Três três #5 - O Erro

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Estimados leitores: Pedimos desculpas pela ocorrência de impropriedades que passaram propositadamente deverá ler-se “ERRO”. Devemos ainda esclarecer que esta é a edição nº5 da revista TrêsTrês, ao contrário do que se faz crer na capa. Lamentamos qualquer inconveniente causado e desejamos-lhe uma boa leitura. Gratos Os Editores


Neste número da

O ERRO Da cultura nos modos de produzir cidade Joana Ramalho Sem título Ricardo Norte Sobre a necessidade lógica do erro (e a aspiração espiritual de o transcender) Manuel Baroso Xavier “Verdade ou consequência?” Popper, o erro e as democracias liberais Felipe Pathe Duarte Erro e civilização José Nuno Lacerda Fonseca ARTE E CRÍTIC A Erro próprio de António Maria Lisboa: para a conquista da liberdade e do amor Michele C. Coutinho Rocha Ama como a estrada começa José Ricardo Nunes Sobre “leva-me às costa – desabitar, ilustrações do quotidiano”, de Sandra Roda Pedro Xavier Mendonça

P10 P14 P17 P20 P24

P32 P36 P38

LITER ATUR A «Voltemos a isto, à contagem dos erros» Pedro Eiras Sem título Jorge Aguiar Oliveira Longe dos textos Miguel-Manso Uma única vez Nuno Moura 3875 José Ricardo Nunes Fechado para balanço Rita Taborda Duarte Os cantos ao dicionário Rita Taborda Duarte A lenda da cidade sem rio Joel H. Perder o fio Nélio Conceição

P44 P52 P54 P55 P55 P56 P57 P58 P60

CRÓNICA Erro crasso Ricardo Rosado Como um caracol com asas Raquel Serejo Martins Desvio Miguel Duarte e Clara Faria Piçarra Sem margem para erro Filipe de Almeida Santos Erro grosseiro Tiago Fontes Azulejo invertido Nélia Matos Erro meu erro meu Nuno Fragata

P68 P72 P77 P80 P84 P88 P90


Edição: Nuno Fragata Pedro Xavier Mendonça Ricardo Norte Rita Baptista

Design gráfico: Bruno Afonso Fausto Vicente Nuno Fragata

Revisão: Isabel Xavier Pedro Xavier Mendonça

Ilustração de capa: João Pombeiro

Impressão: Várzea da Rainha - Impressores Dep. Legal: 355130/13 ISSN 2182-7877 Julho de 2015

Colaboradores: Bruno Afonso, Fausto Vicente, Felipe Pathé Duarte, Isabel Xavier, José Ricardo Nunes, Nuno Fragata, Pedro Xavier Mendonça, Ricardo Norte e Rita Baptista.

Convidados: Clara Piçarra, Filipe Almeida Santos, Joana Ramalho, João Pombeiro, Joel H., Jorge Corvo, Manuel Baroso Xavier, Michele C. Coutinho Rocha, Miguel Duarte, Miguel Manso, Nélia Matos, Nélio Conceição, Nikolay Komitov, Nuno Lacerda Fonseca, Nuno Moura, Pedro Eiras, Raquel Martins, Ricardo Rosado, Rita Taborda Duarte, Sandra Portela, Sandra Roda, Tiago Fontes.

É reservado aos autores o respeito pela utilização do acordo ortográfico ratificado em 2008. Os textos e imagens utilizados na revista TrêsTrês são propriedade dos respetivos autores e não poderão ser reproduzidos ou utilizados sem a autorização prévia dos mesmos.

APOIOS:


EDITORIAL SOBRE O ERRO

O erro é uma vergonha, podemos começar por aí. Talvez seja esse o seu principal problema. Há uma reação social negativa a quem está errado. A sociedade vê ali uma impreparação vexatória. Andamos todos a preparar-nos tão bem para a vida, com tantas técnicas ao nosso dispor, que alguém só pode errar por negligência e desrespeito pela civilização. Não se percebe. Pensemos no erro ortográfico ou de cultura geral. Há uma vergonha alheia coletiva perante uma falha dessas. «Preparem-se bem!», parecemos gritar. Mas, acima de tudo, esses erros devem ser desculpados. Essa será a visão de quem vê no erro aprendizagem e estímulo ao movimento. Vemos isso tanto numa perspetiva mística como numa que seja científica. O caminho faz-se de engodos, senão não é caminho, é transmissão de um ponto ao outro, como se de uma instalação elétrica se tratasse. Quando há descoberta a fazer, há muito muro a encontrar. É saltar. Permanecer no erro já é outra coisa. Será desistir ou ser uma proposta de vida falhada. Não é suposto ficar a olhar para o muro. Temos que continuar, seguir, estabelecer diferenças entre os momentos ao longo do tempo. O progresso é uma das crenças que não nos larga, e tem tudo a ver com isto. Não nos podemos perder a não ser por alguns instantes. O método de ficar perdido não é aceitável, a não ser que seja mesmo um método cientificamente comprovado, certo. Neste número da revista três três aceitamos o erro para falarmos dele e não para errarmos. Não somos capazes de viver com ele, mas podemos vigiá-lo, pensá-lo, até provocá-lo, mas com arte. Só com arte. Desta vez esperamos uma maior tolerância às gralhas. O leitor pode sempre ficar na dúvida se foram propositadas ou não. O erro programado já não é um erro, é uma exuberância, uma génese. A criatividade precisa dele. Acresce que a programação pode ser posterior ao acontecimento errado. Aí o criativo é um abutre em torno de falhas, a ver se pode aproveitar alguma coisa dos despojos para construir uma harmonia. Nesta edição, temos um pouco destas experiências. Falamos de erros de outros, de alguns nas nossas vidas e de muitos como condição do humano. É mais uma tentativa de acertar na forma. Pedro Xavier Mendonça

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Paulo Barros

Desenho impresso #51 26 Jun. 2014 - 3 impress천es 1 Jun. 2014 - 1 impress찾o 5 Jun. 2014 - 1 impress찾o Tinta de offset sobre papel 84x60cm





ENSAIO

DA CULTURA NOS MODOS DE PRODUZIR CIDADE JOA NA R A M ALHO

Num contexto global que se tem vindo a definir como de competitividade territorial, parece ter-se tornado norma no seio do discurso político, académico e mediático que as cidades necessitam de levar a cabo estratégias de diferenciação que lhes permitam competir no mapa mundi. Os processos de globalização e de liberalização económica ocorridos nas últimas décadas do século XX disseminaram esse discurso, e a necessidade de desenvolver projectos de planeamento estratégico, com uma importante função política e económica, tornou-se um imperativo não apenas para as grandes metrópoles ou para as chamadas cidades globais (Sassen, 2006 [2001]), mas também, e sobretudo, para as cidades de média dimensão. Desde logo, cremos que a necessidade de as cidades competirem entre si não deveria ser considerada enquanto inevitabilidade pelos decisores políticos, mas admitimos que a cultura da competitividade territorial instituída pode ser uma alavanca para a produção – que se deveria querer reflectida e estruturada – de cidade. A cidade é uma realidade simultaneamente construída e ficcionada, imaginada. Para lá da construção física do e no território urbano, existe uma produção imagética do mesmo. Muitas políticas urbanas actuais focalizam-se precisamente na produção de cidade que, se bem que sustentada por intervenções no tecido urbano, tende a ser acompanhada por mecanismos de reconfiguração simbólica da imagem da cidade. A definição de ‘produção de cidade’ que aqui adoptamos é a seguinte: um conjunto de iniciativas levadas a cabo para transpor a distância entre a cidade existente e a cidade que se procura alcançar. É um processo de natureza eminentemente política e ideológica, dependente da elaboração de um modelo de cidade ideal a contrapor a um diagnóstico de cidade real, e radicado numa visão prospectiva e utópica da cidade. Nestes processos de produção de cidade, a cultura – no sentido mais estrito do termo, ou seja,

enquanto campo da vida social que se ocupa da produção, divulgação e promoção de actividades e bens artísticos e criativos – tem vindo a adquirir um papel cada vez mais central. No contexto de competitividade territorial referido acima, a cultura foi ganhando relevo nas políticas urbanas, nomeadamente nas chamadas políticas de terceira geração. Tal deve-se à importância crescente das actividades culturais nas economias ocidentais, e ao próprio conteúdo estético e simbólico associado à cultura, encarado como diferenciador no contexto de concorrência entre os centros urbanos (Scott, 1996). A cultura é percepcionada pelos decisores urbanos como potencial catalizador não só para uma mudança de imagem, como também para o desenvolvimento socioeconómico da cidade. No entanto se, por um lado, a cultura se tem tornado crescentemente um elemento fundamental na concepção e implementação de políticas urbanas, por outro lado, muitas das vezes funciona apenas como um pretexto para as mais variadas intervenções na cidade, algo que cremos dever ser reequacionado. O reconhecimento da importância económica da cultura e do seu papel na promoção da competitiv idade ter ritorial conduz a uma progressiva culturalização das políticas urbanas (Lopes, 2006: 203), que se manifesta em iniciativas como a patrimonialização dos centros históricos, objectificados enquanto ‘cenários’. Poderemos mesmo falar da mercantilização da cidade enquanto objecto cultural, alimentada pelo sector da cultura e pelo do turismo. Nas cidades pós-industriais, as paisagens urbanas são reconfiguradas em torno da necessidade de ‘consumo conspícuo’ marcado por noções de exclusividade, estilos e distintividade (Hall, 2001: 95). As culturas urbanas, as memórias e as histórias tornam-se mercadorias neste processo. Uma das principais consequências da comodificação da cidade, e particularmente da sua imagem, seria a homogeneização das cidades. De facto a procura


formas de recepção e participação cultural associadas à experiência. E assim, a espectacularização, sinónimo de lazer e de apropriação acessível e imediata, torna-se um conceito central na escolha de iniciativas a levar a cabo no âmbito das políticas culturais urbanas. Paralelamente ao processo de comodificação da cultura tem vindo a ocorrer um outro, de centramento nas ‘vivências’ e nas ‘experiências’ mais do que nos objectos. Assim, as novas formas de produção e recepção orientadas pelo consumo levaram a que se constituísse enquanto paradigma da ‘experiência’ cultural o ‘evento’. Os grandes eventos culturais, ou desportivos, passaram a ser utilizados enquanto ferramentas de produção de cidade, agora apelidada de ‘efémera’. A festivalização – definida por Marco Venturi (1994: 7-8) como concentração temporal, espacial e temática das políticas urbanas em grandes eventos ou festividades – é assim estratégia privilegiada de produção de cidade. A cidade torna-se “cidade evento” (Tschumi, 1994) ou “cidade ocasional” (Indovina, 1992). Traçado este cenário, deixemos uns apontamentos de reflexão sobre o papel da cultura na produção de cidade. Mais do que questionarmos o discurso que sustenta que as cidades competem por uma posição de destaque nos fluxos reticulares que definem as dinâmicas de globalização e mundialização, o que mais nos inquieta é a forma como o papel estratégico da cultura tem vindo a ser discutido. Tal discussão tende a centrar-se ou nas formas de implementação de distintas iniciativas, ou nos potenciais efeitos delas decorrentes. Por um lado, discutem-se estratégias de marketing territorial, investimento na cultura, no turismo, em imagens de marca como soluções a adoptar. Por outro lado, debate-se o impacto no desenvolvimento socioeconómico, a atracção de capital financeiro e humano, a projecção de uma imagem para o exterior, e até o incremento da auto-estima dos habitantes da cidade enquanto finalidades

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da diferenciação do espaço urbano tem seguido, no Ocidente, desde as últimas décadas do século XX, as mesmas estratégias de intervenção no espaço público, originando assim uma hegemonia, i.e. uma indiferenciação dos modelos adoptados. Alguns autores têm questionado o potencial da cultura e sobretudo a comodificação do lugar e das culturas locais nos processos de instrumentalização da cultura para fins urbanos (Harvey, 1989). Para além da comodificação da cidade como um todo, aponta-se também a apropriação, ‘higienização’ e comodificação das culturas e histórias locais (Ward, 1999: 5). Nos planos com vista à produção de cidade e das estratégias de marketing territorial incluem-se assim iniciativas de promoção do património histórico ou de recuperação de zonas da cidade que se possam tornar clusters criativos, às quais se encontra directamente ligada a gentrificação como instrumento de criação de mais-valias imobiliárias. A validade da gentrificação (planeada e imposta), enquanto fenómeno simultaneamente socioespacial e económico (Smith, 1979), deveria, no nosso entendimento, ser revisitada, nomeadamente na medida em que as operações de reabilitação, de renovação ou de requalificação em que assenta tendem a resultar na substituição das classes sociais originais por outras tendencialmente mais favorecidas ou correspondentes a outro perfil profissional e social. Uma outra estratégia de produção de cidade através da cultura que se encontra em voga desde há umas décadas é a organização de grandes eventos culturais, associada à espectacularização crescente da cidade e da cultura urbana, que anda de mãos dadas com uma valorização excessiva da imagem da cidade. Mais ainda, numa sociedade centrada no consumo e na cultura e em que, mais do que os objectos ou as mercadorias, o que consumimos são os signos (Baudrillard, 1968), ganham destaque as

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a atingir. No entanto, não se discute com o mesmo entusiasmo qual a cidade a que se almeja. Fala-se da ‘cidade global’, da ‘cidade criativa’, da ‘cidade digital’, da ‘cidade inclusiva’, entre tantos outros modelos e epítetos, mas de facto pouco se reflecte sobre a visão que guia os mecanismos de produção de cidade. O espaço urbano enquanto produção cultural, central ao nosso desenvolvimento como sociedade deve ser pensado para além das lógicas de diferenciação e de imaginação que originam dois processos paralelos: por um lado, o primado do aparente e do simbólico sobre a dimensão física e vivencial da cidade; por outro, a homogeneização da cidade em que as suas características históricas e particulares são distinguidas entre as que devem ser combatidas ou escondidas e aquelas que devem ser promovidas, comodificadas e musealizadas. Ainda que produzir cidade seja hoje, como Borja e Muxí (2003: 75) referem, “fazer cidade sobre a cidade”, e que as intervenções no tecido urbano dificilmente realizem rupturas radicais, elas são o momento para traçar planos ambiciosos. E os momentos excepcionais como a organização de um grande evento cultural são propícios para reflectir sobre que cidade se quer: não que cidade se quer imaginar e promover, mas que cidade se quer construir e vivenciar. E a produção de cidade que nos deveria interessar enquanto sociedade é aquela que é pensada para projectar um “local onde a herança social está concentrada, e no qual as possibilidades de relações e interacções sociais continuadas elevam ao mais alto potencial as actividades dos homens” – definição de cidade de Lewis Mumford (1940 [1938]: 161) que achamos por bem adoptar. A cultura não deveria funcionar apenas como moeda de troca, como meio ou pretexto para finalidades de requalificação urbana, de imaginação da cidade, de promoção de uma imagem para o exterior, mas como fim em si mesmo, como virtude. Num contexto de mercadorização e instrumentalização da cultura enquanto política pública, receamos que esta perca o foco da sua missão sociocultural, de integração plena do cidadão na sociedade, de oposição aos processos de desumanização e desagregação da cidade. Não duvidamos – pelo contrário – que a dimensão simbólica da cultura possa e deva ser mobilizada na produção de cidade, mas cremos que é precisamente essa dimensão simbólica que poderá permitir que, através da cultura, se regresse à cidade, enquanto local de participação e de integração comunitária, de exercício pleno da cidadania. E tal dificilmente acontecerá se insistirmos na reificação da cultura nos processos de produção de cidade, no predomínio da imagem de cidade que se transmite sobre as sociabilidades que se desenvolvem no seu seio, na efemeridade dos grandes eventos ou em centros

históricos convertidos em postais. E se aos decisores políticos é impossível fugir do discurso generalizado sobre as tendências de competitividade territorial, e da adopção de estratégias de marketing urbano, antes de embarcar em processos de reconfiguração e de imaginação da cidade, deveriam reflectir seriamente sobre qual a cidade que almejam, e qual o papel que nela a cultura deve desempenhar. Não o fazer não é menos um erro do que partir em viagem desconhecendo tanto o trajecto como o destino. Referências: BAUDRILLARD, J. (1968), Le Système des Objets, Paris, Éditions Gallimard. BORJA, J. e MUXI, Z. (2003), El Espacio Público: Ciudad y Ciudadanía, Barcelona, Electa. HALL, P. (2001), “Global City-Regions in the Twenty-First Century”, in A. J. Scott (ed.), Global City-Regions: Trends, Theory, Policy, Oxford, Oxford University Press, pp. 59-77. HARVEY, D. (1989), The condition of postmodernity, Oxford, Blackwell. INDOVINA, F. (ed.) (1992), La Città Occasionale, Milão, Franco Angeli. LOPES, J. T. (2006), Da Democratização à Democracia Cultural: uma reflexão sobre politicas culturais e espaço público, Porto, Profedições. MUMFORD, L. (1940[1938]), The Culture of Cities, Londres, Secker & Warburg. SASSEN, S. (2006) [1991], The global city, Princeton, Princeton University Press. SCOTT, A. J. (1996), “The Cultural Economy of Cities”, Working Papers on Producer Services, n.º 35 (Agosto), Birmingham, University of Bristol and Service Sector Research Unit. SMITH, N. (1979), “Towards a Theory of Gentrification: A back to the city movement by capital, not by people”, Journal of American Planning Association 45(4), pp. 538-548. TSCHUMI, B. (1994), Event-Cities, Cambridge, MA, MIT Press. VENTURI, M. (ed.) (1994), Grandi eventi. La festivalizzazione della politica urbana, Veneza, il Cardo editore. WARD, S. V. (1999), Selling places: the marketing and promotion of towns and cities, 19502000, Londres, Spon Press.


Fausto Vicente


ENSAIO RIC A RDO NORTE

A maioria dos ditados populares estão impregnados de uma sabedoria que, como todo o saber, se não lhe dedicarmos o nosso tempo, se não a repensarmos de novo, decai para uma compreensão quotidiana que como costume lhe dá um aspecto superficial e

se salvaguardar face à adversidade. Lembremo-nos que o livro de Epitecto se chama “Manual”. Jamais Platão ou Aristóteles escreveriam um manual de filosofia, os seus textos são caminhos, percursos de pensamento onde o mais importante é o pensamento

a maior parte das vezes conveniente. É certo que muitos ditados são já fruto dessa tendência de lidar com as coisas num sentido utilitário. Nesses, rapidamente, se descobre a sua opacidade em relação ao pensamento. Para tornar a situação mais aguda, vivemos num tempo onde os únicos valores parecem ser a eficácia e a sua maior conquista, a velocidade. Neste caso, parar para pensar sobre um ditado que todos compreendemos há tanto tempo é não só inútil como absurdo. Mas como uma das principais características do pensamento é a inutilidade, vou tentar dedicar-lhe algum tempo. “Errar é humano”. Este pequeno dito parece hoje puramente votado à autocomiseração, à necessidade de nos conseguirmos aceitar face a uma sociedade que nos exige uma perfeição calculista, onde o desenvolvimento técnico nos faz face com uma tal capacidade de calcular que, se o erro for visto meramente na sua dimensão de falha, o ditado ganha uma proporção realmente esmagadora, podendo ser mesmo compreendido face às máquinas como aquilo que nos garante a nossa humanidade. A origem deste ditado remonta ao tempo dos estoicos, onde soava qualquer coisa como: “Errar é humano, perseverar no erro é diabólico”. Fórmulas similares encontram-se em Cícero: “ o erro é uma coisa comum; só o ignorante persevera no erro”. O forte sentido moral (característico do estoicismo) afasta-o ligeiramente do sentido dos nossos dias, mas coloca-o num lugar onde o sentido que lhe damos hoje tem a sua proveniência. O estoicismo é, verdadeiramente, aquilo que vem depois de algo grande na filosofia. O que nos indica isso de maneira evidente é a sua tendência para gerir o saber, para constituir uma doutrina, para instituir uma forma de

ele mesmo, apesar da nossa tendência a constituir um sistema platónico e aristotélico (o que mostra o quanto nós temos de herança estoica). Nem Platão era platónico, nem Aristóteles aristotélico. Salvaguarda seja feita, que o estoicismo tem uma dignidade própria, que passa precisamente por pôr a salvo a liberdade interior, conjuntamente com os epicuristas. Nietzsche, na Gaia Ciência, retrata estes dois momentos do pensamento de uma forma lapidar: o epicurista escolhe para seu uso as situações, as pessoas e os acontecimentos de acordo com a sua constituição extremamente irritável e renuncia ao resto, que é quase tudo; o estoico, pelo contrário, treina-se em engolir pedras e vermes até se tornar insensível a tudo. Aqui dá-se uma inversão profunda em relação à Grécia antiga, onde a excelência Humana é algo que brilha na comunidade, que se dá a ver em todo o seu esplendor. Lembremo-nos da sentença de Epicuro “vive de modo inaparente” e confrontemo-la com a magnitude solar de qualquer verso de Homero ou Píndaro, onde mesmo o inaparente aparece. A desconfiança para com tudo o que nos é externo e o apoio numa consciência moral forte é um legado estoico. Mesmo quando estes nos dizem para vivermos de acordo com a natureza, é necessário ver o que entendem por natureza, uma razão que a tudo governa, sendo para eles a filosofia um modo de vida, ou melhor, a arte de viver por excelência. Conseguimos ver a origem da noção do senso-comum contemporânea que pensa a filosofia como uma teoria para fazer frente a um mundo que mais parece algo de acessório, tão banalmente expressa em frases como: “Mas afinal qual é a tua filosofia?”. Ora, se a questão “como viver?” é a questão estoica por excelência, o ditado “Errar é humano”


“POIS DESCOBRI UMA GR ANDE VERDADE; A SABER, QUE OS HOMENS HABITAM, E QUE O SENTIDO DAS COISAS MUDA PAR A ELES DE ACORDO COM O SENTIDO DA SUA HABITAÇ ÃO.” SAINT- EXUPÉRY

de cátedras, nos deixarmos interpelar por aquilo que se dá a pensar? A maior parte das vezes, num saber que explica como são as coisas, camufla-se uma incapacidade para levantar questões de fundo, e uma certa forma de totalitarismo. Não levantar questões é uma atitude anti-filosófica por natureza. Querer-se refugiar rapidamente num resultado e passar demasiado depressa à construção de um saber, é não ter a capacidade filosófica de correr o risco da errância, de se arriscar a si mesmo nessa errância. O querer defender-se a todo o custo do risco, com manuais ou com teorias sobre a realidade, não é uma atitude filosófica. A característica de uma questão filosófica é que coloca simultaneamente tudo em causa, incluindo nós mesmos, não podendo por isso ser tratada de ânimo leve com um malabarismo de sofismas. Essa mesma questão não pode senão ecoar uma resposta que levante uma infinidade de questões, pensar que uma definição poderia acabar com o diálogo humano é algo de profundamente desumano. Cummings diz-nos “É sempre a mais bela resposta que levanta a mais bela questão”. E porque proteger-se do mundo não é o que se pode dizer um mero problema filosófico, mas um mal que ataca o homem no seu centro, o poeta diz-nos “É artista quem se deixa tentar pela vida”. Somente uma sociedade com uma autoconfiança de cimento, ou seja, endurecida pelo medo, é que pode olhar para o erro meramente como uma falha, como um fracasso frente a uma perfeição estabelecida, de tal forma que não admite que a questão do sentido da mesma se levante. Como poderia haver progresso se se levantassem questões sobre o fundamento do mesmo? Mas, se as premissas deste forem infundadas, ou melhor, descabidas de qualquer sentido, então o que seria o progresso senão uma longa errância que se afasta do começo com uma teimosia obstinada? Teimamos em lidar meramente com resultados, esquecendo que só

O ERRO

ganha um lugar de importância singular. As cartas de Séneca são conselhos de como viver bem. Não saber viver bem é errar. Será o ditado “Errar é humano” uma manifestação de tolerância estoica, de compaixão pelas fraquezas humanas, ou um mero reconhecimento dessas mesmas fraquezas e da necessidade que o homem tem de disciplina para atingir o que eles chamam de ataraxia? Ataraxia quer dizer sem inquietude. Então o sentido da filosofia é o de nos permitir uma vida sossegada. Para isso, o grande trabalho estoico é o de perceber o que depende de nós e o que não depende, e então “Errar é humano” quer antes de mais dizer: confundir o que não depende de mim com o que depende. No princípio do texto disse que uma característica do pensamento era a sua inutilidade, e agora vejo-me confrontado com um pensamento que se tem pela mais alta utilidade para o ser humano: a de viver bem. Para não nos perdermos numa errância infrutífera, vemo-nos forçados a concluir: se a filosofia é uma arte de viver, um conjunto de máximas ou manuais para se saber enfrentar a vida, Sócrates não é um filósofo. Como poderia sê-lo, se não fez outra coisa senão despedaçar uma ataraxia instalada com o seu questionamento incessante e seguiu de forma obsessiva uma inquietação até ao último dos seus dias? E como não o comprovar facilmente, quando todo o nosso sistema educativo, que (quer se queira quer não) tem origem na filosofia, se encarrega de nos fornecer ferramentas e capacidade teórica para nos proteger do mundo que nos rodeia inserindo-nos na sociedade de forma “adequada”? O nome “filósofo” foi atribuído por Sócrates, no diálogo “Fedro”, de Platão, onde Fedro, perguntando a Sócrates que nome dar ao homem que faz aquilo que eles tinham estado a fazer, este responde: “sábio” é excessivo, se tivermos que lhe chamar algo que seja “filósofo” antes de Sócrates nunca tal necessidade se fez sentir, e mesmo Sócrates não o toma por decisivo, não será altura de, em vez de nos agarrarmos à construção

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existem resultados como resposta a um questionar, e que somente o questionar abre caminho de maneira original. A possibilidade de outro caminho só pode vir de um questionar que corre o risco de se aventurar no ainda não questionado. A repulsa contemporânea por um pensamento que não produz resultados é de tal modo patente que são os próprios profissionais da filosofia (óbvio que existem excepções) os primeiros a não querer colocar as coisas em questão. É a nossa grande tradição escolar, onde se reflectem as influências estoicas. Uma verdadeira questão mete-nos inteiramente em questão, não é o uso de luvas de latex que consegue evitar o contágio. Então o que é esta teimosia pela solidez, que vista de perto não é mais do que uma camada de gelo que esconde os movimentos mais essenciais? Porquê esta tendência a se defender das coisas através de uma carapaça? Hopkins diz-nos que Deus navega o tempo como um rio (e que aqui o crente hesita, e o não crente se afasta), então toda a metáfora da fundação da casa se inverte, e somente a ternura da questão, a sua flexibilidade frente à tempestade nos abriria um espaço a habitar. Uma ética que a cada momento tem de fazer frente ao presente de um modo diferente, sem nenhum manual de salvaguarda. Fingir que o vento não existe só deixa seguro quem nunca lhe fez frente, e partir do princípio de que o vento está contra nós é já saltar por cima da abertura do perguntar. Trata-se de fazer frente à liberdade que nos é própria, e que não deve ser confundida com a mesquinhez do posso fazer birra se eu quiser. Não é nesse meio que se joga o mais essencial da liberdade. Aquilo em que penso quando falo em liberdade (e aí está o seu nó íntimo com o questionamento) delimita-se pela finitude que nos é essencial, e aqui tudo bascula de forma irremediável. Nenhum saber adquirido nos retira deste impasse se não lhe fizermos frente. Ignorar a inquietude que estar frente ao nosso limite provoca, através da ataraxia estoica, pode impedir-nos de tremer, mas impede-nos igualmente de receber a vida que dai advém. Quando comummente pensamos que tomar uma posição significa a partir desse momento estar ao abrigo de tudo o que foi pensado nessa direcção, cometemos o mais comum dos erros, que consiste em julgar que a maneira como habitamos pode ser justificada pela vivência dos outros sem que essas mesmas vivências sejam atravessadas por nós, no sentido mais profundo de atravessar, algo que ainda se pode ler na palavra experiência ( atravessar, indo até ao limite do que se atravessa). Um exemplo simples; se eu acreditar na Providência, isso não me liberta de um mal-estar que seria viver num mundo sem intervenção divina, mas coloca-me frente ao

peso extremo de pensar (viver) cada acontecimento como uma manifestação do mesmo. Antes de mais não creio que se possa decidir algo deste tipo da mesma forma como escolho uma refeição, mas somente o fenómeno ele mesmo é que pode permitir que eu me coloque no espaço livre da decisão, ou seja em face a um mundo que deve ser atravessado pelo caminho do nosso pensamento e não por um substituto do mesmo. Numa época em que o empobrecimento espiritual atinge um ponto de catástrofe, não é uma mera aquisição cultural que nos salva do que quer que seja, aliás, o próprio meio cultural pode fazer, e muitas vezes faz, com que nos julguemos defendidos, sendo a elevação um remédio que nos é atribuído sem que tenhamos de nos pôr a nós mesmos em jogo. Ora este “julgarmo-nos protegidos” é o perigo ele mesmo. Num tempo onde a matrização de tudo atinge um tal ponto que nada parece escapar, onde o cálculo aponta somente para um tipo de erro, necessitamos não apenas de ser literatos, mas de alterar todo o nosso modo de vida. Pensar é executar esta alteração, é um caminho sem mapa num meio onde todos os caminhos estão cartografados. “É para saber onde vou que eu ando” diz Goethe. O ditado “Errar é humano” surge na época estoica e já falámos como o peso moral aí impõe um peso substancial, mas não se esconde na língua por vezes um impensado que recolhe em si um canto por descobrir? O ditado fala latim. Se consultarmos o dicionário etimológico de Latim veremos algo surpreendente. O primeiro significado de erro é partir à aventura. Somente depois é que lhe é atribuído o significado de se enganar, de onde aberrare é “distanciar-se”; aberratio, “diversão”; e erroneus, “vagabundo”. Não existe nenhuma poltrona confortável para o pensamento. Neste sentido, os pensadores são os “errantes”, os que partem à aventura, e só há aventura onde as possibilidades de se perder estão em combate com as do encontro, é nesta posição de desconforto que se parte para o combate, para junto do combate, pois não somos somente nós os combatentes, mas somos os que se aproximam do lugar onde os contrários se afrontam. Este caminho é de tal modo, de cada vez, um caminho diferente, que a cada momento é de outro modo que devemos fazer frente ao que se aproxima.


SOBRE A NECESSIDADE LÓGICA DO ERRO (E A ASPIRAÇÃO ESPIRITUAL DE O TRANSCENDER) M A NUEL BA ROSO X AVIER

II. O Não-Ser Pondo de parte, por agora, uma explicação concertada deste género, sugiro o seguinte: “errar é não-ser”. Donde se segue, se errar for necessário, que seja necessário não-ser. Creio que não-ser é um conceito difícil, mas a minha intuição para lá aponta, qual bússola de explorador. Não-ser é tudo aquilo que é relativo; não-ser é, portanto, aquilo que não é absoluto. O não-ser está intimamente ligado com o mundo dos fenómenos, ou, se quisermos, o mundo das aparências. Na sua vertente epistemológica, o não-ser brota na Ciência, na medida em que esta consiste na atividade descritiva do mundo fenomenal; este mundo está em constante mutação e, se agora cremos que ao largarmos uma pedra ela cai para o solo, nada nos garante que amanhã a mesma experiência não terá um desfecho diferente como, por exemplo, a pedra flutuar. As verdades do não-ser serão sempre relativas e provisórias. O não-ser é o Matrix, do Matrix, do Matrix… O sonho, do sonho, do sonho… A máscara, da máscara, da máscara… III. O Errante O não-ser é, de alguma maneira, o nosso dia a dia. O nosso dia a dia “não-será” tanto quanto mais ignorarmos o não-ser, e tanto quanto mais ignorarmos esse mesmo dia a dia, ou, por outro lado, quanto menos presentes lhe formos. Isto porque o não-ser tem uma espécie de qualidade ilusória e autoperpetuadora: quanto mais descremos da sua existência, mais ele se adensa (e portanto, o não-ser “existe”, ao contrário do que talvez Parménides poeticamente declarou: o não-ser como aquilo que “não-é”).

O ERRO

I. A Constatação Numa dessas incontáveis e ditosas conversas, que muito exigiam em esforço, atenção plena e foco de espírito, perguntei, enfim, como que siderado por um mistério, ao meu grande amigo e interlocutor: - Mas porque é tão difícil investigar a realidade? Ao que este me respondeu de imediato: - Porque é necessário que o seja! Aquele que se dedica a fazer uso do intelecto notará, incontornavelmente, o quão difícil é encontrar um ponto-sólido a que se possa agarrar e anunciar em júbilo: “Aqui está! A realidade é isto!”. Alguns, eventualmente, dar-se-ão por satisfeitos e truncarão este processo de investigação numa qualquer verdade obtida. No entanto, os ainda mais exigentes (façamos votos para que a avidez intelectual não os enferme) perguntar-se-ão: “Qual o critério que me leva a parar nesta verdade?”, ao que se seguirá, se o investigador fizer uso pleno da sua perspicácia, “Haverá algum estado de apodítica certeza? Haverá algum estado em que a quimera não assombra as minhas descobertas? Enfim, haverá algum estado em que tudo é claro, em que não há espaço para a dúvida, em que esse enigmático confronto entre o verdadeiro e o falso é resolvido?”. Por agora, teremos que nos contentar com a constatação de que é difícil investigar a realidade, e que, por isso, é necessário que se erre. Uns e outros, aqueles que pelo menos sentem o apelo da explicação, afirmarão que, por exemplo, sendo o homem um ser biológico de capacidades racionais imperfeitas, fica-lhe impossibilitada a compreensão total das coisas; ou que, talvez, sendo o homem um ser caído da graça imaculada, está-lhe vedada a omnisciência, qualidade reservada à Divindade.

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ENSAIO

O não-ser pode assim ser visto enquanto “vida”, da perspetiva daquele que o “vive”. O ente (ser consciente) que somente “não-é” é o errante. O errante é aquele que, digamos, em termos semânticos, erra duplamente: erra por não acertar na resposta, e erra por não conhecer senda, como o vagabundo erra por entre paisagens desoladas, sem morada nem fito. Existe, parece-me, uma dimensão sofredora na errância que refiro, pois aquele que não tem destino não deixará de se sentir perdido na existência. Assim, por extensão, o errante é aquele que se deixa transtornar passivamente por estados de consciência cruciantes como a dúvida ou a angústia. Como nenhum ser senciente procura o sofrimento, eventualmente medrará no seu íntimo uma vontade de dar sentido à vida e de transcender a dor. O que nos leva a… IV. O Ser Como propus na parte II, o não-ser identifica-se com “tudo o que é relativo”. Sugiro agora a seguinte reflexão: se algo diz que “tudo é relativo”, que algo é esse? Esse algo deverá transcender, naturalmente, o domínio das coisas relativas, pois é esse mesmo algo que as diz. Talvez “dizer” não seja uma boa palavra, pois esse algo deverá ser, pela maior parte do tempo, silente. Enfim, se algo “não-é”, outro algo tem de ser. O ser permeia a realidade tal como o não-ser. Mas o ser também está para lá da realidade imediata e aparente. O ser está em todas as coisas e está em nenhuma delas. Se não fosse difícil investigar a realidade, apenas o ser se imporia. Para alguns, o ser é o estado primordial imaculado de onde toda a abundância da existência deriva – entenda-se: o não-ser. Assoma-se o enigma: porque não se revela o estado puro de ser no nosso dia a dia permanentemente? Porque se sofre e se duvida? Porque se chora e se ri? Porque não se “é” simplesmente? E porque é tão difícil dizer o que “é”? Talvez a resposta seja: o ser é de tal forma tudo o que é e todas as possibilidades daquilo que pode vir a ser, que o ser inclui em si mesmo a possibilidade de não-ser, o que se materializa em concreto através da errância, da dúvida, e do sofrimento. É por isso que, creio eu, o meu amigo tinha razão ao declarar como necessária a dificuldade em investigar a realidade – daí a “necessidade lógica do erro”. V. O Metódico À semelhança do que se fez para o não-ser, o ser pode ser visto enquanto “vida”. Se o errante pretender transcender o seu estado de não-ser, ou seja, aspirar ao ser, ele terá de passar a ser metódico. O metódico é aquele que aplica o esforço continuado e direcionado para encontrar pontos-sólidos na

realidade – as verdades (efémeras) que mencionei. Os pontos-sólidos não serão, em princípio, o destino, mas apenas marcos geodésicos ou fachos costeiros para o metódico se orientar na sua senda. Será talvez na esteira deste pensamento que alguns afirmam que a felicidade é, não um destino, mas sim um caminho. É através destes pontos-sólidos que se pode, por assim dizer, ser-através-do-não-ser, ou, ser-e-não-ser. De facto, dada a nossa existência relativa, só nos é permitido ser enquanto “não-somos”. Daí também ter escrito, na parte III, que “não-seremos” tanto quanto mais ignorarmos o não-ser: se há possibilidade de transcendermos o não-ser, então dever-se-á primeiramente assumir que “não-se-é”; que é como quem diz: para ligar uma lâmpada primeiro há que assumir que está escuro. Habitualmente, ser-e-não-ser soa a oximoro, mas estou conscientemente a desafiar essa intuição. Creio que, em particular, Hamlet era uma criatura dilacerada pela angústia pois a sua questão era ser-ou-não-ser, enquanto talvez fosse mais sábio contemplar a questão ser-e-não-ser. Como sugeri, o metódico é aquele que se apresenta vigilante e perseverante no seu dia a dia, na senda do ser-e-não-ser. Para além disso, ele também deve ser delicado e meigo. Se o esforço aplicado for despropositadamente grande, as mensagens da natureza serão tão ininteligíveis como no caso em que não há esforço nenhum, e a frustração assomar-se-á como inimigo recalcitrante. Daqui poder-se-á concluir que o metódico comunga de outras qualidades como a compaixão e a ternura. Ele intui que o cuidado no tato é uma virtude, e que, sendo a felicidade um caminho e não um destino, não há castelo, trono ou coroa para se conquistarem em absoluto; assim, todos os seres sencientes são bem-vindos, pois a sua viagem é a do abraço e não a da rejeição. Dada a nossa existência relativa e maculada, resta-nos, pois, aspirar à perfeição na imperfeição, fazendo emergir a luz e o brilho do breu. Nisto consiste a “aspiração espiritual de transcender o erro”. Que um estado que transcende a dúvida e a dor seja incomensurável com o nosso parece coisa certa, mas nem por isso o ónus da prova repousa do lado daqueles que nisso acreditam. VI. A Aspiração Creio que já escrevi palavras que bastem sobre aquilo que não se pode dizer. Este tipo de reflexão tem uma história filosófica milenar (o que torna este exercício ensaístico perigoso), é muito exigente, e não estou certo de que a minha mente e o meu coração estejam preparados para a discutir aprofundadamente. Receio que este ensaio, dada a sua natureza filosófica, também não apresente conselhos para se


viver bem. Sugiro apenas duas coisas: se quiserem investigar a realidade, talvez seja então útil transportarem um bloco de notas para escreverem pensamentos. Por outro lado, se preferirem apenas repousar no instante presente, o melhor é deixarem o bloco de notas arrumado na secretária em casa, e, ao folgarem no campo ao sol, deixarem os pensamentos seguir o seu percurso placidamente, como as nuvens no céu azul o fazem. De facto, nesses momentos em que se abraça o presente, o melhor é não pensar em coisa alguma, e apenas ser – que é talvez o mesmo que dizer: ser feliz. Ora aí está um grande desafio! Boa ventura é o que humildemente vos desejo.

O ERRO

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FELIPE PATHÉ DUA RTE

ERR ARE HUMANUM EST, PERSEVER ARE AUTEM DIABOLICUM, ET TERTIA NON DATUR 1. SÉNEC A

Há várias formas de começar um ensaio. Mas justificar a sua pertinência talvez seja a mais prosaica para o leitor. Assim, sejamos adolescentes apenas por um parágrafo. No jogo “Verdade ou Consequência?” temos de escolher entre a transparência ou a opacidade. A primeira esmaga moralmente, a segunda é um exercício de autonomia e liberdade. Optar pela transparência é ambicionar a perfeição da “verdade”, optar pela opacidade é ver na “consequência” um assumir estrutural do erro. Mas escolher é errar. E poder errar é ser-se livre porquanto se está aberto à possibilidade de escolha. Por ora, associar a abertura ao erro é também ponderar o fechamento pela verdade. Mantenhamos esta ideia, porque vai ser importante para o resto do ensaio. Regressemos à maturidade. Em momentos de crise social considerar o erro num sistema político torna-se progressivamente intolerável. Contudo, a essência de um regime democrático liberal reside na consideração permanente do erro, em abstracto. A sua superação em absoluto ou, simplesmente, a sua obliteração, levam a um almejar de perigosas políticas de perfeição – seja nas formas de liderança, nas estruturas ou nas ideias. Comecemos então por dizer que é pela tentativa e erro que uma sociedade permanece aberta. Parece-nos um adágio evidente e maduro, mas não o é. Está assim justificada a pertinência deste ensaio.

II O excesso de verdade, porque dogmático, acaba por gerar um bloqueio e ensimesmamento intelectual. Dá margens para utopismos e sentidos teleológicos. A certeza absoluta de uma verdade leva à crença na inevitabilidade do seu alcance. Nesse processo o caminho pouco importará – os fins justificarão sempre os meios. Por outro lado, a consciência do erro retira o absoluto da certeza. Ponderar a impossibilidade de verdade leva-nos a considerar o erro. Esta disposição aparta concepções dogmáticas. É o esforço por eliminar o erro - que existirá sempre - que faz com que o conhecimento não deixe de ser uma aproximação à verdade - um ideal não tangível. Ou seja, a questão não é tanto o resultado, mas a maneira como o almejamos e a forma como o alcançamos. Aqui os fins nunca justificarão os meios. O conhecimento progride então por conjecturas e refutações, não por verdades incontestáveis Estes parágrafos levam-nos invariavelmente para Karl Popper (1902-1994), um dos mais notáveis defensores das democracias liberais. O seu argumento político na defesa intransigente da liberdade assenta na filosofia falibilista do conhecimento. Este método consiste em submeter permanentemente as hipóteses ou teorias científicas a testes e críticas, no sentido de lhes detectar erros ou falhas.

Errar é humano, mas perseverar [no erro] é diabólico

I

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ENSAIO

“VERDADE OU CONSEQUÊNCIA?” POPPER, O ERRO E AS DEMOCRACIAS LIBERAIS


Trata-se da “assimetria dos enunciados universais” – quando nenhum número finito de observações permite validar de uma forma definitiva um enunciado universal, basta uma obser vação (negativa) para o invalidar ou refutar. É a velha questão dos cisnes – todos os cisnes são brancos, até encontrarmos um preto que nos retire essa verdade. Na linha popperiana o desenvolvimento da ciência é uma evolução em direcção à verdade, mas não a sua posse definitiva. No fundo, é tentar mostrar que as teorias são falsas e não provar que são verdadeiras. Por isso, a conjectura e refutação é a melhor forma de legitimar e dar força a uma teoria. O erro tem assim papel fundamental na construção de novas teorias. Avança-se pelo erro, não pela verdade. A recusa em ter certezas absolutas funciona pois como o motor de todo o conhecimento científico. Para Karl Popper os homens são falíveis, erram. Os nossos mecanismos próprios de interpretação com o mundo que nos rodeia falham. Porém, num processo de externalização descritiva, dialógica e argumentativa temos a capacidade de reflectir e criticar esses mesmos mecanismos. A isto chama-se aprendizagem por tentativa e erro. Escolher a “consequência”, e não ser triturado pelo peso da “verdade”, é uma forma de estruturação da liberdade humana.

III

O ERRO

Na margem oposta ao método da conjectura e refutação, podemos encontrar o método dialéctico. Se o primeiro considera o erro como a aproximação à verdade, o segundo quer a verdade desconsiderando o erro. Os resultados políticos destas disposições são bem diferentes. Popper, na obra “Conjecturas e Refutações” (1963), critica a dialéctica em duas frentes: como teoria da lógica e como interpretação geral do mundo. Na primeira frente, a dialéctica é criticada por preconizar

o abandono da «lei da exclusão das contradições». Isto é, uma teoria que admita a contradição envolve tudo, mas não vale nada. É inútil porque vai impedir a procura de outra teoria que seja melhor que esta. Além disso, confronta três princípios clássicos do pensamento lógico-filosófico – os princípios da identidade (A é A), da não-contradição (A não pode ser B e não B) e do terceiro excluído (A é B ou não B). Aceitando a contradição, não há abertura logo não há margem para a crítica, levando a um ensimesmamento. Sabemos já que o progresso do conhecimento se deve à abertura que permite a superação da contradição. Na segunda frente, Popper critica a dialéctica como interpretação geral do mundo. Posiciona-se assim contra o idealismo hegeliano e contra o historicismo e materialismo dialéctico de Marx e Engels. Em ambos os casos temos um racionalismo profundamente dogmático, e não crítico, como é seu apanágio. Há uma estrutura de pensamento blindada a qualquer dúvida ou erro. Hegel identifica a razão com a realidade. Assim, se a razão se estrutura dialecticamente, a realidade tem de obedecer às leis da dialéctica – uma trituradora lógica que tudo subsume. Com Engels e Marx o método dialéctico torna-se base para explicar o desenvolvimento social. Desta perspectiva, a contradição surge como motor de dinamismo social e progresso histórico. A irrefutabilidade deste método leva a um historicismo científico, profético e gerador de uma ideia adventícia. Nesta linha importa sempre mais a “verdade” do que as “consequências” da sua procura – essas serão sempre justificadas pela demanda de um grande fim, a busca da certeza sem erro.

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ENSAIO

IV Comecemos esta parte lembrando o que ficou atrás: só são proposições científicas as que são susceptíveis à refutação. A liberdade de crítica é fundamental no progresso do conhecimento. Com efeito, é na possibilidade de aceitação de crítica que Popper vai criar a distinção entre sociedade aberta e sociedade fechada. Na primeira há liberdade de alteração progressiva de costumes e leis através de uma racionalidade crítica: é Atenas - civilização comercial, marítima e democrática. Na segunda isso não acontece, as leis e costumes não estão permeáveis à avaliação e crítica dos indivíduos: é Esparta - tirania colectivista, tribal e anticomercial. O método falibilista de conhecimento trouxe algumas consequências para a filosofia política e moral. Popper procura assim expor os erros epistemológicos das grandes narrativas totalizantes que marcaram o século XX. Desta forma, transita-se para uma crítica directa às ideologias políticas que se fundamentam em verdades científicas absolutas. Durante a Segunda Grande Guerra, como esforço de luta contra as ideologias totalizantes, Karl Popper escreve o livro “Sociedade Aberta e os seus inimigos”. Aqui desfere um ataque à ortodoxia filosófica continental e aponta três grandes filósofos como os principais inimigos das sociedades abertas: Platão, Hegel e Marx. Podemos dizer que neles há uma atitude adversa à ideia de sociedade aberta: o historicismo e a profecia historicista. De acordo com uma visão determinista, a verdadeira liberdade passa pelo conhecimento das leis do desenvolvimento histórico. Dominando estas verdades teleológicas contribui-se, e acelera-se, este processo. Todavia, é impossível prever o futuro, e há uma razão lógica para essa impossibilidade: admitamos em primeiro que os nossos conhecimentos técnicos e científicos futuros vão influenciar o futuro das dinâmicas sociais e políticas; porém, em segundo, aceder hoje a esses conhecimentos fá-los-ia presentes e não futuros – logo, não podemos conhecer o futuro. Mais ainda. As profecias historicistas não são susceptíveis a testes. Os adventos de verdades científicas, como a chegada inexorável do socialismo ou comunismo, não se permeiam a conjecturas e refutações. Não consideram o erro, logo este tipo de profecias não pode reclamar o estatuto científico, porque nenhum teste (feito no presente) pode refutar uma teoria que sustenta a sua realização no futuro – não deixam por isso de ser crenças. A própria realidade sustenta esta impossibilidade científica: o socialismo nunca ocorreu nos regimes em que a teoria previa que deveria ter acontecido (Estados capitalistas maduros); com a queda da

URSS, muitos desses regimes deram origem a um capitalismo democrático, e não ao comunismo, conforme a teoria marxista previa. V Sob o cilindro do inevitável sucesso histórico fecharam-se sociedades e homogeneizaram-se vários aspectos sociais. Surgiram tiranias sanguinárias, fontes únicas de autoridade que apontavam o caminho para a verdade. A questão que Popper levanta não é quem deve governar ou de onde emana o poder. A sua teoria da democracia procura responder ao como evitar a tirania, isto é, como garantir a mudança de um governo sem recorrer à violência. Para tal, há um conjunto de regras que permitem uma alternância concorrencial ao poder. Uma vez alcançado, essas regras não podem ser anuladas. Referimo-nos assim a governos representativos, democráticos, mas limitados pela lei. Paralelamente, deverá haver uma dispersão de poder que salvaguarde a liberdade individual, a possibilidade de cada indivíduo prosseguir os seus fins. E m ter mos p ol ít icos fa la mos de u m constitucionalismo liberal. Em termos económicos isto só é possível numa economia de mercado. Em ambos os casos troca-se a verdade da comunidade pelo erro do indivíduo, assumindo estruturalmente todas as consequências que daí advenham. Trata-se pois de um cepticismo em relação ao poder que é garante de liberdade individual. Errar é ser livre para não perseverar no erro.

Espada, João Carlos; A Tradição Anglo-Americana da Liberdade – Um Olhar Europeu; Cascais: Princípia, 2008 Popper, Karl; Conjecturas e Refutações; Trad. Port.; Coimbra: Ed. Almedina, 2003 Popper, Karl; Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, Vol.I e II; Trad. Port.; Coimbra: Edições 70, 2013


Bruno Afonso

O ERRO

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ENSAIO

ERRO E CIVILIZAÇÃO JOSÉ NUNO L ACERDA FONSEC A

Chris Arg yris é um conhecido pensador de gestão das organizações que introduziu o conceito de “double loop learnig”. Trata-se de perguntar porque se errou, na tentativa de definir regras que, de futuro, impeçam erros do mesmo tipo. Este tipo de pensamento, que podemos designar por estrutural, em oposição ao pensamento conjuntural e imediatista (que se limitaria a corrigir o erro), tem sido albergado, no que concerne as questões sociais, nos conceitos de reforma estrutural, mudança de regime e fase histórica, entre outros. De facto, a ascensão e queda de sociedades e modelos sociais tem sido uma constante na história da humanidade. Estes ciclos possibilitaram a evolução e a atualização das sociedades mas acarretaram significativo sofrimento e desorganização social. Nesta linha de ideias, uma preocupação das filosofias sociais é definir novos valores éticos que minimizem os choques de poderes, sobretudo nos períodos de grande transformação histórica, facilitando a evolução social. É neste contexto que surge a intuição de que, no atual momento histórico, estes novos valores éticos tenderão a organizar-se em torno do valor do civismo. A revolução cívica deriva da perceção dos perigos de imposição e adulteração ética, inerentes a qualquer forma de poder e a perceção, consequente, da responsabilidade individual no desenvolvimento e aplicação das normas de cooperação e inclusão social. O civismo apela para cada um assumir a responsabilidade pelas questões coletivas e comuns, minimizando a delegação noutras entidades e aumentando a atenção vigilante sobre todos os centros de poder, domínio e destruição. A degradação ética, suscitada pelo usufruto, continuado, de poder, redunda em fatores de degradação cognitiva e social que impelem para a violência e manipulação, na tentativa desses centros de poder manterem o seu estatuto, nomeadamente o

político e o legislativo, mesmo quando já não cumprem as suas funções históricas. Por exemplo, as funções tradicionais da aristocracia monárquica foram substituídas pelo sistema jurídico independente e pelo exército profissional. A atual plutocracia financeira internacional assiste a parte das suas funções tradicionais serem substituídas pelos gestores, empreendedores produtivos e sistemas bancários baseados em aforradores da classe média. Estas alterações suscitaram lutas com as novas elites e levaram a novas alianças, entre povo e elites, no sentido de uma distribuição mais equitativa do produto social global. Uma visão ética e idealista da história aponta para o civismo, enquanto uma visão materialista e funcional estabelece as condições e as possibilidades do seu desenvolvimento. Para ser cabalmente entendido neste sentido, o civismo deve ser compreendido como um complemento atualizador de um fluxo de valores expressos, inicialmente, pelo valor da comunhão entre os seres, consubstanciado, nomeadamente, no Budismo, Confucionismo e Cristianismo. Este fluxo foi, depois, reaplicado no valor da liberdade, desde o século XVIII, e, já no século XX, no valor da igualdade solidária. O valor do civismo relacionase com outros valores éticos por ser uma liberdade responsável, não restrita ao foro dos direitos mas entendida como dever de intervenção social. Trata-se, também, de um igualitarismo adequado através do acesso a poderes em equilíbrio mútuo e não um igualitarismo absoluto, inserindo-se num objetivo de total inclusão social e igual consideração por todos. A perceção cívica tende a entender a dinâmica igualitarista, de poderes, como uma dinâmica para assegurar maior liberdade. A realização de uma sociedade cívica apela, também, para o desenvolvimento de virtudes e competências cog n it iv as e f ilosóf icas, nomeadamente, consciencializando pressupostos


atávicos e imaginando alternativas, constituindo, assim, uma ética dinâmica. Em torno destas competências filosóficas poderá, talvez, estruturarse, agora, um civismo enquanto novo valor central de uma filosofia moral, contendo os valores da transparência, vigilância democrática, participação cívica, humildade social e mudança progressiva, em equilíbrio com valores de eficiência e inovação. Os conceitos até agora expressos encontraram filiação, sobretudo, na centralidade da ética na transformação social (Milton e Rawls), na degradação autoritárias das ideologias (Arendt e Hayek), na necessidade de equilíbrio entre poderes (Montesquieu e Dahl), na dialética histórica (Hegel e Marx), na dinâmica de competição entre elites (Schumpeter), nos ciclos civilizacionais (Toynbee, Acemoglu e Robinson), na substituição progressiva de poderes (Bernstein), na crítica genérica ao poder (Proudhon e Bakunin), na continuidade dos valores cristãos em diversas ideologias (Tawney e Habermas) e na sociologia funcional (Spencer e Parsons), entre várias outras filiações. DEMOCRACIA COGNITIVA

O ERRO

O paradigma da democracia cognitiva resulta da constatação do défice de informação do eleitor e das adulterações daí decorrentes, inserindo-se na prática de valores como a transparência, participação e vigilância democráticas. De facto, numa sociedade cada vez mais complexa torna-se impossível ao eleitor avaliar, racionalmente, a qualidade das diversas políticas que se desenrolam por muitos temas e setores, quase sempre de grande complexidade técnica e social. Esta impossibilidade incentiva políticas superficiais, imediatistas e a manipulação mediática. Em resposta a esta problemática desenvolveram-se, desde os anos sessenta do século passado, várias linhas de investigação, experiências

e projetos políticos, na tentativa de tentar superar as limitações informativas. Estas linhas de inovação são, geralmente, denominadas de democracia deliberativa. No cerne de algumas dessas linhas podemos detetar a ideia da divisão da apreciação política global, efetuada pelos eleitores, distribuindo-se por vários grupos temáticos, constituídos por eleitores especializados em cada tema. Nesta perspetiva, as eleições de massa seriam substituíveis, em grande parte, por eleições e avaliações temáticas, efetuadas por fóruns especializados de cidadãos. Cada cidadão poderia pertencer a um número restrito de fóruns, de forma a possibilitar a real compreensão dos temas. Este novo paradigma, de democracia especializada, subentende a livre circulação dos cidadãos entre os fóruns, a organização de cada fórum em subfóruns de oferta (profissionais com interesse económico num dado tema ou setor) e procura (cidadãos independentes), a exigência de um nível mínimo de conhecimentos necessários para votar em cada tema, bem como a legitimação das regras gerais deste sistema através de eleições abertas a todos os cidadãos. Afinal, trata-se de alargar a descentralização geográfica também para descentralizações temáticas e setoriais. As alterações paradigmáticas, decorrentes dos valores cívicos, não se resumem à democracia deliberativa e muito menos ao seu subtipo constituído pela democracia especializada. São exemplo, de várias outras alterações, as ponderações de votos em função do conhecimento de cada matéria, em situações de efetivo igual acesso ao conhecimento; novos paradigmas de representatividade nos quais o representante tem o seu nível de rendimento indexado a resultados objetivos obtidos a nível dos representados (vínculo funcional); novos paradigmas de representatividade envolvidos na democracia especializada pelos quais os cidadãos se representam uns aos outros, de forma dinâmica e sem designação

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eleitoral expressa (co-representativ idade); autonomia das oposições para gerirem parte dos orçamentos globais; conselhos de sábios em regime de longo prazo com “vínculo funcional” e várias outras alterações, paradigmáticas, com diferentes níveis de complexidade teórica e operativa mas que, muito frequentemente, se alicerçam na democracia eletrónica. Este tipo de reformismo tem sido veiculado em obras que reagem às constatações sobre o défice informativo da democracia (Anthony Downs), em outras sobre democracia associativa (Paul Hirst), júris de cidadãos (Ned Crosby), pluralidade das instâncias de voto (Bobbio), democracia deliberativa (Joseph Bessette, Held e John Dryzek), sondagens deliberativas (James Fishkin), neo-corporativismo (Howard Wiarda e Philippe Schmitter), conselho de sábios (Rosanvallon), descentralização radical (Jean Laliberté), aprofundamento democrático (Archon Fung e Erik Wright), bem como em experiências como os orçamentos participativos, “demoex” e democracia líquida, entre um grande número de várias outras referências e experiências. ECONOMIA DE TRANSPARÊNCIA Paralelamente, as grandes mudanças no sistema económico prefig uram-se em atuações para potenciar as virtudes dos mercados, ultrapassando a rigidez das barreiras à entrada e as assimetrias informativas e negociais, constituindo um mercado regulado, muito diferente do mercado predatório. Com igual importância, prefigura-se a conjugação do mercado com diversas formas de planeamento, inter-empresarial, público/privado e de planeamento com fóruns de consumidores (definindo parâmetros de qualidade, tipo de informação a facultar ao consumidor em geral e várias outras definições planificadoras). O conceito de meta-concorrência (entre sistemas económicos) consubstancia-se, nomeadamente, na coexistência das empresas civis com empresas de capitais estatais, atuando, todas, em livre mercado regulado, em todos os setores e com dinâmicas próximas do socialismo de mercado gestionário. A velha teoria do valor do trabalho equaciona-se, agora, em torno do incentivo económico capaz de compensar a “desutilidade” (considerando risco, esforço, erosão na saúde, trajeto educativo, etc.) de cada tarefa, atividade e profissão. Esta desutilidade é definível por peritos e trabalhadores de várias profissões que determinam valores de referência, sendo o mercado a precisar o nível remuneratório de cada trabalhador, dentro desses mesmos valores. As economias de transparência emergem em modelos participados de investigação pública, “benchmarking”, muito

vasto, entre empresas, facilitado por instituições públicas e associativas. Emergem, também, em novos sistemas de patentes, pela aquisição pública de todas as patentes, sua consequente abertura universal, sendo que o pagamento aos criadores se processará “a posteriori” e em função dos resultados do uso das patentes, mediante processos de estudo de impacto e consulta a todos os utilizadores. Por último, será de frisar a importância do subconsciente na eficiência económica, expresso nomeadamente nos estudos interculturais sobre atitudes sociais que, já hoje, explicam as diferentes performances económicas entre nações, regiões e culturas, trazendo o subconsciente económico para a luz do dia. Estes conceitos baseiam-se, em grande parte, no socialismo de mercado (John Roemer e David Schweickart), em novas formas de planeamento participativo (Russel Ackof e Robin Hahnel), nas metodologias atuais de planeamento (Godet e Porter), no socialismo das guildas (H. G. Cole), na influência do oligopólio e das instituições no mercado (J. K. Galbraith), nas críticas ao consumismo (Thorstein Veblen e Bourdieu), nas assimetrias informativas do mercado (Akerlof e Stiglitz), nas especificidades da economia da informação (Arrow e Paul Romer), nas teorias do incentivo económico (James A. Mirrlees, Armstrong e Murlis), nas teorias do valor do trabalho (Michael Albert e Robin Hahnel, André Orléan) e nas relações entre desenvolvimento económico e atitudes culturais (Hofstede e Inglehart), citando de forma muito resumida e lacunar. CULTURA CONSCIENTE Finalmente, a renovação dos paradigmas culturais acarreta uma mais vasta consciência pública sobre os diversos modelos de felicidade, carreados pela cultura, desde os modelos centrados na sede de poder, consumo e “status” até aos da estabilidade, cultura e empatia. Poderão assim, talvez, emergir estratégias, culturais e mediáticas, de valorização da humildade social e da progressividade da mudança existencial, expansão dos padrões de atratividade erótica e dos prazeres de fácil acesso, como o contemplativo e criativo, pedagogias da empatia, do conhecimento e da ação social, potencializadoras da ética. A opção pela ética, pelas ideologias e religiões implica, em qualquer dos casos, um sentimento de justiça numinosa, compensadora de esforços e dádivas, base da espiritualidade e de perceções de um ego mais vasto do que o individual. A prática das opções filosóficas, ideológicas e religiosas potencia, de forma até agora ímpar, os condicionamentos psicológicos profundos, a favor da ética. Infelizmente, estas estruturas sempre se


mostraram permeáveis ao irracionalismo e tirania, apesar da necessidade de preservar os regimes de racionalidade e liberdade como valores, igualmente, essenciais. É a esperança em novas conceções do divino numinoso, provavelmente mais panteístas, evolucionistas e abertas ao livre arbítrio, bem como a esperança nas virtudes da circulação livre do saber e da informação que poderão conciliar o poder das estruturas culturais, tradicionais, com a racionalidade inspirada pelo sucesso da ciência. Contudo, a livre circulação das mensagens sociais e das peças culturais só pode ser assegurada por igual livre circulação das críticas e análises pluripartidárias a esses objetos culturais, tanto no contexto de políticas diversificadas de promoção da ética, quanto no contexto do saber político e social e da cultura recreativa. Uma circulação de informação sem consciência crítica e das alternativas é um processo manipulativo que constitui, hoje, a trave mestra da tirania. Estas considerações baseiam-se em reflexões sobre modelos de felicidade (Marcuse, E. Wilson, Clifford Gertz, Eric Erickson e Martin Seligman), livre arbítrio na opção pela ética (Aquino e Martha Nussbaum), numinoso (Rudolf Otto), psicologia da religião e condicionamento (Gordon Allport e Skinner), papel das simbologias religiosas (Don Cupitt e Paul Tillich), evolução e divino (Chardin), subjetividade e pluralismo (Vattimo e Lyotard), racionalidade da ética versus relativismo moral (Dworkin), crítica dos media (Adorno, Horkeimer, Popper, Condry, Comstock e Scharrer) e psicologia e educação para a ética (Kohlberg).

O ERRO

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Paulo Barros

Desenho impresso #15 9 Fev. 2014 - 1 impress達o 13 Fev. 2014 - 1 impress達o 17 Fev. 2014 - 1 impress達o Tinta de offset sobre papel 84x60cm





MICHELE C. COUTINHO ROCHA 1

A obra poética e teórica de António Maria Lisboa (Lisboa, 1928-1953) sobressai no panorama do Surrealismo português, como afirmação de um pensamento que se pretende constituir como um novo modo de pensar e de agir. Em sintonia com os princípios fundamentais do Surrealismo, António Maria Lisboa procurou estruturar e fundamentar uma outra forma de realização mental, assumidamente poética, que conduzisse à expressão e realização integral do indivíduo, constituindo-se como referência fundamental para o surrealismo português. Perfeitamente enquadrado na proposta surrealista, António Maria Lisboa assume uma posição firme de oposição e revolta contra os valores morais, estéticos e religiosos impostos por uma sociedade que, segundo o autor, impossibilita o conhecimento profundo do indivíduo, limita e reprime os seus desejos mais íntimos, restringe a experiência pessoal e o contacto íntimo com os outros, sufoca a imaginação, a sensibilidade e a ação do ser individualizado (Lisboa, 2005). Neste sentido, na perspetiva do autor, só o Pensamento Poético - o único interessado na realidade como um todo - assumido como afirmação individual onde cada um se confronta com a sua interioridade, responde à necessidade de expressão e realização total do ser: descobrir todas as suas capacidades e agir no sentido do seu próprio enriquecimento. O manifesto-conferência Erro Próprio, escrito em 1949 e apresentado ao público a 3 de Maio - numa conferência organizada pelo grupo Os Surrealistas na casa comarca de Arganil - constitui um dos mais importantes objetos teóricos do surrealismo português. No anúncio da leitura do manifesto, António Maria Lisboa propõe fazer uma reflexão sobre os “problemas do surrealismo” (Cesariny, 1997, p. 158), sobre o “Erro Próprio” que dá nome à conferência. Segundo o autor “não se trata de negar o Surrealismo e os seus princípios, mas de repor o Movimento e de me pôr em relação a ele” (Lisboa, 2005, p.39).

Antes de colocar o “problema no seu início”, António Maria Lisboa começa por comunicar a experiência do encontro, materializada na “vinda dos NOVOS AMOROSOS”, portadores da “Verdadeira Vida” conducente à transformação e enriquecimento do indivíduo, à “reconquista de Universos Ignorados” (Ibidem, p. 23). O desenho espontâneo e inusitado de duas figuras num papel marca o início da viagem que conduzirá o narrador de regresso à infância e ao reencontro com a Mulher-Mãe. A transposição de uma série de passagens e obstáculos culmina com a entrada num “túnel profundamente escuro” - metáfora do útero materno - um túmulo reconhecido onde os sinais começam finalmente a fazer sentido. Por fim, a descida ao “enorme e maravilhoso Lago” de águas brilhantes, simultaneamente opacas e límpidas, concretiza o regresso à substância materna: As águas tinham um brilho novo e desconhecido. Não eram verdes nem transparentes. Eram opacas, mas límpidas. Tinham cor e luz própria. Eram como os olhos dos Apaixonados: Fulgurantes, Misteriosos e Transparentes – não porque se veja até ao coração, mas porque o coração vem até eles (Ibidem, p. 25).

A descida culmina com o encontro da Lua e do Sol, reunidos no “Fogo dos Séculos”, metáfora da transmutação do indivíduo num ser mais puro. Após esta experiência o narrador, liberto de todas as contingências, regressa a um estado de pureza original: “No dia seguinte fui encontrado perplexo e sem memória no pequeno rio, do local referido, a saltar de pedra para pedra, descalço, tronco nu e na mão esquerda um anel que um dia me será devolvido” (Idem). O anel evoca a aliança indissolúvel com a MulherMãe, a confirmação de um destino comum: “Desta aventura guardo unicamente um NOME - SAGIR A MULHER-MÃE, que unida ao homem realizará

1 Investigadora Pós-Doc em Ciências da Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. E-mail: micheleroc@hotmail.com

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ERRO PRÓPRIO DE ANTÓNIO MARIA LISBOA: PARA A CONQUISTA DA LIBERDADE E DO AMOR


um destino idêntico” (Idem). Do reencontro com a intimidade materna resta a nostalgia de uma existência intrauterina, anterior a qualquer separação ou perda: “Tenho saudades dum Túmulo verde cravejado de lágrimas onde vivi – EU e SAGIR” (Idem). A “materialização dos NOVOS e MAGNÍFICOS AMOROSOS”, ou seja a recuperação de uma experiência de unidade psíquica e corporal com o Feminino, requer “a máxima preparação: quer pelo recolhimento, quer por leituras lentas, quer pela procura desesperada de novos horizontes, quer, ainda, pelo afastamento imediato da chamada vida prática; ou então, seguindo o caminho contrário, pela dispersão absoluta, pelo esquecimento de toda a sabedoria acumulada, pela exaltação da ignorância que tudo aprende” (Ibidem, p. 26), sob a pena de se poder sucumbir ao “choque brutal” que a vinda dos “Eternos Amorosos” implica (Idem). Neste processo o Poeta, através de um olhar interior, tem de estar atento a “toda a espécie de influências estranhas” que impossibilitem a concretização dos seus “desejos e vontades”, mas também ser capaz de ler os sinais e indícios que lhe chegam como resposta aos seus problemas, orientando-se num “emaranhado invisível” de símbolos: [...] um alerta contínuo contra toda a espécie de influências estranhas dirigidas contra os nossos desejos e vontades. [...] Cada uma das nossas atitudes é uma resposta aos problemas da nossa própria vida e um Anzol lançado ao Destino – toma cuidado, pois, com o emaranhado invisível que te cerca e te dirige! (Idem)

Eu sei que é precisamente pela contribuição individual que se consegue o Grande Desígnio a que todo o Homem em princípio se propõe: Viver Livre! E a conquista da Liberdade e do Amor são indubitavelmente conquistas individuais e só como indivíduos as podemos fazer (Ibidem p. 28).

António Maria Lisboa defende que só a partir da própria experiência “íntima-social-pessoal”, adquirida espontaneamente desde a infância e projetada ao longo da existência, se consegue aceder à totalidade do Real: “A nossa experiência é a nossa única riqueza [...]. Toda a vida, todo o pensamento só são válidos desde que fundidos pela nossa experiência” (Ibidem p. 29). O Pensamento Poético, assumido como expressão individual, é o único que possibilita a experiência da unidade e do absoluto. A longa viagem interior à primeira infância, que todos são convidados a fazer, revela os “detalhes esquecidos” conduzindo o indivíduo à solução dos seus problemas. O encontro com a Mulher-Mãe, entendido como revelação de uma existência unificada, confirma no indivíduo a existência da unidade e do absoluto: “Seja-me permitido, uma vez por todas, apontar a Grande Legenda que encerra a Chave da ação deste universo” (Ibidem, p. 30). Porém, o Homem por falta de oportunidade ou de coragem para agir é constantemente confrontado com a impossibilidade de aceder a este conhecimento, “move-se numa redoma fechada, não sabendo o que existe para além do vidro baço” (Ibidem, p. 33). As condicionantes económicas e sociais vieram “acabar com o que de Grande existia em cada um e generalizar

O ERRO

Para António Maria Lisboa a confirmação da existência deste Universo e a descoberta e exploração das suas potencialidades impõe-se como uma conquista individual, distinta dos interesses coletivos de ordem social, políticos ou religiosos, mas também dos interesses do próprio Movimento

Surrealista, entendido como convergência de intenções e ações. Na perspetiva do autor só através da afirmação individual, onde cada um se confronta com a sua própria interioridade, é possível alcançar o “Grande Desígnio”, a conquista da Liberdade e do Amor:

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o que de mais mesquinho cada um pode comportar” (Ibidem, 34). Impossibilitado de exprimir os seus desejos e vontades, de se relacionar intimamente com as coisas e as pessoas, não consegue ler os sinais que lhe chegam constantemente do exterior, como indício da existência de uma realidade oculta: Quase tudo nesta época encobre e sufoca o que em nós anda à flor da pele, o que connosco anda à superfície, digo: no contacto com os outros: - a nossa experiência pessoal, os nossos desejos mais íntimos, o ato espontâneo, livre e amoroso! (Idem)

Neste sentido, na perspetiva do autor impõe-se uma “mudança de Rumo em TODOS e em TUDO” (Idem), a começar em cada um individualmente. A questão central será a colocada por Pedro Oom: “Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é vómito e nós seres abjetos?” (Idem). Perante o desespero o Poeta só tem como alternativa a angústia ou a abjecção. Só a “posição de abjeção, de desespero irresignável” (Idem), entendida como ação individual, pode conduzir o Homem à única atitude que ainda lhe é possível: “SOBREVIVER, mas sobreviver LIVRES”, pois não existe sobrevivência na escravatura, mas na aceitação desta. «Ser Livre» é possuir-se a capacidade de lutar contra as forças que nos contrariam, é não colaborar com elas” (Idem). No mesmo sentido, André Breton refere o “desespero humano” como legitimação para a revolta absoluta, a insubmissão e a violência (Breton, 1993, p. 129). António Maria Lisboa aborda a problemática principal: propõe uma mudança de rumo também ao próprio Surrealismo, segundo este demasiado envolvido na ofensa pessoal e em querelas inúteis “EU SOU tu não és” (Lisboa, 2005, p. 37). Na perspetiva do autor, o Poeta para ser inteiramente livre não pode estar ligado a nenhum grupo, nem mesmo a um “agrupamento de indivíduos Livres” como o Surrealismo. A ligação a um grupo implica um compromisso com os elementos que o compõem e isso é incompatível com a exigência de liberdade incondicional do Poeta: “[…] uma vez por todas, o Compromisso do Poeta é com o AMOR e o acto LIVRE no TEMPO-ÚNICO!” (Ibidem, p. 37). Aqui reside o equívoco do Movimento Surrealista, o “Erro Próprio” que dá nome ao texto. Numa carta endereçada a Mário Cesariny, o autor reafirma o saber e a ação do surrealista, como atividade individual, à semelhança da atividade do Mago da tradição alquímica: “Quanto ao nosso trabalho […] creio-o absolutamente individual […]. A vida de grupo não será tão cedo… ou não será nunca. Creio que era assim que os Ocultistas da IDADE MÉDIA trabalhavam. O Surrealista de hoje, o Homem Livre, ou que se conserva Livre Hoje, é

assim que trabalhará” (Ibidem p. 191). Neste sentido, o autor defende que a força e veracidade do Surrealismo, entendido como movimento transformador, “ação revolucionária [...] Livre, Apaixonada, Poética”, depende exclusivamente da “posição interior que, individualmente, cada um vai tomando, ou tendo, e necessariamente pondo em prática” (Ibidem, p. 39). A obra surrealista, mais do que uma afirmação puramente estética, impõese como uma conquista individual no domínio do conhecimento e da ação, no sentido da redescoberta do próprio individuo e do seu lugar no Universo. A obra surrealista evoca a “transparência ou a opacidade de um Universo próprio” (Ibidem, p. 47), dominado pela Imaginação, pelo Amor e pela Liberdade. Ao Poeta cabe a tarefa de despertar nos outros a Imaginação: O Poeta já não apela para a lógica do espectador (antes a nega), nem tão-pouco para a sua memória da natureza – mas para a sua Imaginação. Trata-se de INVENTAR O MUNDO! Descobrir as semelhanças e dissemelhanças, pôr a nu o rendilhado que une o Invisível ao Visível, estabelecer um Arco-voltaico entre Consciente e Inconsciente, entre o Passado e o Futuro [...] (Ibidem, pp. 47-48)

Neste sentido, a importância da obra do Poeta não reside no seu valor literário ou estético, mas sim no seu potencial poético, ou seja, na capacidade de suscitar nos outros uma consciência poética que possibilite, através de um processo criativo de permuta e enriquecimento, o conhecimento de si e do Universo. O Poeta, liberto de todas as contingências sociais, morais ou religiosas, dissolve-se e reconstrói-se no encontro com os outros: “Em todos os momentos se desconhece e em todos se reconhece” (Ibidem, p. 34). O movimento compreende uma dinâmica de dispersão e convergência, entre a pluralidade e a unidade, que se renova continuamente. O esforço do Poeta, ou do Mago, enquanto impulsionador da ação e da transformação, vai no sentido de encontrar este “Plano Superior”, entendido como “plano de vibração” onde convergem e se relacionam a Imaginação e a Vida Prática. O acesso a esta forma de conhecimento, a “conjugação magnífica do Sonho e da chamada Realidade: a Surrealidade” (Ibidem, p. 44), faz-se não só “pelo exercício da imaginação, pela multiplicação das nossas experiências, pelo reconhecimento do inverosímil, pela negação dos dados positivos […] e ainda, e fundamentalmente, com a ajuda dos Deuses da Nossa Infância” (Idem), através de um processo de interiorização, descoberta e reencontro das energias ocultas. A “Idade de Ouro” será uma realidade quando todos assumirem uma consciência poética: “a Idade


de Ouro Futura não é mais do que a Ressurreição Poética de Todos os Homens!” (Idem). A conquista deste Universo, da Liberdade e do Amor, é o desafio que, segundo o autor, todos individualmente terão que empreender.

Referências Bibliográficas: Cesariny, Mário - A Intervenção Surrealista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. Lisboa, António Maria - Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995 [texto estabelecido por Mário Cesariny de Vasconcelos] Lisboa, António Maria - Erro Próprio. In Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, pp. 23-50 [texto estabelecido por Mário Cesariny de Vasconcelos].

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AMA COMO A ESTRADA COMEÇA JOSÉ RIC ARDO NUNES

Ama. Segunda pessoa do singular, verbo amar, quero ler no modo imperativo e não no asséptico e neutral indicativo. O verso não é mero relato, o resultado possível de uma observação. A simples constatação de um facto, implícita no modo indicativo, retira ao poema a sua carga explosiva. Na verdade, o verso intromete-se, visa a condicionar a atitude e as acções do leitor. O verbo terá que ser lido no modo imperativo. Até porque sabemos da enorme importância do verbo amar para os surrealistas e para Cesariny (tantas vezes repetido nos seus poemas), pois só o amor permite transformar num único todos os planos da realidade. E o leitor lê. A partir daí é com o leitor. Na verdade, é sempre com o leitor. O leitor cumprirá ou não o comando, acatará ou não a ordem. Comando, ordem, mas também conselho, indicação, já que as cinco palavras que formam este verso podem sem esforço ser incluídas num qualquer livro de leitura da 3ª ou 4ª classe. E o repto fica impresso, ecoa na consciência ética e estética do leitor, ama, impele, força à atitude e ao gesto ou suspende-os de vez na calma abúlica e censória de um Portugal que, em requentada ditadura salazarista, estava ainda tão pouco pronto como está hoje. O poema faz a apologia do amor, não apenas o da paixão por outro ser, amor de transvase, não somente o doce e inócuo amor pelos outros, mas sim o amor do conhecimento, o amor da poesia. Ama. Assim, como todos os poemas – mas um pouco mais do que outros poemas –, esta simples linha visa a transformar o mundo, não directamente, ou seja, propondo obras que neste se possam construir, mas indirectamente, através dos sujeitos cujos actos, movidos por uma intenção que se quer amor, podem alterar o mundo. Um poema revolucionário, portanto, com o seu verbo que insisto em ler no modo imperativo. Depois como, uma simples (e complexa) conjunção comparativa. A poesia explode aqui, neste bissílabo que centra o verso não no objecto do amor (que pode

ser, terá de ser qualquer um), mas sim no modo do amor (que é apenas um). Trata-se, em simultâneo, da marcação de um limite e da ampliação de um domínio. Limita ao introduzir uma condição para o imperativo amor: Ama, mas somente como. Amplia porque o como traz ao verso o infinito do mundo e da linguagem, o desejo da diferença e do imprevisto: a estrada que começa. O amor passa, então, a (poder) ser tudo. A conjunção comparativa introduz a transfiguração metafórica, o mecanismo que torna actuante o amor, que não o deixa reduzido a simples conjugação verbal, a hábito herdado da linguagem e da cultura, mas lhe dá ressonância de mistério. De facto “a estrada começa” é já um exemplo prático dessa transfiguração, fornecendo desde logo o poema um exemplo prático para a teoria que apresenta. Ou, se quisermos, o poema é o melhor exemplo da teoria que o próprio poema propõe. A sonoridade reforça esta linha de ideias. A primeira vogal, o a de ama, representando o papel do feminino, o o de como surgindo pleno de masculinidade. Mas o inverso pode também ser verdadeiro, o que nos permite recuar aos primórdios, fazendo ressoar o mito do andrógino. Como, com ama, remete-nos ainda para cama, seja a física objecto-leito, seja ainda o lençol da linguagem, cujas dobras e rasgões autorizam o jogo da indiferenciação e a ele compelem. Como e ama, por aglutinação, tornam ainda possível a sugestiva criação de um verbo novo: ‘Comar’. ‘Comar’, ou seja, metaforizar, equivale a amar. O princípio metafórico, que é a razão de ser da vida e da escrita, única justificação para os versos e para a relação com o mundo, surge duplamente afirmado: “Ama como”. Porque só aproximar planos entre si distantes, no mundo e na linguagem, nos traz o sentido e junta e funde e nos devolve o indiferenciado, aquilo que sempre foi um e donde tudo provém. “Ama como”, leitor, junta, funde o teu mundo com a tua linguagem, aproxima-te, toca.


distantes da comparação, começar assim de cada vez um mundo novo. Começar sempre, através da linguagem, começar de novo, a cada instante, amar, comparar, criar novos mundos através da força imaginante que tudo engendra. Trata-se do último poema de “estado segundo”, sequência de 21 textos incluída em Pena Capital, publicado em 1957: “Ama como a estrada começa”. Quase redundante, a comparação, inútil mesmo, tão inútil quanto a poesia mais necessária, indispensável. Pois na verdade só é possível amar como começa a estrada, amar para além do hábito de amar, quando a força da descoberta de novos mundos empurra para a frente quem começa qualquer jornada. Imperativo ético, razão estética, eis a força avassaladora desta simples linha, enorme, que contém, no máximo esplendor, um programa poético e uma proposta de vida.

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“Estrada”, não um simples caminho. O poema exige a mão humana, inventiva e tecnológica. Em bom rigor, contudo, a estrada nunca começa, a estrada liga um lugar a outro, liga vários lugares entre si. Começo e termo, princípio e fim, parecem não fazer muito sentido quando se fala de uma estrada, já que se tornam em si mesmos reversíveis. Dependerá sempre do ponto de vista de quem se encontra na estrada determinar se começamos ou acabamos o trajecto. Quero dizer: a estrada e as suas circunstâncias, o começo, o fim, tornam-se sobretudo instâncias subjectivas. O que começa não é a estrada, começa sim a viagem do sujeito que a percorre. A estrada torna-se, portanto (objecto, também, de uma transfiguração metafórica), sinónimo de percurso, viagem. Trata-se de “a estrada”, não de uma estrada qualquer. Essa opção vem indicar-nos que a viagem a que o poema parece aludir é, afinal, a vida, o percurso existencial de um sujeito. A vida, a estrada, o caminho interior da transformação, a Obra que nos transforma, a arte dos versos. “Começa”, pois, começa permanentemente e descobrirás, atingirás o teu destino, não um lugar determinado à partida, mas um lugar em que te poderás de novo encontrar em condição de outra vez partires – assim parece o poema ordenar. Começar constitui uma disponibilidade interior de amplitude máxima, a abertura para os caminhos da diferença e da junção que se entrecruzam no real do texto e no real da vida, se assim podemos dizer, no real, absoluto ou não, que se faz nesse trânsito constante entre vida e linguagem que é o caminho da poesia. Viagem que parece ser interminável, por definição, até porque a frase não é encerrada pelo ponto final, ficando em aberto a possibilidade da sua infinita continuação. A sonoridade, mais uma vez, reforça, confere evidência: “ama”, “como”, “começa”. Amar, comparar e começar tornam-se sinónimos. Amar, descobrir novas realidades aproximando os termos

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SOBRE “LEVA-ME ÀS COSTA – DESABITAR, ILUSTRAÇÕES DO QUOTIDIANO”, DE SANDRA RODA PEDRO X AVIER MENDONÇ A

Se o autor tivesse morrido, certos trabalhos artísticos seriam impossíveis. Mesmo correndo o risco, com esta afirmação, de simplificar uma ideia que não pretende tanto, no sentido em que a expressão dele, do autor, é sempre reconhecida. Se o autor for aquele que perdeu o controlo sobre o seu discurso, sim, morreu e nunca esteve vivo. Se for o que está na sua obra, meus caros, ei-lo em todo o seu esplendor. Um esplendor do quotidiano, coisa que parece impossível, mas que desponta na forma de delicadeza, autoironia e sarcasmo, em “Leva-me às Costa – desabitar, ilustrações do quotidiano”, de Sandra Roda. Aí vê-se como a distância do eu ao eu nos salva da banalidade. Um corpo que se observa como a um deus e conhece todos os seus defeitos para os resgatar um a um da insignificância. O desprezo que temos pelo quotidiano não se compagina com o tempo que ele dura. Todo o tempo é demasiado tempo para a indiferença. Na realidade, é lá que se desenrola a tragédia que nos torna grandes - não à partida, mas a partir de um certo olhar, sem complacência, com a verdade possível. Trata-se da honestidade de reconhecermos uma faca na garganta enquanto cantamos a leveza do amor, da saudade, da memória, da terra, da habitação. Há um desconforto no ser que respira sabendo que cada inspiração corresponde a um esforço orgânico de uma monumentalidade que não se comporta em consciência, só em natureza. Essa honestidade é a ciência humana que nos resta. É esta que descobrimos. Alguém ou alguma coisa tem sempre que nos levar às costas. Somos demasiado pesados com o nosso bem-estar. Há na felicidade que se basta uma dificuldade lógica. O Universo não se engana. A hipótese de gente feliz é da ordem da loucura, que acontece. O resto é fingimento. Na demência do dia

encontramos uma gracinha. Por lá precisamos de imagens onde possamos repousar como um ponto de chegada que finge a espontaneidade da dádiva. Um belo fingimento. Daí as palavras. Elas eram precisas porque há coisas que têm que ser ditas, que não podem ficar escondidas só para suportar uma dramaturgia alegre. É bom termos cenas compostas, mas a paciência tem limites. É preciso usar um pequeno alfinete que não chegue a cravar-se na pele mas que cause incómodo, até dor. Como uma melga ou o bom do moscardo. Ou então fazermos um escândalo no casamento familiar, com uma bebedeira debochada. Não nos exijam mais etiqueta. Deveríamos ter todo o direito ao grito, à irrupção nervosa. O desdém que a sociedade devota ao sofrimento não é compensado pela comiseração. Aliás, a comiseração só serve para continuar a expelir a dor alheia da ceia de Natal. O peru é histérico, não sabiam? E ser homem ou mulher é algo que nos acontece e se arrasta em cima de nós como educação. Podemos dar cabo disto tudo. Só não damos porque não queremos. A desilusão é a consequência honrada de quem se deu à humanidade. A quis ser, ainda que desajeitadamente. Temos que reconhecer a beleza do projeto. A ingenuidade é meio caminho para a sabedoria. Meio. Depois vem a cicatriz, que faz o resto do percurso. É como riscar um carro. O dono refila, mas o automóvel continua a andar, não se preocupem. Enquanto respirarmos vamos aguentando. O oxigénio é um bom critério de vida. As nódoas negras que os desconhecidos apontam na nossa pele durante a viagem são um labirinto onde ninguém deve entrar. Não vale a pena. Seria ridículo e pouco higiénico. Servem para nos apresentarmos, para sorrirmos com o charme da maturidade. E isso


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dá-nos um encanto especial onde cabe uma felicidade que é feita à nossa medida. Podemos finalmente ronronar como os gatos e deixar de pintar o cabelo. O autor que não morre fica mais forte. Desabitar é trazer uma caixa de terra para um novo lugar, lá descobrir gente que não sabe o alcance da perfeição e fazer uma reconstrução de todos os momentos, com novos enquadramentos e passos de magia. Amanhã voltaremos a casa. Essa promessa abre os braços a toda a cronologia, do zero ao infinito. Pelo caminho vamos construindo os vestígios da habitação desabitada. O dia a dia tem paredes abertas às vozes dos outros, onde encontramos a nossa própria voz, que gravamos como uma descoberta ao espelho. Se tudo isto serviu para montar pedaços e no final encontrar o que já estava no princípio, então apenas valeu pela obra. Se a construção é radical a partir de uma desconstrução metódica que o demiurgo brinca em nós, então valeu pela obra e pelas pantufas que confortam o corpo final. Se isto é um sonho aleatório, então vale tudo. Se um dia tivermos coragem para tudo, o esplendor do quotidiano será um espetáculo e não uma luz que nos surpreende. Da ranhura da janela que aqui vemos entra uma adivinha que nos questiona sobre um rosto de costas. Ninguém sabe quem é. Também não interessa saber quem é. O que é importante é percebermos que há um gesto que se debate com a conquista da liberdade. A sua presença numa sala pode ser magnífica. Cada movimento prometido e enraizado num desenho ou numa frase, numa faca ou numa tábua de pregos, num caderno ou num traço colorido, é uma pequena escultura difusa que nos deixa mensagens para decifrarmos. É bom saber ler um encontro com um desconhecido e ainda assim ficar muito por dizer.

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Paulo Barros

Desenho impresso #1 2 Fev. 2014 - 2 impress達o 6 Fev. 2014 - 2 impress達o Tinta de offset sobre papel 84x60cm





LITERATURA

«VOLTEMOS A ISTO, À CONTAGEM DOS ERROS» PEDRO EIR A S

Não tenciono ser demasiado claro a respeito de coisa alguma. (Herberto Helder, Apresentação do Rosto, 1968: 43)

E eu citava demais. Tinha influências demais. E isso até me manietou um bocado. (...) Até que descobri (...) aquele célebre ensaio do Eliot em que ele diz: fales o que falares – o «Tradition and Individual Talent», não é? (...) Se conseguires repetir bem um verso de Homero – porreiro! Não há outra coisa. Não há nada de novo. (Rui Knopfli, entrevista concedida a Michel Laban, 1987: 510)

U.E. – Tenho um fascínio pelo erro, pela má-fé e pela estupidez. Sou extremamente flaubertiano. Tal como o Jean-Claude, adoro a idiotia. (Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, A Obsessão do Fogo, 2009: 130)

Voltemos a isto, à contagem dos erros (José Miguel Silva, Erros Individuais, 2010: 11)

Os meus passos são da errância que o piso incerto pisei julgando-o certo mas já os entrevejo à distância. Por que ermos me caminhei, por que anos de inconstância? (Daniel Jonas, Passageiro Frequente, 2013: 89)

Voltemos Eu sei, eu sei. Tem medo de cometer erros. Não tenha. Os erros podem ser proveitosos. (Ray Bradbury, Fahrenheit 451, 1953: 117)

A história de uma pessoa é a história das suas falhas, percebes? Não daquelas pequenas coisas, de mais dinheiro ou menos dinheiro, da escola pior ou melhor, não, falha é quando um de nós deixa de ter significado para outra pessoa (Carlos Alberto Machado, Hipopótamos em Delagoa Bay, 2013: 239)

Fazer tolices é tão bom – fazer asneiras!... (Mário de Sá-Carneiro, carta a José Pacheco, 1916: 104)


eu devia ter tentado o voo porém faltava-me o equilíbrio; devia ter optado pelo arroubo todavia não sabia preces; não tinha a palavra de salvar, a senha que consagra e exonera; só tinha este corpo para entrar e um tacto insolente para abrir. (Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar, 2010: 16)

Voltemos

No meu trabalho para o Professor Story, (...) A minha argumentação baseava-se no significado das palavras gregas e era um pouco retorcida. Tinha a certeza de que o Professor Story iria apreciar a explicação, uma vez que sabia que ele era um bom erudito cristão, obviamente incapaz (tal como eu) de pensar que pudesse haver na Bíblia algo parecido com um verdadeiro erro. Mas, no final do meu trabalho, ele fez um simples comentário de uma linha, que me atingiu em cheio. Escreveu: «Talvez Marcos tenha simplesmente cometido um erro.» Comecei a pensar no assunto (...) Finalmente, concluí: «Hum... provavelmente, Marcos cometeu um erro.» Feita esta admissão, as comportas abriram-se. Pois se podia haver um pequeno erro negligenciável no capítulo 2 do Evangelho de Marcos, também poderiam existir erros em outras passagens. (Bart D. Ehrman, Os Monges que Traíram Jesus, 2005: 21)

Tais erros, acrescentou ele interrompendo-se, são inevitáveis desde que comemos da Árvore do Conhecimento. Porém o portão do Paraíso está fechado e o querubim ficou lá atrás; teremos de dar a volta ao mundo e ver se há porventura uma entrada aberta nas traseiras. (Heinrich von Kleist, “Sobre o teatro de marionetas”, 1810: 138)

Nada seria mais condenável do que rejeitar ou renegar uma verdade com o único pretexto de ela parecer nova, ou adoptar os erros unicamente por eles serem antigos. (Francisco Xavier de Oliveira, Seguimento do Discurso Patético [sobre as Calamidades Presentes Sucedidas em Portugal], 1757: 81)

O ERRO

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O honesto Dacier faz isto várias vezes: para ele, Aristóteles tem razão, não porque tenha de facto razão, mas porque se trata de Aristóteles.

LITERATURA

(Gotthold Ephraim Lessing, Dramaturgia de Hamburgo, 1767-8: 70)

GALILEU Andrea, tens de aprender a raciocinar com mais cautela. Dá-me uma agulha de ferro. Uma folha de papel. O ferro é mais pesado do que a água? Andrea Sim. Galileu coloca a agulha sobre uma folha de papel e põe-a na água. Pausa. GALILEU O que se passa? FEDERZONI A agulha flutua! Santo Aristóteles, eles nunca o experimentaram. (Riem todos.) GALILEU Uma das principais causas de atraso na ciência é, normalmente, julgar que já se sabe tudo. Não é sua finalidade abrir uma porta da sabedoria infinita, mas sim limitar o infinito erro. Tomem as vossas notas. (Bertolt Brecht, Vida de Galileu, 1939: 133-4)

O que quero dizer, relativamente à ciência, é que para criar uma nova teoria é preciso ser louco. (Gregory J. Chaitin, Conversas com um Matemático, 2002: 76)

uma entrada aberta nas traseiras Ao retirar-me, ia fazendo comigo esta reflexão: «Sou, sem dúvida, mais sábio que este homem. É muito possível que qualquer um de nós nada saiba de belo nem de bom; mas ele julga que sabe alguma coisa, embora não saiba, ao passo que eu nem sei nem julgo saber. Parece-me, pois, que eu sou algo mais sábio do que ele, na precisa medida em que não julgo saber aquilo que ignoro.» (Platão, Apologia de Sócrates, s/d: 24)

Mas, logo que terminei este ciclo de estudos, no termo do qual é costume ser-se acolhido na categoria dos doutos, mudei inteiramente de opinião: porque me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. (René Descartes, O Discurso do Método, 1637: 7)

Nada é mais simples do que esta prova; e o Senhor Descartes só caiu aqui em erro porque se fiava demasiado nos seus pensamentos, mesmo quando ainda não estavam suficientemente maduros. Mas espanto-me que, depois, os seus seguidores não se tenham apercebido de tal erro; e temo que comecem, pouco a pouco, a imitar alguns peripatéticos, que eles ridicularizavam, e que, como eles, se acostumem a consultar mais os livros do seu mestre do que a razão e a natureza. (Gottfried Wilhelm Leibniz, Discurso de Metafísica, 1686: 47-8)

não julgo saber aquilo que ignoro As tuas verdades e as tuas conclusões científicas encontram-se directamente ligadas às tuas metodologias. No absoluto nada é verdade. Cada coisa é verdade de acordo com uma certa metodologia. Todas as hipóteses podem ser verdade pois podemos encontrar uma metodologia que as faça verdadeiras. – Dá-me uma mentira e eu encontrarei a metodologia capaz de a transformar em verdade. O oposto é ainda mais fácil: – Dá-me uma verdade e eu encontrarei a metodologia capaz de a transformar numa mentira (num erro). (Gonçalo M. Tavares, Breves Notas sobre Ciência, 2006: 126)


– Tem-se a impressão de que cada vez que é levado a tomar uma posição, você retira-lhe a importância pela ironia ou pelo sarcasmo. – Sempre. Porque não acredito nela. – Mas em que acredita? – Em nada! A palavra «crença» é um erro também. É como a palavra «julgamento». São dados terríveis sobre os quais o mundo está baseado. Espero que, na Lua, não seja assim. – Todavia acredita em si? – Não. – Nem isso? – Não acredito na palavra «ser». O conceito ser é uma invenção humana. (Marcel Duchamp, Engenheiro do Tempo Perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne, 1966: 137)

Sobre isso, solto a resposta do discurso analítico à incongruência da pergunta: que posso saber? Resposta: nada que não tenha em todo caso a estrutura da linguagem, de onde resulta que até onde irei nesse limite é uma questão de lógica. (Jacques Lacan, Televisão, 1974: 65)

Galileu, vejo-te seguir um caminho terrível. É uma noite infeliz, esta em que o homem vê a verdade. Hora de cegueira, em que ele acredita na razão humana. De quem se costuma dizer que caminha de olhos bem abertos? Daquele que caminha para a perdição. Como é que os poderosos deixariam andar por aí livremente alguém que soubesse a verdade, mesmo que fosse só a verdade acerca dos mais longínquos astros! Então tu julgas que o Papa ouve a tua verdade quando lhe disseres que ele está errado, e que não ouve que está errado? Julgas que se limitará a escrever no seu diário: 10 de Janeiro de 1610 – Céu eliminado? (Bertolt Brecht, Vida de Galileu, 1939: 57)

Que pode um chefe contra um exército de supersticiosos? (Christa Wolf, Cassandra, 1983: 69)

É difícil ser deusa entre campónios. (Joyce Mansour, Júlio César. História nociva, 1956: 16)

O mestre mais importante da cidade queria desenhar uma circunferência, mas errou e acabou por desenhar um quadrado. Pediu aos alunos para copiarem o seu desenho. Eles copiaram, mas por erro, desenharam uma circunferência. (Gonçalo M. Tavares, O Senhor Brecht, 2004: 62)

Voltemos Depois de engolir, com dificuldade, parte do pão molhado, levantou os olhos para eles. Viu-os tal como eram: limitados, de vidas mesquinhas, sem qualquer esplendor de gestos ou coragem. Mas eram o que eram, partes lentas e inevitáveis do mundo natural. Nobreza não tinham, mas o medo gerava neles compaixão. E o estranho sentiu, de novo, compaixão deles, porque sabia que reagiriam melhor à brandura e responderiam, também, com brandura atabalhoada. O ERRO

(D. H. Lawrence, «O homem que morreu», 1920: 132-3)

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SÓCRATES (saindo de casa, furioso) Pela Respiração! Pelo Caos! Pelo Ar! Nunca vi homem nenhum tão bronco como este, tão azelha, tão desajeitado e tão esquecido. Em pleno aprendizado, dumas coisitas de chacha, pumba: varrem-se-lhe da memória, mesmo antes de as ter aprendido. LITERATURA

(Aristófanes, Nuvens, 423 a.C.: 379)

Primeiro, falei-vos em parábolas e não entendestes. Agora também falo-vos abertamente e não compreendeis. (Apócrifo de Tiago, s/d: 287)

Mas estas palavras que nos dizes são ridículas para o mundo e desprezíveis, uma vez que não são compreendidas. Como é que iremos pois pregá-las se estamos no mundo? (Livro de Tomé, o Atleta, s/d: 270)

O que vou expor é o que se ensina aos estudantes de Física no terceiro ou no quarto ano da universidade – e ninguém pense que vou explicar isto de maneira que se entenda. Não, não serão capazes de entender. Então por que motivo aborrecê-los com isto? Porquê ficarem aqui sentados este tempo todo se não compreenderão o que vou dizer? O meu trabalho é convencê-los a não virarem as costas só porque não entendem. É que os meus estudantes de física também não percebem. Eu também não. Ninguém percebe. (Richard P. Feynman, QED. A estranha teoria da luz e da matéria, 1985: 26)

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. (Mia Couto, Jesusalém, 2009: 56) «Quem, alguma vez, mandou o seu filho subir a uma palmeira, para apanhar frutos, e depois pegou num machado e deitou a árvore abaixo? Mas, naquele dia, algo semelhante acontecera aos olhos de todos.» (Chinua Achebe, A Flecha de Deus, 1964: 254)

Um aluno e um professor. O aluno não deixa que lhe expliquem nada porque interrompe continuamente com dúvidas, por exemplo, acerca da existência das coisas, significado das palavras, etc. O professor diz: «Deixa de me interromper e faz como eu te digo. Até agora as tuas dúvidas não fazem sentido algum». (Ludwig Wittgenstein, Da Certeza, 1969: § 310)

Filho, meu filho, desiste de lutar contra mim. Há mais de mim em você que de você mesmo. (Dalton Trevisan, Cemitério de Elefantes, 1964: 44)

quase tudo em mim é obra alheia (Sebastião Alba, A Noite Dividida, 1981: 84)

– Sabe… estes olhos eram do meu pai, disse eu, desculpando-me, explicando-me e temendo também… – não pude resistir à tentação de os utilizar… eu sei que não estão bem adaptados, mas não é só o sentimento e o respeito, são também as dificuldades… espero que compreenda. – Sim, sim! disse o comerciante de olhos de vidro – os seus olhos vê-se que não são seus, o senhor usa-os muito mal! – Pois é, disse eu, e além disso tive um pequeno acidente há dias e creio que troquei o esquerdo pelo direito, ou vice-versa, na pressa de me recompor e isso causou uma perturbação indescritível na minha percepção mas que, vejo agora, pela sua indisposição, perfeitamente verificável… – Tudo isso são acidentes irrelevantes, retorquiu o comerciante de olhos, com entusiasmo – o senhor não deve insistir neles. O facto importante é que os seus olhos são do seu pai. O senhor precisa de escolher um de dois caminhos: ou se transforma realmente no seu pai, ou adquire novos e propriamente seus, olhos de vidro. A escolha é inteiramente sua, meu amigo. Não pense nem por um momento que lhe desejo vender olhos novos. Além disso o desajuste é mínimo e só eu com a minha longa experiência de olhos de vidro posso notar e impressionar-me com tal facto… (E. M. de Melo e Castro, Antologia para Inici-antes, 2003: 200)


Pela primeira vez confessei o que há muito me apertava no peito: eu herdara a loucura de meu pai. Por longos períodos era atacado de uma cegueira seletiva. O deserto se transferia para dentro de mim, convertendo a vizinhança num povoado de ausências. (Mia Couto, Jesusalém, 2009: 283)

Meu mestre e meu guia! A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo, Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. Meu coração não é nada, Meu coração está perdido. (...) Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso, Que poderia ao menos vir a agradar, E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano! (Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, poema sem título, iniciado pelo verso «Mestre, meu mestre querido!», 1928: 246-7)

Quero de volta brancas todas as minhas cartas, inaudível o meu nome, a minha graça fechada: e eu me estenda sobre o quadrante dos dias, e reconduza a vida à meia-noite. (Cristina Campo, O Passo do Adeus, 1956: 37)

E quando se restitui a vista ao cego, ele vê na terra demasiadas coisas mas maldiz aquele que o curou. (Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, II, 1883b: 153)

Depois de ter assim falado, Zaratustra emudeceu como um homem que ainda não disse a última palavra. Sopesou demoradamente o bastão, como que perplexo. Por fim falou assim e a sua voz estava alterada: «Agora, meus discípulos, vou-me embora sozinho. Ide-vos vós também para longe daqui e ide sozinhos. Tal é a minha vontade. Na verdade, sou eu que vos dou este conselho: afastai-vos de mim e precavei-vos contra Zaratustra. E melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado! (...) É mal recompensar um mestre a ficar sempre na posição de discípulo. E por que não quereis desfolhar as flores da minha coroa? (...)» (Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, I, 1883a: 87-8)

Os bons conselhos chegarão tarde. (Nostradamus 1555: 116)

No final, um verdadeiro Mestre deve estar só. (George Steiner, As Lições dos Mestres, 2003: 88)

Tudo quanto sei publicamente, devo-o a companheiros mortos e a Mestres secularmente mortos, pois os Professores vivos foram mestres em escorraçar. (Almada Negreiros, Orpheu 1915-1965, 1965: 18)

O mestre mostrou-me o caminho de regresso A lua estava suspensa como redonda lanterna (Han-Shan, O Vagabundo do Dharma, s/d: 38)

O ERRO

Desocupado visitei um antigo mestre A bruma e as montanhas sucediam-se em camadas

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LITERATURA

Agora que os deuses partiram, e estamos, se possível, ainda mais sós, sem forma e vazios, inocentes de nós, como diremos ainda margens e como diremos rios? (Manuel António Pina, Como se Desenha uma Casa, 2011: 378)

– não tivemos de facto tempo para sermos maus filhos e já somos maus pais (palavras ilegíveis como acima) (Pier Paolo Pasolini, Poemas, 1970: 16)

ACHEBE, Chinua 1964 Arrow of God; ed. ut.: A Flecha de Deus, Lisboa, Edições 70, 1979. ALBA, Sebastião 1981 A Noite Dividida, Lisboa, Edições 70. Apócrifo de Tiago s/d in Evangelhos Gnósticos – Biblioteca de Nag Hammadi II, Lisboa, Ésquilo, 2005: 284-92. ARISTÓFANES 423a.C. ed. ut.: Nuvens, in Comédias, I, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra / INCM, 2006: 323-453. BRADBURY, Ray 1953 Fahrenheit 451; ed. ut.: Mem Martins, Publicações Europa-América, 2002. BRECHT, Bertolt 1939 Leben des Galilei; ed. ut.: Vida de Galileu, Lisboa, Portugália Editora, 1970. CAMPO, Cristina 1956 Passo d’Addio; ed. ut.: O Passo do Adeus, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002. CASTRO, E. M. de Melo e 2003 Antologia para Inici-antes, Porto, Editorausência. CHAITIN, Gregory J. 2002 Conversations with a Mathematician. Math, art, science and the limits of reason; ed. ut.: Conversas com um Matemático. Matemática, arte, ciência e os limites da razão, Lisboa, Gradiva, 2003. COUTO, Mia 2009 Jesusalém; ed. ut.: 9ª ed., Lisboa, Caminho. DESCARTES, René 1637 Discours de la Méthode; ed. ut.: Discurso do Método, editado com As Paixões da Alma, 17ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1992. DUCHAMP, Marcel 1966 Ingénieur du Temps Perdu (Entretiens avec Pierre Cabanne); ed. ut.: Engenheiro do Tempo Perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne, 2ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2002. ECO, Umberto, e CARRIÈRE, Jean-Claude 2009 N’Espérez pas vous Débarrasser de vos Livres; ed. ut.: A Obsessão do Fogo. Conversas conduzidas por Jean-Philippe de Tonnac, Lisboa, Difel, 2009. EHRMAN, Bart D. 2005 Misquoting Jesus. The story behind who changed the Bible and why; ed. ut.: Os Monges que Traíram Jesus. A história dos copistas que adulteraram a Bíblia, Lisboa, Lua de Papel, 2006.

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O ERRO

WITTGENSTEIN, Ludwig 1969 Über Gewissheit; ed. ut.: Da Certeza, Lisboa, Edições 70, 1998.

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Jorge Aguiar de Oliveira


LITERATURA LONGE DOS TEXTOS um tampo com migalhas a luz em cascata sobre a desordem infeliz dos empregados os sinais percorrem o visível não os decifra ninguém cegos pelo numerário encerrados nos prédios suburbanos e aqui rente à velocidade dos automóveis asilados do vento e da noite

achamo-la viçosa cozemo-la com os nímios provimentos penamos baralhando os rostos parecidos que têm os focinhos em redor e tombamos relutantes do acostumado casulo do corpo sem saber que o que sobra nele galga o cume do sobressalto perfura o nexo e o não

Miguel-Manso na auto-estrada dos aspectos uma área de serviço é estação de que estafada via sacra? os insectos sobem descem o vidro olhamos o reflexo que faz nele o nosso cadáver sonolento cercado de reclames longe dos textos e do arroubo que celebram mas jamais poremos os corpóreos pés em tamanha pátria prometida que da carne nada se aproveita e tornámos o enigma repartido pelos dias curvados pelo clima sem saber evitar a lâmpada das desoras a que nos habituámos distraídos da parábola nas capitais do mundo colhe-se a planta falseada


UMA ÚNICA VEZ

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comecemos por este homem que diz eu segrego substâncias que te põem a meu favor ora isto aconteceu uma única vez ela disse-lhe ai meu amor que eu estou muito alta mas não foi só isso era o timbre da voz dela, a maneira de falar de vestir, de caminhar de comer a sardinha na broa a dança do ventre ficou ridícula ela era o quarentão mais cheiroso do universo ah passarelas ah lembretes ah soberbas encadernações ah circunstâncias incríveis ah gastos superiores enfim, frases que mudam o mundo basta uma

Que não seja contemplado com o prémio, que jamais saia da tômbola, devidamente ordenado e cantado, o três oito e setenta e cinco que o meu avô e antes o pai dele compravam numa tabacaria ao Largo de São Paulo e jamais lhes saiu. E à cautela tapo os olhos com a cautela. E peço que saia outro número, a outro o número certo, nem à terminação aspiro. E que me perdoe os pecados. Agora e na hora da minha sorte. José Ricardo Nunes

Nuno Moura

O ERRO

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LITERATURA

FECHADO PARA BALANÇO Culpo-te por não te amar em quase nada e cuspo-te cada letra da culpa que é a tua. É um xadrez que jogamos sempre juntos rei branco em casa preta, adversários velhos a mastigar estratégias de serão. Culpo-me de te amar no final em quase tudo e tu culpas-te por me culpar por me não amares. Trazemos, então, o livro dos registos e fazemos contabilidade, noite dentro. Não sei como serão outros amores mas o nosso é um longo livro nocturno dividido em deves em haveres por um leve traço a sépia debotado. Rasuramos e apagamos e voltamos a somar, passamos cheques, recolhemos dividendos: numa matemática cega, sem mais valias; que nunca vão certas as contas deste amor. Fazemos batota com as pedras do xadrez: escondemos peões nas mangas largas, uma rainha a mais entre as fraldas da camisa… sussurramos bluffs embriagados sob a mesa, duas torres arrasam uma diagonal inteira e os cavalos sem freio a arquejar no tabuleiro; O nosso jogo-de-xadrez é um exército desleal de armas de arremesso. Ao final da noite somos dois reis sozinhos preto e banco a remoer o xeque das contas repetidas conferimos, então, os números que nunca batem certo e fechamo-nos com um aviso à porta, gasto e rasurado: fechado para balanço do amor. Rita Taborda Duarte


OS CANTOS AO DICIONÁRIO

Para ti, agora.

Revolvi os cantos ao dicionário: só cotão e pó as palavras largam sempre tanto lixo… procurava uma palavra que te desse… guardara-a, para ti, quando viesses mas não sei já onde a pousei talvez entre uma metáfora morta e um oximoro gasto, muito velho, dizendo qualquer coisa como esta : «a palavra que mais diz é aquela que calamos no silêncio», ou outra coisa, até, mais banal ainda Da metáfora, não encontrei nem sobras, devo tê-la perdido, por aí, no discurso vulgar do dia a dia. Acontece-me , acontece-me muito, esquecer-me de palavras no fundo da carteira, desfeitas entre bilhetes de metro, sob o peso dos dias, das chaves do carro. Passo tanto tempo a perder palavras como o tempo que gasto em procurá-las Depois… o cansaço de as inventar de novo, de as soletrar de novo, tropeçando em consoantes nas vogais … Tão difícil, voltar a dizer as palavras que perdemos. Mentindo-lhes sentidos novamente… Por isso percorria à pressa o dicionário, hoje Para procurar uma outra palavra que te desse, ainda antes que chegasses, de manhã A palavra que te queria dar, perdia-a não há tempo agora de a reescrever assim à pressa… manhã alta, já, deves estar mesmo aí, a aparecer Revolvi o dicionário: tanto pó na esquina das palavras. Sempre tudo em desalinho: nem uma sílaba consigo ter em seu lugar. Trago a língua tão desarrumada, tanto desleixo, sempre tudo tão sem jeito E tu, aí, quase à beira de chegar Tirei uma mão cheia de palavras ao acaso Concha, lago, ternura, um pedaço arrancado à bruta da palavra amor

Rita Taborda Duarte

O ERRO

Mas tu chegaste-me entretanto, com um perfeito ramo de frases feitas fingiste até nem reparar na confusão e deitámo-nos assim mesmo na minha palavra ainda por dizer .

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LITERATURA A LENDA DA CIDADE SEM O RIO Da tépida cidade sem o rio Cantavam a história sem dor Palavras de silêncio ferido Por meio de uma flauta de pastor. O facto de fluírem no papel Não seria razão de se perderem. O mergulho no mar para além dele Seria o motivo de as lerem. Escrevia a alegria de escrever Sem esforço e não para qualquer prémio. A escuridão é ombro só por ser. Em merecer o sol já houve génio. Por não ter para si qualquer estuário Sofre agora muito a cidade. Recolhe só da névoa, imaginário Brilho de inefável claridade. Para frutificar o seu desejo Juntaram-se à roda muitos sábios. Em Orfeu e Eurídice almejo. Confio em palavras mas com lábios. Dizer qualquer pessoa o mistério... O nome que em si o cantaria Intangível mas nunca esotérico Celebrava já eu em melodia. O amante de noite é um dia E desvenda alguém, não a invade. Em dádiva que tanto a ensombrecia Do segredo acordou logo a cidade. A partir de uma única Ideia

Ilumina o poema Bramidor Todavia será a deusa Geia Uma única noite de amor. O rio que a cidade não detém É o único sobre o paraíso. Era Orfeu a cantar para ninguém E agora a luz doce do riso. Habitaria a margem de um tempo Que desagua à beira do mar. A montante a calma é só vento E não há tempestade em acabar. O lugar onde estou vai para longe Mas é fim o destino que me traça E só me sinto perto de ser hoje No coração tão breve de quem passa. Orfeu já habitara o desdém. Cantara o amor como artífice. Na urbe não sabia do além Ou um beijo seria já Eurídice? Contudo o rumor de uma nascente Um dia se tornou torrencial E os outros ribeiros descendentes Reduziram Orfeu a um mortal. Lembrarei do olvido a melodia E não só o ruído da cidade Ou então o correr que salmodia Na distância rosto de saudade. Porém Deus com revolta o levou Não ideia eterna mas só rio E o tempo aos outros só deixou Da certeza polar do desvario.


Agora já só oiço no inverno O seu perfume pela casa dentro. De Orfeu o rio corre no eterno E os outros pararam mas no tempo. Vencerá não por glória sobre o nada Mas por algo de si que o supera. Escuto o sinal: pedra na água; Último e primeiro que ele espera. Vingança não trará o meu poema Nem sequer a ausência balida. Não vem de qualquer causa o entimema. A vida nascerá da própria vida. De pouco valerá a profecia Se a outro horizonte antevejo: A terra falará connosco um dia Contudo só por meio de um beijo. O rio que não há e eu cantei É tempo, não Ideia, improviso Mas da cidade e dele vislumbrei: É o único sobre o paraíso. Joel H.

O ERRO

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LITERATURA

PERDER O FIO NÉLIO CONCEIÇ ÃO

“CRIADAS DE QUARTO COMO VOCÊS ESTÃO ACOSTUMADAS A ESPIAR PELO BUR ACO DA FECHADUR A, E ESTE HÁBITO DÁ FORMA À MANEIR A COMO PENSAM, A PARTIR DE UM PORMENOR INSIGNIFIC ANTE QUE VÊEM NA REALIDADE DEDUZEM LOGO O TODO, CHEGANDO A UMA CONCLUSÃO TÃO GR ANDIOSA QUANTO ERR ADA.” K AFK A, O C ASTELO

Depois de muitos anos a sentir que a vida lhe passava ao lado, Nina resolveu finalmente tomar uma posição. Endireitou-se muito na cadeira, olhou-o fixamente, e deixou que as palavras saíssem bombeadas pela parte do seu coração que só conhecia dureza: – Charles, a minha paciência está a esgotar-se. Charles levantou-se, encaminhou-se para a porta e virou-se antes de a abrir. – Sabes bem que as circunstâncias não me têm deixado grande margem de manobra. – Claro que sei… E tu sabes que hoje é a quinquagésima vez que vens aqui a casa? Charles sorriu. – Só podes estar a brincar… Contaste? – Sim, contei, há algum problema? As amantes têm muito tempo livre, o suficiente para se dedicarem a estas minudências. E Charles fez-se rato. Não tanto pelo facto de ela lhe relembrar, mais uma vez, a sua condição de amante, mas sobretudo pela forma acutilante e irónica como empregou a palavra “minudências”. Ao mesmo tempo que abria a porta, Charles foi arrebatado por uma imagem recente: há cerca de uma hora atrás, Nina estava com as mãos e os antebraços apoiados sobre o tampo da mesa da sala, mesa onde repousavam uma garrafa de vinho e dois copos cheios. Penetrava-a por trás, e cada gemido era acompanhado por uma nova agitação do vinho nos copos. Desejo feito em vagas. Lembrou-se de que, a dado momento, as pregas que se desenhavam entre as omoplatas de Nina lhe pareciam líquidas como o vinho. E progressivamente tudo se foi tornando

líquido: a pele, os membros, a mesa, as paredes, a respiração. Agora, ao relembrar-se, tudo no seu corpo e à sua volta era rígido, e dizia para si próprio que aquela gaja era doida. E que provavelmente a amava. Era a sua flor do caos. * Durante a noite, Nina teve um sonho terrível, daqueles que nos fazem mergulhar nas atmosferas asfixiantes do passado, como uma força incontrolável que de nós se apodera e que, se não for travada a tempo por intermédio de uma outra força que se lhe sobreponha, pode acompanhar-nos ao longo de um dia inteiro, senão mesmo ao longo de vários dias. A atmosfera deste sonho formara-se em torno do seguinte acontecimento: por detrás da porta do seu quarto de infância, havia um pombo aninhado, que tinha uma asa esticada e partida. Ela pegava no pombo e sentia o bater do seu coração cada vez mais lento. Até que parava. Acordou do sonho com a sensação de que havia feito algo de irremediável, e escreveu a lista de tarefas para o dia seguinte. Era preciso travar as atmosferas incontroláveis. Nina gostava de listas. Fazia listas para tudo e mais alguma coisa. Algumas úteis e convenientes, outras de utilidade questionável e assentes em motivações que ela própria desconhecia. Na primeira categoria, cabiam as listas do supermercado, as listas de tarefas para o dia-a-dia ou as listas dos objectos encaixotados aquando das mudanças. Na segunda categoria, cabiam as listas das palavras mais relevantes ouvidas no autocarro, no percurso de casa para o trabalho (muitas vezes divididas em função


Nikolay Komitov

das respectivas ruas ou áreas da cidade), a lista das pessoas das quais ouvira a palavra fecundação, a lista dos dias em que se sentia profundamente sozinha (e respectiva descrição meteorológica). Enumerar parecia-lhe a melhor forma de ordenar o mundo, bem como de dar uma certa higiene às suas acções. Na verdade, sempre que passava algum tempo sem elaborar uma lista sentia que algo ficava em perigo.

Nina perguntou se podia mexer. O vendedor disse que podia, mas com cuidado. Havia poucos objectos no baú, e nenhum deles particularmente atraente. Contudo, um caderno de apontamentos chamou-lhe a atenção. Nina abriu o caderno e de imediato uma folha caiu no chão. Num gesto irreflectido, pegou na folha e enfiou-a no bolso. Voltou a meter o caderno no baú e continuou o passeio.

* Na lista que escrevera ao acordar, a prioridade ia para uma visita à feira de velharias. Era domingo, o melhor dia para viajar no tempo. Nina também gostava de coisas velhas. Mas não se limitava a frequentar feiras de velharias ou lojas de antiguidades, por vezes entrava em casas abandonadas. As ruínas atraíam-na pela manifestação da lenta destruição do tempo, mas preferia o latejar dos alicerces da vida numa casa recentemente abandonada. O simples facto de estar nesses espaços provocava-lhe no peito uma desopressão equivalente à sentida no regresso a casa após uma longa viagem. Era domingo e Nina parou numa banca que vendia alguns livros e objectos antigos. Um desses objectos era um pequeno baú, vistoso mas desgastado, que tinha a tampa aberta. Segundo o vendedor, fora propriedade de um coleccionador, um grande viajante que morrera há pouco tempo. – Acabado de chegar ontem, faz parte de um lote que comprei ao sobrinho do coleccionador, um daqueles tipos execráveis que vendem uma herança como se vendessem uma palete de tijolos.

* De regresso a casa, entrou na cozinha, preparou um café, sentou-se à mesa e abriu a folha. Leu o seguinte: Atenas, 4 de Janeiro de 1962. Uma chuva miudinha sobre as ruínas da civilização. Hoje sonhei que me havia transformado num pássaro, mas tinha uma asa ferida. Um professor da universidade ajudou-me a fazer a tradução de um fragmento grego do século IV a. C., da autoria de Aspargito de Cnossos, personagem enigmática de que pouco se sabe. Fontes secundárias dizem que alguém com aquele nome terá pertencido ao círculo dos Epicuristas e, sem que se perceba bem porquê, terá também passado alguns anos em Esparta. A tradução é de um conjunto de preceitos que o próprio intitulou como “Manual de Sobrevivência”: O ERRO

1. Mergulha nos detalhes. Aprenderás a decifrar o caos. 2. Age como se as tuas acções fossem uma cauda de pavão: abrindo-se de forma harmoniosa, elas devem orientar-se para a beleza.

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LITERATURA

3. Aprende a controlar o suor e todos os sinais involuntários do corpo, impermeabiliza o olhar: estas são precauções fundamentais na caça e na vida social. A reserva é uma arma. 4. Antes de matares o teu inimigo, e naquele preciso momento em que ambos sabem que ele não terá salvação, olha-o bem nos olhos. Aprenderás o que há de mais essencial sobre o medo. 5. Nunca te masturbes antes de entrar em combate: os sinais do orgasmo mostram distensão e fraqueza. O guerreiro exercita-se tanto na tensão do arco quanto na tensão do corpo. 6. Nunca hesites em matar um assassino. 7. Se tirares a vida a um animal, fá-lo na maior intersecção possível entre o teu corpo e a tua alma. Se possível, procura sentir com as mãos a diminuição do seu ritmo cardíaco. Até ao fim. Não sintas pena, os animais pressentem-na e agarrar-se-ão penosamente à vida, na esperança de um afrouxamento da força do seu predador. Se te alimentares do animal, mastiga a sua carne da mesma forma, na maior intersecção possível entre o teu corpo e a tua alma: faz dos movimentos do teu maxilar uma reprodução dos ritmos da vida universal. 8. Não esperes nada dos outros. Evita, sobretudo, que te façam promessas. 9. Se abraçares o teu semelhante na intensidade apropriada, estabelecerás com ele uma harmonia inquebrantável. O amor nasce do e perdura através do equilíbrio entre a intensidade de dois corpos. 10. Segue estes preceitos como se eles só pudessem falhar. O erro é um desdobramento dos caminhos da vida. 11. Se te for claro que não consegues seguir estes preceitos, respeita a tua fraqueza. 12. Elimina todos os obstáculos que te impedem de atingir a felicidade. Nina recebeu estas palavras com arrebatamento. À medida que se ia aproximando do último preceito, o seu coração pulsava cada vez mais. Já não eram simplesmente os seus olhos que liam aquelas palavras, era uma voz poderosa e familiar que através delas lhe falava. Agora sim, sabia perfeitamente o que havia a fazer. * Foi à gaveta da cozinha e tirou a faca mais afiada. Guardou-a na mala e saiu de casa. Entrou no carro e dirigiu-se à casa de Charles. Sabia que na segundafeira de manhã ele tinha uma reunião na sede da empresa e que, portanto, já estava de viagem. Havia uma paz dominical naquela rua da periferia, naquela vivenda com o quintal bem arranjado. Embora Nina tivesse o coração acelerado, também para ele havia uma promessa de paz. Alguns pombos

pousados no beiral do telhado. Tocou à campainha. Sarah, a mulher de Charles, abriu a porta com o bebé ao colo, o qual começara entretanto a choramingar. Nina disse, num tom ríspido: – Preciso de falar consigo. Pode deitar o bebé? – Desculpe, mas quem é a senhora? Não a conheço de lado nenhum… – Ainda não conhece, digamos assim. É sobre o Charles, o seu marido. – O Charles. Mas… Aconteceu alguma coisa? Houve algum acidente? O choro tornou esta troca de palavras ainda mais tensa. – Espere aqui um momento, por favor. E encostou a porta. Deu a chucha ao bebé, embalou-o durante alguns segundos e deitou-o no berço. Ele calou-se. Dirigiu-se para a porta de entrada, mas no caminho assustou-se ao ver que Nina já havia entrado na casa e estava na sala de estar. – Penso que lhe havia pedido para esperar à porta… – Achei melhor entrar para termos mais privacidade. Ao dizer estas palavras, e fixando a mulher sem pestanejar, Nina pôs a mão dentro da mala e segurou o punho da faca. O momento do tudo ou nada. O obstáculo ali à frente, pronto a ser eliminado. – Então diga-me o que aconteceu. Mas os músculos do braço paralisaram-se-lhe. O bebé recomeçou a chorar. De forma atabalhoada, como se passasse para uma solução de recurso, disse: – Há dois anos que tenho um caso com o Charles. Ele prometeu-me que iria separar-se mas nunca o fez. Achei que devia saber isto. Tomada pela incredulidade, Sarah não disse nada. Nina começou a tremer de vergonha e saiu rapidamente da casa, sem olhar para trás. Sarah fechou a porta e voltou para junto do bebé, que chorava cada vez mais. Passadas três horas, Charles chegou ao hotel e telefonou à mulher, mas ela não atendeu. Após várias tentativas, decidiu ligar à sogra. Ainda a sogra de Charles não chegara perto da porta e já ouvia o choro do bebé. Tocou uma vez à campainha, mas nem sequer esperou para usar a sua chave. Sarah estava estatelada no chão da sala. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foram as visitas ao pediatra, quando Sarah e o irmão eram crianças: enquanto o médico a auscultava, demorava-se muito tempo junto ao seu coração, muito mais tempo do que com o irmão. Só mais tarde os exames vieram mostrar que ela tinha um coração fraco. * Nina voltou para casa desesperada. No dia seguinte foi incapaz de fazer listas. Aguardava com muita ansiedade a reacção de Charles. Sabia ter feito


explodir uma bomba cujos estilhaços desenhariam trajectórias imprevisíveis. Passados três dias, Charles telefonou-lhe. Precisava de vê-la. Ao entrar no apartamento, Nina percebeu que ele estava abatido e tinha olheiras profundas. A voz tremia-lhe. – Já sabes o que aconteceu? Nina ficou confusa. Desconhecia os efeitos da sua detonação, mas esperava da parte dele alguma agressividade, nunca tamanha fragilidade. – Não sei, mas gostava de saber. – A Sarah… Morreu no domingo à noite. O problema no coração… E não foi capaz de dizer mais nada. Nina ficou sem reacção. Ignorava se ele sabia da sua visita no domingo, se porventura a mulher lhe telefonara logo depois. Decidiu abraçá-lo. Charles acedeu, mas, com o decorrer dos segundos, foi percebendo que abraçava cada vez mais uma forma de repulsa. Ela, que sempre fora uma fonte de calor e sensualidade, era agora a personificação de um engano vital. Por isso, ao longo daquele abraço, foi-se instalando entre ambos uma ligeira distância, mas que talvez não tivesse manifestação espacial. Era uma intensidade que se esvaziava. Charles percebia que os seus corpos se afastavam da forma mais profunda que pode existir. Por sua vez, Nina sentiu algum desajuste, mas julgou tratar-se apenas de cansaço. Lembrou-se do número 9 da lista e fechou ainda mais o arco dos braços. Ele pensou: esta foi a última vez que nos abraçámos. Ela pensou: agora sim, vamos ser felizes.

O ERRO

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Paulo Barros

Desenho impresso #8 7 Fev. 2014 - 1 impress達o 10 Fev. 2014 - 1 impress達o Tinta de offset sobre papel 84x60cm





CRÓNICA

ERRO CRASSO RIC A RDO ROSADO

Vocês sabem como é? Um escritor inventa, não mente. O que lá vai na cabeça dele só a ele compete exteriorizar, se é errado, ou não, só a vós compete analisar. Hoje em dia não se escrevem cartas, trocam-se impressões. Trocar impressões é como «beber um café». Vamos «beber um café, um dia destes», quando estiver soalheiro, e uma esplanada qualquer nos convidar à conversa. Outras vezes é mais simples do que isso, escrevemos uns aos outros, nas redes sociais, falamos ao telefone, brevemente e, nos breves momentos em que até nos encontramos, uns “têm a sua pinta”, gesticulam, outros, são mais breves e reservados. Este ensaio não passa disso mesmo, uma colecção de excertos do quotidiano, acerca do que significa atribuir significado às coisas. As coisas por si só são o que são, se lhes quiserem chamar erros, estejam à vontade. “Outra vez? Já tínhamos falado acerca disso... Para além do mais «tenho que te avisar, que tudo o que te digo, ou que te escrevo, é errado» daí a importância de assumirmos que o erro é, tal como a constatação de que algo é falso, ou verdadeiro, uma suposição que supra-ordena o conhecimento, ou seja «se é errado, ou certo, só te cabe a ti, julgar por ti mesmo». Sei de quem fosse capaz de construir uma disciplina lógica inteira que me reduzisse as palavras ao que elas são, impulsos, ou outras que simplesmente por acreditarem, ou não, no que quer que seja, me repudiariam. Que interessa?”. “Estou tão só, não sei que fiz ou deixei de fazer para merecer tal solidão, devo ter falhado algures, pelo caminho, as pessoas deixaram de falar comigo.”. “Não creio que seja errado acreditar no que quer que seja, a moral, a justiça, têm muito que se lhes diga. Ainda ontem, o piso estava escorregadio, não fosse acelerar e passar o sinal no vermelho, o tipo de trás «que ainda por cima ia a falar ao telemóvel» tinha chocado comigo”. “O pai natal, porque é que não hei-de acreditar no pai natal? Porque os outros gozam comigo, porque

me chamam ingénuo? Porque nenhuma solução de nenhuma equação tem como resposta «pai natal»? É errado julgar que as coisas existem, se nunca as vimos, ou nunca ninguém as viu. O contentamento é um conceito abstracto, alguém o viu, alguém o comeu? Eu fico contente quando penso que vou receber prendas pelo natal!”. “Às vezes penso na morte. Não sei o que hei-de achar acerca da morte. Tenho medo da morte, desse enorme vazio que deve ser a não existência. Inquietame a sensação que posso ter cancro, ou que, um dia destes, vou a atravessar a passadeira e sou atropelado por um qualquer estafermo que não segue as regras, que atravessa com o sinal verde para os peões” “Já chegaram as novas peças J.? Estamos com a produção toda atrasada à conta de um erro teu. Podes crer que se fosse possível, te reduzíamos o salário a zeros, “imbecil”, fazes ideia do dinheiro todo que andamos a deitar à rua?”. “Ontem telefonei aos meus pais, não sei, ninguém me telefona, faz-me bem ouvir uma voz conhecida. Estão velhos, e eu também, estou a ficar velho, nota-se pela voz, estas coisas que com o tempo nos vamos habituando a fazer, a notar a idade pela entoação que é dada às palavras.”. “Não me venhas com essas tretas F., eu sei que ainda pensas na L., tanto tempo fora, na rua, em trabalho, pois, pois. Levas uma vida dupla. É sempre a mesma desculpa. Vou-me embora, de vez”. “Já ouviste falar em paradoxos? Se a própria lógica admite o paradoxo como uma realidade, o que dizer do erro, errar não significa nada. Há quem eventualmente acerte, por tentativa erro.”. “Não fosse um acidente, na volta ainda não teríamos descoberto a penicilina.”. “Estou desempregado há tanto tempo que já nem sei o que é isso de trabalhar à conta de outrem, chegar ao fim do mês e ter dinheiro para pagar as contas, sem problemas. Isto há alturas em que nos abatemos, é errado ficar assim, mas que há a fazer? É biológico.


“Porque é que não acreditas na minha palavra, o que é que a minha crença em Deus tem de irracional, eu não me ponho a questionar a tua crença na comutatividade da soma?”. “Meteorologia: ventos fortes e possibilidades de aguaceiro, alerta laranja para todo o continente, se conduzir tenha atenção ao estado do pavimento.”. “Hoje tive que levar o carro à oficina, consome mais óleo do que eu bebo água” “É a terceira vez que vejo o documentário, é uma análise bem desapaixonada e verdadeira do estado económico em que vivemos, uma desgraça.”. “Quero morrer, a vida não presta, sou um inútil. Salto, não salto?” “Dizem que sou louco? Não sou louco, nunca fui louco, não quero ser louco, não gosto que me chamem louco, vão chamar louco a outro qualquer seus... Loucos são vocês todos por me estarem a ouvir, sim, vocês todos, não se acanhem, estou a falar convosco, loucos, completamente loucos...”. “Desculpa H., hoje tenho que ficar em casa, estou de castigo. Tive insuficiente a matemática, tenho que ficar em casa a fazer exercícios. Não percebo, estão sempre a dizer que devo aprender com os erros... Errei, sim, fartei-me de errar, logo fartei-me de aprender.”. “A melhor forma de retirar o significado às palavras é repeti-las, até à exaustão.”. “Irrita-me esta coisa de ter que levar com os outros. Ainda ontem, voltou a acontecer, saio à rua e lá está a vizinha mais o seu cão, deixam os cães fazerem os dejectos, urinam, nas escadas e nos passeios, e depois calha a um qualquer pisar a porcaria. Ou os cigarros, é vê-los a atirarem as beatas para o chão. Que nojo. É tudo uma cambada de mal-educados, esta gente. Era pô-los a todos a fazer trabalho cívico, para o resto da vida.”. “Não sei como te dizer isto, foi tão bom ver-te, ter estado um pouco contigo. É bom saber que o tempo passa mas que há certas coisas que se mantêm, sempre gostei de ti, trazes sempre contigo uma piada, um dito espirituoso, que nos anima logo o dia.”.

O ERRO

Depois respondo a anúncios de emprego “nem água vai”, é incorrecto, é imoral, nem a possibilidade de defender o nosso valor profissional nos permitem.”. “Temos que deixar de falar assim, desta forma M., ao telemóvel, quase que chocava com o automóvel da frente. O que é que posso fazer ou dizer para que acredites em mim, para te fazer crer que estás errada. Não tenho mais mulher nenhuma na minha vida, és a única, gosto de ti... Amo-te.”. “A ponte abana, sabias? Não é um erro de construção, é assim mesmo, não fosse não aguentava como aguenta.”. “Sabes quem foi Crasso, o general Marco Licínio Crasso? Não fosse ter cometido um erro crasso não utilizaríamos a palavra crasso para o descrever, ao erro.”. “É sempre a mesma coisa, a mesma lengalenga. Vou à minha consulta de rotina e o médico só me sabe dizer que devo deixar de fumar, eu sei como é, dizem estas coisas mas depois vão todos para a rua fumar os seus cigarros, malditos médicos. Já agora, peçam-me para deixar de beber, de comer, ou de... O que quer que seja. Que eu lhes digo!”. “Está tudo na mesma, como há duas décadas atrás. As mesmas ruas, os mesmos estabelecimentos, até as pessoas parecem as mesmas. É triste, já não me dá para sentir pertença ao sítio de onde venho, voltar à terra, ver tudo igual a si mesmo, tudo na mesma. É o mesmo que sentir «nunca lá estiveste, não foi aqui que te conceberam».”. “Depois de duas horas a estudar, afincadamente, deu-me uma forte dor de cabeça e concluí, está errado, o meu raciocínio está completamente errado, perdi duas horas do meu tempo nisto.”. “Ontem sonhei, é estranho! Ultimamente é-me difícil recordar os sonhos. Entravas algures, entravas como uma personagem secundária qualquer «num bar, café, ou coisa que o valha», mas, por uma razão ou outra, sei que isso tinha muita importância, muito significado.”.

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CRÓNICA

“Mal acordei estavam logo a telefonar-me para me tentarem vender “banha da cobra”. Raios os partam mais aos seus telemarketings, publicidades, engodos... Vão tentar vender areia a outro camelo qualquer... Que eu cá só tenho o que quero, só o que quero.” “Quem me dera ter descido de elevador, não tinha partido uma perna a descer as escadas.”. “Quando chegar a casa vou concluir a minha dissertação sobre os efeitos nocivos de uma prolongada exposição ao ruído.”. “Não é possível, não está certo, o preço do combustível voltou a aumentar.”. “O elevador está de novo “fora de serviço”. Instalam as coisas e, depois, quando se vêem com o dinheirinho nos bolsos não querem saber de mais nada.”. “Estou doente.”. “Ler em demasia cansa a vista.”. “Errar é humano.”. “Amanhã é outro dia.”. “Quem sabe?.”. É evidente que toda esta colecção de ocorrências tem um intuito, não é?: nem de provar que errar está errado, ou certo; nem de que o erro existe, ou deixa de existir. As pequenas coisas que nos compõem a realidade são bem mais espantosas, e maravilhosas, para que nos deixemos submergir em considerações filosóficas arrevesadas sobre o que é, ou deveria ser. A verdade é que «fosse levar a verdade ou o erro demasiado a peito» não estaria a escrever isto que vos escrevo. Não minto, «sou sempre apanhado». Invento.


Sandra Portela


CRÓNICA

COMO UM CARACOL COM ASAS R AQUEL SERE JO M A RTINS

Erros? Erros meus, má fortuna, amor ardente Em minha perdição se conjuraram; Sim, gosto de poesia, algum problema? Um varredor de rua não pode gostar de poesia? E pensando duas vezes, dispenso respostas e comentários, que com o gozo dos colegas de trabalho já tenho suficiente para encher de areia a minha praia, pensavam que ia dizer camioneta?, e deixarme a bufar como mau vento. Mesmo assim, fraquinha a metáfora, do tamanho de grão de areia, não mais. E eu sei que não fazem por mal, varrer ruas pode ser um tédio. Que trabalho com horário fixo é que não é um tédio? E quanto ao não fazem. Bem. Não faziam por mal. Deixaram de fazer. É que um gajo às vezes perde a paciência. Eu perdi a paciência à décima primeira vez que, talvez por não ter mais dedos nas mãos para contar, um colega, ao caso jardineiro, me disse, pediu enquanto tesoura na mão podava uma sebe. Repete lá à gente o poema do Adalberto da gaja que tocava harpa e tinha um arbusto. Disse Adalberto três vezes, depois de eu corrigir oito vezes o facto de dizer Alberto. Que fique claro, oito e três, onze e nem uma de esmola para a caixa, ponto em que, eu, em vez de repetir, de declamar com o devido pudor Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite. lhe atestei, não duas bofetadas mas um murro perfeitamente centrado no focinho, como se eu tivesse sido aluno de excelente a geometria. Resultado, entre as falanges, falanginhas e falangetas da minha mão direita e a cana do nariz do Antunes: 5-0. Secos!

Assim que o Antunes, não sendo pescador, nunca mais voltou a pescar como pescava e não por ficar com o nariz enviesado, mas por, e isso sim foi mau, ficar com o olho esquerdo inclinado. Torto. Estrábico. Enfim, vesgo! Digo isto porque uma mulher, para se sentir mulher, precisa de olhos que a procurem sem rodeios, que se lhe colem ao corpo, que não descolem dos seus. E o olho esquerdo do Antunes, a bem dizer, começou com rodeios, a perder-se pelas manchas de humidade dos tectos, pelos calendários das paredes, pelo pó acumulado nas persianas das janelas, assíncrono e independente do olho direito que cumpridor se mantinha focado nos interesses do Antunes. Pois, o Antunes, apesar de casado, pescava. Bem-apessoado e bem-falante, guardava, como isco, nos bolsos versos dos poemas que me pedia para recitar, versos que depois soprava ao ouvido da Lurdinhas da Contabilidade, precocemente viúva, da Fernanda da Tesouraria, catequista nas tardes de Sábado, da Zélia dos Recursos Humanos, o marido gastava-se com a amante, da Paulinha da cafetaria, licenciada em psicologia e boa comómilho, e de uma ou outra garoupa, ele dizia garoupa, e também dizia que tudo o que vinha à rede era peixe, que com poesia piropava na rua enquanto jardinava pela cidade. Porém, ao que estávamos, atestei-lhe um sopapo, não porque me importasse de mais uma vez dizer O Amor em Visita, mas porque não suportava, nem mais uma vez, o desmazelo e/ou o erro e/ou o facto, “onze” vezes repetido, de chamar Alberto e/ou Adalberto ao poeta. Podem dizer que me irrito por pouco. Não me importo. Não é verdade. Desde a escola primária que não batia em ninguém. E claro que o nariz partido em serviço do Antunes foi um problema, quer dizer, em rigor o problema não foi bem o nariz partido do Antunes, foi o processo disciplinar, que por sorte, e não foi sorte mas o


Desculpem, é que não resisto à poesia. Perceberam? Alecrim aos molhos, choram os meus olhos. Claro que perceberam. Enfim, a cada um as suas fraquezas. E erros… não sei se erros ou faltas de acerto mas nunca fui o gajo certo no lugar certo. Errei todo o discurso de meus anos. Mais Camões, que Camões nunca é demais. O que seria suficientemente dramático se eu fosse caso singular, porém nesta vida andamos todos ao mesmo e as vidas, como as casas, portas e janelas, às vezes chaminés, não têm muitas saídas, assim que em frente e menos alecrim e mais coentros. Para mais, o tempo é um caracol com asas, parece que não anda e vai-se e a ver voou, pelo que, tudo somado ou subtraído, na vida são meia dúzia as decisões que fazem a diferença, que nos mudam de caminho, de carril, como os comboios, de resto vamos andando, escolhendo a gravata nos dias em que usamos gravata, o corte do cabelo se não ficarmos carecas e, conforme o azul do céu, se saímos de casa com guarda-chuva, de resto vamos andando e parando pontuais ou com atraso, nas devidas estações, metáfora milenar se pensarmos nas Estações da Cruz, apenas centenária se nos limitarmos a comboios, uma vez que data de 1804 a viagem da primeira locomotiva a vapor. E sobre carris as vidas ficam fáceis de contar. Nasci por erro ou descuido, o que não é a mesma coisa mas é a mesma coisa porque o mesmo resultado. O sexto e último filho de uma família pobre, num tempo em que todas as famílias eram pobres, e até aqui tudo normal, normal porque todos iguais, dentro de casacos de fazenda puídos e de meias de lã com buracos maternalmente cosidos, porém, uma pequena diferença, os meus pais não prestavam, assim, sem qualquer eufemismo. Os dois bebiam e nenhum trabalhava, pelo que fomos criados por familiares e vizinhos, até que num

O ERRO

facto dos dois intervenientes no processo, ofendido e agressor, pertencerem ao mesmo clube. Que a mim, o meu Benfica até hoje só me deu alegrias! Termos em que foi o processo arquivado. O que também tem rápida explicação. É que antes do sopapo no Antunes, uns quantos, varredores, eu incluído, uns quantos jardineiros, o Antunes incluído, uns quantos calceteiros e o Lopes, gerente da concessão da cafetaria, organizador da excursão e o maior doente do Glorioso que conheço, tínhamos combinado ir juntos à bola e, não era um jogo qualquer, era o último jogo do campeonato, para mais decisivo. Assim, depois do sopapo, o grupo no metro para o estádio e no grupo eu e o Antunes, urbanos, educados, polidos, olhos nos olhos, lilases de ódio, a trocar mentalmente insultos. Tenho cá para mim que o ódio é lilás de cor, deve ser por causa da Páscoa ou porque uma vez me meti a fazer obras em casa e consegui enfiar um prego na planta do pé esquerdo e, ao caso, era Páscoa. Pelo menos tinha a vacina do tétano em dia. Continuando, dizia que eu e o Antunes entrámos no estádio esquinados e acabámos o dia a amanhecer na Rotunda do Marquês, ébrios, abraçados e roucos de tanto cantar campeões, campeões, campeões, derivado do que o Antunes retirou a queixa e ainda convenceu a Zélia dos Recursos Humanos a não fazer mais diligências, porque parece que o desistir da queixa não era suficiente para findar o processo. E se é verdade que quanto a este processo nunca mais fui incomodado, também tenho cá para mim que nunca cheguei a Varredor de Primeira em consequência do mesmo, pelo que, bater no Antunes foi um erro gordo, talvez o último e por isso o primeiro a contar. E erros, aos molhos como o alecrim, é coisa que tenho de sobra e não há-de ser por isso que vão passar os dias a chorar meus olhos.

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CRÓNICA

dia de chuva miudinha, há pessoas que dão muito valor às referências meteorológicas, o Estado mudou o estado da nossa situação, pôs um ponto final na família e fomos divididos como um queijo. Reencontrámo-nos adultos, após diligências do meu irmão mais velho, tão velho que já era avô, irreconhecíveis aos olhos uns dos outros, juntos na certeza institucional de que somos irmãos por, no verso dos bilhetes de identidade, em todos constar igual filiação. Agora, mais por obrigação do que outra coisa, encontramo-nos uma vez por ano, data fixa, o 3.º fim-de-semana de Janeiro, como se fosse o nosso Natal, e é mesmo como o Natal, comemos bacalhau e sonhos e apesar da boa-vontade, da vontade boa de todos é amargo e estranho como o Natal. Em criança, pouco estudei, faltou-me um pai a explicar que era importante estudar, ou no limite a obrigar-me com um meu menino assunto encerrado, sem querer fazer queixinhas, nunca fui o meu menino de ninguém. Faltou-me dinheiro e comecei a trabalhar. Depois apaixonei-me. Apaixonei-me cedo demais. A mulher certa, o amor da minha vida. Casou, cumprindo a promessa, com o noivo que voltou inteiro do Ultramar. Cheguei a desejar, várias vezes desejei, a morte do meu cunhado, que à data só conhecia de fotografia, uma fotografia a preto e branco onde se apresentava a rir, coisa rara e até simpática, uma bala de Kalashnikov certeira que lhe furasse o capacete e o crânio, uma morte rápida. Pois foi, casei com a irmã do meu amor e isto sim um erro, o maior erro da minha vida, o erro mais pequeno da minha vida. Um erro relativo, tudo é relativo diria o Einstein, esse sim Alberto, e relativo porque vejo o meu amor com frequência o que me regula a frequência cardíaca. Moramos no mesmo bairro e eu e o meu cunhado até somos amigos derivado de ser um excelente parceiro de Sueca, tão bom, que no café se deixou de jogar a dinheiro para jogar a feijões pois juntos somos uma dupla invicta, e mesmo a tostões, ninguém gosta de ficar sem dinheiro para tabaco. Moramos no mesmo bairro e, volta não volta, na casa dela ou na minha, encosto-a à mesa da cozinha, à parede do corredor, prego-lhe um beijo e com as mãos provo-lhe o corpo. Pena que nunca passámos disto, é excessivamente católica. Casei com uma mulher corrosiva como a potassa, nem todas as pedras estão no chão, uma mulher que me comeu a vida e que me deu o meu maior bem, o meu filho.

Um filho é uma coisa singular, para mais se único. Procuro e não lhe encontro traços da mãe, um alívio e para encanto tem os olhos e o nariz da tia, uma ironia feliz. E no dia do seu nascimento, no café do bairro, bebi porque obrigado a festejar com os colegas da Sueca, não fui capaz de dizer não, de cumprir as minhas intenções, e bebi o último copo de bagaço da minha vida, uma excelente bagaceira velha que ainda guardo na memória das papilas. Todos os dias precisava de pelo menos dois bagaços para suportar as noites ao lado da mulher que levei ao altar, Santo António não deve ficar contente ao ouvir isto, mas tivesse feito melhor o seu trabalho, de resto cumpri, queria estar sóbrio e atento, queria ser pai, tentar ser bom pai. E acho que consegui, não porque tenho um cinzeiro que fez na escola primária e que diz que sou o melhor pai do mundo, que todos os pais dos meninos da 2.ª classe têm um cinzeiro igual, mas porque o meu filho não tem vergonha de mim como tantas vezes eu tive vergonha dos meus pais, ao ponto de me esconder debaixo da cama sempre que entravam pessoas em casa ou quando os meus pais queriam sair e levar-me. Não me lembro de ter andado de mão dada com qualquer um dos pais sem ser arrastado. Os bêbados não são más pessoas, mas esquecemse muito das coisas e os filhos não passam de coisas. Já o meu filho nunca teve vergonha de mim, o que me comove de uma forma indizível, porque não é fácil quando se é filho de um varredor de rua. Porque o meu filho, agora maior do que eu, o tempo é como um caracol com asas, de fato e gravata a apresentar-me com carinho aos colegas de trabalho. E da primeira vez, não é o engravatadinho do teu filho que ali vem, e eu a fingir que não o conhecia, a varrer para canto folhas de plátanos e tílias misturadas com beatas de cigarros, a assobiar, quando nem sou gajo de assobiar, a evitar cruzarme com o meu filho, e o meu filho a vir na minha direcção, a apresentar-me ao chefe, e não disse chefe, disse director, upa, upa!, e eu vermelho como o equipamento do Glorioso, os meus colegas de queixo caído, e o meu filho a apresentar-me como seu pai, eu!, e como leitor de poesia compulsivo, o Antunes depois até perguntou o que queria dizer compulsivo, e a acrescentar que foi com o pai, comigo!, que aprendeu a gostar de poesia. E eu sem palavras, porque uma pessoa nunca tem


na boca as palavras certas para as ocasiões, depois a pensar, que podia ter dito que não foi assim, que foi ao contrário, que fui eu que aprendi a ler e a escrever com o meu filho, porque li e fiz por estudar todos os seus livros de escola e que foi com o livro de português do 9.º ano e por culpa do Camões que comecei a gostar de poesia.

O ERRO

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CRÓNICA

DESVIO MIGUEL DUA RTE

Se calhar não era bem isto que deveria escrever. Talvez me repita. É possível que nada de novo saia destas linhas e páginas. Saberão, com certeza, encontrar-me vazios. Onde é que eu já li isto, perguntar-se-ão. “Se era para ser uma história então mais valia…”. Tanta coisa para isto?

CL A R A FA RIA PIÇ A RR A

Tínhamos partido há uma semana e estávamos a correr, sentados à mesa no mercado de Cópan, uma terra de pedra tão antiga que quase ultrapassa a idade, quando uma família se demora à nossa frente. Uma timidez contrastante, os olhos a escorregarem-lhes nos próprios ombros. Vinham do campo. Sentam-se connosco e não nos enfrentam, comem fechados dentro de si: porque somos brancos ou talvez apenas porque

Uma vez, e era assim que começava esta história, dei por mim perdido sabendo exactamente onde estava. A quem não terá tal acontecido? E mesmo assim, nem a todos lhes elogiam o fantástico sentido de orientação como a mim. E estava perdido. Mesmo assim. Na terra há uma zona, região demarcada por nós em perfeita ocasião, que se chama paragem, outra que se chama viagem. E são tantas vezes a mesma, sobrepostas, quase idênticas. Encontrava-me aí, precisamente, e perdido. Tenho a sorte de lembrar com exactidão o sentimento, já que o momento é sempre desaparecido. À curta distância de um gesto tinha alguém, mas alguém tão longe de mim que nunca me seria próximo, mesmo que estivéssemos ali toda uma vida. Estranhamente, e nisso consistia o meu perdimento, sabia também que toda a nossa humanidade, a de todos nós, os homens, nunca seria tão universal, tão perfeitamente óbvia, como ali. Mesmo ali, do outro lado da mesa. A paragem, um incomensurável intervalo. A viagem, uma imensa certeza, a descoberta, a afirmação de que somos juntos. E eu, perdido.

vivem na ilusão de que há pessoas que não se alcançam. Foram a nossa primeira paragem.1

Pode parecer estranho que numa viagem em permanente deslocação sejam as paragens que contam a história. Há uma viagem que se faz dessas paragens. É essa a verdadeira viagem, aquela que se justapõe à nossa vida no exacto ponto em que paramos. Há uma certeza em tanta repetição: nessas paragens deixei de ser o mesmo. Ainda perdido. Não andei sempre perdido. Não. Mas juntando esses momentos fica uma história. E é possível que essa descreva o ponto em que me encontrei quando tudo terminou. A próxima paragem não será tão fácil de entender, a profundidade é sempre mais simples quando queremos ser levados a sério. Era uma vez uma história com humor. Mas continuámos, dentro da incontrolável pressa, até uma

Nunca escondi que tudo isto era já tão dito. Também por nós, nesse mesmo momento perdido.

Nicarágua que nos engole em vulcões. Ometepe, a ilha azul e castanha e tão estranha: - Quantos quilómetros faltam para chegar ao cimo desta

Quando se está a viver em deslocação tendemos a tropeçar

montanha?

no deslumbramento. Quase sem escolha. Aquele verde, aquele

Perguntamos a quem passa, enquanto pesávamos o nosso

mar, aquela estrada sem espaço. Dorme-se mal ou pior, come-

esforço e medíamos o tempo para chegarmos antes da noite.

-se disto e daquilo, fala-se, ouve-se, deseja-se. Sempre na

- humm… talvez um quilómetro… depende se forem

inconstância da brevidade. Até que se pára. Não porque se quer mas porque nos impedem o passo.

depressa ou mais devagar. Fez-nos parar. Entre o riso e a verdade. Neste centro de


mundo não há só uma forma de pensar. Já mais devagar, mas ainda dentro do inevitável passo,

Já numa mesa Lisboeta, os copos estão meio vazios, com cafés e sobremesas meio-comidas. Procura-se com insistência o contacto visual do empregado. Mais vinho é fundamental. Advertência - esta não é uma história sobre paragens e viagens! Com o timing exacto que a comicidade exige lança-se a história: “Uma vez na Nicarágua (…) depende se forem depressa ou mais devagar.” Risos. Sorrisos ainda. Alguém pega o momento e continua, outra história e mais um jarro de vinho aterra na mesa. A boa disposição demora-se enquanto o vinho vai de jarro para copo para as bocas para as mentes. E ninguém ouse alguma vez contradizer, essa, como outras noites de histórias, vinho e risos, são do melhor que a vida oferece. Há algo mais nesta paragem que não se diz todas as noites.

Que a ligeireza do texto não nos desvie – eu estava perdido e esta nova paragem acentuou a história que aquela viagem começava a construir. E houve mais.

E chovia. Chovia. Chovia. Houve alguém que nos recebeu com histórias e um conhecimento muito próprio que nos fez esquecer o frio contrastante que transformava os ossos. Oferecemos-lhe uma t-shirt seca, em forma de agradecimento. Transformou-se num sorriso sem dentes, daqueles profundos que não precisam de gargalhada. A roupa que vestia era a única que tinha. E parou-nos.

Não me lembro agora do seu nome. Parece que ainda ontem o tinha comigo. Sinto-o próximo e longe na memória. Como posso ter esquecido o seu nome? Que pessoa sou se nem o seu nome…? A barba era dura, mais do que seria normal num caribenho. A pele seca, no meio de tanta humidade, e magra e escura. Um boné desbotado enfiado até aos olhos negros. Das suas histórias saía humanidade e chegou devagarinho a empatia. Uma t-shirt azul clara. Apenas isso. E aquele sorriso tão gratuito, tão raro, tão sozinho. E ainda o nome que não me lembra. Perdido. Nada de novo. Tudo isto já foi mais bem dito. Todos nós conhecemos estes sentimentos de que falo, estes encontros que nos impõem a perspectiva. Estes ângulos mortos de tanto os sabermos. Já quase sem pé, porque começamos a perceber que para viajar se tem quase que ir parado, entrámos numa tasquinha na Cidade do Panamá. Pedimos arroz, com frango, um pouco mais de arroz e de frango, só para calar as miudezas. E levantámos os olhos para um cartaz bem preso à parede: “Troque as suas armas e munições por comida e medicamentos”.

“Tenho na ideia que vi um documentário sobre isso. Em que país era? É isso mesmo.”3 E nós em modo paragem. Tudo tão simples. Mais um pouco de arroz

O ERRO

Quando a história se fez também rimos, e com razão. Houve um depois. Ao longo da estrada enlameada2 tornou-se tão certo o que nos fora dito. Não foi nenhuma sabedoria confuciana que se revelou subitamente. Nada tão profundo, já tinha avisado. É bem mais simples. Ali, a distância não é certa, essa medida “universal” perde sentido. Mas que raios! Universal é ele, que tão naturalmente nos explicou a evidência. Se fossem ali medir caminhos as contas sairiam sempre furadas. Talvez com satélites e GPS se aproximassem, mas a pé, em plena Ometepe, a ir de uma estrada para outra, e com as coisas que se vêem pelo caminho, não, nunca a medida seria certa. E íamos apenas ver uns petróglifos, que nada nos anunciaram acerca de medidas de comprimento, provavelmente já nessa altura se sabia quão pouca era a importância que isso ali tinha.

chegámos à floresta das Caraíbas, a uma Costa talvez Rica.

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CRÓNICA

e frango. A viagem deve continuar! Como explicar a diferença? Há uma distância tão grande entre saber e sentir que não deveriam ter nenhuma letra igual. “Eu sei o que isso é, como te entendo, já li qualquer coisa sobre o tema, compreendo perfeitamente, ainda no outro dia pensei nisso, estávamos precisamente a conversar sobre o assunto ontem à noite em casa do… “ EU ESTAVA PERDIDO

1. Como avisado, já antes alguém o mesmo disse. A mesma ocasião, o mesmo sentimento. Nesse caso o valor do que agora dizemos acresce ou decresce? Depende talvez de quem o disse. Depende do aviso. “Mind the plagiary”. E se formos nós próprios a repeti-lo? Questionarão a nossa senilidade talvez: é sempre a mesma história! E se já não formos propriamente os mesmos? Aquilo que dizemos é agora ligeiramente diferente. Outra luz incide, um prisma, um ligeiro mas fulcral acrescento na equação – o tempo.

2. Faltou-nos este detalhe ou é a memória hoje que me trai? Ia jurar que senti o chão abater-se molhado debaixo do peso dos meus pés!

Não sei já como dizê-lo. Mesmo repetindo-me. Não era bem isto que queria escrever.

3. Ninguém realmente me disse esta frase. Isto não é um exercício de culpa. Isto é uma repetição. O que aconteceu lá ficou, agora acompanha-nos. E repete-se.

Facto: Estas histórias aconteceram e foram viagem. Encontrei-me perdido. Perdi-me nas paragens, por coisas que tão bem acredito serem mas que, percebi humildemente, nunca antes tinha sentido. Ficção: A escrita. As palavras negras no branco do ecrã. Aquele instante entre o meu dedo e cada tecla empurrada. A fórmula encontrada. Um novo mundo, este que nos faz ficar sem passo, e nos dá consistência ao que já sabemos que somos. E foi assim que partimos, já dentro deste devagar, para o grande e longo Sul. 4

4. Não ficarão na dúvida. Confirmou-se tudo a Sul e Oriente.


Sandra Portela


CRÓNICA

SEM MARGEM PARA ERRO FILIPE DE A LMEIDA SA NTOS

Diz a sabedoria popular que “errar é humano”. Mas o que nos torna verdadeiramente humanos é a nossa capacidade de aprender com os erros, de os usar como mote de mudança, de os interiorizar e evitar a sua repetição. Um dos (vários) erros que cometi na vida foi o de não ter dado a atenção devida a coisas que me faziam verdadeiramente feliz e me realizavam muito mais do que a minha actividade profissional. O verdadeiro “clic” fez-se, estando eu há uns meses em São Paulo, no dia da morte do Steve Jobs. Não o facto em si mas a consequente proliferação de citações do mesmo nas redes sociais. Dizia-se que o segredo está em fazermos o que amamos, porque a probabilidade de o fazermos bem é muito maior do que se optarmos por passar por esta vida apenas para “cumprir calendário” ou fazer o que se espera de nós. Foi isso que, há menos de dois anos atrás, decidi fazer: corrigir um “erro” e dedicar-me de corpo e alma à gastronomia (no meu caso concreto à pastelaria). Estudar, aprender, praticar, trabalhar. Fazer dum prazer uma profissão, antes que os quarenta me batessem à porta. Foi essa mudança de vida que me levou, numas férias recentes, a passar os meus dias num restaurante a trabalhar. Sem qualquer retribuição financeira, apenas numa óptica de experiência – daquelas pelas quais é importante passarmos para porventura conseguirmos evitar alguns erros. Foi essa mudança que me levou a entrar nesse mundo – tão estimulante que se pode tornar obsessivo – das estrelas Michelin. Duas neste caso. É essa experiência que vos tentarei relatar, o mais factualmente possível para que cada um faça o seu próprio juízo (sem que me furte a fazer o meu).

São nove da manhã, faz frio. O dia hoje começa mais cedo porque é o primeiro da semana. Quando chego, a cozinha já está quase cheia. Apesar de muito pequena, consegue albergar, a todo o gás, mais de uma dúzia de profissionais que durante cinco dias por semana asseguram, sem mácula, a preparação e serviço de pouco menos de cem refeições diárias. Sem demora dirijo-me ao exíguo balneário (poderemos chamar balneário a estes três metros quadrados?) e troco de roupa. Em menos de cinco minutos estou à disposição do chef. As três horas que se seguem são dedicadas à produção da mise-en-place desse dia. Não se perde um minuto - e um minuto nesta cozinha é suposto render para lá de cinco vezes mais do que esses sessenta segundos. Mais tarde perceberei que realmente todos os minutos são preciosos, tal é a exigência dum serviço “duas estrelas” feito a partir duma cozinha com um espaço tão reduzido e com circuitos tão complicados, em que praticamente precisamos de pedir licença ao colega que está ao lado de cada vez que temos que dar mais do que um passo. De repente é meio-dia e já fiz tanta coisa. So I thought. Para quem é da casa, poderia ter feito muito mais nessas três horas que se esfumaram num instante. Ao meio-dia, esteja o trabalho como estiver, todos param religiosamente à chamada do chef para o almoço. As refeições aqui são sagradas e esse princípio aplica-se também às refeições do pessoal: às 12:00 e às 18:00, todos devem comer e usufruir dos vinte minutos de pausa. Mesmo que ainda tenha ficado alguma coisa por fazer (e fica sempre) é tido como criminoso não gozar da pausa e voltar ao trabalho mais cedo. Começa o serviço. A minha partida - a das sobremesas – tem sempre um início calmo, que permite que se vá continuando o trabalho de produção (e o que ainda ficou por fazer da mise-en-


-place do dia) durante o início do serviço. Há sempre pratos para polir, trufas para acabar, pâte de fruits ou marshmallows para cortar, um ou outro bolo de cortesia para glacear. O tempo corre a uma velocidade demasiado veloz. Rapidamente, os pedidos começam a entrar e a partida começa a ficar inundada de serviço. Pré-sobremesas, sobremesas, petit-fours, há que dar serviço porque o espaço é exíguo e num instante se instalará o caos. Mesmo no meio de toda essa pressão há pormenores que não se podem descurar: caixas bem fechadas, tampas todas na mesma posição, etiquetas sempre viradas para o mesmo lado, bancada sempre limpa, chão sempre a brilhar. E os tickets dos pedidos que continuam a entrar. A cozinha é uma verdadeira orquestra, conduzida pelo chef. À sua ordem, todos devem responder. À sua voz, todos se devem fazer ouvir com um “Sim, chef!”, que deve significar que se ouviu e se interiorizou o que foi dito. Não bastasse a pressão do serviço, ainda é preciso uma memória bem ginasticada para que nada falhe. Aos pedidos da carta ainda se juntam uma série de restrições - é incrível a quantidade de intolerantes ao glúten e à lactose que, pelos vistos, frequenta este tipo de estabelecimentos - que fazem com que a atenção tenha de ser redobrada e muitas das vezes os componentes de cada prato tenham de ser alterados e substituídos.

Quando damos conta passaram quatro ou cinco horas desde que o serviço começou e daqui a nada

De estômago cheio e cigarros fumados (ainda estou para conseguir entender esta coisa de ter cozinheiros de topo a inundarem o seu palato e vias respiratórias com fumo de terceira) está na hora de regressar ao serviço. Sem parar um minuto – porque há sempre algo para fazer – todos retomam o seu lugar neste “fosso de orquestra” e o maestro dá início à récita nocturna. A partitura já é conhecida e já foi amplamente tocada por todos. Mas não por mim. Desde logo me apercebo que não darmos uma nota não é solução para evitar que se dê uma nota mal dada: por aqui tudo tem de sair perfeito e no tempo correcto. Sem margem para erro. Por aqui servem-se refeições de luxo, experiências de degustação complexas e meticulosamente pensadas, que encontram na sua execução um rigor idêntico ao da sua conceptualização. Não há lugar a relatividades, tudo se faz de forma absoluta e indiscutível. Só há uma forma de fazer as coisas: a correcta. Todas as outras são erradas e como tal nem devem ser sequer colocadas em cima da mesa para ponderação. Por aqui vende-se ao cliente que está na sala uma experiência de excepção: os melhores produtos, trabalhados com as melhores técnicas, são parte duma história que se conta sobre a mesa. “Alta Costura” gastronómica, pensada e personalizada. Nenhum pormenor pode ficar entregue ao livre arbítrio de cada momento e de cada cozinheiro. Dois cubos de pâte de fruits que vão para a mesma mesa no serviço de petit-fours devem ter “calibres” idênticos: “se tiverem tamanhos diferentes, o cliente vai achar que é desleixo”. O mesmo princípio se aplica a tudo o resto.

O ERRO

E quando tudo parece estar a correr bem, há uma mesa que, repentinamente, pára. “Essas duas azeitonas estão na casa de banho” ou “Esses dois lagostins foram fumar” são frases que os funcionários da sala fazem ouvir recorrentemente na cozinha.

tudo se voltará a repetir. Pelo meio é suposto descansarmos uma hora, que por vezes se reduz a apenas metade disso.

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CRÓNICA

Esta obsessão pela “perfeição” milimétrica, pela reprodutibilidade quase fotográfica, é altamente contraditória com o que está na base conceptual da experiência gastronómica que se está a vender. Se colocamos o cliente e a sua satisfação no centro das nossas atenções, querendo dar-lhe um tratamento altamente individualizado e personalizado, como podemos depois servir-lhe elementos que, na sua produção/reprodução acabam por obedecer aos princípios da produção industrial em massa? Não estaremos - numa referência a Walter Benjamin a fazer tábua rasa da “aura” desses produtos? Não estaremos pois – conceptualmente falando – a vender gato por lebre ? Esta obsessão pela “perfeição” ancora nessa dicotomia entre o certo e o errado. Quando os alimentos que trabalhamos provêm, na maioria dos casos, da Natureza, o que está errado afinal? Estaremos perante um caso de nítido overdesign, em que o umbigo do cozinheiro é preponderante? Até que ponto deve ir a nossa mão na “correcção” desse erro – milimétrico – que, pelos vistos, a Natureza deixou passar? Como podemos conciliar – pelo menos conceptualmente – a ideia (tão em voga) de que trabalhamos e respeitamos o produto local quando, pela nossa acção, fazemos tábua rasa - não tanto da sua forma, mas - da sua individualidade? A experiência foi intensa. Mas não foram as longas quinze horas de trabalho diário que mais me deram que pensar.


Nikolay Komitov


CRÓNICA

ERRO GROSSEIRO TIAGO FONTES

Victor Serge. Alguém que mais do que muitos sofreu as consequências de estar no lado errado em relação aos vencedores da história. No seu livro Caso do Camarada Tulayev1, entre as várias situações descritas, houve uma que me marcou mais do que outras e que demonstra de uma forma terrivelmente eficaz o funcionamento do mundo e a sua relação com o erro. Antes de mais, peço desculpa se o meu resumo não fizer justiça à obra original e, como o que aqui escrevo é de memória, algum erro pode ocorrer. Eis-nos transportados para os confins mais inóspitos de um vasto país onde é forçado a viver um homem que caiu em desgraça em relação ao regime vigente que ajudou a erigir. Depois de vários anos neste exílio, eis que sem explicação deve ser transportado para outra localização. Primeiro, por trenó, depois, carroça, comboio e, finalmente, carro, este homem é levado através de um imenso percurso. Tudo feito sem muita pressa, parece, sendo colocado por necessidade junto de presos de delito comum ou políticos durante o seu transporte ou para dormir. De início, não sabe para onde está a ser conduzido mas a partir de certa altura percebe que o levam para a capital. Chegado a um edifício que conhece bem, onde é encarcerado, este velho bolchevique recebe a visita de outro velho bolchevique. Este último, claramente, ainda ligado ao governo do país. Durante o seu encontro, o nosso preso analisa documentação e recebe informação secreta sobre a qual dá a sua opinião especializada. Apesar de saber, no fundo, que foi para aqui transportado não para esta consulta mas para ser humilhado e posteriormente executado por um crime que não cometeu, não considera um erro dar toda a informação e apoio que lhe é possível dar.

Não vê nenhuma contradição em ajudar quem o vai matar visto que estes são os representantes (não interessa se os melhores ou não) de um regime que ajudou a criar e sobretudo do seu país. Ao ler toda esta situação, já de si para mim incompreensível, eis que o texto continua e um velho conhecido da personagem, membro da nomenklatura, lhe diz algo parecido com “Espero que tenha feito a viagem nas melhores condições possíveis. Essa foi a ordem dada. Espero que não tenham cometido o ERRO de a ignorarem”. A noção de erro, quando associada ao governo, ao Estado, à nação e à guerra, ganha contornos que me ultrapassam completamente. O difuso e o fundamental confundem-se. E porque não analisar o que muitos erroneamente chamam “uma das mais honrosas atividades que o homem pode perseguir”: a guerra? Para além de honrosa, há muitos que a olham como inevitável e fazem um esforço para tornar esse conjunto de ações assim classificadas menos propensas ao erro e consideravelmente mais justas. Falo, por exemplo, de São Tomás de Aquino. Este passou ao papel, também a partir de uma tradição centenária da moral, uma série de princípios para uma guerra justa2. Segundo São Tomás de Aquino, antes de se decidir pela guerra (Jus ad bellum), deve ter-se em conta que esta é autorizada por uma entidade competente para o fazer (não me perguntem quem é que define tal coisa), que serve uma causa justa e pelas razões corretas, que é decisão tomada como último recurso, considerado o princípio da proporção (que o mal que se espera da guerra não seja completamente desproporcional com o bem que se procura alcançar). Durante a guerra (Jus in bello), a acrescentar ao acima indicado, o último princípio deve aplicar-se a todas as ações de guerra particulares e tendo


especial atenção para que os não-combatentes (vulgo civil) não sejam atacados de forma intencional. Em tempo mais recentes, foi acrescentada uma outra condição relacionada com o pós-guerra (Jus post bellum). A guerra deve terminar de forma justa com o estabelecimento de uma paz justa. Esta última proposição surgiu decerto depois dos erros cometidos nos vários tratados de paz impostos pelos vencedores (diz tudo não?) após a I Guerra Mundial, nomeadamente, o mais conhecido, o Tratado de Versalhes em relação à Alemanha. Em 2014, apesar das várias cerimónias que marcaram a passagem dos 100 anos do início desta guerra, muito poucas pessoas sabem porque foi travada e como foi travada. Por outro lado, um número maior de pessoas sabe que uma das suas consequências foi uma outra guerra mundial ainda pior, duas décadas depois. Para um público mais moderno, será mais fácil aplicar os princípios descritos da guerra justa à guerra do Iraque de 2003. Alguém minimamente informado chegará à conclusão de que as intenções da mesma não foram claras e a razão dada foi obviamente fabricada. A razão para a guerra, a potencial produção pelo regime iraquiano de armas de destruição maciça, foi elaborada por alguns países que não tiveram em conta o parecer da entidade competente (a ONU) e avançaram para a guerra. Durante a mesma, a população civil sofreu direta e indiretamente. A destruição sistemática de estruturas básicas para a sua posterior reconstrução por empresas dos países beligerantes é um exemplo.

Mas voltemos à I Guerra Mundial e a outro evento histórico do século XX, a Revolução Cultural Chinesa. Numa polémica recente entre Alain Badiou e o diretor editorial do jornal Liberátion3, esteve em causa o uso da Revolução Cultural Chinesa numa discussão sobre comunismo e democracia. Segundo o editor do jornal francês, o mero uso desse evento numa discussão deste tipo é um erro tão grave que faz com que a obrigação de continuar a ouvir e encontrar mérito na argumentação da pessoa que o usou se esvai. Em causa o número de mortes ocorridas e o tratamento injusto de muitas pessoas mais. Será que mencionar a I Guerra Mundial com motivações ainda menos claras, mortes em número muito superior e com um resultado indeterminado provocaria a mesma reação? Não nos parece. Não entrando numa discussão para definir se foi o liberalismo ou o comunismo a provocar o maior número de mortes, o que parece importante indicar aqui é como o erro é visto em toda esta situação. A visão ocidental da Revolução Cultural Chinesa é claramente marcada por quem saiu com o ascendente após a mesma, Deng Xiao Ping. Esse mesmo que levou a China pelo atual caminho rumo a um capitalismo de interesse para os países ocidentais. A visão criada pelo ocidente e pela fação ganhadora tenta indicar que tanto as motivações, como o processo, bem como o que foi produzido durante esse período foram maus, mal-intencionados e um erro. Não duvido que muitos erros tenham sido cometidos em ambos os campos, mas a perspetiva transmitida do que aconteceu não é neutral. Alguém com mais interesse e tempo decerto encontrará relatos quer da Revolução Cultural Chinesa quer da I Guerra Mundial que descrevem a situação de um modo mais

O ERRO

Outro exemplo é o saque sistemático, primeiro, pelos soldados invasores e, depois, pela população de museus e sítios arqueológicos do berço da civilização. O pós-guerra ainda hoje se joga com a violência diária, a situação politica e económica insuportável e o ascendente do ISIS. Não estamos perante uma

guerra justa, não somos ainda hoje suficientemente evoluídos para cumprir com princípios do século XIII.

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idóneo e correto, mas a visão desses acontecimentos pela sociedade em geral é errónea e facciosa. CRÓNICA

Friedrich Hayek, na justificação do regime de Pinochet no Chile, tentou explicar que há uma grande diferença entre totalitarismo e autoritarismo. O segundo é por vezes um mal necessário e com consequências irrelevantes na prossecução dos realmente importantes objetivos económicos. Como é possível falar assim? Atualmente onde vivemos, para se evitar o erro de uma escolha entre dois campos que não funcionaram e não funcionam, não se toma uma decisão ou então adapta-se o melhor possível à situação existente. 
 Hoje em dia, há variadíssimas análises e críticas das sociedades vigentes, mas ao mesmo tempo há uma dificuldade, e em parte uma rejeição, da criação de mais ideologias totalizantes. A procura de uma síntese satisfatória que vá buscar o que de bom têm estas correntes é dificultada pela economia e a sua influência no dia a dia, que leva a que nada de radical seja feito pelo medo de uma perda dos direitos e condições económicas adquiridas.

1. SERGE, V., The case of comrade Tulayev, New York, New York Review of Books, 2004.

2. FISHER, D., Morality and War, Oxford, Oxford University Press, 2011, pp. 66-80.

3. http://www.versobooks.com/blogs/1741-the-ancient-alain-badiou-responds-to-thedashing-laurent-joffrin

4. GR AEBER, D., Why is the world ignoring the revolutionary Kurds in Syria, theguardian.com, 08.10.2014 (http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/oct/08/ why-world-ignoring-revolutionary-kurds-syria-isis).

Há sempre alguns jovens que cometem o “erro” de ir para o Médio Oriente juntar-se à luta do lado do ISIS ou dos Curdos. Alguns leem este conflito como a repetição da Guerra Civil Espanhola (com as devidas diferenças) 4, ou seja, um governo iraquiano fragilizado, como o era o governo republicano dos anos 1930; o ISIS contra (entre outros) os Curdos, tal como os nacionalistas e falangistas opostos às brigadas internacionais e anarquistas. Este foco de conflito no Médio Oriente, em conjunto com outros existentes, poderá de igual modo ser para alguns um prelúdio de mais uma guerra mundial5. Será que iremos repetir de forma tão grosseira os erros cometidos no século que nos precedeu?

5. Ver por exemplo capa e tema da Courrier Internacional de Novembro de 2014


O ERRO

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CRÓNICA

O AZULEJO INVERTIDO NÉLIA M ATOS

Visitar a Catedral de Washington é uma experiência fantástica mas também surreal, especialmente quando nos apercebemos que uma das gárgulas é… o Darth Vader. A escolha pode parecer estranha a muitos visitantes e até disparatada para os cristãos mais sérios, mas a verdade é que a introdução de um elemento estranho, incoerente ou pura e simplesmente de um “erro” faz parte da tradição de construção de catedrais. Da próxima vez que visitarem uma catedral medieval gótica, tentem encontrar uma coluna diferente de todas as outras, uma figura estranha num pórtico ou um azulejo virado ao contrário. Uma espécie de versão medieval e arquitectónica de “onde está o Wally”. Esses erros deliberados não foram, no entanto, colocados com objectivos lúdicos nem são resultado do sentido de humor dos construtores (ou pelo menos não só). Acreditem ou não, são centrais àquilo que uma catedral representa. As catedrais góticas foram ao mesmo tempo um feito tecnológico arquitectónico e uma peça de arte e beleza. Cortaram completamente com o estilo românico que as precedeu e subiram mais alto do que alguma vez antes na Europa. Se hoje as apreciamos e as achamos imponentes, o que pensariam os povos que as viram a ser erguidas? Povos que não tinham arranha-céus, não tinham acesso a arte como nós, que tinham casas modestas e vidas humildes… Ver e entrar devia ser de cortar a respiração de tanto espanto. Mas não nos podemos esquecer que, acima de tudo, são templos. Locais de culto. Foram erguidas

pela glória do Deus cristão. Por isso, mais do que o engenho do homem ou a beleza que ele esculpiu na pedra, era a grandeza e beleza de Deus que deveria prevalecer. E é aqui que entra o erro deliberado: os construtores sabiam que tudo o que ali estava tinha sido feito pelas suas mãos, mas num gesto de humildade, introduziam a subtil imperfeição que lhes lembrava que apenas Deus é perfeito. Curiosamente, esta atitude não é exclusiva dos construtores cristãos. Na verdade, as mesquitas e tapetes da cultura islâmica têm esta característica. Não nos esqueçamos de que são ambos locais de culto: as mesquitas são templos para grupos, os tapetes são templos pessoais. Para o Islão, assim como para os judeus (que os precedem historicamente) não se cultuam imagens da divindade. Assim, para eles, a geometria e a matemática são a única maneira de representar visualmente a perfeição do criador. Para os judeus a matemática e a geometria são tão importantes como a oração, pertencem ao estudo religioso e à demanda espiritual, através da cabala. No islão, a geometria tomou um lugar central para a representação da perfeição da criação e é usada extensivamente nas mesquitas e nos tapetes. E é nestas mesquitas e tapetes que introduziram este erro deliberado, em sinal de humildade, de que poderiam reproduzir geometricamente a beleza da imagem de Deus, mas nunca atingi-la em seu esplendor. O azulejo invertido é o erro subtil deliberado da mesquita. O padrão quebrado é o do tapete.


Note-se que as catedrais góticas (e a introdução destes erros) surgiram depois das culturas europeias terem tomado maior contacto com as culturas islâmicas, nomeadamente na Península Ibérica e na chegada a Jerusalém. Para passar das igrejas românicas aos majestosos templos góticos também foi preciso quem ensinasse aos pedreiros as técnicas de arquitectura e construção, e toda a matemática envolvida, em que os povos árabes já eram tão avançados. Não deixa de ser interessante que os grandes templos c r is t ãos ten h a m c a r ac ter ís t ic a s muçulmanas, da mesma maneira que os muçulmanos foram beber à geometria dos judeus. Todos estes cultos, na sua raiz interligados, têm mais em comum do que gostam de admitir. Numa época em que a tolerância religiosa é assunto de ordem do dia, não será altura de olharmos para estes erros deliberados e vermos nestas imperfeições introduzidas pelos vários construtores de templos um verdadeiro sinal de humildade? Afinal, somos todos humanos, mais semelhantes entre nós do que diferentes. Gostava de ver o dia em que se passasse para lá da mera tolerância e se construíssem pontes de diálogo franco e aberto. Se o fizerem, olhem com atenção porque, algures nessa ponte, haverá um azulejo invertido. Talvez um dia… Que a Força esteja connosco até lá.

O ERRO

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Nuno Fragata






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