reuniões de carácter político­‑nacionalista eram um exclusivo dos grupos mais escuros. Isso, porém, não impedia uma boa camaradagem e até sólidas amizades, apesar de, correntemente, o neocolo‑ nialismo pós­‑independência ter posto em cena novos atores e outras máscaras para as novas associações de interesses. É assim que, decorridos estes anos todos e na reta final da existência, me é grato estar presente nesta evocação da Casa dos Estudantes do Império, saudar e agradecer aos seus organizadores, evocar os companheiros que nos precederam na eternidade. Gostaria de chamar atenção para uma afirmação do Edmundo Rocha, não foi o Iko Carreira que criou as FAPLA, fui eu que criei o braço armado do MPLA, o EPLA3, que formou os primeiros 285 militares do MPLA. Um dos problemas da nossa solidão, na metrópole, é a di‑ ferença social, e no Portugal desses tempos, talvez poucas pessoas possam imaginar, nem sempre era fácil ser negro na sociedade portuguesa, apesar de toda a propaganda oficial que sempre defendeu uma ausência total de racismo e uma igualdade que nunca existiu. Fui o primeiro negro a ser admi‑ tido na escola primária no Luau porque o meu pai, funcionário público, se bateu por isso; para fazer o exame da admissão ao liceu era preciso ir do Luau ao Bié, cerca de 800 km, e eu, sendo o único negro entre três estudantes, não podia comer no vagão­‑restaurante com os meus colegas e as refeições eram servidas na cabine. E no liceu do Bié, na altura, Silva Porto4, ao todo só eramos dois negros a fazer o exame de admissão ao liceu, um que vinha das missões protestantes e que fez um excelente exame e, no fim, o professor, português, perguntou­ ‑lhe: “Então rapaz o que é que tu queres ser quando fores cres‑ cido?”, e ele respondeu: “Cozinheiro!”. E foi um balde de água fria naquela sala: “Atão cozinheiro porquê, rapaz?”, “Pra comer”, respondeu ele. Outro problema com que a nossa geração se debateu é que não havia raparigas africanas com quem nos ligarmos e, na hora certa, elas não estavam lá, porque os nossos pais manda‑ vam estudar para a metrópole os filhos, os rapazes que, dentro da hierarquia africana, eram os substitutos naturais do pai, de maneira que vinham os filhos mais velhos. As meninas iam 3 4

N.E.:EPLA – Exército Popular de Libertação de Angola N.E.: Depois da independência de Angola, a capital da província do Bié passou a denominar­‑se Cuíto.

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