Literatura | Contos Crus, de Marco António (amostra)

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Mas podia ter acontecido numa qualquer repartição, hospital, gelataria e até no quiosque onde compramos o jornal e o tabaco. Perder tempo. Quando estas merdas me começam a lixar o dia e me fazem desperdiçar tempo, fico doido. Dá–me vontade de agarrar no pescoço da gaja da embaixada e apertá–lo até ela ficar roxa e os seus olhos saltarem cá para fora. E ao segurança, que me disse que tinha de esperar na fila como os outros, arrancava–lhe os tomates e depois levava-o lá para fora pelo colarinho e fazia-o pôr–se de joelhos, como se fosse dar uma dentada no lancil do passeio, depois deixava cair a bota. CRACK! Assim sairia satisfeito. Mas, como todos os outros, não tenho coragem para fazer isso e limito–me a rosnar sem nunca chegar a morder. Ao sair descobri uma multa no pára-brisas; tinha–me esquecido do carro e o tempo do parquímetro também já lá ia. Fiquei mesmo lixado. Olhei para a esquerda e vi o bófia, o porco. Dirigi–me a ele e dei–lhe um encontrão pelas costas, enquanto lhe tirava a arma do coldre. Ele virou–se, eu apontei à cabeça. BANG! Menos um porco. Na minha imaginação, claro. Rasguei a multa e vim–me embora. São estes dias que me fazem ficar louco. Toda esta cidade está podre. A Berlim dos espiões transformou–se numa cidade de animais, marginais e todo o tipo de freaks. Fazem–me perder o meu tempo e a paciência. Acho que o Charles Manson dizia algo como: se começasse a matar, mataria todo o mundo. Há dias em que me sinto assim. Por vezes, a vontade é irresistível, mas no fundo acaba por ser como diz o Rollins: “It’s one thing to hold the hammer in your hand, but do you have it in you to pound the nail?”. Eu não. Creio que muitos de nós não o têm. Passei por um agarrado esta tarde na Potsdam Platz. Reconheci-o, passado um momento, da escola onde andámos juntos. Perguntei–lhe o que é que tinha acontecido para estar assim. Respondeu–me que não se passava nada, que estava tudo controlado. Tudo controlado. Que piada. É mais um daqueles que embora dê na fruta frequentemente não acha que tem um problema. Tudo controlado. Um ou dois caldos por dia, mas não se passa nada. Mais um daqueles casos em que chove mas não molha. Ofereci–me para o ajudar, fiz–lhe o garrote, mas não consegui mais e vim–me embora. Apanhei duas baratas no chuveiro. A puta da senhoria continua sem arranjar a canalização. Acho que se estavam a comer, pelo menos estava uma em cima da outra. Lamentei pelas gerações que se perderam, mas tive de as matar. Foi mais forte que eu. VI 69


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