Três três #2 - A Escala

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A escala Literatura Património Arte e crítica Crónicas edição limitada e numerada

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trimestral julho 2013


Pad Ell Rey


Neste número da TrêsTrês A escala Teatro escala Célia Ferreira Phosforescências Ricardo Norte Caminho, globalidade e representação: notas sobre um sistema técnico Pedro Mendonça literatura Escama/escala Nuno Fragata Abismo de um mapa Clara Faria Piçarra e Miguel Duarte 2 quadros Sandro Junqueira Pensapoemas Michel Jacinto Somos acaso somos estrelas Miguel D’Azur património Nome de código: “falo” Conceição Colaço Uma nota sobre o Sr. da Pedra Inês Felício arte e crítica Artist run culture I Patrícia Faustino “Uma boa bifana é uma autêntica obra de arte” André Rocha Jorge de Sousa Braga, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas José Ricardo Nunes crónicas A Poesia dos números Carlos Mendonça As escalas da Primavera Felipe Pathé Duarte Espaço tempo Ana Patrícia Maymone Uma questão de escalas… à escala Marina Ximenes topos Pedro Telmo Chaparra

p07 p10 p15

p20 p23 p26 p29 p30

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p46 p50 p52

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mostra p67 Estrada de Marraquexe - parte III Gonçalo Fonseca e Sandra Rodrigues Qual é o tamanho do círculo que fazes? Dedo Mau p70

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Edição: Pedro Xavier Mendonça Ricardo Norte Rita Baptista Design gráfico: Bruno Afonso Daniel Santos Nuno Fragata Impressão: Várzea da Rainha - Impressores Dep. Legal: 355130/13 ISSN 2182-7877 Colaboradores: Ana Rita Sobral, Bruno Afonso, Daniel Santos, Miguel d’Azur, Nuno Fragata, Pad Ell Rey, Pedro Xavier Mendonça, Ricardo Norte, Rita Baptista Convidados: Ana Maymone, André Rocha, Beatriz Pereira, Carlos Mendonça, Célia Ferreira, Catarina Verdier, Clara Faria Piçarra, Conceição Colaço, Dedo Mau, Felipe Pathé Duarte, Gonçalo Fonseca, Inês Felício, João Cabaço, José Ricardo Nunes, Marina Ximenes, Miguel Duarte, Patrícia Faustino, Ricardo Jorge, Sandra Rodrigues, Sandro Junqueira, Pedro Telmo Chaparra Ilustração de Capa: João Cabaço

É reservado aos autores o respeito pela utilização do acordo ortográfico ratificado em 2008. Os textos e imagens utilizados na revista TrêsTrês são propriedade dos respetivos autores e não poderão ser reproduzidos ou utilizados sem a autorização prévia dos mesmos. Contactos: revistatrestres@gmail.com

APOIOS:

Núcleo Electro-Estético


Editorial sobre

a escala Chegamos ao número dois. E continuamos na mesma lógica de em cada edição termos um tema em torno do qual os participantes se expressam. Na realidade não é bem um tema. É apenas uma palavra. O que já é muito, quando em cada palavra cabem vários temas. Começámos na cidade e depois fomos para a curva. Agora vamos noutro sentido, para a escala. É neste antes em continuidade com novos momentos que nos detemos em parte. Não que a autorreferência nos satisfaça. Mas temos o nosso ego e por isso também a nós se refere o tema deste número. Ganhamos escala. O que é o menos importante. Escalas há muitas. Mantemos e reforçamos a divisão da revista em secções. Nem em todas se trata de escala, mas ela lá está, dividindo, crescendo e decrescendo, num compasso que nos permite a compreensão e o respeito de cada estilo. Na primeira secção temos textos com teor mais ensaístico. Aí os autores pensam questões como a fotografia, a fantasia ou a representação, e todas remetem para uma escala. Na secção de literatura, a escala estende-se do corpo à viagem, recolhendo-se em dois quadros ficcionais e alguns pensapoemas, como lhe chama o autor. Ergue-se de novo na secção sobre património, onde o falo caldense é exposto, ao lado de um Santuário do Senhor Jesus da Pedra, que esperamos não se envergonhe. Segue-se a secção sobre arte e crítica, em diálogo com a cidade, voltando ao número zero, em escala circular. Fala-se de movimentos de artistas que promovem a cultura, responde-se a um texto do número um sobre o Caldas Late Night e faz-se uma recensão a um livro de poesia. Por fim, a última secção traz-nos crónicas em que a escala surge em múltiplas possibilidades paralelas, perdendo-se talvez num rizoma, mas certamente ganhando potência.

Pedro Xavier Mendonça

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E assim com métrica estamos um pouco mais crescidos e estendidos. Por isso vos pedimos que nos deem à escala da vossa leitura o enquadramento que vos aprouver.

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Temรกtica Pad Ell Rey



O TR

A E T

C S E Ricardo Norte


A L A C REIR R E F CElIA

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Este texto tinha título e protagonistas antes de começar. Dada a liberdade oferecida aos participantes deste nº 2 da três três, pensei propor um pequeno exercício ficcional. Seria uma peça teatral, as personagens seriam obras de arte que discutiriam entre si. O argumento giraria sobre “a escala”, a sua importância, a sua leitura e apresentação. Uma personagem poderia dizer que “Todas as escalas são importantes e não há umas mais importantes que outras”; outra diria que “…todas as escalas são artifícios verdadeiros”, etc.. No final a autora-narradora remataria, buscando cumplicidades, dizendo que “algumas escalas são mais iguais que outras”. As “personagens-obras-de-arte” seriam três peças de arte contemporâneas, que apresento: Time, Love and the Workings of Anti-Love¹ é uma peça de Lida Abdul (Afeganistão/EUA), e esteve exposta recentemente no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. É uma instalação que joga com fotografias-tipo-passe, na dimensão usual de 4x3 cm, de algumas centenas indivíduos afegãos, de diferentes idades e sexos, a máquina fotográfica com que foram feitos os retratos e som de uma voz que recita um texto. A “personagem” seguinte é Duas lições de realismo fantástico² de Rosângela Rennó (Brasil). É uma peça em duas partes, uma delas usa “lanternas mágicas”. A escala liga-se ao plano de projecção e corresponde à distância entre a parede e a lanterna mágica que projecta os negativos dos retratos-fantasmas que preenchem o espaço. A última “personagem” é Portrait³ por Thomas Ruff (Alemanha). No caso da peça de Thomas Ruff os retratos fotográficos em grandes dimensões, 210cm por 165cm, usam como modelo fotografias-tipo-passe. As três obras usam retratos fotográficos ligados pela tipologia aos arquivos de identificação. Embora a forma seja a da identificação não há nomes, são retratos anónimos. A forma como são apresentados os cidadãos anónimos pareceu-me ter ressonância suficiente para poder ser entendida de diferentes modos. As obras pareciam poder dialogar.

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Num acto único a narradora faria a apresentação das obras que entrariam em seguida. Mas na tentativa inicial, a primeira fala desafinada das três personagens gerou uma cacofonia que inviabilizou a intenção dramatúrgica. Ao reivindicar as suas nacionalidades, tamanhos e cores, as obras eram figuras caricaturais do nosso mundo. “Somos alemães, gigantes e coloridos”, “Somos afegãos, pequenos, cinzentos desvanecidos”, “Somos fantasmas brasileiros...”. O tom era risível. Como a responsabilidade da caricatura não era das obras, era minha, que as reduzia na forma, potência e voz, parei. Tentei de novo, retomei. Mas a peça de Thomas Ruff explicou que era “uma obra de realismo dermatográfico”... (o que provocou o escárnio superior da peça brasileira... e a indignação da peça afegã...). Parei de vez. Como é que se reconhece a escala numa imagem fotográfica? Quando pensamos em fotografias pensamos num tamanho médio, sem equivalência real, a fotografia habituou-nos a ver o muito grande (um território, um monumento) em tamanho reduzido e a ver ampliadas coisas microscópicas. Com a versatilidade da reprodução e as dimensões dos suportes fotográficos a oscilarem entre tamanhos extremos, abstraímos a dimensão física da fotografia, da matriz negativa, do suporte e do referente. No cinema a escala dos planos é dada pela relação com o corpo humano. Também na fotografia, quando se quer informar sobre a escala, esta é dada pela inserção do elemento humano. A imagem inscreve algo do corpo, ou de um objecto comum à medida do corpo; por exemplo, uma moeda vulgar serve de medida para imaginar a dimensão de um padrão, uma mão numa árvore a dimensão da árvore, a espessura de um cabelo a aproximação ao invisível, deste modo nos é assegurada a proporção em que confiamos. A história da arte oferece um repertório de escalas, das íntimas e afectivas, às dos grandiosos retratos de aparato público. O ver privado e o ver público usam escalas diferentes e os artistas usam a ambiguidade da escala. A escala é uma política. Quando Thomas Ruff faz os seus retratos não precisa de elucidar sobre a escala. Somos nós que servimos de bitola. A arte dos nossos dois séculos faz-se sobre o corpo da imagem e o corpo do espectador. A escala está ligada à noção de simulacro. O conceito está no Sofista de Platão, onde se discute a oposição verdade-erro: “[...] que nome daremos ao que parece copiar o belo para os espectadores desfavoravelmente colocados, e que, entretanto, perderia esta pretendida fidelidade da cópia para os olhares capazes de alcançar, plenamente, proporções tão vas4 tas? O que assim simula a cópia, mas que de forma alguma o é, não seria um simulacro?” Simulacro é a imagem que resulta da arte de criar imagens que copiadas numa escala maior que o modelo, apresentadas a um espectador, têm que conter correcções de proporção, para que quem as vê julgue estar perante uma cópia autêntica. É uma cópia que pressupõe que o espectador não deve perceber os truques nela contidos. A escala influencia a concepção de imagem que temos, na leitura da escala intervem sempre um elemento cognitivo e é preciso vontade para a reconhecer. Com que escala se fazem as imagens dos indivíduos? A Fotografia, como dispositivo de figurar, fornece, desde 1839, de modo sistemático, retratos de milhões de indivíduos, imagens que hoje estão naturalizadas. A imagem identitária, a imagem de um rosto guardado e identificado pertencente a um arquivo administrativo, burocrático, tem uma história, que, como 5 nos diz Michel Foucault , se liga à história dos mecanismos de disciplina e controlo do mundo moderno. A identificação tornou-se um instrumento dos Estados: é preciso saber quem é o cidadão e quantos somos do sexo feminino, do sexo masculino, quantos loiros e depois quantos cristãos, judeus, muçulmanos... as idades… que marcas temos 1 - É uma instalação de 2013, apresentada pela primeira vez no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, entre 18 de Janeiro e 30 de Março. 2 - A instalação de Rennó foi criada em 1991, utiliza retratos do acervo de um estúdio fotográfico popular do Rio de Janeiro, é composta por dua lanternas mágicas com negativos fotográficos, três fotografias p/b em papel, com nove retratos cada, 101 x 630 cm cada ( a peça foi apresentada na antologia da obra de Rennó no CAM Gulbenkian, 2012). 3 - A série fotográfica foi criada entre 1981-1985. A Fundação de Serralves apresentou o trabalho de Thomas Ruff em 2003.


4 - Platão. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. S.Paulo: Editora Nova Cultural, 1991. Pág. 153. 5 - Foucault, Michel. Vigiar e punir. (ed. orig. 1975, “Surveiller et punir”). Petrópolis: Ed. Vozes, 1997. 6 - “Sometimes people say, I am postidentity, post-nation etc.. I don’t know what this means. For me the most difficult thing is precisely to go past the memory of an event; my works are the forms of my failed attempts to, what others call, transcend. But what? For me art is always a petition for another world, a momentary shattering of what is comfortable so that we become more sophisticated in reclaiming the present. The new wandering souls of the globe, the new global refuseniks —stubborn, weak, persecuted, strong—will continue to make art as long as people believe in easy solution and closures of the most banal kinds.” in Lida Abdul. Statement. [Consultado em 25 de Março, 2013, http://www.lidaabdul.com/ statement.htm]

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nos corpos, quanto medimos, que linhas cruzam a nossa impressão digital... A tensão entre sujeito e indivíduo, o questionamento da identificação e da representação está presente na arte contemporânea, como na vida de todos os dias. Por isso quando se olha a peça de Lida Abdul somos aqueles que ali estão muito pequenos, como estamos muito pequenos, nos nossos documentos oficiais. Ou somos fantasmas da lanterna mágica, como os de Rosângela Rennó que resgatou figuras do arquivo que nunca seriam vistas senão, assim, em sonhos. Ou somos os gigantes vulgares que Thomas Ruff via todos os dias. É o indivíduo anónimo (mesmo que com nome) que é exposto. Vemo-nos na indiferença do formato, na uniformidade e multiplicidade do rosto; podemos imaginar-nos uma “grande família”, mas as vozes dizem outra coisa. Não são todas as mesmas vozes. Se se poderia pensar a peça de Lida Abdul como uma quase curiosidade etnográfica, o texto dito dá-lhe a presença de um país em ruínas, a tentar salvar-se poeticamente. Time, Love and the Workings of Anti-Love guia-nos através da apropriação das fotos de identidade, cópias por contacto de negativos em papel, para as palavras que transformam as fotografia-tipo-passe em pessoas, um coro. Um outro remédio para o presente.6 A fotografia, o arquivo e os fantasmas do arquivo são o campo de Rosangela Rennó. É uma tarefa artística imensa, presa à nostalgia e fora dela, atenta ao dispositivo fotográfico na sua dimensão material e técnica, ao negativo, à máquina, à impressão, à escala de reprodução. Atenta aos discursos sobre a fotografia, aos usos e funções sociais da fotografia. A artista deixou de fotografar para se apropriar de fotografias já feitas, para recolher, re-apresentar e fazer ver a Fotografia. Nos trabalhos da artista estão os fantasmas, aqueles que já não somos (?): nos álbuns de família vendidos em feiras de velharias, na identificação fotográfica dos presos e dos alienados, nas fotos de jornais, nos retratos de casamento, na apropriação dos acervos de estúdios decadentes. A desproporção da escala entre as peças da artista remete para os valores da imagem fotográfica. Em Duas lições de realismo fantástico, contígua à projecção dos negativos pelas lanternas mágicas, há outro momento, uma montagem sequencial de fotos-tipo-passe, ampliadas, que desenham literalmente uma linha de olhar, um horizonte inquietante, que parece perguntar se os fantasmas da realidade não serão um efeito das imagens que fazemos, usamos e descartamos. Há angústia e frieza na neutralidade documental em Portrait de Thomas Ruff. Há beleza na cor e na técnica e uma escala que nos seduz. É uma adesão estética. Por outro lado existe o jogo dos olhares, ver e ser visto a ver, a curiosidade do ver; é uma estratégia evidente no trabalho artístico de Ruff, mesmo em imagens de estrelas, nus, jpegs, desenhos, edifícios, impressões, máquinas. A curiosidade faz-nos chegar muito perto da pele das imagens - estaremos a ver bem (?) - na superfície há demasiado para ver. A escala das imagens fotográficas é motivada tecnicamente e por razões políticas, estéticas, económicas, pragmáticas, afectivas; serve diferentes sentidos, pertence a diferentes discursos e usos. A escala articula-se com a cor, com o suporte, com o referente, etc. A escala e a proporção no retrato são elementos fundamentais: a escala natural na fotografia está muito perto da imagem no espelho. No caso dos trabalhos que elegemos as alterações da escala do referente humano falam. A utilização de uma escala outra, além do convencional, mostra como a escala subverte a lógica da identificação, convocando a presença de uma pessoa. A justeza da escala pode discutir-se, não é sem porquê.

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RICARDO NORTE

Quando no nosso dia-a-dia nos cruzamos com a Fantasia, tropeçamos em algo que se caracteriza pela sua irrealidade. Fantasiar é distanciarmo-nos do real em direcção a um espaço que construímos. É relacionarmo-nos com representações, que existem de forma evanescente na nossa imaginação - “estás a fantasiar um bocado!” significa, no vocábulo popular, que levantamos voo para essa terra estranha que se define como inexistente. Se observarmos de forma atenta, nunca uma comunidade humana foi tão assustadoramente atolada de imagens fantásticas, e simultaneamente se definiu pela exactitude e objectividade perante a realidade. Algo de importante se articula entre estas duas categorias. De que modo é que a expatriação da fantasia para um reino supostamente “inócuo”, sob a forma de sonho, se efectua? O que é que acontece quando a imaginação se encontra penhorada no reino do marketing? Porque, sejamos “realistas”, a produção da nossa realidade tem requintes de esquizofrenia dignos de um filme de orçamento milionário. A produção de imagens que nos seduzem e encurralam, que nos manipulam num discurso de poder sobre a líbido, a felicidade prometida numa caixa de sapatos, ou num rolo de papel higiénico, têm em comum o habitarem a nossa realidade de forma concreta. Os discursos que produzimos não se articulam com uma realidade subjacente, mas sobrepõem-se e dão a ver outra realidade.


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Um mundo em que a esquematização absoluta do real se nos desvela como único modo possível de habitar, onde as coisas são vividas sobre o signo da objectividade, e onde aquilo a que chamamos fantasia não é senão a procriação de todos os monstros que se aconchegam no nosso leito. Este exílio da imaginação coloca-nos num problema de grandes dimensões, a actividade a que chamamos Arte deixa de ter uma relação com a comunidade para além do que designamos por mercado. Deixa de criar para entreter, e a cultura o que é para além de um produto como tudo o resto? Tantas vozes se juntam hoje para defender a instituição cultural, que naturalmente devém cada vez mais estreita e confinada ao embaraço da inutilidade. Mas será que conseguimos perceber o que há de vivo na cultura ao fazermos uma autópsia? Não me parece. Se não descobrirmos a chama, que, tão claramente, Benjamin dizia que o crítico devia preservar, nada de vivo se elevará de entre as cinzas. Mas então teremos de nos questionar sobre o que é a cultura. Para circularmos em torno do elemento vivo da cultura, devemos ouvir o que nos dizem os artistas, que respostas nos dão. Porque eles movem-se no diálogo com o vivo e não na estabilização do fixo. Cesar Pavese, numa carta a Carlo Pinelli, quando tinha apenas 20 anos, dá-nos um testemunho importante: “eu sei que é um trabalho infame o de inocular aos outros a cultura, que é uma coisa que cada um constrói por si mesmo.” O que é que isto significa? Será uma mera atitude juvenil revoltada com a educação? De modo nenhum. Se ouvirmos as palavras que nos diz com atenção, percebemos que efectivamente critica um modo de educação, mas não a necessidade da educação. A palavra “inocular”, oposta ao construir por si mesmo, vem pôr em evidência somente que não existe cultura sem relação livre com ela, e que jamais poderá ser uma coisa que o professor inscreve no aluno, ou algo do género de um saber que é dado como mercadoria. Educare significa conduzir, levar para fora, poderíamos tentar indicar, que o que faz um bom professor é conduzir o aluno de modo a que ele veja o saber por ele mesmo, deixando patente que o saber é algo que o Homem não possui. Nem o “construir por si-mesmo” manifesta um “solipsismo cultural” que para além de ser uma contradição é uma aberração. Nas artes a experiência individual é uma experiência de um comum e não uma incomunicabilidade, o que mergulharia o homem numa confusão sem sentido. “Cultura” é fundamentalmente ser com o outro, mas de tal modo que nesse comum encontramos a liberdade de sermos nós próprios. Mandelstam diz que a cultura é o sexto sentido do Homem. De modo algum poderemos compreender o que o poeta nos diz, se pela sua escuta não elevarmos a cultura a um plano completamente diferente do outro que falávamos ao início. Vamos olhar novamente para os conceitos com que começamos o texto. De que modo é que a imaginação é uma relação com irreal?

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O que é que entendemos por real, haverá realidade fora da nossa relação com as coisas? De que modo é que poderíamos ter uma relação à realidade sem um acesso ao irreal? Se nos mantivermos à escuta do que nos diz a arte, que é o lugar onde a imaginação tem a sua completude, de que modo é que esta manifesta o irreal e qual o seu correlato? Pavese no seu diário diz “a poesia participa de cada coisa interdita pela consciência – embriaguez, amor – paixão, pecado – mas ela recolhe tudo pela sua exigência contemplativa, quer dizer de conhecimento”. A poesia recolhe pela exigência de conhecimento, o que quer dizer que, ao contrário do conhecimento, que Pavese chama racional, a poesia movese numa relação de liberdade com o todo. Recolhe, mete em conjunto, não de um modo qualquer, mas com a “exigência de conhecimento”. O poema move-se nesta exigência não através do reconhecimento de um fim ou de uma essência, mas revelando algo através do seu produzir - produzir que deve ser entendido por trazer à plenitude. Não pela violação, ou provocação do silêncio, mas pela sua escuta, e no seu movimento de abertura colher (re-colher) e juntar o que pede para estar em conjunto. Falamos pois de logos e não de ratio, que, para além de discurso, quer dizer recolher, meter em conjunto, o que ainda pode ser ouvido em ratio se não nos ativermos ao cálculo, mas ao que se pesa e pondera, e aquilo que tem o mesmo peso equilibra-se entre si. Legein (falar) de forma justa, compreende ouvir e ler sem que algo se imponha ao que é escutado (lembremo-nos do que nos disse Goethe: “muitos não sabem quanto tempo e fadiga custa a aprender a ler. Trabalhei nisso 80 anos e não posso dizer que o tenha conseguido”). Ler é essencialmente colocar em conjunto o que faz sentido em conjunto, mas não nos precipitemos sobre o fazer sentido, pois rapidamente o compreendemos como algo que nós damos às coisas, senão de onde é que ele brotaria para que o pudéssemos dar? Se o sentido não nos for dado, de que forma é que o doamos, e se não nos encaminharmos para ele de que modo


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Beatriz Pereira

é que ele se dá? É pois numa luta que algo pode ser colhido, e porque o fenómeno não se manifesta imediatamente, é necessário uma fenomenologia que o evidencie como o que vem à presença. De certo modo, só conseguiremos ler alguma coisa se já a reconhecermos, este é o círculo hermenêutico que nos é próprio. Podemos ler um texto, um quadro, uma montanha, porque nos movemos na distância que nos permite realizar o irreal. Qual é pois o correlato da irrealidade poética? Será a realidade enquanto compreendida como o que nos é habitual, e o habitual o que nos rodeia como uma “impostura”, literalmente como o que se impõe como real, “impostura” porque nos enclausura numa impossibilidade de proximidade. Por isso, a arte e o pensamento são rupturas. Somente a partir de um distanciamento é que uma relação e uma aproximação se pode manifestar. Sem uma relação com o irreal nenhuma realidade poderia surgir ao ser humano. Mas se o irreal só é irreal enquanto correlato de uma realidade quotidiana e empobrecida pela sua fixação, somente através dele poderemos aceder a outra realidade — “a realidade não se revela senão for iluminada por um raio poético”(George Braque). Neste sentido podemos compreender a palavra “fantasia” de forma mais original, e escutarmos na sua origem etimológica a palavra phantasia na qual nos dizia Aristóteles fala a phôs (luz) e tem como parente a palavra phainomai que significam “vir à luz, aparecer”. Termino com uma descrição de René Char daquela que Baudelaire dizia ser a rainha das faculdades: “A imaginação consiste em expulsar da realidade vários personagens incompletos para, colocando a contribuir as forças mágicas e subversivas do desejo, obter o seu regresso sob a forma de uma presença inteiramente satisfatória. É então o inextinguível real incriado.”

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Joรฃo Cabaรงo


CAMINHO, GLOBALIDADE

E REPRESENTACAO:

NOTAS SOBRE UM

SISTEMA TECNICO

PEDRO XAVIER MENDONcA

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Perante o mundo, ainda não enquanto globalidade, o homem, pela forma como deixou a marca de uma transformação, viu-se impelido a caminhar, sobretudo no sentido de recolher recursos, tendo em conta um objetivo, entenda-se, por mais difuso que pudesse ser - portanto, não consideremos a deambulação. Dessa postura dependia a sua sobrevivência. Nos últimos séculos com mais evidência, houve uma resposta do mundo limitativa e replicativa, como tão bem mostra a questão ecológica. Com o crescendo civilizacional, à relação ao mundo enquanto caminho somou-se a intensificação da exploração num modo que podemos designar de captação. Aqui já não se trata somente de sobrevivência, mas de controlo. É deste referente que emerge a ideia de um mundo enquanto globalidade. Desde os descobrimentos ao sistema global de posicionamento (GPS), vemos uma força clara nesse sentido. Já não se trata apenas de percorrer um território; trata-se de captá-lo na sua totalidade. Cabe nisto a clássica questão da ciência e da tecnologia ao serviço de um impulso de dominação da natureza, incentivado por Francis Bacon e René Descartes.

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Sob este domínio é possível interpelar a ligação entre o ponto a partir do qual se gera uma busca e o ponto afastado a que se refere essa mesma busca. Entre um estar-aqui e uma distância podem estabelecer-se vários tipos de relação: de desconhecimento, de saudade, de imaginação, de transporte ou de comunicação, entre outros. Nisto participa o conceito de “representação”, muitas vezes como comunicação, mas não só. Certamente, esta noção é demasiado complexa e estudada para poder ser analisada aqui com toda a dignidade que merece. Mas vale a pena arriscar na ousadia. É na presentificação da distância que este conceito se joga. Diz respeito a um trazer daquilo que não está presente, mas em que nos fixamos de algum modo, para uma presença figurada, re-presentada. A lonjura pode não ser um lugar físico identificável, mas apenas uma dinâmica imaginária. Contudo, e aqui está a problemática, trazer a distância implica a criação de um lugar novo para a representação. A linguagem, um mapa ou uma imagem, entre muitas outras coisas, também são isso. São representações que, além disso, criam um espaço quando se mostram, visto apresentaremse ao mesmo tempo que presentificam. E o curioso é que, nesse ato, elas traem o referente. Por assim dizer, colocam-se em bicos de pés, interpondose. Não sendo vaidade, até porque não fazemos um processo de intenções, é provavelmente uma condição. Aqui as representações agem. E são mais do que simbólicas no sentido clássico. Nas ciências sociais, autores como Nigel Thrift ou Alfred Gell exploram este potencial, em parte inspirados nos trabalhos de Charles Peirce. Voltando à questão inicial, podemos dizer que o mundo como caminho não revela da mesma forma a representação como o mundo enquanto globalidade. No primeiro caso, a distância mantém a higiene da representação, ainda que esta ocupe um lugar; no segundo, a representação cola-se ao referente quase como novo lugar total. Durante o caminho, o sítio longínquo mantém-se à distância; perante a globalidade, não, é captado no próprio olhar global, constituído em parte pelo processo de apreensão. O GPS é um caso curioso a este respeito porque combina no seu uso e estrutura a representação nos dois modos indicados: no caminho e na globalidade. No uso individual dos dispositivos de navegação, a forma de relação ao mundo é claramente a do caminho. Enquanto se faz a exploração de uma geografia, é-se guiado por um mapa dinâmico que indica os melhores sentidos para chegar a um destino configurado. O mapa e o dispositivo que o torna dinâmico forçam uma representação no sentido clássico. O mapa tem que manter sempre uma distância em relação ao percurso a que se refere, colocando-se em vez dele. Mas não o pode substituir. Tem que o conservar como referente, ora mais perto, quando a estrada a que remete está em frente, ora mais longe, quando o destino não é visível no


imediato, mas somente na cartografia que o indicia. A funcionalidade assim constituída só é possível na esfera que a diferença entre representação e referente abre. É um mecanismo de afastamento e aproximação gravitacional que mantém a sua possibilidade na relação fixa desta distinção. Pensemos agora o modo de globalidade. Estes dispositivos integram-se num sistema planetário constituído por dezenas de satélites e estações terrestres, o GPS propriamente dito. É nesta estrutura que a captação é permitida. Neste nível, mais abrangente e global do que os artefactos que o compõem, a relação ao mundo ocorre no âmbito de uma acoplagem a uma esfera. Num certo sentido, não só permite esta, como a constrói. Ainda que esta mecânica sirva para a produção da representação presente no mapa do dispositivo que conduz num caminho, ela faz-se num processo que de algum modo participa na força representacional: os satélites, as estações terrestres e os sinais de rádio que comunicam entre estes diferentes pontos são confluências na direção de um automatismo de referência a um mundo - automatismo esse que permite a representação ao mesmo tempo que a dilui nas forças funcionais de produção da localização. Portanto, está-se longe de manter a distância entre representação e referente. Esta totalização do mundo, enquanto gigantesco abraço ao globo terrestre, ilustra como o processo técnico de representação atinge um limite que o transforma ao precipitar-se sobre as margens do planeta, a finisterra que encontra a outra ponta sistémica na circulação completa à Terra. Perante isto, a representação toma o lugar total. É então uma realidade pronta para ser também ela representada num processo de desdobramento sem fim à vista. Não obstante esta constatação, podemos questionar se não estaremos condenados a uma noção clássica de representação, própria do âmbito do caminho, em que o espaçamento ao referente se mantém. O humano individual, ontogenético, se quisermos, está condicionado ao caminho na sua corporalidade e disposição ao ambiente. Ele nunca capta a globalidade sem a ajuda do sistema técnico. Além disso, ele não tem a fisicalidade deste. É antropologicamente constituído. Por isso, ainda que diante de variações representacionais no que à distância ao referente diz respeito, o humano parte sempre do lugar próprio de quem tem os olhos fechados localizados num ponto singular. A sua interpelação ao mundo faz-se a partir de uma abertura da vista, da escuridão para a luz. E nisto há sempre um intervalo entre os dispositivos que usamos para representar o que está longe e aquilo que queremos ver. Se o pensar é fala, mesmo esse é distância. E é aqui que a modernidade ainda é tardia.

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Literatura


Beatriz Pereira


Scale (anatomy), a rigid plate which grows out of the skin of various animals 1ª Ação - Roo uma unha. Faço uma escala. Volto a roer. Para além do homem existem forças. Mostram-se como intensidades, gradientes, desenvolvimentos e transições, estabelecidas no território que é a imagem de um corpo. Território sujeitado a escala. A escala é o ponto de paragem para reabastecimento durante um trajeto. Produz uma escama a partir da informação contida no território. Um território em contínua recriação, fragmentação e ajuste, sem interior, exterior, fronteira ou limite. A escala (scale) do corpo surge como lugar habitado por formas-força, que anteveem e encenam possibilidades. 2ª Ação - Volto a roer a unha que entretanto cresceu. Faço uma escala. Roo de novo. A possibilidade ganha corpo aquando da paragem para reabastecimento e crescimento de matéria a partir da informação contida no território. O trajeto revela-se como devir a cada ponto de paragem (escala), um devir (in) humano. Cada escala sugere abandono e renovação. Como escama, não procura dar a ver realidade ou verdades, interiores ou exteriores ao homem, mas potencia a criação de quantos este desejar. Eus que surgem, possibilidades ficcionadas, uma escala de cada vez. A escama (scale) do corpo surge como o lugar anteriormente habitado pelas formas-força que anteveem e encenam possibilidades. 3ª Ação - Repito as ações anteriores. Pela escala produzo a escama, que de seguida afasto. NUNO FRAGATA

Referências: Tucherman, Ieda (1999) Breve história do corpo e de seus monstros, Lisboa, Vega. Gil, José, ( 2005) Sem Título. In Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio D`Agua Nietzsche, Friedrich (1885) Assim Falou Zaratustra, Lisboa, Publicações Europa-América.


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Viajar não é realizar o imaginário que nos excita antes da viagem mas sim exterminá-lo. Disse-o Vergílio Ferreira. Sempre tive um fascínio por Mapas. Do Mundo de preferência. Tinha um na secretária, por baixo de um vidro grosso, que me animou as noites de estudo na adolescência. O quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos. Se os vértices estivessem em Portugal, na Antártida e na China, calcular a hipotenusa podia ser uma boa viagem. Atravessava África inteira e ainda conhecia a Índia. Mais acima o Tibete. Trocava o livro de matemática por estudos mais sociais e lá ia, a subir os Himalaias sem precisar de oxigénio para chegar ao topo do mundo. Imaginava que fosse azul e que todos os sherpas eram também azuis, por dentro, com um sangue especial que lhes permitia o impossível. E estando ali tão perto, nem cinco centímetros, saltava do triângulo até à Birmânia. Via a selva e os arrozais, com monges e militares, metia-me medo, a Birmânia, gostava de a conhecer um dia. Saber como ali se vive. Ao longo dos anos fui desenhando pontos e riscos sobre histórias que queria que acontecessem. Está viva, a expectativa. Só mais tarde, já com o poder da concretização nas mãos, é que abri um mapa vivo. Esse rectângulo de papel que se transformaria em viagem. Ia, finalmente, pisar os pontos que escolhesse. Os do mapa e os da imaginação. Foi uma viagem longa, a dois, durante meses inteiros de surpresa. Tocámos em terras que antes eram papel a cores e contornos. Terras que tinham também cores. E gentes. E experiências. Chegámos a Kyaukme, na Birmânia. Há apenas um apeadeiro e uma guest house. Estamos no limite da rota. O tuk tuk salta à medida que a estrada vai ficando pior, anunciando ao som de barulho a nossa chegada. Nos campos os trabalhadores fatigam. Nas estradas os monges peregrinam. Nos pátios as crianças brincam. Todos nos olham. As crianças, sempre mais curiosas e atrevidas, lançam-nos adeus com todas as mãos ao ar e dizem as palavras de estrangeiro que aprenderam na escola e em cinema. “I love you” gritou a mais afoita. Rimos. a escala

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A imagem desta Birmânia rural fica gravada entre duas árvores. O perfil de um homem a escapar do sol. A distância que nos separa é maior que os quilómetros e que a língua. É verde arroz e verde farda militar. É cheia de terra. É falta de tempo. É sem palavras. É toda a distância que a humanidade permite aos homens ter. O mais próximo que estivemos deste país foi à mesa de U Myint Aung, numa destas aldeias fora de rota. Entre um chá e sementes de girassol indicámos num velho mapa da URSS onde ficava Portugal. Dois palmos de distância. As suas escassas palavras em inglês são suficientes, o silêncio do seu companheiro, sentado à nossa frente sem voz mas cheio em sorriso, bastam-nos. Quando homens partilham não há distância que fique. O contorno da Birmânia imaginada anos antes perdeu-se no agora, um horizonte presente. Escrito, vivido. Morre lenta, a expectativa. Ficam palavras, como mapas. No fundo do texto, em letras pequenas, adverte-se que cada palavra equivale a um mundo de experiências. A distância. A distância, essa que fica entre o mundo de papel que temos na mão e a realidade que se torna presente, pode alcançar significados ainda mais interiores. Estávamos, desta vez, no Deserto de Gobi, um lugar tão ausente de mar que se andarmos em linha recta para qualquer direcção só sentimos o sal quando já nos esquecemos do que tentávamos alcançar. Trincávamos pedaços de queijo de camelo, sem um banho há sete dias, com terra das pestanas até à imaginação. Estávamos pesados. Tínhamos o telemóvel numa mão. E as palavras na outra. Os nómadas do Gobi vivem num espaço que não é de ninguém, num isolamento que se torna mais claro quando começamos a vê-los para além do que olham. Os cavalos, as cabras, os camelos são a sobrevivência de séculos. Transformam-se sem ilusionismos em carne, leite e trabalho. Numa repetição de sempre e que se prevê sem fim. Aqui o que muda é apenas o onde. Aquele que vai mudando de lugar. Vivemos uns dias assim, com aquelas pessoas e sós, como apenas se consegue viver em desertos que não se apontam em mapas. Aqui mostraram-nos como se pode ser ilha. Mesmo quando se vive longe do mar. Acabáramos de ligar para casa. Palavras que podiam ser comuns teimavam em ficar-nos fechadas na mão.


Quando o quotidiano muda, não as experiências que se vivem dentro dele mas quando todo o ambiente envolvente nos é incomum, as palavras alteram o seu significado. Tornam-nos indefinidamente mais longe do que qualquer distância. São novos os rios e as paisagens, as pessoas distantes e diferentes, só nós não nos libertamos de nós. Para isso não dependemos de qualquer geografia. Ficamos, até, mais pesados. Porque, àquilo que somos, acrescentamos o que era novo. Se a intenção de viajar for fugir, engana-se também, e de forma bem redonda, a vontade. Carregamos sempre quem somos onde quer que vamos. Mesmo quando não saímos do lugar. Não nos descobrimos, não ficamos mais sábios, nem mais livres, nem melhores. Perdemos alguns sentidos da palavra, talvez os mais importantes, os da comunicação com um outro que nos é querido. Para quê dar, então, o passo para além do mapa, onde centímetros equivalem a centenas de horas em autocarros velhos, no meio de Ásias ou Áfricas tortuosas? Nasce, a possibilidade. Como quando se lê um livro que surpreende, ou conversamos com amigos que nos mostram mais. Mas sem a segurança do que nos é familiar, sem o dia-a-dia que por si cristaliza o dado adquirido. Principalmente viajar é uma forma de pensar. E pensar enquanto nos encontramos sentados a comer um caldo picante, numa cadeira minúscula, numa língua que não se entende, pode ser regressar ao Mapa, ao aqui, àquele círculo desenhado numa secretária longínqua que já não é o que se imaginava ser. Porque não deixámos de carregar tudo o que éramos, mas também porque nos transformámos naquele pequeno ponto. Um vértice de tinta que finaliza a aresta que percorremos.

Clara Faria Picarra Miguel Duarte

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2 QUADROS 1 É um dia de vento. E o pai está atrás do portão da escola e aguarda. Ao seu redor trinta e sete mães trocam pormenores daquele dia e de outros. Unhas de gel, receitas de bacalhau. Três pais fumam em silêncio dentro de automóveis. O vento sacode tudo, todos. Varre pestanas, despe árvores, arrasta palavras perdidas para longe, põe folhas nos pára-brisas. O pai tem um saco de plástico vazio no bolso do sobretudo. Tira o saco. O vento apressado abre o saco em paraquedas. Arrasta o pai pelo empedrado durante segundos. Até o pai conseguir dar um nó. Agora, o saco de plástico fechado guarda aquele vento dentro. A campainha da escola toca. Ouvem-se anúncios de gritos e risos infantis. As trinta e sete mães esbugalham os olhos ao mesmo tempo que os três pais silenciosos abrem as portas dos automóveis e saem e atiram as beatas para o chão e fecham as portas já com os filhos lá dentro. O pai segura firmemente o saco de plástico – como um balão irrequieto. Vê através do portão o filho correr na sua direção. Ele sabe que ali, apertado na mão, guarda um acontecimento. Chegados a casa, o pai abriu a porta. O filho entrou primeiro. Depois de fechar a porta, o pai fez-lhe sinal para esperar. Desatou o nó do saco de plástico que segurava na mão esquerda como um balão irrequieto. O vento livre percorreu o corredor e outras divisões até se cansar. Pestanas, folhas de outono, palavras perdidas, pentearam móveis, paredes, rodapés. Após o prodígio, o filho, com a mochila às costas, bateu palmas. Sorriu. O pai abraçou-o. Disse: o vento é um ilusionista.


2 O velho, de boné, tomou o assento na carruagem conforto. A sua intenção era fazer uma viagem até ao fim da linha. Mal se sentou, o comboio deu início à marcha de movimentos embriagados. O velho sentiu de imediato a deslocação dos ossos. Bacia, rótulas, clavículas. Enquanto durasse a viagem os ossos far-lhe-iam companhia. Iriam lembrá-lo, a cada metro de linha férrea, quem ele fora. O revisor surgiu ao fundo da carruagem. Atrás do revisor, uma jovem bem rosada de peitos rijos. O velho estendeu o dinheiro para a aquisição do bilhete. O revisor recusou. A cortesia elegante da mão. A idade do velho não tem preço. O dinheiro é poesia na velhice. E a proximidade da morte é merecedora de cortesia. De uma mão gentil. O velho guardou o dinheiro no bolso e acenou com a cabeça. Sentada à sua frente, a jovem rosada de saia minguante, oferecia os joelhos ao sol outonal que penetrava a janela. Permitia o olhar de nuvens do velho. Por momentos, deixara de ouvir os ossos. Através da janela, a paisagem em viagem. Ao tirar o boné, o velho, hesita. Olhar que paisagem?

Sandro Junqueira

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PENSAPOEMAS

Anselmo Caeiro

I. Quando te aproximas da essência das lágrimas O teu olhar turva-se, a tua dor brilha Quando te aproximas da tua verdade, só tua Custa-te apreendê-la, custa-te tocá-la É quando mais te aproximas que mais te sentes afastado Não te enganes!, é a tua luz a irromper, és tu a relumbrar II. Quanta dor cabe no interior de uma ferida? Pequena ou grande, como se mede a sua profundidade? São necessárias muitas feridas para aprender a desaprender E curar as chagas expostas no peito do vento Mas é precisamente esse vento que nos ensina a crescer É ele que nos transporta pr’além fronteiras, além de nós! III. Tudo está inscrito à nossa volta A verdadeira memória das primícias Resta descodificar a linguagem mais antiga Aquela que não tem dono e que, ainda assim, a todos pertence IV. Não sigas os passos de quem escolhe por ti Segue o teu próprio caminho Mesmo que vaciles ou caías ou te percas Quem nunca caminhou não sabe o que é Caminhar V. A alma também chora, a alma também sofre A sua dor é uma dor de parto Uma mistura de sofrimento e de luz Um ensejo de produzir vida e de a ver desabrochar


Pad Ell Rey

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Somos acaso somos estrelas Por cada estrela a fulgir a sua insignificância o acaso tece uma ponte que atravessa o olhar. É mais do que uma ponte. É ser a clamar por outro ser. É luz a atrair mais luz. É o espaço infinito a repercutir a melodia das estrelas, inaudível ao ouvido, mas percetível ao coração. Somos acaso, mero acaso na distorção do espaço e do tempo. E é o furtuito, o inesperado da criação que bate lentamente o seu pulsar sereno, mas nem sempre pacífico. Às vezes é fogo a jorrar das entranhas da terra, pele a queimar com a dor de existir, pele a sentir que está a existir, pele a morrer para renascer viçosa e pronta para brilhar mais uma vez e outra e novamente, como o processo da criação. Hoje sou acaso. Amanhã serei estrela. E é naquele preciso momento que não pertence às leis da terra que o silêncio rasa as pedras do sofrimento e lhe ergue uma torre de marfim, uma torre assente em esperança e lume e sopro incandescente. Hoje, não sou nada. Mas amanhã, sim, amanhã, talvez, serei chama a brilhar do fundo da noite, uma ferida branca a partilhar as verdades ignotas da existência. É esse o parto das nostalgias. É esse o parto da verdadeira pertença, sulcos imutáveis a vaguear pelas veias do tempo, agora e sempre, em busca de um olhar onde finalmente possa repousar.

MIGUEL D’AZUR



Patrim贸nio


Daniel Santos


NOME DE CODIGO ConceiCAo ColaCo

Segundo uma representação social comum, quando explicamos às crianças o que são “palavrões”, dizemos-lhes que essas são “palavras feias” e, por isso, não devem usá-las. A verdade é que, com esta qualificação, não pretendemos fazer apenas uma distinção estética das palavras (entre feias e bonitas), mas sim reforçar um princípio de conduta verbal adequada, que parece não ficar consagrada se nos referirmos apenas à dimensão da palavra. Convenhamos, “otorrinolaringologista” é um palavrão – e o valor estético dessa palavra também poderá ser discutível - mas não é certamente uma “asneira”. Há, portanto, uma outra categoria de palavras - as “palavras técnicas” - que, não sendo feias nem bonitas, são úteis. As palavras técnicas invadem hoje em larga escala a linguagem corrente, e algumas dessas palavras são usadas para contornarem a situação incómoda de ter que nomear-se as coisas impertinentes. Por exemplo, a expressão Falo das Caldas é um eufemismo recente, de cunho intelectual, introduzido na linguagem corrente para identificar a louça com a forma do órgão genital masculino erecto, presente na produção cerâmica das Caldas da Rainha, desde a segunda metade do século XIX. Esta expressão constitui uma boa ilustração do modo como a linguagem técnico-científica invade o quotidiano de forma generalizada e de como esta linguagem se presta para construir metáforas elegantes, em substituição airosa do vulgar palavrão. Em bom rigor, com o termo falo concorre uma palavra, muito mais antiga, mas de grande vitalidade na linguagem coloquial privada: o disfemismo caralho. Mas quem, hoje, se atreveria, ao elaborar um inventário do património local, a escolher designar aquela cerâmica como o Caralho das Caldas, em vez do tão asséptico e requintado Falo? A resposta a esta pergunta requer um exercício de etimologia, ainda que breve e introdutório, sobre cada um dos termos constitutivos das referidas expressões e sem esquecer a advertência de Heidegger sobre o modo como deve fazer-se esse exercício: apoiarmo-nos no significado antigo das palavras e nas transformações que as mesmas palavras sofreram, para tentar perceber o domínio de coisas em que elas introduzem e no qual elas falam1.


De acordo com Lakoff e Johnson, o nosso sistema conceptual comum é de natureza metafórica, pois é através de metáforas que percebemos a realidade, que pensamos essa mesma realidade e actuamos nela2. Ora, quer os eufemismos, quer os disfemismos, são metáforas e, embora sejam classes especiais daquelas, ambos têm o mesmo valor cognitivo. Curiosamente, as palavras que hoje são disfemismos, incluídos aqui os vulgares “palavrões”, as ditas palavras feias, começaram frequentemente por ser metáforas com função de eufemismo, construídas com base nas vivências do quotidiano. É o caso do disfemismo-antes -eufemismo caralho, ao qual se aplica, que nem uma luva, o comentário de Heinz Kröll: “As palavras costumam gastar-se, como as medalhas, pelo uso. O que hoje ainda é um eufemismo, amanhã, já pode ser um disfemismo”.3

2 Cfr. George Lakoff y Mark Johnson, Metáforas de la vida cotidiana, Madrid, Cátedra, 2.ª ed., 1995, pp. 39-40.

3 Heinz Kröll, O Eufemismo e o Disfemismo no Português Moderno, Lisboa, Biblioteca Breve, vol. 84, 1984, p. 9. 4 Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados, 2º vol., Lisboa, Livros Horizonte, 3.ª ed., 1977. 5 Pierre Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots, Les Éditions Klincksieck, 1977.

Rémy de Gourmont (1858-1915), ensaísta, romancista, jornalista et crítico de arte francês. 6

7 Rémy de Gourmont, Esthétique de la langue française: la déformation, la métaphore, le cliché, le vers libre, le vers populaire, Paris, 1899, p. 14.

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Qual é, então, a origem de caralho? José Pedro Machado4 faz derivar esta palavra do latim caraculum, que significava “pequeno pau”. Que “pequeno pau” seria este é desvendado pela origem grega daquele étimo latino, Χάραξ (chárax), que, segundo Chantraine5, seria “estaca para a vinha” ou “estaca para uma palissada”. A hipótese expressa por Machado e por Chantraine, de caraculum ter sido pensada pelos romanos como metáfora, mais precisamente como eufemismo do órgão genital masculino erecto pode justificar, de certo modo, a utilização abundante na literatura medieval galaico -portuguesa dos vocábulos derivados carallo e caralho. Pode, mesmo, ajudar a compreender a actual variação de uso do vocábulo caralho em Lisboa e no Porto, considerado no Porto muito menos ofensiva a sua utilização na linguagem corrente. Rémy de Gourmont6, num interessante ensaio sobre a estética da língua francesa, onde se propõe analisar as condições sob as quais a língua deve evoluir para manter a sua beleza, considera que há no francês e em todas as línguas neolatinas três espécies de palavras: as palavras de formação popular, as palavras de formação erudita e as palavras estrangeiras, importadas brutalmente7. Segundo este critério, caralho pertence à primeira espécie, uma palavra de formação popular, logo, é uma palavra formada pela via que mantém a língua esteticamente bela. Falo, por seu lado, é uma adaptação para português da palavra fran-

Cfr. Martin Heidegger, “Science et Méditation” in Essais et Conférences,1953, pp. 77-79. 1

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cesa phallus, de formação erudita, que, segundo José Pedro Machado8, entrou no vocabulário português através da tradução do latinismo francês, inventado a partir do grego φαλλός. Neste caso, se adoptarmos o critério do citado Rémy de Gourmont, teremos de considerar o erudito falo como um “palavrão”, embora necessário, tendo em conta a finalidade científica que motiva a sua formação. Já em 1984, Heinz Kröll afirmava que “a palavra falo é um termo culto de pouco uso”9. Resultante dos procedimentos habituais da ciência ocidental moderna, a palavra phallus aparece pela primeira vez no contexto das nomenclaturas botânicas do século XVI europeu, para designar um cogumelo com a forma do pénis erecto. Entre os séculos XVIII e XIX, o termo é apropriado por outros domínios da actividade cultural, nomeadamente o Coleccionismo, a Arqueologia, a História, a Antropologia. Os dicionários da língua latina nunca apresentam o termo, pela simples razão de que este vocábulo não faz parte do léxico latino. Então, de que modo é que os antigos romanos pensavam o φαλλός grego? Relativamente ao mundo grego, Chantraine diz que o significado mais antigo de φαλλός terá sido o de órgão genital masculino, considerado anatomicamente. Só mais tarde esta palavra aparece com o significado de “representação do pénis erecto, especialmente no contexto das festas de Dionisio”10. Representação não é, contudo, o conceito adequado para definir este estado de coisas, já que a interpretação mítica da realidade no mundo antigo implica uma imediatez que exclui o carácter mediador da imagem, inerente ao conceito de representação. Simulacro é a designação mais indicada, em vez de representação. Remete, no grego tardio, sob a forma de εἰδωλεῖον, para a ideia de ídolo, com o significado de templo onde estão os ídolos. É recebido pelos latinos como idolum, ídolo, que na visão cristã se refere a uma estátua de falso deus11, sendo, nesta acepção, referido no Novo Testamento12. Portanto, o φαλλός é o próprio deus e o simulacro do φαλλός é simbolicamente o deus: “Onde vemos (diz Cassirer) uma relação de mera ‘representação’, para o mito, se ainda não se desviou de sua forma fundamental e primordial e se ainda não perdeu seu carácter original, há uma relação de identidade real. A ‘imagem’ não representa [darstellt] a “coisa” – ela é a coisa; ela não é apenas sua suplente, mas sim age como ela, de forma que a substitui em seu presente imediato”.13 Daqui que o simulacro faça parte do rito, ligados, ambos, por um vínculo misterioso ao deus, através do nome. Já os romanos pensam anatomicamente o φαλλός, através de eufemismos: virga, membrum virile, entre outros. Pénis, que deriva do grego πέος, cujo significado originário é “cauda”14, começa por ser uma metáfora do membro viril em repouso. Nos gregos, πέος significa sempre o genital não circuncidado e não erecto, percebido analogicamente como uma pequena cauda. Para os romanos, o pénis não circuncidado é verpa, e circuncidado é verpus, complementando tanto uma como a outra o sentido obsceno de mentula, disfemismo básico, popular, muito usado pelos poetas satíricos. Marcial, por exemplo, assume nos seus poemas nunca usar

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José Pedro Machado, ibidem.

Ob.cit. p. 81.

10

Ob. Cit. p. 1175.

11 A. Ernout e A. Meillet, Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Histoire des mott, p. 546. 12 1Coríntios 12, 2: Οἲδατε ὃτι ὅτε ἔθνη ἧτε πρὸς τὰ ἔιδωλα τὰ ἂφωνα ὡς ἂν ἢγεσθε ἀπαγόμενοι.; scitis quoniam cum gentes essetis ad simulacra muta prout ducebamini euntes; Vós bem sabeis que éreis gentios, levados aos ídolos mudos, conforme éreis guiados. 13 Ernst Cassirer, A Filosofia das Formas Simbólicas. II – O Pensamento Mítico, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 78.

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Pierre Chantraine, ob. cit. p. 882.


Cfr. J. N. Adams, The Latin Sexual Vocabulary, 1982, pp. 12-13.

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Ibidem. Wilhelm Kroll (1869-1939), Filólogo classicista, alemão. 18 Kroll, Wilhelm (1929), C. Valerius Catullus, German, Leipzig: B.G. Teubner, citado por J. N. Adams, ob.cit., p. 13. 19 Pascal Quignard, El sexo y el espanto, Buenos Aires, Ediciones Literales, 2000, p. 48: “A una religión contagiosa, cada vez más sincrética ya que asociaba a su proprio triunfo, a su própria‘piedad’, todas las religiones de los pueblos a los que vencia, le corresponde un temor cada vez más maléfico. Los romanos, que estaban atestados de gestos conjuratórios, se atestaran de apotropaion de toda naturaleza para apartar el mal de ojo e incluso para desarmalo mediante el sarcasmo del ludibrium, para ‘devolverlo al remitente’ (…). Plutarco dice que el amuleto itifálico atrae la mirada del fascinador (fascinator) para impedirle que se fije sobre la víctima. 20 Françoise Choay, A Alegoria do Património, Lisboa, Edições 70, 2006, p. 56. 16 17

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eufemismos para mentula. Tanto verpus como mentula aparecem em Catulo, Marcial e no Corpus Priapeorum15. J. N. Adams interroga-se como é que dois significados tão díspares, verpa, o pénis não circuncidado, e verpus, o pénis circuncidado, poderiam anexar a mesma raiz, ou como é que Catulo (47,4)16 pode aplicar a Priapo um adjectivo que significa circuncidado. Por isso, dá razão a Wilhelm Kroll17 quando este define verpus como “pénis cuja glande está descoberta pela luxúria excessiva”18. O medo do mau-olhado e da impotência sexual transformaram o grego Priapo no Fascinus romano, a própria potência divina em acto, feita esconjuro e talismã contra o mal19. Quando o olhar classificador das ciências positivas do século XIX se debruça sobre as antiguidades, “num imenso esforço de conceptualização e de recenseamento”20, os fascinus de Herculano e Pompeia são catalogados com a designação de phallus. “A entrada de um neologismo nos léxicos [diz Choay a propósito da expressão monumento histórico] assinala o reconhecimento oficial do objecto material ou mental que ele designa”. O reconhecimento do termo phallus, elaborado com o recurso à língua grega e à latina – perspectivadas como reservatórios de termos técnico-científicos, até ao final do século XIX, na Europa –, fixa-se definitivamente, no âmbito das ciências positivas, como representação do membro viril, cultuado na Antiguidade, englobando no mesmo conceito tanto os objectos materiais, como os imateriais, organizados em domínios do conhecimento, cada vez mais compartimentados e especializados. Qual a designação mais justa para identificar a emblemática louça genital das Caldas da Rainha? O popular Caralho das Caldas ou o erudito Falo das Caldas? Tendo em conta que a primeira é representativa da vitalidade da língua portuguesa, atestada pela literatura erótica-satírica desde a Idade Média até ao presente e pelo uso na linguagem corrente; que a segunda é representativa do trabalho teórico, levado a cabo pela ciência moderna, no Ocidente, e do seu poder expansionista, que alargou à escala planetária a sua acção, em todas as dimensões do quotidiano, parece, afinal, que a questão da designação Caralho das Caldas ou Falo das Caldas não se pode colocar com base numa dicotomia. Deverá, antes, ser perspectivada segundo um vínculo de complementaridade entre os dois termos, que desbloqueie a visão historicista da realidade e conduza ao questionamento essencial das coisas, para as quais as palavras remetem. Neste sentido, no inventário dos patrimónios caldenses, que venha a ser feito, a louça com a forma do genital masculino erecto, típica da faiança local desde o século XIX, deverá ter as duas designações: “Falo das Caldas e também Caralho das Caldas”. Somente assim, a investigação poderá dar conta da dupla origem, erudita e popular, do referido património cerâmico. Conceição Colaço

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uma nota sobre o sr. da pedra

Catarina Verdier

INES felicio

Exteriormente, o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, em Óbidos, impõe-se pela escala, de grandes proporções, que mais grandiosas se tornam pela sua implantação num largo1. Mas é pela organização planimétrica dos seus volumes, pela sua «planta», que o Santuário surge como importante referência da arquitetura «barroca», à escala portuguesa.

Erigido entre 1739 e 1747, o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, em Óbidos, mantém toda a sua estrutura originária.2 Esta vive de uma clareza geral decorrente, em grande parte, do permanente diálogo entre cal branca e cantaria, e engrandecida, no interior, pela profusa iluminação que chega através do janelão da fachada principal – aquele que se encontra em maior estado de ruína. Os elementos decorativos são mínimos e remetidos para zonas muito específicas da edificação pese embora o seu interesse, em especial as janelas invertidas – caso de excecional criatividade não se conhecendo outro exemplo no país. Numa leitura global, o Santuário surge-nos como uma «obra de arquiteto» na qual o espaço arquitetónico se basta a si próprio; se o depuramento e contenção decorativa podem corresponder a uma certa tradição portuguesa, já a singular articulação planimétrica é reveladora de uma clara erudição arquitetónica. Tendo como motivação construtiva um milagre3 e enquadrando um fenómeno de devoção popular à Paixão de Cristo o Santuário inscreve-se num continuum da história da arquitetura de assinalar lugares sagrados com edificações de planta centralizada, ou seja, na qual diversos eixos, que radiam de um núcleo central, possuem igual comprimento. Prática em uso desde o início na Antiguidade, teve as suas principais expressões em construções do Império Romano e, posteriormente, do Renascimento, em múltiplas variantes – cruz grega, circular, poligonal (hexágono, octógono, pentágono…) –, sobretudo em determinadas tipologias: batistérios, sepulcros, santuários de peregrinação, capelas e igrejas votivas e devocionais. A popularidade desta planimetria diminuiu com as diretivas formuladas no Concílio de Trento 4 que previam uma forte regulamentação do espaço destinado ao culto, a qual tanto pretendia facilitar a cerimónia litúrgica, quanto evitar qualquer sugestão às tendências pagãs do humanismo renascentista, do qual as figuras do quadrado e do


círculo eram importantes referências simbólicas. Trento promoveu, pois, a eliminação da planimetria centralizada, que na prática... não foi eliminada,5 e o seu uso não sofreu interrupção significativa entre o início do séc. XVI e o início do séc. XVIII; a par da animação de interiores através da talha ou azulejos, o «Barroco» empenhou-se também na animação espacial e é possível constatar uma preferência pela variação segundo modelos centralizados em detrimento da planimetria longitudinal.6 O mesmo ocorreu em Portugal onde subsistem ainda alguns exemplos medievos8 e renascentistas, mas foi sobretudo a conjuntura política da Restauração que revigorou o uso da planta centralizada; inicialmente em obras modestas,9 posteriormente em grandes obras de encomenda régia e eclesiástica10 que haveriam de conduzir à que talvez seja a primeira grande concretização do «Barroco» nacional – tão grande que nunca concluída: a Igreja de Santa Engrácia em Lisboa,11 precisamente… com planta centralizada. Estas igrejas manifestavam e materializavam o poder da nova dinastia rebelando-se contra as formas artísticas conotadas na mentalidade nacional com a dominação espanhola; enquanto as artes ditas ornamentais evoluíram da «obra lisa» para a «obra crespa», os projetistas da Aula do Paço tentaram satisfazer a Corte Portuguesa com novos recursos planimétricos e ensaiaram algumas experiências, dentre as quais se destacam as planimetrias em quadrado-retângulo com ângulos cortados, de que é exemplo a Igreja do Bom Jesus da Cruz em Barcelos,12 pelo seu porte e consequências arquitetónicas.

Se podemos especular em torno das figuras geométricas adotadas segundo a simbologia cristã,13 esta parece ser inconclusiva e de somenos importância perante o pensamento arquitetónico profunda-

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Se o «Barroco» nos legou uma grande diversidade de planimetrias, dentre as quais os planos centralizados gozaram até de alguma preferência, o Santuário do Senhor Jesus da Pedra em Óbidos é uma importante referência neste contexto. E é-o pela particularidade de ultrapassar a simplicidade da maioria das pro-

postas apresentando a inscrição de um hexágono regular (formato do qual nos apercebemos no interior do Santuário) numa circunferência (formato que percebemos exteriormente), não havendo, pois, uma consonância entre as planimetrias exterior e interior. Este é um caso único em Portugal – apesar da grande variedade de figuras geométricas que podemos encontrar, estas restringem-se, quase sempre, às variantes formais do círculo, do hexágono e do octógono, simples; nos raros casos em que são usados polígonos inscritos, a única variação encontrada são igrejas de planta em cruz grega inscrita num quadrado, datadas principalmente da segunda metade do séc. XVI e início do séc. XVII. Adicionalmente, o corpo principal do Santuário encontra-se articulado com os corpos quadrangulares das torres, que se apresentam na diagonal a uma leitura de fachada – o que, não sendo um exclusivo, é raríssimo na arquitetura portuguesa – sugerindo-se, deste modo, um alçado «ondulatório» próprio do «Barroco» internacional numa proposta à escala portuguesa.

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mente interessado em exercícios geométricos que podemos pressentir. Do arquiteto, Rodrigo Franco, pouco se sabe e, não se lhe conhecendo outras obras de grande envergadura, tentou perceber-se o seu pensamento artístico através de um enquadramento da cultura arquitetónica do seu tempo. Esta baseava-se sobretudo na Tratadística (estudos formais e sistemáticos de filósofos, literatos e artistas) que, assimilada como cultura comum a toda a civilização europeia, constituiu a base essencial para um pensamento arquitetónico erudito. Através desta, Geometria – como ciência prospetiva da realidade e com função estrutural em qualquer das denominadas artes maiores – e Classicismo – como recuperação consciente dos valores culturais da Antiguidade clássica greco-romana – foram os pilares de sustentação da cultura arquitetónica portuguesa do Renascimento em diante. Terá sido este paradig-

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ma que Franco terá encontrado na sua formação na Aula de Fortificações e Arquitectura Militar da Ribeira das Naus,14 e aprofundado com António Canevari aquando da sua estadia em Portugal,15 cuja influência se faz sentir também no seguimento da vertente mais clássica do «Barroco» italiano em alguns aspetos desta edificação, nomeadamente, no que respeita ao recorrer a figuras geométricas regulares para controlar o espaço. Por exemplo, para Serlio16 o hexágono é uma forma perfeita, pois cada face corresponde a metade do seu diâmetro.17 Mas se o ensino da arquitetura em Portugal erigiu a geometria como ciência primeira, como estrutura básica das artes, esta não era um espartilho: era um instrumento ao serviço da imaginação a partir do qual o artista-cientista (não esqueçamos que a Aula submetia a cultura arquitetónica à cultura científica) poderia expandir a sua criatividade. Ao mesmo tempo vigorou em Portugal, sobretudo até ao reinado de D. João V, um entendimento da construção no qual convergiam as atribuições práticas, o conhecimento teórico e os conceitos específicos de arquitetos, engenheiros e pedreiros. E talvez tenha sido este entrecruzar de saberes a conjuntura que permitiu a construção de um gosto por espaços de formas pouco usuais e jogos intrincados de figuras geométricas, por vezes acopladas, por vezes nascidas umas das outras, não se restringindo a nenhum dogmatismo canónico. Em especial a arquitetura mili-

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tar tendeu para formas intrincadas de exuberante desenho, num denotado gosto por jogos de figuras geométricas e uso de espaços poligonais, a par com o pragmatismo da exigência defensiva; esta cultura arquitetónica difundiu-se entre a burguesia urbana e teve imediata aceitação nas arquiteturas civil e religiosa, nas quais as planimetrias centralizadas parecem copiar os polígonos militares.18 E esta vertente estaria bem vincada em Rodrigo Franco, não só pela sua formação na Aula, como por ter iniciado a sua carreira trabalhando com Custódio Vieira,19 sem esquecer que em 1744 Franco foi nomeado arquiteto das Ordens Militares, portanto, em data muito próxima do seu trabalho para o Santuário. Por outro lado, os dois maiores mecenas desta obra (a par das inúmeras doações de populares), o primeiro Patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida, e o próprio Rei, D. João V, poderão também ter influído, de algum modo, na conceção do edifício cujas obras ambos seguiram de perto, com empenho. Ambos patrocinaram, quer antes, quer posteriormente à edificação do Santuário, projetos nos quais a vertente mais clássica do «Barroco» italiano se encontra presente. O reinado de D. João V demarcou-se pelo aproveitamento político da Arte, de acordo com o conceito de «Estado-Espetáculo» próprio do absolutismo monárquico, e a primeira metade do séc. XVIII foi um período de intensa atividade artística diretamente fomentada pela Coroa,20 empenhada que estava em

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colocar o Reino a par dos grandes centros europeus. Talvez por isso tenha desejado e favorecido «estrangeirismos»: o gosto régio demonstrou uma nítida preferência pela adaptação dos modelos romanos, sendo que a diplomacia nacional canalizou para Roma – modelo paradigmático e mítico, artístico e religioso – uma parte substancial dos seus recursos e energias.21 Com esta «política romana» se prende o prestígio do Cardeal Patriarca de Lisboa “que o Rei pretendia à imagem do Papa em Roma”,22 servindo a propaganda da própria Coroa. Importa referir, neste âmbito, que, ao tempo, a Igreja e o Estado (isto é, o Rei absolutista) eram indissociáveis – não perdendo aquela o seu poder, com a progressiva centralização do poder deste – definindo uma política oficial de pleno significado ideológico e artístico. Uma vez que o Catolicismo enformava a própria expressão da vida social, mantendo a sociedade orientada a partir do

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púlpito, a imagem do poder régio não poderia surgir divorciada dessa realidade: deu-se o incremento do prestígio católico da realeza, e a devoção religiosa fazia parte da sua propaganda de prestígio. Alcançou, aliás, envergadura tal, que podemos afirmar que foi nos assuntos religiosos que as despesas deste monarca foram mais longe, feição que distingue a pompa joanina de exemplos europeus coevos.

Seguindo, pois, uma política de modernização e promoção do reino de Portugal perante a Europa, e enquadrando um fenómeno devocional de grande escala, este projeto, invulgar e inovador, terá tido grande impacto como signo de ostentação carismática de autoridade, e, por isso mesmo, prestigiante.

1 Que sabemos ter sido aplanado propositadamente, à época, para albergar peregrinos e para a realização de festividades. 2 Apenas foi realizada uma intervenção de restauro na cúpula, numa parceria entre a Câmara Municipal de Óbidos e a DGEMN, entre 1997 e 1998. 3 Existem diversas lendas explicando a génese da construção do Santuário, que de comum possuem a ação milagrosa de uma velha cruz de pedra com a imagem de Cristo crucificado, cuja cópia se encontra, hoje, exposta no altar-mor. 4 Um dos principais concílios da história da Igreja Católica, realizado entre 1545 a 1563 na cidade de Trento (Itália). Foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica num contexto de reforma da Igreja. 5 Refira-se a produção arquitetónica de Francesco Borromini (15991667), um ícone do estilo «Barroco», cuja intervenção na Igreja de Santa Agnese (1653), em Roma, transformando a sua estrutura em cruz grega num octógono, é um excelente exemplo. 6 Ou seja, cujo eixo principal tem maior comprimento. 7 Como a Igreja de S. Frutuoso de Montélios em Braga, datada do séc. VII, e a paradigmática Charola do Convento de Cristo em Tomar, já de finais do séc. XII. 8 Por exemplo na capela-mor da Igreja de S. João da Foz no Porto, de 1527, ou na elaborada Igreja do Mosteiro do Bom Jesus de Valverde em Évora, de 1544, projetada pelo cultíssimo Miguel de Arruda. 9 De que são conhecidos os casos da região de Braga, Alentejo e do litoral entre Vagos e Porto, onde se encontra um núcleo notável de pequenas capelas de planta circular ou poligonal, como seja a Capela de Nossa Senhora da Encarnação em Santa Maria da Feira (1656). 10 Como a Igreja do Corpus Christi em Lisboa (1648) e a de Nossa Senhora da Piedade em Santarém (1664). 11 Projetada por João Antunes, a sua construção foi iniciada em 1682 e nunca concluída. 12 Iniciada em 1705, a partir de projeto de João Antunes. 13 O círculo é uma figura geométrica de significado rico; símbolo da eternidade, da perfeição, é monograma de Deus e refiguração do Santo Sepulcro. Foi interpretado, ao longo dos tempos, como alegoria das esferas terrestre e celeste, e também da Cidade Santa de Jerusalém, pontuada por dois grandes monumentos circula-

res: o Santo Sepulcro e o Templo da Rocha ou de Salomão (hoje, Mesquita de Omar). Frei Brás de Braga já recorrera, em meados do séc. XVI, à planimetria circular como figura da purificação e da verdade, na Fonte do Claustro da Manga (c. 1533), em Coimbra. O hexágono parece não ter simbologia própria, e a que lhe é atribuída é-o pelo número de lados que possui: o 6 é o número da criação e da perfeição, simbolizando por isso o Poder Divino e seus atributos: majestade, sabedoria, amor, misericórdia e justiça. 14 Fundada em 1647 por decreto de João IV de Portugal, no contexto da Restauração, esta foi a escola precursora tanto do ensino superior militar como do ensino da engenharia-arquitetura, onde lecionaram Luís Serrão Pimentel e Manuel Azevedo Fortes – dois importantes engenheiros-teóricos portugueses. 15 A sua presença em Portugal (1728-1732) inseriu-se num contexto alargado de relações artísticas luso-italianas, promovido pela Coroa joanina. Arquiteto de segunda ordem no panorama artístico italiano, trabalhava para a corte portuguesa desde 1725 (na Academia dos Arcades), expressando um «Barroco» depurado. 16 Sebastiano Serlio (1475-1554) foi um arquiteto cuja obra, tanto teórica como produzida, consolidou o paradigma arquitetónico renascentista, que veio a repercutir-se no «Barroco». 17 Sebastiano Serlio. Tutte L’Opere D’Architettura et Prospetiva. Libri 1-5. London/New Haven: Yale University Press, 1996, p. 406. 18 Refiram-se o Forte da Ilha da Berlenga e as já referidas obras do arquiteto João Antunes. 19 Arquiteto e engenheiro militar que acumulou alguns dos mais importantes cargos e patentes militares, sendo relativamente escasso o conhecimento da sua obra construída, mas sabemos que assistiu na edificação do Palácio Real de Vendas Novas, foi destacado para as obras do Palácio Nacional de Mafra, e trabalhou no Aqueduto das Águas Livres. 20 Principalmente no domínio da arquitetura – tal como na França de Luís XIV, ou na Roma papal – cuja força pública mais prestígio proporcionava. 21 Esta política fora já iniciada no tempo de D. Pedro II mas configurou-se abertamente (em termos de estratégia de poder) no reinado de D. João V. 22 José Fernandes Pereira. A Acção Artística do Primeiro Patriarca de Lisboa. Lisboa: Quimera, 1991, p. 40-41.


Bibliografia: Gomes, Paulo Varela Gomes. Arquitetura, Religião e Política em Portugal no séc. XVII: a planta centralizada. Porto: Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, 2001 Gorjão, Sérgio. Santuário do Senhor Jesus da Pedra. Lisboa: Edições Colibri, 1998. Pereira, José Gomes. A Acção Artística do Primeiro Patriarca de Lisboa. Lisboa: Quimera, 1991. Serrão, Vítor. História da Arte em Portugal – O Barroco. Lisboa: Editorial Presença, 2003.

Este artigo trata-se da adaptação de um trabalho académico elaborado no âmbito de uma cadeira semestral de licenciatura. Respondeu, então, aos requisitos propostos pelo docente, e continua expectante de que as linhas de fundo nele enunciadas despertem interesse para uma investigação que se revela premente.

Créditos fotográficos: 1. Pedro Felício 2. e 3. Inês Felício 4. DGEMN - http://www.monumentos.pt/Monumentos

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Arte e CrĂ­tica


Joรฃo Cabaรงo


Patrícia Faustino

Artist Run Culture é o termo geral dado a iniciativas e espaços independentes geridos na sua maioria por artistas para a produção e promoção cultural, nomeadamente na organização de exposições, concertos e outros acontecimentos culturais e artísticos. O registo mais antigo que encontrei relacionado com esta questão foi em França no ano de 1648. Um grupo de artistas da corte enviou uma petição ao rei Luís XIV pedindo a criação de uma Academia de Pintura que iria distinguir o seu trabalho das trocas de artesanato. Para marcarem a sua posição organizaram uma grande mostra dos seus trabalhos em honra do rei. Posteriormente foi fundada a Académie Royale de Peinture et de Sculpture.

Artist Origens Making art happen

Ainda por França, mas já no século XIX, emergia por Paris a cultura dos Salons. Exposições anuais onde júris, membros da Academia, escolhiam os melhores exemplos da pintura clássica francesa. A partir de 1830 e à margem dos Salons oficiais surgem os Salons des Refusés, onde os artistas expunham os trabalhos que tinham sido recusados pela Academia. Destacam-se o de 1863 com obras de Manet e Cézanne e o de 1874 organizado pelos Impressionistas. Os Salons des Refusés são considerados um marco no surgimento da pintura moderna. A era do pós-guerra trouxe alterações profundas não só a nível da produção artística, mas também na forma como a arte se apresenta ao público e de como este interage com o trabalho artístico. A relação entre o artista, o trabalho artístico, o espaço expositivo e o espectador torna-se uma parte intrínseca do processo criativo. A prática artística deixa de estar rigidamente catalogada e flui cruzando fronteiras, atravessando e fundindo géneros e outras disciplinas que até então não faziam parte do processo criativo. 1 - O Independent Group era formado

Na Inglaterra a partir dos anos 1950, artistas como Richard Hamilton, que concebeu e organizou as suas próprias exposições Growth and Form em 1951 e Man, Machine and Motion em 1955, impulsionaram a prática artista-curador pela Europa. Hamilton era um membro chave do Independent Group1 que em 1956 organizou a exposição This is Tomorrow no ICA - Institute of Contemporary Art, onde artistas, arquitectos, músicos e designers trabalharam juntos na concepção da própria exposição.

por escritores, pensadores, designers, arquitectos, artistas e fotógrafos que se reuniram entre 1952 e 1955 no ICA - Institute of Contemporary Art, destacando-se os artistas Richard Hamilton, Eduardo Paolozzi e William Turnbull, os arquitectos Alison e Peter Smithson, James Stirling e Colin St John Wilson e os críticos Lawrence Alloway e Reyner Banham que contribuiram para a

Estas novas abordagens artísticas e técnicas expositivas tornaram as relações entre disciplinas mais flexíveis contribuindo para um alargamento do campo da arte. A diluição entre o papel do artista e do curador levou a um pensamento mais profundo sobre práticas artísticas e curatoriais. Posteriormente e com a dificuldade para aceder aos espaços oficiais foram surgindo cada vez mais espaços independentes.

multidisciplinaridade dos eventos do grupo. No centro dos seus encontros estava a discussão, análise, produção de trabalhos explorando a cultura contemporânea “as found”, usando inúmeras fontes desde a cultura de massas, à chamada alta cultura.


Esta tendência também acontecia nos Estados Unidos, um exemplo são as Tenth Street Galleries na década de 1950 em Nova Iorque. Eram galerias geridas por artistas fora do circuito oficial da Madison Avenue que acabaram por marcar um início para muitos artistas que se tornaram populares nas décadas seguintes. Destaco a Hansa Gallery fundada pelo artista Allan Kaprow e os seus estudantes entre 1952 e 1959 onde organizaram exposições suas e de outros artistas. Na década de 1960 esta necessidade de criar novas zonas de intercâmbio cultural fez emergir espaços alternativos de exposição fora

run culture I dos espaços convencionais, localizados em locais vulgares que eram convertidos para a discussão, divulgação e produção artísticas. Surgem um conjunto de iniciativas que acabaram por formar um circuito artístico fluido e aberto. Das acções mais conhecidas destaco os vários eventos levados a cabo pelo grupo Fluxus2, que vão desde concertos em terraços e sótãos como os Chamber’s Street em 1961, comissariados pela artista Yoko Ono e o compositor La Monte Young, exposições em apartamentos ou ateliers, inúmeros happenings, como Tree, A Yam Festival organizado por Kaprow, Robert Watts e George Brecht na quinta de George Segals, entre outros. “Intermedia” foi o termo utilizado pelo artista Dick Higgins num ensaio de 1965 para descrever as actividades interdisciplinares que se tornaram predominantes nesta altura. O artista “intermedia” move-se em várias frentes.

2 - O grupo Fluxus é uma rede internacional de artistas, compositores, arquitectos, designers... Surgiu nos anos 60 e contou com membros como George Maciunas (fundador), John Cage, Ay-O, Joseph Beuys, George brecht, Dick Higgins, Yoko Ono, Nam June Paik, Wolf Vostell, Allan Kaprow entre outros. Desempenhou um importante papel na contracultura, fundindo arte e a vida numa miscelânea de acções e eventos. O grupo continua a existir e ao longo dos anos foi integrando mais artistas, escritores, compositores, críticos, curadores.

A partir desta altura torna-se difícil qualquer descrição mais ou menos linear. A Artist Run Culture veio para ficar incendiando os circuitos culturais, primeiro nos grandes centros artísticos europeus e norte americanos e rapidamente por todo o globo. Austrália, Nova Zelândia, Argentina, Brasil são alguns dos países que a partir dos anos 19701980 contam já com importantes exemplos. Destaco um mais recente, a galeria Appetite em Buenos Aires. Fundada e gerida pela artista Daniela Luna, a Appetite nasceu em 2005 com o objectivo de descobrir e promover artistas contemporâneos, trabalhando principalmente com jovens artistas e promovendo um espírito de experimentação e de risco. A galeria gerou tanto movimento que várias galerias se mudaram para aquela área e outras novas abriram, transferindo assim o centro artístico da cidade. Inspirou também vários artistas a abrirem os seus próprios espaços. a escala

A Appetite tinha as melhores inaugurações de Buenos Aires e rapidamente se tornou a galeria mais popular da América Latina com a maior projecção internacional, aparecendo citada nos media como o New York Times, Time Out, CNN ou Rolling Stone.

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Ao longo dos anos o conceito inicial foi-se transformando e a Appetite abarcou novos projectos. A galeria Tanto Deseo dedicada à arte erótica abriu num antigo armazém em finais de 2006, a partir de 2008 começa o War Club, uma festa secreta algures na cidade, por várias cidades, que mistura djs e bandas com intervenções artísticas e performances, o projecto Popularity que abriu em 2011 na cave de uma livraria e inclui mostras de trabalho de jovens designers, exposições ocasionais, outros eventos artísticos e um blog, algumas lojas de arte e outros projectos internacionais em cidades como Nova Iorque, Vilnius, São Paulo, Londres, Milão e Pequim. Em 2011 a Appetite fechou portas em Buenos Aires, mas reabriu com novas acções em Pequim. O projecto continua activo. Actualmente o modelo de espaço/iniciativa independente criado por artistas ganhou relevo no panorama artístico contemporâneo. Acções deste género estão cada vez mais a ser consideradas como um importante factor de regeneração urbana, pois vão configurando e constituindo o próprio circuito artístico.


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André Rocha ou com trinta deles, conheceram um artista, designer ou ilustrador promissor e comeram uma bela bifana. O Caldas Late Night (CLN) acontece todos os anos. É claro que todos temos a legitimidade de querer mais e de lançar desafios. A mim ocorrem-me alguns: primeiro, talvez o mais acolhido, o factor continuidade e “resto do ano”. Penso que é uma ideia que corre por aí: “rentabilizar” socialmente o efeito CLN. Há a Electricidade Estética e o Museu Bernardo com actividades A distância temporal - 17 anos desde a primeira edi- constantes, o Hotel Madrid (Atelier Arte e Expressão) ção – permite-nos afirmar de modo plausível que o de modo intermitente e não há a DAR (ainda!), a A062 que inicialmente foi o CLN nada se parece com o que (ainda!) promovendo uma ligação à comunidade esé hoje: um formato de semana académica de escola colar? Sem atribuição de responsabilidades há que de artes-plásticas, design e artes do espectáculo onde fortalecer essa ligação na construção de um circuito.

Nuno Fragata

Acontece de formas diferentes e é invariavelmente organizado por pessoas diferentes. Há anos em que intervém mais na cidade, noutros é mais festa. Nuns é mais solene, noutros é mais sério.

se mistura uma mostra de trabalhos com a celebração de um ano de trabalhos, amizades, explorações e experimentalismo. No entanto também me parece razoável afirmar que se todas as semanas académicas do país fossem assim estaríamos perante um país bem diferente. E porque não? A mim não me ofende nada: Não sou da escola (ESAD) e não sou das Caldas embora já cá tenha vivido largos anos e aqui tenha retornado. No CLN recebo todos os anos visitas de amigos que no outro dia partem contentes e quase sempre preenchidos porque tiveram em contacto com alguma experiência transformadora simples ou complexa, algum local acolhedor, conversaram com um desconhecido

Abandonar este discurso lamurioso e passar à acção. Imaginem uma cidade em que há semanas seguidas de música, exposições e boas bifanas. Segundo, a integração da comunidade no acontecimento CLN. É um factor fundamental para a diferenciação de uma escola. Aqui especifico CLN, mas podia estar a referir-me a uma ligação generalista e promovida pela instituição ESAD. Aliás é uma obrigação da mesma enquanto subsidiária do Estado e consequentemente da comunidade na qual está inserida. No entanto, isto é outro assunto. Por fim, que o que é verdade e incontornável este ano seja assim ou completamente diferente para o próximo. Que seja sério o trabalho e assim vai ser positivo e bom ou mau.


Paula Scher, numa TED talk na qual falava acerca do seu corpo de trabalho como designer gráfica, abordou de forma muito consistente as noções de solenidade e seriedade no trabalho. Ao mesmo tempo fê-lo de um modo muito simples: a diferença entre solenidade e seriedade está, segundo esta senhora, não nos resultados mas sim no processo. Um trabalho sério gera inovação e soluções autênticas. De forma autocrítica, identifica nos seus 35 anos de carreira, 4 vezes em que foi realmente séria. De resto, foi como era esperado por quem a contratava, solene. Para ela a solenidade esteve nos momentos em que replicou fórmulas que havia criado no passado. Embora eficazes, eram fórmulas consensuais e de sucesso garantido porque vendiam Scher como já o haviam feito noutros momentos. Nesta análise Scher suporta-se num ensaio

de Russel Baker que abordou esta dualidade solenidade/seriedade. Baker diz que a solenidade é o caminho para o sucesso porque as pessoas têm realmente dificuldade em identificar a seriedade. É muito mais fácil identificar solenidade. Being solemn is easy. Being serious is hard. You probably have to be born serious, or at least go through a very interesting childhood. Children almost always begin by being serious, which is what makes them so entertaining when compared to adults as a class.

As a result, you have to settle for solemnity. Being solemn has almost nothing to do with being serious, but on the other hand, you can’t go on being adolescent forever, unless you are in the performing arts, and anyhow most people can’t tell the difference. In fact, though Americans talk a great deal about the virtue of being serious, they generally prefer people who are solemn over people who are serious. A utilização do nome CLN estará tanto mais envolta em solenidade quanto mais institucional ou apegada ao passado estiver. Uma coisa é usar um nome que implica claramente atração de público, outra será o que se apresenta, o que se celebra e a forma como se celebra. No fim será sempre acerca do que se experimenta e não que se deixa de experimentar por via de preconceitos. A reflexão deve estar aí e somente aí. Não no que é arte, o que separa o legítimo do ilegítimo, do que se perdeu ou ganhou face ao espírito inicial. Discuta-se trabalho, discuta-se muito. O CLN tem que ser sério, as suas bifanas, o seu tinto, o escorrega podem ser vistos simplesmente (ou complexamente) como uma forma assumida de artesanalmente montar um happening cultural. De receber de modo sério e pouco solene milhares de visitantes. Assim, acabam por cumprir o seu papel em prol da “arte”. Fazer o autódromo de triciclos com que sempre sonhámos em crianças é uma atitude séria. Montar um insuflável para crianças ou outro serviço standard é uma atitude solene, ou não! Uma boa bifana é uma autêntica obra de arte.

Referências da web: http://www.ted.com/talks/paula_scher_gets_serious.html http://news.google.com/newspapers?nid=1310&dat=19780428&id=le9VAAAAIBAJ&sjid=8-EDAAAAIBAJ&pg=6988,7931083

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Adults, on the whole, are solemn. The transition from seriousness to solemnity occurs in adolescence, a period in which Nature, for reasons of her own, plunges people

into foolish frivolity. During this period the organism struggles to regain dignity by recovering childhood’s genius for seriousness. It is usually a hopeless cause.

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JORGE DE SOUSA BRAGA

O Novíssimo Testamento e Outros Poemas Lisboa, Assírio & Alvim, 2012 José Ricardo Nunes

Médico de profissão, Jorge de Sousa Braga (n. 1957) iniciou o seu percurso poético em 1981, ano em que publicou De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu e Plano para salvar Veneza. Tem igualmente desenvolvido actividade como tradutor (Leonard Cohen, Matsuo Bashô, Guillaume Apollinaire) e organizou já diversas antologias poéticas.

Esta inversão de perspectiva, em que a verdade subjectiva prevalece sobre o dado objectivo, tem talvez a sua mais intensa expressão na recusa da morte de Cristo como sacrifício pela humanidade: “Não foi por mim que deixaste que te pendurassem na cruz / não foi por mim / que te deixaste matar”. O poema avança na direcção contrária: “Não foi por mim que tu morreste / embora eu seja capaz de morrer por ti”.

A atenção ao quotidiano e às pequenas coisas está presente em inúmeros poemas, com títulos tão sugestivos como “Agapantos”, “A Metafísica do Nabo” Em O Novíssimo Testamento e outros poemas encon- ou “O Poema do Cortador de Relva”. A poesia é tramos algumas das marcas que têm caracterizado a “a mais daninha das ervas”, a mais nefasta e inútil, sua poesia. Destacaria a atenção ao quotidiano e às mas é a partir dela que se estabelecem pontes de pequenas coisas que os poemas revelam. Por outro sentido com a realidade e a experiência. A vida pode lado, estamos perante uma forte ironia que se ma- ser figurada como viagem, prolonga-se para lá da nifesta na desconstrução dos discursos e dos dados infância e, mesmo que só em sonhos, vamos conadquiridos da realidade, que no caso do presente tinuando a correr, apesar de sabermos que “a tarde volume incide na Bíblia e na Religião Cristã. já não é tarde / e o verão não é mais verão”. Apesar de nos depararmos diariamente com um semáforo Um dos primeiros elementos nesse sentido decorre vermelho no regresso a casa: “Fica sempre vermelho do próprio título do volume. Em vez de um texto aca- quando / te aproximas desse semáforo”. Ao poeta bado, fechado, perene, ficamos perante uma versão cabe recolher, dizer, actualizar esses achados. nova e actual, a última versão de um texto que pode e deve ser continuado. A epígrafe do poema inicial vai também nesse sentido: “Para acabar de vez com os direitos humanos e restaurar os direitos divinos”. O universo está em permanente processo de arrefecimento e expansão, no decurso do qual se forma, por exemplo, uma coisa tão simples e tão bela como “este ramo de rosas”. Deus pode surgir na ponte de Leça e assumir rosto e corpo humanos: “Em cima dum contentor / manobrando um guindaste / Pai Pai porque / me abandonaste?” Estamos face a um testamento humano, um testemunho, escrito com um sangue inocente (“sangue de galinha” ou o “do último dos genocídios”).


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Cr贸nicas


Ricardo Jorge


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A Poesia dos NumeroS Carlos Mendonça que o “infinito” não faz sentido e por isso o universo teria necessariamente que acabar onde os telescópios mais potentes alcançam? É ou não será mais fácil e “cómodo” alimentarmos uma imagem “fora do alcance” do homem, quiçá, só ao alcance de Deus?

A matemática é um dos “calcanhares de Aquiles” do nosso ensino, quando tanto nos ajuda a resolver problemas concretos, como o exemplo do parágrafo seguinte, como pode bloquear o nosso raciocínio quando “fora do contexto”. Qual o significado físico do termo matemático “+ infinito (+∞) e – infinito (-∞)”? Na Matemática do ensino secundário raciocina-se “nos limites” sobre uma escala linear à direita e à esquerda do zero, numa realidade a duas dimensões que decididamente não é a nossa... Quantos cortes rectos são necessários fazer num cubo para a partir dele se criarem 1000 pequenos cubos? Desculpem os leitores, mas não me estou a “armar”… São necessários 27 cortes. Como a matemática resolve este problema? A raiz cúbica de 1000 dá-nos o número de cubos em cada aresta do cubo original depois de cortado, que dá 10 (10x10=100 é o número de cubos em cada face; 100x10=1000 cubos pequenos, conforme queríamos). E calculamos a “raiz cúbica” porque temos 3 pares de faces paralelas comuns a um mesmo corte. Para obter 10 fatias por face faço 9 cortes (10-1); como para fazer cubos pequenos a partir dum cubo maior, tenho que fazer cortes rectos sobre três faces comuns a um mesmo vértice, tenho 3x9=27. Parece simples seguindo o raciocínio. Mais simples ainda se aprendermos a encarar a matemática não como uma disciplina inventada para nos “abrasar a cabeça” mas como uma ferramenta útil para ser usada ao longo da vida. Imaginem que uma fábrica precisa de fazer 681472 pequenos cubos a partir dum cubo maior duma determinada substância. Façam as contas: raiz cúbica de 681472 é 88; 88-1=87; 87x3=261 cortes. Voltando ao “infinito”, quem é que nunca olhou o céu e comentou: quão misterioso e difícil de imaginar é o infinito? Agora pergunto: não será mais intrigante ainda se nos quiserem “vender” a ideia de

Sendo a noção, assumida ou abstracta, de infinito vulgarmente associada ao infinitamente grande, eu pergunto: porque não associá-la ao infinitamente pequeno? Será que não somos capazes, ou tememos imaginar tamanho mistério aqui tão perto, dentro da nossa barriguinha? O que é certo, é que ainda não me demonstraram que haja um limite físico para partir sucessivamente ao meio uma partícula… “até” ao infinitamente pequeno, que obviamente, como o próprio nome indica, nunca será atingido. Aqui colocam-se algumas diferenças: é mais fácil especularmos sobre o infinitamente grande, porque se desenvolve “para além” do alcance da nossa observação espacial (somos mesmo egocêntricos, apesar de já aceitarmos na boa que o mundo conhecido, a começar pelo Sol, não gira em torno da Terra), na convicção de que se não sabemos mais não é por falta de capacidade mas por limitações inultrapassáveis que a natureza nos impõe. O conceito de infinitamente pequeno transporta-nos a um número infinito de existências, “abaixo” do alcance dos mais potentes microscópios. Também a esse nível, talvez um dia se descubra o equivalente à chamada “matéria negra”, que os cientistas suspeitam existir no espaço intergaláctico. Só para “abrir o apetite” deste tema, se com um poderosíssimo microscópio ampliarmos um átomo a ponto do núcleo (onde se concentra a massa e o “peso” da matéria) se apresentar do tamanho duma moeda de um cêntimo, os electrões vibram em proporção a uma distância de quatrocentos metros… Em relação aos dois conceitos de infinitamente grande e de infinitamente pequeno apetece perguntar: e nós onde é que estamos? De qual dos extremos nos aproximamos mais? Só não levo muito a sério esta questão porque a métrica que poderia responder a esta hipotética questão, para a qual a minha imaginação não tem resposta, não é necessariamente a mesma quando caminhamos para o infinitamente grande ou quando buscamos o infinitamente pequeno. Nós já hoje usamos a velocidade da luz para medir as distâncias interestelares e as medidas infinitesimais para a física quântica e a nanotecnologia. Mas isso é o ser humano, com uma ciência e


uma tecnologia ao serviço dos humanos e feita à “nossa medida”. Que dizer dos seres microscópicos e dos macroscópicos: que unidades usarão para nos medirem a nós? Com os meus catorze anos, quando aprendíamos nas disciplinas de electricidade e físico-química a constituição da matéria, com a sua com- nem a mão numa chave de fendas ou num pano do posição “rígida” a partir dos átomos com os seus pó… e se põem a legislar e a regulamentar, como se núcleos e os electrões alegremente a girar ao seu fossem pedagogos ou especialistas na matéria. redor, qual sistema solar em miniatura, eu e o meu amigo Silva imaginávamos que o sistema solar po- Tive um professor no ensino secundário que um dia deria ser um átomo dum gigantesco corpo – e aqui “acusei” de ser responsável por eu ter ganho a paixão entrava a segunda parte da “imaginação” quando pela matemática e pela ciência. Nem em todos os aluespeculávamos sobre a qual “parte” pertencería- nos surtiu o mesmo efeito como será evidente, mas mos… Em contrapartida, também imaginávamos também nem todos os professores conseguem num mundos microscópicos em cada electrão do nosso único aluno que seja o mesmo efeito, e aqui está em corpo, comparando-os com os planetas. minha opinião uma das pontas do iceberg do problema.

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E quanto à presença de formas de vida? Sempre achei Para quem vê o mundo e o pensamento/ comportaridículo e redundante a associação que é vulgar ver- mento humano a duas dimensões, reflexo abstracto mos feita à sua existência, com a água e o oxigénio, e muito limitado dos dois hemisférios cerebrais, só como se só pudesse existir inteligência no universo quero lembrar que “O sonho comanda a vida…” como desde que se manifestasse através de organismos dizia o poeta António Gedeão, “nome” do matemásemelhantes aos nossos. Excluo deste comentário as tico Rómulo de Carvalho. Nem de propósito, houve microalgas associadas ao vulcanismo, descobertas (há) pessoas que fazem a “ponte” entre a poesia, o em regiões do Pacífico pobres em nutrientes. Mas humanismo e a espiritualidade com as ciências exacdeixemo-nos levar pela imaginação e pelo sonho, e a tas, nomeadamente a matemática. Falo de nomes acreditar na vaga possibilidade (lá estou eu armado como Einstein, do referido Rómulo de Carvalho ou em incrédulo) de vida além e/ou aquém do infinita- de Bento de Jesus Caraça. Tomando como exemplo mente grande e pequeno, como será ela? Não é difícil Einstein, basta ver como ele, de espírito completaimaginar que a existir será mesmo inimaginável! mente “aberto” e sem preconceitos, considerava que Mesmo à nossa volta, e tão “básicos” quão depen- “A ciência sem a religião é manca e a religião sem a dentes como nós da água e do oxigénio, há seres tão ciência é cega”, e ainda que “Se as leis da Matemá“diferentes” como as borboletas cuja existência se tica se referem à realidade, elas não estão corretas; resume a uma noite: nascem, reproduzem-se, natu- e, se estiverem corretas, não se referem à realidade”. ralmente alimentam-se e morrem em poucas horas… Para além do nosso Rómulo de Carvalho, Bento de Jesus Caraça fiQuando assistimos, e já nos habituámos, às dificul- “(...) quem é que cou no nosso (no dades e ao insucesso escolar nas matemáticas e em nunca olhou o céu meu) imaginário geral nas chamadas ciências exactas, de alunos dos e comentou: quão tanto como madiversos graus de ensino, questionamo-nos: o que é misterioso e difícil de temático como mais velho, o ovo ou a galinha, ou seja, de quem será imaginar é o infinito?” hu m a n i s t a e verdadeiramente a culpa, dos alunos e respectivo Homem de vasambiente familiar ou do “sistema de ensino”, diluído ta cultura e militância política, a ponto de ter sido entre a falta de estratégia e objectivos, com progra- perseguido e detido pela PIDE. E foi também “O somas, livros e políticas completamente desajustadas nho…”, com que termino, o “alimento” destas linhas… da realidade, também com professores consequentemente mal preparados? Quando vimos no passado recente o investimento nos “quadros interactivos” para estimular as criancinhas, “coitadinhas”, a gostarem da matéria, e depois vemos os resultados que continuam catastróficos, conclui-se (e aqui já não falo por mim): só pode ser congénito do povo luso! Nem é preciso dizer mais: mais um engano! Este sim, dos putos carreiristas da política, “licenciados” que nunca puseram o cu num escritório ou num tractor,

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As Escalas da Primavera

A Primavera alude à mudança. Refere-se ao advento dum novo período: há a esperança de sol, flores e mais calor na pele. No nosso hemisfério é o entremeio do rigor invernal e da indolência do estio. Noutros é diferente. Há, por isso, escalas primaveris, tudo depende dos anseios e expectativas. Mas, como dizem os mais velhos, hoje as estações do ano já não são as mesmas. Saltase do rigor para a indolência, sem um meio-termo que nos prepare para a transição.

Felipe Pathé Duarte

exclusão são motor de gestação de movimentos que procuram alterações estruturais e organizacionais do status-quo sociopolítico. Em regimes abertos, o ímpeto de alteração dilui-se no garante da sua possibilidade institucional e democrática. Em regimes fechados, essa margem impele à acção subversiva, isto é, à ruptura, total ou parcial, de uma dada ordem conjuntural, caracterizada pela informalidade ou marginalidade de actuações. Aqui reside todo um processo dialéctico entre a conservação e a destruição do existente. De uma forma continuada, e por vezes através da violência, a acção subversiva procura a corrosão e destruição de instituições e sistemas sociais, visando a queda da ordem instituída. A transição entre estações poderá ser feita pela força.

No último par de anos associámos esta estação do ano a revoltas em nome da democracia. Digo em nome, que não é o mesmo que concretização. Nalguns casos, em nome de veranis democracias, ten- Em regimes abertos, pautados pelo jogo democrático deram a assomar-se regimes ainda mais fechados. e por um Estado de direito, e onde as liberdades ciHouve sol, sim, mas de Inverno. E nesse, não sen- vis são pedra de toque, torna-se complicado definir timos calor na pele, nem vemos o florir. Noutros, onde acaba a contestação legal e legítima e onde houve ainda a ausência de estação, sem as flores da começa a acção subversiva. Primavera ou o sol quente do Verão. Só uma espécie de limbo sazonal, permeável ao caos, ao saque e à Mas isto dos regimes, abertos ou fechados, colocaguerra. Sentimos, como já se disse, que as estações -nos a questão da legitimidade e a legalidade. Quem já não são as mesmas. é que define o que é subversivo – o movimento que leva a cabo a acção subversiva (que advoga para si A nossa esperança alterna, consoante os rigores sa- a legitimidade) ou a ordem estabelecida que o pode zonais. E depois, e depois há peles que anseiam por perseguir e punir (que advoga para si a legalidade)? mais ou menos calor. A sede de mudança provém do E agora, caro leitor, eis-nos com sede de reposta peconforto que se tem. Nem todas as primaveras são rante a árida classificação conceptual. Refugiemoiguais, e, repito, têm escalas, e as estações não são -nos assim na metáfora, enquanto ainda podemos. as mesmas. Mas, agora, convido o leitor a largar esta metáfora sazonal, para entrar na aridez da Falemos da Primavera Árabe, por exemplo. As reclassificação conceptual. centes mudanças da revolta nos países árabes e islâmicos não foram pelo melhor. A estação almejada A vontade de mudança começa perante a incom- tardou. E a democracia também. Falamos de um propatibilidade entre resultados actuais e desejados. cesso revolucionário que teve início em Dezembro A sensação de privação relativa e a consciência de de 2010 na Tunísia, e que depressa se alastrou pelo


Norte de África e pelo Grande Médio Oriente. Este ímpeto foi fortemente marcado pela volatilidade dos protestos contra os regimes, pelo efeito dominó da contestação e pelo carácter violento da insurreição. Foi também marcado pela forma de comunicação baseada em plataformas de redes sociais disponíveis na internet. Tanto na Tunísia como no Egipto esta revolta levou à queda dos regimes seculares inspirados em Gamal Abdel Nasser (1918-1970). Na Líbia, levou a uma guerra civil, com apoio tácito da comunidade internacional e à posterior queda do regime autocrático de Muammar al-Gaddafi (1942-2011). Para além do Norte de África, a onda revolucionária também teve forte incidência no Médio Oriente, nomeadamente no Iémen, Síria, Bahrein e Jordânia. O primeiro caso teve como consequência também a mudança de regime, nos dois últimos houve alteração governamental. À data em que se escreve, a Síria vive em ambiente de violenta guerra civil, em que os oponentes civis ao regime do alauita Bashar al-Assad (n. 1965) estão a ser severamente fustigados. Três anos de conflito contam com cerca 60 mil mortos, segundo os últimos dados. Ao deslumbramento inicial, seguiu-se um mal-estar geopolítico. Nem toda a mudança que almeja a Primavera é conseguida. Para nascerem flores das duas, uma: ou é tempo delas, ou se tem uma estufa. A Revolta Árabe provou que não era o seu momento. E depois, perante essa impossibilidade sazonal, quem forneceu as estufas nunca gostou muito da Primavera, diga-se. Na Tunísia, o movimento Ennahda, de carácter islâmico, e vencedor de eleições, não permite a ascensão e outros movimentos seculares. No Egipto, houve

um golpe palaciano, que não mudou o sistema, apenas quem nele estava. O caos produzido pela guerra líbia criou vazio de poder e desestabilizou o norte de África, dando margem para que radicais impusessem as suas estufas, como foi no caso do Norte do Mali. No Iémen, esses mesmos radicais vão ganhando poder; e na Síria já dominam os rebeldes anti status quo. Revolta sem estruturação de dayafter político poderão ser vitórias tácticas, mas serão seguramente perigosas falhas estratégicas. Em regimes abertos, a escala é outra. A possibilidade de mudança é garantida pelas instituições democráticas. Qualquer acção de mudança que seja pela ruptura reveste-se de ilegitimidade, tão-somente porque é tácita a possibilidade legal de mudança. Note-se que esta questão não se coloca assim em regimes fechados, onde por vezes tem de haver ruptura para garantir a possibilidade de uma mudança. Conclui-se por isso que há escalas de Primavera. Não faz sentido apelar a Primaveras onde a democracia existe de facto e de jure. Onde a mudança está institucionalizada. E mesmo onde não as há, as revoltas só levam às flores quando se criam condições para tal. Democracia não é apenas o direito de voto. É, acima de tudo, o garante da possibilidade de alteração do poder em caso de abuso do mesmo. Primaveras fora de época levam invariavelmente ao Inverno ou à ausência de estação. Querer Primaveras em tempo de flores soa a ingratidão e poderá levar, de uma forma irremediável, à indolência inconsequente do estio. Apelar a mais calor, pode trazer seca. E nós, europeus, não obstante as crises, ainda vamos vivendo em jardins, com mais ou menos flores. Há, por isso, escalas de Primavera e diferentes formas de mudança.

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Espaço Tempo Ana Patrícia Maymone

“(...)e o raio do tempo não passa!”

Não consiste em novidade. O tempo de ontem não é o de hoje. E o tempo de hoje não será o de amanhã. O tempo, por si só, corre sempre ao mesmo ritmo, incessantemente no mesmo compasso de tic tac, tic tac, tic tac. É o tempo mecânico do relógio. No entanto, a nossa mente, de criatividade desmedida, disforma o tempo. E ora o dilata, ora o acelera. E é neste dispositivo psicológico de travagem e aceleração do tempo que acreditamos ludibriá-lo, supondo-o parado ou a avançar. Mas o tempo não para, e vai carregando no tempo que passa o peso de mais anos. Quando somos pequenos, o tempo assemelha-se-nos a um ser estagnado e de tamanho quase infinito. Queremos ser grandes e o raio do tempo não passa! Hoje, gostaríamos de ter mais tempo, ou que ele fosse mais devagar, ou que tirasse até umas férias. E o mesmo acontece com o espaço. Embora digam que ele está sempre a crescer, a nós parece-nos que está sempre a encolher. Isso, porque nós mesmos crescemos. Em altura e em largura e na quantidade de tralhas que acumulamos. Quando era mais nova, o meu quarto aparentava o tamanho de um Mundo, mesmo atolado de brinquedos e de livros. Dava um extra-pulo e não chegava ao tecto, nem com o braço esticado. Hoje, o Mundo parece ter o tamanho do meu quarto e não paro de dar “cabeçadas” nele. Em criança, o tempo nunca me pressionou. Nem o espaço. Não me preocupava com o amanhã, que vinha tão longe. Excepto, claro, se o amanhã trouxesse a promessa de novas brincadeiras. Aí, a excitação era tanta que o tempo parecia uma chatice e um aborrecimento de tanto tempo que demorava a passar! Mas, se pelo contrário, o amanhã trazia os maus agouros, podia o tempo passar que eu não lhe ligava nenhuma.

No meu quarto cabíamos eu e os meus sonhos, e depois a minha irmã e os sonhos dela, e os nossos sonhos. O espaço parecia infinito para tanta imaginação. E porquê? Porque não eram o tempo nem o espaço que habitavam a minha mente, todos os dias, a toda a hora, em qualquer lugar. A verdadeira escala para a vida era a da felicidade. Sinto-me feliz ou não? O tempo não media nada. Não era o tempo que ditava as minhas opções ou as minhas decisões. Até porque o tempo é somente a contagem para o fim, por isso a felicidade e o amor não se calculam pela idade. São intemporais. E como o tempo e o espaço estavam tão longe, que o seu limite se perdia no horizonte, se não estava feliz mudava. A mim, aos outros e ao Mundo! Não havia porquê ter medo ou insegurança. Havia uma linha intemporal e sem fim à minha frente. Não quero ser como a personagem de um filme, cujo nome eu não me lembro, que trazia consigo um relógio onde cronometrava os momentos em que se sentiu feliz ao longo da sua existência. No final, o tempo passou, assim como a vida, e a felicidade foi demasiadamente breve. Bem sei que o tempo de ontem não é o de hoje, e que o tempo de hoje não será o de amanhã. Mas se o tempo físico não para e nos é limitado, não será tempo de lhe tomarmos o controlo, expandi-lo até onde pudermos e medi-lo antes pela felicidade, usando -a como nova escala do tempo e não o tempo como escala da felicidade?


Uma questão de escalas … à escala.

Marina Ximenes

Fontes: - Wikipédia - Chevalier, Jean et Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des symboles, Robert Laffont/ Jupiter, Bouquins, 1993

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/ intelectual… Subindo por estes (de) graus iniciáticos, a elevação é mística, pois ao atingir o seu clímax (“escala” A escala de Scoville mede o grau de ardência das em grego), vai atingir o céu. pimentas e das malaguetas. A escala de Coma de Glasgow é uma escala neurológica que regista o nível Mas há escalas de valores que se fixam da consciência, para avaliação inicial e contínua após na horizontalidade. Regidos pela quanum traumatismo craniano, fazendo também o diag- tificação, estes instrumentos de medida nóstico de eventuais sequelas. A escala Celsius, ou recolhem elementos em profundidade escala da temperatura, de grande uso no quotidiano, que constituem etapas provisórias, esbaseia-se na fusão do gelo à qual atribui o valor 0 e tádios de desenvolvimento e, igualmenà da ebulição da água com o valor 100. A escala de te, de despojamento interior. Beaufort classifica a intensidade dos ventos, tendo em conta a sua velocidade e os efeitos resultantes Por complementaridade e não por opodas ventanias no mar e em terra. E uma forma de sição, os dois tipos de escalas de valores verificar a performance de um aluno é atribuindo desempenham o papel matricial da árvouma escala numérica em que o máximo seja 100 re do mundo ou do umbigo / linga, amou 10 para as atividades propostas. Ou ainda uma bos simbolizando um axismundi. Como escala de letras, atribuindo-se para cada uma delas centros da criação a nível do microcosparâmetros anteriormente criados. A escala Likert mo humano, a sua interseção revela os ou escala de Likert é usada habitualmente em ques- três mundos da existência. Tomemos, tionários e em pesquisas de opinião, onde os inqui- por exemplo, a árvore do mundo: um ridos especificam o seu nível de concordância com é o da passagem sobre a terra, ao nível uma afirmação. A escala hexafónica é uma maneira da superfície, o seu caule; outro, o da de organização melódica, formada por seis notas permanência na zona subterrânea dos musicais, que não possui um formato absoluto de mortos, ou as suas raízes e o da subida e distribuição intervalar. A sua forma mais comum da assimilação à divindade, isto é, o da é a escala de tons inteiros, formada somente por visualização dos seus ramos e frutos e intervalos de um tom entre as notas. A economia das suas folhas e flores. de escala é aquela que organiza o processo produtivo de maneira a que se alcance a máxima utilização dos Igualmente e do ponto de vista ontolófatores produtivos, procurando como resultado baixos gico, Deus e a sua perfeição são pilares custos de produção e o incremento de bens e serviços… inquestionáveis e dogmáticos para a prova da sua existência. Numa escaEscala… escalas… numa gradação condicionada, em la oposta, porém, a perspetiva ôntica patamares mensuráveis, por parâmetros aplicáveis, debruça-se sobre a materialidade dos para avaliações cognitivas ou para aferições com- objetos mundanos. Se muitos destes portamentais. Na génese de cada escala inventada artefactos são grotescos e humanaestá a tentativa de organizar um micro sistema que mente limitados, outros revelam, pela reproduza o macro sistema universal. sua quase imaterialidade, como é no setor da telemática, uma pureza de Imbuído do seu antropocentrismo, na dimensão conceção e de funcionalidade consiterrestre, o homem consegue ascender - através de derada virtual… supraterrena. escalas de valores da verticalidade - ao teocentrismo. Mesmo que inconscientemente, a Humanidade concebe elementos qualificativos, que plasmam o desejo de elevação espiritual / religiosa, mental, estético

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Topos Pedro Telmo Chaparra



Pedro Telmo Chaparra



Mostra


Estrada de

Marraquexe Textos: Gonçalo Fonseca Ilustração: Sandra Rodrigues

Parte 3

A estrada de Marraquexe atravessa planícies nuas e ressequidas, paisagens abandonadas por onde só se pastoreiam alguns rebanhos de ovelhas e cabras, conduzidos por miúdos. Ao longo dos quilómetros, estende-se numa infindável linha brilhante. Traço negro a rasgar a planura vermelha, apenas quebrada por algumas palmeiras: vigias solitárias do nada, sentinelas do vasto sul. E sobre o horizonte, no fim de tarde, um sol incandescente que incendeia os rostos.


AZROU

Em direcção a Azrou cruzamo-nos com velhos autocarros, animais esbaforidos de entranhas a descoberto que tornam o seu ronco ainda mais audível e cavernoso. Tour du Sud, lê-se em letras gordas nas carroçarias enferrujadas. Seguem com o sol a ofuscar-lhes o caminho através de planícies amarelas semeadas de calhaus e arbustos enfezados. E ao longe, recortado contra o azul pálido, o velho Atlas acompanha-os durante a viagem.

FEZ

Na estrada entre Azrou e Fez encontram-se aldeias incrustadas nas encostas rochosas, lapas castanhas agarradas à terra que se confundem com a paisagem. Parecem ilusões tremeluzentes saídas do calor da tarde. Em contraste, as pessoas vestem-se com roupas de cores intensas. Azul, vermelho e verde estampados na aridez. Como se naquele mundo desabrido quisessem vincar as suas existências, proclamar a presença de vida humana.


CHEFCHAOUEN

RIF

A estrada do Riff - Saindo de Fez, a estrada lança-se em direcção às montanhas. Planaltos empedernidos deslizam pelo vidro e o ar tépido perpassa os nossos rostos. Contorcendo-se preguiçosa, a estrada sobe à beira da vertigem de ravinas profundas. Dissimulados na névoa, homens petrificados estendem nas palmas das mãos nacos de haxixe. No alto, Ketama é uma convulsão de casas arruinadas, carros amontoados e pessoas soturnas. Sítio hostil, povoado de rostos rudes que fulminam com o olhar. Fora da cidade e quase cegos pelo nevoeiro branco, tomamos a direcção do azul-turquesa de Chefchaouen.

A estrada de Tânger - De Chefchaouen a estrada desce, desce sempre, como se antes tivessemos subido ao cimo do mundo. A terra alastra-se por entre cumes abruptos e campos de verde-frouxo. Avistamos Tetuão, que à distância se assemelha a um grande cogumelo branco. Chegamos a Tânger e num ápice somos sugados pela cidade onde nervosos se agitam carros, motoretas, autocarros e camiões. Multidões enchem os passeios e cruzam anárquicas as ruas. Parecem formigas aparentemente desorientadas. A contra-relógio atravessamos esta desordem de máquinas e pessoas até ao porto.

Tanger Fim



Dedo Mau


Nuno Fragata


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