Jan2018 "Retorno a Brideshead"

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janeiro | 2018

Retorno a Brideshead


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Ao Leitor Feliz Ano Novo! Na TAG, o ano de 2018 começa com um gostinho nostálgico, tanto pelo tema da obra enviada quanto pelo curador de janeiro: Luis Fernando Verissimo, aclamado escritor brasileiro, que volta a indicar uma obra depois de dois anos. Os associados mais antigos deverão se lembrar da atmosfera tensa de O seminarista, de Rubem Fonseca, obra que abriu 2016 e marcou a primeira parceria do curador conosco. Desde aquela época, quando tínhamos dois mil associados, recebemos diversos pedidos para uma nova curadoria. Verissimo manteve a boa relação com a TAG, gentilmente nos concedeu uma entrevista e escolheu para os associados mais um de seus livros favoritos, desta vez transportando-nos até o seio de uma família da decadenEsta edição foiinglesa feita no período entreguerras. te aristocracia

pela TAG, com carinho, A mente de Charles Ryder, narrador dessa história, é inpara seus associados.

vadida por diversas lembranças da juventude. Seduzido por um charmoso jovem durante sua estadia em Oxford, Ryder adentra um mundo completamente novo, repleto de excentricidade, luxo e obsessão religiosa. Retorno a Brideshead, do britânico Evelyn Waugh, fez de sua obra material indispensável para todos os entusiastas da literatura. Com um layout completamente renovado, as revistas da TAG de 2018 apresentam também uma nova seção. Um de nossos três blogueiros fará, mensalmente, um texto exclusivo aqui sobre o livro do mês, o “Leia depois de ler”. Mas cuidado, pode conter spoilers! Além do livro enviado, faz parte do kit um calendário literário, inspirado no bem recebido modelo de 2017, para que este ano que começa venha acompanhado por boas leituras. Um ótimo início de ano a todos!

Equipe Tag


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A indicação do mês O curador Luis Fernando Verissimo

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Ecos da Leitura Verossimilhanças tangíveis

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s

Leia depois de ler

Crônica melancólica de um mundo perdido Sérgio Rodrigues

r!

Spoile


Sumário A INDICAÇÃO DO MÊS

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Entrevista com Luis Fernando Verissimo O livro indicado Retorno a Brideshead

ECOS DA LEITURA

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A aristocracia inglesa revisitada & Retratos entreguerras Evelyn Waugh e os satíricos

ESPAÇO DO ASSOCIADO

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Redescobrindo o amor pela leitura

A PRÓXIMA INDICAÇÃO

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O curador de fevereiro: Alberto Manguel


Zona Central Filmes


O curador Luis Fernando Verissimo Cronista, contista, romancista, roteirista, cartunista e músico, Luis Fernando Verissimo é um dos mais bem-sucedidos e populares escritores brasileiros contemporâneos, superando a marca de cinco milhões de vendas, mais de sessenta títulos publicados e um Prêmio Jabuti (2013) conquistado. Dono de uma sensível e bem-humorada percepção do cotidiano, é também responsável pela criação de alguns dos personagens mais célebres do imaginário brasileiro. Luis Fernando nasceu em 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, filho de Mafalda Halfen Volpe e Erico Verissimo, um dos mais importantes escritores brasileiros até hoje. Carregar tal grau de parentesco era, para ele, uma espécie de fardo que o próprio pai percebia e compreendia, embora tenha levado Luis Fernando a uma adiantada intimidade com a literatura. Erico, ávido devorador dos romances de Aluísio Azevedo, Joaquim Manuel de Macedo, Émile Zola e Fiódor Dostoiévski, proporcionou ao filho um rico berço literário: seus primeiros brinquedos foram os livros, e seu playground, a biblioteca de casa. Luis Fernando ainda lembra de momentos de sua infância e adolescência, como quando ouvia sua mãe conversando com Clarice Lispector ou seu pai recebendo telefonemas de Jorge Amado.

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A INDICAÇÃO DO MÊS

Quando Verissimo tinha 7 anos de idade, seu pai aceitou um convite para lecionar na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e levou a família para morar nos Estados Unidos. Nessa época, Erico ainda não havia publicado a maior parte dos livros que o consagrariam como um dos maiores nomes da nossa literatura, mas já gozava de considerável prestígio em virtude do romance Olhai os lírios do campo (1938), sua primeira obra reconhecida dentro e fora do Brasil. Apesar da precoce relação com o universo literário, Verissimo cresceu sem jamais ter cogitado ser escritor. Conta que, quando criança, queria ser aviador; na adolescência, passou a sonhar em ser arquiteto; depois, no início da juventude, apaixonou-se pelo jazz. Viajou pelos Estados Unidos para assistir a espetáculos de Charlie Parker e Dizzy Gillespie e aprendeu a tocar saxofone, instrumento que o acompanha até hoje. Na sua volta ao Brasil, já com 20 anos, Verissimo trabalhou no departamento de arte da Editora Globo, em Porto Alegre, e depois passou a atuar como tradutor e redator publicitário no Rio de Janeiro, onde conheceu sua futura esposa Lúcia Helena Massa, com quem viria a ter três filhos. Em 1967, então com trinta anos de idade, voltou à capital gaúcha – para iniciar, sem ter consciência disso na época, sua carreira como escritor.

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Foi contratado pelo jornal Zero Hora, onde passou a fazer de tudo. Como era muito tímido para ir às ruas e conseguir entrevistas, acabou trabalhando nos bastidores, editando matérias e revisando textos. Escreveu até horóscopo – “Meu primeiro exercício na ficção”, brinca. Certo dia, um colunista do jornal saiu de férias e Verissimo ofereceu-se para assumir seu lugar temporariamente. A crônica acabou lhe surgindo de forma natural, pois “é um gênero indefinido. Ninguém sabe exatamente onde ela inicia e onde termina e, assim, eu escrevia qualquer coisa e chamava de crônica”. O fato é que deu certo, o temporário virou permanente e, mais ou menos por acaso, Verissimo começou a ser chamado de escritor. De lá para cá, publicou milhares de crônicas e mais de sessenta livros, tornando-se um dos mais populares autores contemporâneos. Embora a maioria dos livros seja de compilação de crônicas publicadas em jornais, Verissimo também escreveu romances, como O jardim do diabo (1987), Gula - o clube dos anjos (1998) e A décima segunda noite (2006). Suas obras mais recentes são As mentiras que as mulheres contam, publicada em 2015, e Verissimas (2016), coletânea com as suas mais engraçadas e espirituosas frases, organizada pelo publicitário e jornalista Marcelo Dunlop. Apesar de não lançar livros na mesma frequência de anti-


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gamente, ainda é possível acompanhar novos textos seus nas colunas de Zero Hora, Estadão e O Globo. A obra de Verissimo está por todos os lugares. É difícil não ter ouvido falar do Analista de Bagé, psicanalista freudiano da fronteira gaúcha, conhecido por seus métodos inusitados e linguajar campeiro. Ou a Velhinha de Taubaté, “a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo”, criada como crítica ao governo do general João Figueiredo. Ou, ainda, Ed Mort, um dos detetives mais cômicos da nossa literatura policial, um trapalhão que gostaria de ser tão charmoso quanto Sherlock Holmes – mas, é claro, não consegue. Seus personagens têm traços fortes, caricatos – para Verissimo, o humor é a arte do exagero. Sua narrativa é veloz, repleta de diálogos e conduzida por um humor satírico. Quando ingressou no jornal Zero Hora, seu pai já havia publicado todos os volumes da trilogia O tempo e o vento e era considerado um

dos principais escritores de língua portuguesa do século XX. Tão logo o filho assinou suas primeiras crônicas, as comparações tornaram-se inevitáveis. Mas isso não foi problema, pois Verissimo optou, convicto, por uma trajetória diferente da do pai: apesar de se aventurar pelos romances, foi principalmente na crônica e no cartum que construiu seu legado literário. Os caminhos não foram os mesmos, mas levaram a um lugar semelhante: ao posto de um dos principais escritores brasileiros de sua época. Quando questionado a respeito da escolha para o livro de janeiro, Retorno a Brideshead, Verissimo lembrou da personalidade marcante e muitas vezes cínica do autor da obra, Evelyn Waugh: “Era uma figura contraditória. Um carolão convertido ao catolicismo e ao mesmo tempo escrevia livros de sátira política e social. Parte da atração que tenho por ele vem justamente disso. A melhor prosa do inglês que eu já li foi a dele. [Evelyn Waugh] é um dos grandes estilistas da língua inglesa”.

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Zona Central Filmes

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Entrevista

Luis Fernando Verissimo

Ele começou a ler, como quase toda a criança, com quadrinhos e historietas. Tímido, buscou refúgio nas leituras, que foram se tornando mais adultas, com tramas cada vez mais intricadas. Todo o pendor para a escrita, entretanto, só foi revelado aos trinta anos. Também, pudera: filho de um dos luminares da literatura brasileira, é compreensível imaginar que ele tenha, como conta, relutado em assumir-se também escritor. O público brasileiro agradece pela perseverança – afinal, você consegue imaginar ter passado pela escola sem jamais ter lido Luis Fernando Verissimo? Dono de umas das prosas mais leves, engraçadas e ilustradas da literatura brasileira contemporânea, Verissimo abriu sua casa por uma tarde para a equipe da TAG, ocasião em que conversou conosco sobre viagens, carreira, aposentadoria e – claro – livros. Leia trechos da entrevista.

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Infância leitora A casa dos pais de Luis Fernando, Erico e Mafalda, era conhecido ponto de encontro da elite intelectual de Porto Alegre. Entre livros e escritores, o expediente de leitura começou cedo para Luis Fernando Verissimo. – Comecei – conta ele – com os quadrinhos, com histórias infantis. O primeiro livro “para gente grande” que eu li foi Os desencantados, uma biografia disfarçada do Scott Fitzgerald, escrita por Budd Schulberg.

Já um pouco mais velho, leu em segredo o primeiro livro adulto de autoria do pai – até então só havia lido a rica obra infantil de Erico. – Eu sempre conto que o primeiro livro para gente grande [de Erico Verissimo] que eu li, Caminhos cruzados, eu li escondido.

De Tarzan a Hemingway Verissimo foi alfabetizado – “praticamente”, diz ele – em inglês. A família viveu nos Estados Unidos

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por dois anos, tempo durante o qual Verissimo, enquanto o pai lecionava em universidades, conheceu os heróis das histórias em quadrinhos e as séries de aventura, das quais destaca Tarzan. A afinidade com o inglês facilitou o contato com a prosa de autores clássicos da literatura norte-americana. Durante a juventude, romancistas como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner e John dos Passos cativaram Verissimo, não só por enredo e estrutura narrativa, mas por algo na sintaxe do idioma inglês que deixou marcas em seu estilo de escrita. – Tem gente que diz que eu escrevo em inglês traduzido. É uma linguagem mais solta, é muito mais fácil fazer diálogos em inglês do que em português. Em português, o que é escrito corretamente fica meio elitista, vamos dizer assim. No inglês, você pode se soltar.

O peso do sobrenome A condição de filho de Erico Verissimo, autor fundamental da literatura clássica brasileira, formou o Luis Fernando leitor, mas não despertou imediatamente a faceta de escritor. – O fato de ser filho de um escritor conhecido, como o meu pai, de certa maneira me inibiu. Eu pensei que não poderia seguir a mesma profissão.

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Foi apenas bem mais tarde, aos 30 anos, que Verissimo, trabalhando no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, começou a carreira de cronista. No improviso, segundo ele, mas com a confiança de quem já havia lido o suficiente para escrever com propriedade. – Sempre fui um grande leitor, um leitor voraz... Voraz e onívoro, porque lia de tudo. Então, quando eu comecei a ter uma coluna no jornal, eu já sabia como fazer aquilo, apesar de nunca ter escrito nada além de algumas traduções. Eu não tinha a menor intenção de ser escritor, muito menos jornalista. Mas como eu tinha chegado aos 30 anos e nada tinha dado certo das coisas que eu tentei, acabei virando cronista e, eventualmente, romancista. O que aconteceu depois disso, você já sabe: o nome Luis Fernando Verissimo encabeça mais de 380 livros, entre romances, antologias e edições estrangeiras – um acervo que foi cedido recentemente, em contrato de comodato, à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em um campus recentemente inaugurado em Porto Alegre.

Aposentadoria? Parece que sim Ativo aos 80 anos, tanto na escrita quanto na música, o autor confessa que pensa em parar e dedicar-se a ler e escrever por prazer.


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– Estou pensando seriamente em me aposentar. Fiz 80 anos há pouco e tenho tanta coisa para fazer, para ler e para ouvir fora do meu trabalho... O dia em que eu parar, vou ter tempo para tudo isso, para fazer as coisas que eu gosto de fazer e não ter essa obrigação diária, semanal, de produzir textos. Enquanto isso, as leituras continuam várias. Verissimo diz ler cada vez menos por lazer, mas sim para se manter informado. – Leio sobre política, economia... e alguns ensaios, também. Tenho lido o Roberto Calasso, George Steiner... Fora isso, é mais para me informar, tanto que estou desatualizado da literatura brasileira, sei muito pouco do pessoal novo que está aparecendo aí. Sei que são muito bons, mas eu não tenho tido tempo para dar atenção a eles. Acho que o nosso grande escritor hoje é o Milton Hatoum. E temos os nossos cronistas novos, como o Antonio Prata. É em meio a essa conversa sobre hábitos de leitura que a TAG surge como assunto. A sugestão de retomar a parceria com a TAG para uma segunda indicação literária foi iniciativa do autor, empolgado com a cópia de Vitória que recebeu em casa. Verissimo, também, é um entusiasta do ritual do livro.

de valorizar o livro, o objeto livro, o prazer de segurar um livro, o volume do livro, o cheiro do livro... É extraordinário.

Waugh: um sátiro carolão Para sua segunda curadoria, Verissimo decidiu sugerir um autor polêmico – embora, segundo ele, a separação de caráter e obra é algo que “tem de se fazer” durante a leitura. A escolha é justificada com olhos de escritor – para o curador, Retorno a Brideshead foi o livro “mais longo, ao qual ele deu mais importância e caprichou mais”. – O Evelyn Waugh era uma figura contraditória, escrevia livros satíricos, principalmente sobre a juventude de Londres entre as duas guerras, depois escreveu sobre a guerra também. Ao mesmo tempo, ele era um carolão convertido ao catolicismo e escrevia livros de sátira política e social. Parte da atração dele para mim é justamente isso. Apesar de tudo, a melhor prosa do inglês que eu já li foi dele. Tem uma prosa extraordinária – ensina Verissimo.

– Quando se fala tanto no fim da literatura, da escrita, que vai ser substituída por uma linguagem eletrônica, o clube é uma maneira

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R O livro indicado

Retorno a Brideshead

Quando Arthur Waugh venceu o prêmio de poesia Newdigate Prize, em Oxford, no ano de 1888, uma geração inteira de médicos que carregara orgulhosamente seu sobrenome chegava ao fim. Sem saber, ele abria caminho para o que hoje parece ser o dom predominante no gene da família. Desde aquele momento, o clã Waugh – representado por Arthur e seus filhos, netos e bisnetos – publicou escritos de todos os gêneros possíveis e continua ativo até hoje, com o bisneto Alexander. No entanto, o mais notório escritor dessa família continua sendo Evelyn, segundo filho de Arthur, homem de temperamento difícil, desagradável, arrogante. Ao mesmo tempo, considerado um dos mais importantes satiristas ingleses do século XX, cuja obra abarca romances, críticas literárias, biografias e livros de viagem, muitos deles de conteúdo tão primoroso quanto ferino. Arthur Evelyn Waugh nasceu em outubro de 1903, em Londres. Viveu durante a infância em uma casa no campo, recebendo aulas da mãe, com quem estabeleceu uma relação íntima e afetuosa. Seu pai, por outro lado, era distante e demonstrava uma clara preferência por Alec, o filho mais velho. Uma rejeição que possivelmente afetou de forma permanente a vida do escritor, que desde cedo pendeu para o escárnio e para o talento criativo. De 1910 a 1916,

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em uma escola preparatória, Evelyn dividia seu tempo entre praticar bullying com os colegas e escrever roteiros de teatro para que eles os interpretassem. Quando se imaginava que o garoto seria transferido para a escola de Sherborne, onde Alec estudava, boatos sobre relações homossexuais envolvendo seu irmão fizeram este ser enviado para prestar serviços militares. Evelyn acabou em Lancing, uma instituição de menor destaque.

publicando resenhas e contos para periódicos e desenvolvendo uma reputação como artista gráfico. Experimentou, também, relações homossexuais – duas das mais intensas teriam sido com os jovens Alastair Graham e Hugh Lygon.

Cada vez mais disperso e desinteressado pelos estudos, Evelyn saiu de Oxford sem diploma. Seguiu-se um período no qual, financeiramente desesperado, exerceu diferentes trabalhos, de professor a carNa nova escola, tornou-se um jopinteiro, sem se firmar em nenhum vem subversivo e irônico, mas deles. No entanto, a paixão pela esprolífico na produção textual e encrita seguia sem percalços, e ele teve tusiasmado com seu primeiro texto cultura. Escreveu comercialmente O autor sobre cubismo, inpublicado em 1926, teressou-se pelo com o conto The movimento do esbalance, presente teticismo, editou a em uma coletârevista da escola, nea da Chapman rascunhou roman& Hall. No ano seces e aprendeu guinte, conheceu e sobre design deapaixonou-se por corativo – alguns Evelyn Gardner, de seus projetos com quem se caforam tão bem avaliados que ilussou em 1928 e formou o casal que traram capas de livros da Chapman ficou conhecido como She-Evelyn & Hall, editora responsável por pue He-Evelyn. No mesmo ano, seu blicações de Charles Dickens. primeiro romance foi publicado: Declínio e queda, uma sátira social O próximo destino de Waugh seria baseada nos seus anos em Lancing Oxford. Sua vida mudou drasticae Oxford. A obra fez considerável mente quando conheceu Harold sucesso, chegando à terceira edição Acton e Brian Howard, jovens que em apenas três meses. protagonizaram o início de um círculo vanguardista artístico e comO casamento com She-Evelyn não portamental. Durante essa época, duraria muito tempo. Cerca de um Evelyn levou uma vida boêmia, beano após a cerimônia, ela confessou bendo em excesso. Porém, seguiu sua infidelidade com um amigo em

Arthur Evelyn Waugh

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comum do casal, e a separação foi consumada pouco tempo depois. O apático e desiludido Evelyn Waugh desse momento contrastava com o Waugh escritor-celebridade que começava a ser reconhecido ao redor do mundo. A década de 1930, marcada pela grande produtividade de Waugh, começou com seu segundo romance, Vile bodies (1930), uma sátira sobre os socialites londrinos, primeiro sucesso comercial do escritor. No mesmo ano, para a surpresa da família e de amigos – mas não para ele, que já vinha pensando sobre o assunto havia tempo –, converteu-se ao catolicismo, religião que teria um peso importante na sua vida. Em seguida, passou a viajar pela África e América do Sul para compromissos jornalísticos e produziu livros de viagem e romances. Entre eles, estava A handful of dust (1934), um de seus maiores êxitos literários. Logo casou-se com Laura Herbert, por acaso prima de Evelyn Gardner, com quem teve sete filhos e que foi sua companheira até o fim da vida.

Carl Van Vechten

Quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu, Waugh entrou para as forças armadas, foi promovido a capitão e serviu na marinha e na cavalaria, mas provou-se um péssimo líder. Conhecido por sua habitual arrogância, não conquistou a simpatia de seus grupos e foi convocado para o campo de batalha em poucas oportunidades. Em uma das suas últimas atividades militares, quebrou a fíbula durante um trei-

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no de paraquedas e ficou três meses parado, período que lhe possibilitou a escrita de mais um romance, que já vinha lhe ocupando a cabeça: Retorno a Brideshead, publicado em 1945 e indicado por Luis Fernando Verissimo para este mês. O livro é narrado por Charles Ryder, capitão do exército britânico em meio à Segunda Guerra Mundial que, durante uma missão, reencontra um lugar que lhe traz estranha sensação de nostalgia: as terras de Brideshead. As recordações que o perpassam e que são o foco da trama remetem às décadas de 1920 e 1930, quando Ryder ingressou na Universidade de Oxford e conheceu o charmoso jovem Lorde Sebastian Flyte. Encantado por Sebastian, Ryder embarca com o amigo em uma rotina boêmia, de excessos financeiros e amizades baseadas em referências artísticas. Flyte leva o narrador para conhecer sua família no castelo de Brideshead, onde vivem seus irmãos e sua mãe. Diante de um estilo de vida suntuoso, excêntrico e, em muito, pautado pela religiosidade, Ryder, que nunca vivera nada parecido, ora se sente fascinado ora sente repulsa. Diferentemente das obras anteriores de Waugh, Retorno a Brideshead não se utiliza da sátira como elemento principal. Existem, claro, momentos cômicos e críticas discretamente ácidas, mas o tom da narrativa é mais doce, sua linguagem é exuberante e saudosa. Ao mesmo tempo em

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que revela apreço nostálgico pela decadente aristocracia britânica, a obra explora temas como juventude, amizade, família e catolicismo. Entre conversões, discussões e separações, todos os personagens do romance parecem lidar com conflitos religiosos, mesmo os agnósticos, como o narrador. Waugh posteriormente explicou que sua intenção era que cada personagem do romance conseguisse aceitar a graça divina à sua maneira. O fato de manter na obra a veia satírica, no entanto, deixou críticos literários em dúvida quanto ao posicionamento favorável ou não frente à religião. Outro ponto bastante discutido pela crítica é a relação entre Charles e Sebastian, na qual o amor romântico é somente sugerido. No manuscrito original do romance, o nome de Sebastian fora trocado, em duas oportunidades, por Alastair, o que poderia indicar forte inspiração vinda do antigo parceiro de Evelyn durante seu período em Oxford (existe outra teoria sobre a origem do personagem de Sebastian – debatemos essa questão nos Ecos). O lançamento de Retorno a Brideshead foi o ápice da carreira de Waugh – com a obra, conquistou fama, dinheiro e status literário. Liberado do exército, passou a viajar constantemente e lançou romances baseados em suas experiências. Uma de suas principais preocupações naquele momento, entretanto, era a religião católi-


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ca. Em 1950, publicaria o romance histórico Helena, que conta a jornada da mãe de Constantino I em busca de restos originais da cruz na qual Cristo foi martirizado. Perto dos cinquenta anos de idade, a saúde do escritor deteriorou-se de maneira veloz – ele estava completamente dependente de álcool e de remédios para aliviar a depressão e a insônia. Por cerca de mais uma década, o autor manteve-se prolífico, publicando, entre outras obras, uma trilogia semiautobiográfica sobre a Segunda Guerra Mundial e o romance The Ordeal of Gilbert Pinfold (1957), no qual debochou de si mesmo e de suas experiências alucinógenas provocadas pelos excessos com remédios. Waugh foi o tema de um curta-metragem do

cineasta Edwin Newman, que, durante as entrevistas com o escritor, descobriu seu ódio por tudo que dizia respeito ao mundo moderno – de telefones a carros, chegando inclusive a fazer críticas públicas a modernizações da Igreja Católica. Evelyn Waugh faleceu em um domingo de Páscoa, no ano de 1966, aos sessenta e dois anos, acometido por uma insuficiência cardíaca. Sua obra, depois de um longo período esquecida, voltou à tona com a produção da série Brideshead revisited, do canal BBC, no começo dos anos 1980. A partir dela, foram lançados filmes baseados em outros romances de Waugh, o que contribuiu para sua permanência como um dos mais reconhecidos satiristas ingleses do século XX.

“Retorno a Brideshead tem a profundidade e o peso encontrados em um escritor que trabalha em seu auge, com pleno controle de uma mente boa e ávida e de uma mão talentosa, que retém o melhor do que já aprendeu. [...] Tem um sentimento quase romântico de deslumbramento, junto com o ponto de vista pessoal e provocativo de um escritor que enxerga a vida de forma realista.” -The New York Times, em resenha de 1946

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ECOS DA LEITURA

A aristocracia inglesa revisitada Retorno a Brideshead foi publicado em 1945 e adaptado para o cinema em 2008. No entanto, Evelyn Waugh não foi o único a retratar o período de decadência da nobreza inglesa do início do século XX.

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ECOS DA LEITURA

Retratos entreguerras O período entreguerras, retratado por Charles Ryder ao se recordar da relação com a família Marchmain, foi marcado por grandes mudanças sociais, com impacto nos costumes e na moda da época.

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ECOS DA LEITURA

P

or meio da linguagem cinematográfica ou literária, a época ficou conhecida pela representação de disputas familiares, diferenças de classe, trajes elegantes e um país que se reconfigurava à medida que os hábitos se modernizavam. Confira algumas das principais produções audiovisuais que simbolizaram a atmosfera dramática e irônica da narrativa de Evelyn Waugh.

B Em 1981, o canal de televisão britânico Granada produziu a minissérie Brideshead revisited. Embora apenas uma temporada com onze episódios tenha ido ao ar, a série foi muito popular entre os telespectadores europeus e americanos por ser extremamente fiel ao romance e manter seu ritmo leve e melancólico. Brideshead revisited, que consagrou o ator Jeremy Irons, recebeu onze indicações ao Prêmio Emmy em 1982. O diretor Julian Jarrold filmou, em 2008, uma corajosa e desafiadora adaptação do romance para o cinema.

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A

A família Bellamy é uma série britânica criada por Jean Marsh e Eileen Atkins em 1971. A história colocou em cena a saga da família aristocrata Bellamy entre 1903 e 1930, assim como a de seus empregados, que viviam no andar de baixo da casa. Vencedora do Emmy de melhor série dramática em 1976 e 1977, teve uma continuação, escrita por Heidi Thomas, em 2010. Tanto na primeira versão quanto na segunda, o objetivo dos roteiristas era documentar as mudanças sociais e tecnológicas que invadiram o início do século XX.


D

Downton Abbey (2010) é, sem dúvida, uma das séries inglesas preferidas do público. Nostálgica e com um cenário rico em detalhes, dos figurinos aos cenários, a série retrata questões importantes de um período histórico que alterou, por exemplo, a posição dos empregados nas residências abastadas. Downton Abbey ganhou os principais prêmios da categoria: Emmy (2012) e Golden Globe (2013) por melhor série dramática. Além das condecorações, a autora Jessica Fellowes, filha do criador da série, Julian Fellowes, escreveu um guia oficial, intitulado O mundo de Downton Abbey (2013), que bateu recorde de vendas na Grã-Bretanha.

A

Uma década antes de produzir Downton Abbey, Julian Fellowes escreveu o roteiro de Assassinato em Gosford Park (2001), filme dirigido por Robert Altman. O longa acompanha a investigação do assassinato de um aristocrata em uma propriedade inglesa nos anos 1930. Por meio da montagem cinematográfica em justaposição, a história descreve a diferença de classes pela oposição entre a aristocracia hospedada no andar de cima da casa e os empregados, no andar de baixo. Indicado para o Prêmio César de Melhor Filme Europeu em 2003, Assassinato em Gosford Park ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original em 2002.

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D

urante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com os homens nos campos de batalha, a renda das famílias foi drasticamente reduzida e o trabalho feminino foi requisitado em fábricas, enfermarias e orfanatos. Alinhado a isso, a limitação de materiais tornou as roupas mais funcionais e com tecidos mais baratos e resistentes, que deveriam ajustar-se à nova realidade das mulheres. Nessa época, começaram a aparecer calças no guarda-roupa feminino, que formavam os uniformes das trabalhadoras, além de vestimentas inspiradas em trajes militares, como jaquetas, cintos e capas. Muitos estilistas ficaram famosos durante o período, como Gabrielle “Coco” Chanel, que desenhava roupas com uma estética mais despojada e simples. Após a guerra, viveu-se uma época de euforia, conhecida como “os loucos anos 1920”, com novas alterações no comportamento e na moda. Com o retorno da ideia de prosperidade, as pessoas procuravam desfrutar da vida e se divertir. Os livros Este lado do paraíso (1920) e O grande Gatsby (1925), ambos de F. Scott Fitzgerald, pintam um retrato fiel destes anos que também são conhecidos como “a era do jazz”.

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Na moda, as saias - agora mais curtas, acima dos joelhos - eram confeccionadas em tecidos mais leves e em tons suaves. As melindrosas, como eram conhecidas as jovens que torciam o nariz para o conceito de “dama” da época, simbolizaram a identidade feminina em mutação, com cabelos curtos à la garçonne e vestidos franjados. A era do jazz fez surgir uma nova mulher, mais independente e livre. Porém, em 1929, com a quebra da bolsa americana, uma abordagem mais conservadora da moda foi necessária. Durante esse período, o prêt-à-porter, que significa “pronto para vestir”, ganhou popularidade, tornando as roupas financeiramente mais acessíveis. Com produção em grande escala, o prêt-à-porter, além de representar uma revolução industrial, ajudou a criar as tendências de moda como as conhecemos, tomando o lugar da alta-costura.


ECOS DA LEITURA

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ECOS DA LEITURA

Verossimilhanças tangíveis

E

m 1945, quando Evelyn Waugh publicou Retorno a Brideshead, críticos americanos e britânicos se alvoroçaram, causando impacto nas vendas, que chegaram a um milhão de cópias em poucos meses. Um personagem em particular deste fenômeno literário chamou a atenção dos leitores: Sebastian Flyte. Apesar de a maioria dos fãs da trama nostálgica imaginar o Lorde na pele de Anthony Andrews, ator que o interpretou na série de 1981, Jane Mulvagh, jornalista e historiadora, apresentou outra versão de Flyte. Em seu livro Madresfield: The Real Brideshead (2009), a autora conta que a inspiração para a criação da narrativa de Waugh surgiu a partir da mansão Madresfield, em Worcestershire,

Evelyn Waugh

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Inglaterra, pertencente à família Lygon desde o século XIX. Ao longo da pesquisa, Mulvagh conversou com alguns membros da família sobre Evelyn Waugh, que frequentara a casa na década de 1930. Segundo ela, o personagem de Sebastian foi baseado em Hugh Lygon, um dos sete filhos de William Lygon. Assim como o narrador de Retorno a Brideshead, Charles Ryder, Waugh também era proveniente da classe média e conheceu Lygon na época em que estudavam na Universidade de Oxford. A amizade cultivada pelos dois seria o princípio da relação entre o autor e a aristocracia inglesa. Em seguida, o pai de Hugh, William Lygon, foi denunciado pelo seu irmão por adultério homossexual, crime cuja sentença era de exílio, obrigando-o a fugir para Itália. Sua esposa, Lettice Grosvenor, humilhada pela conduta do marido, voltou a morar com sua família, deixando a mansão de Madresfield para os filhos já adultos. Logo, a casa se tornou um ambiente com notória liberdade de expressão para os irmãos e seus amigos íntimos, entre os quais estava Evelyn.


ECOS DA LEITURA

ld, em Madresfie hire Worcesters Nesses encontros, Waugh iniciou profunda amizade com as duas irmãs de Hugh, Mary e Dorothy, que inspiraram, no romance, as irmãs de Sebastian, Julia e Cordelia Flyte. Desde 1931 até 1936, acredita-se que o escritor tenha passado oito meses em Madresfield, tempo que possibilitou o amadurecimento da relação entre Evelyn e Hugh. Ainda que, para a época, o envolvimento dos dois pudesse ter conotações amorosas, nas cartas do escritor e nos depoimentos familiares ouvidos por Jane Mulvagh, as evidências de qualquer relação homossexual são tão ambíguas quanto no livro. Lygon faleceu em 1936 e Evelyn Waugh escreveu Retorno a Brideshead quase uma década depois, em 1944.

Uma segunda versão para a inspiração do livro foi proposta por Philip Eade na biografia Evelyn Waugh: a life revisited (2016). Segundo o biógrafo, o autor teria criado o personagem de Sebastian baseando-se no amigo Alastair Graham, seu suposto amante da juventude. O principal ponto levantado por Eade é de que Waugh teria se confundido durante a redação do manuscrito original, escrevendo Alastair em vez de Sebastian. Contudo, sendo impossível conhecer as intenções do autor, nota-se uma importante correlação entre sua vida e o livro. Contrariando o alarmismo dos biógrafos, nada impede que a relação entre as memórias de Evelyn e o personagem Sebastian seja menos correlata à vida amorosa do autor.

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ECOS DA LEITURA

Evelyn Waugh e os

satíricos Questionado em 1946 sobre a possibilidade de seus livros terem um propósito satírico, Evelyn Waugh responde: “Não. A sátira é uma questão de época. Ela floresce em uma sociedade estável e pressupõe padrões morais homogêneos. Destina-se à inconsistência e à hipocrisia. Expõe crueldade e loucura polidas através do exagero. Busca causar vergonha. Tudo isso não tem lugar neste século, onde o vício não se submete mais à virtude”. Waugh nega a sátira justamente de forma satírica. A literatura inglesa foi marcada por importantes escritores de expressão irônica. Durante o período entreguerras, diversos autores identificaram-se com a corrente satírica modernista. A mecanização da sociedade, a perda de identidade e o sentimento desesperador de descrença no futuro suscitaram

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nos escritores a necessidade de representar o impasse e a impotência do período entreguerras por meiode uma escrita irônica e cômica. O mais notável expoente desta geração foi Evelyn Waugh, sobretudo pelos livros que publicou na década de 1930. Um dos principais títulos dentre os romances distópicos, Admirável mundo novo, foi escrito em 1931 por Aldous Huxley, escritor inglês nascido em 1894. A narrativa acontece após a consolidação do fordismo como sistema de produção industrial, e os personagens são divididos em castas controladas pelo poder estatal. O tom satírico reside na perspectiva de que os humanos, tentando ser cada vez melhores e mais inteligentes beneficiando-se do progresso científico, acabam se tornando seus próprios adversários, incompreendidos e infelizes.


ECOS DA LEITURA

Aldous huxley

Samuel Beckett

Wyndham Lewis

Kingsley Amis

Ian McEwan

Salman Rushdie

Partindo de uma escrita existencial, Samuel Beckett, nascido em 1906, em Dublin, foi escritor, dramaturgo e poeta. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1969, publicou seu primeiro romance, Murphy, em 1938. O livro narra a história de um jovem irlandês que, pressionado por sua noiva a conseguir um emprego, começa a trabalhar em um hospício, onde intensifica o contato com os pacientes em diálogos cômicos e filosóficos. A obra é considerada uma paródia das ideias, em que Beckett satiriza as relações sociais baseadas no senso comum, assim como as estruturas formais do gênero romance. Expoente do movimento modernista europeu, ao lado de Ezra Pound, T.S. Eliot e James Joyce, Wyndham Lewis foi um pintor e escritor inglês nascido em 1882. Em 1928, publicou The childermass, analisado como uma das obras mais satíricas do período entreguerras. A obra não apresenta enredo principal, mas um estilo de escrita singular, com diálogos desconexos entre os personagens que buscam alcançar a redenção divina, criando uma espécie de limbo moderno. No que tange à crítica literária, não há uma teoria definitiva sobre a sátira, apenas sua analogia como o “Proteu” da literatura, referindo-se ao personagem presente na obra Odisseia (circa séc. VIII a.C.), de Homero. Nela, Proteus é um “velho do mar” que pode alterar sua forma quando não quer responder a certas perguntas. Nesse sentido, a sátira é um recurso literário que critica e ridiculariza direta ou indiretamente um objeto, alterando sua concepção vigente. Esse mecanismo de escrita influenciou diversos autores contemporâneos que manifestam um humor incômodo e ambivalente, como Kingsley Amis, Ian McEwan e Salman Rushdie.

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ESPAÇO DO ASSOCIADO

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Redescobrindo o amor pela leitura No aplicativo da TAG, há um espaço intitulado “Cafezinho”, reservado para a troca de experiências entre nossos associados. Lá, costumam aparecer postagens com recomendações de leitura, discussões sobre as obras enviadas pelo clube e, às vezes, comoventes histórias pessoais. Para começar o ano com um calorzinho no coração, compartilhamos o que a associada Karen Alves, de Petrolina, postou durante o mês de outubro: “Aqui em casa, não cresci ao redor de livros, não tive referências, nem contadores de histórias infantis antes de dormir. Relia o acervo de paradidáticos da escola, que crescia pouco, ano após ano: os meus e os da minha irmã. Decorava as histórias e me apaixonava sempre, como a primeira vez. O livro de

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português era meu melhor amigo antes da volta às aulas. Saia procurando os textos. Lia e relia. Durante o ano escolar, já conhecia todos. Enquanto a professora sugeria as atividades, eu dizia aos colegas ’eita, esse texto é ótimo‘. Eu já havia decorado. Às vezes, mesmo sem entender, feito o poema A Rosa de Hiroshima, que, na época, lendo nas férias sozinha no quarto, só senti tristeza sem razão. Quando eu comecei a entender o que eu era, já estava grandinha, mas fui buscar o tempo perdido. Minha mãe não entendia muito por que gastar tanto com livro (e sempre foi tão pouco). Meu pai chegou a me dar dinheiro escondido dela: ’vá comprar seus livros‘. Ele entendeu. Minha mãe hoje reclama que já não vai ter mais lugar


ESPAÇO DO ASSOCIADO

na estante para tanto exemplar (e tão pouco). Ela já entende. Meus pais tiveram muito menos porque ser criança em cidadezinha do sertão tinha feijão e farinha e era para agradecer. Livro não tinha serventia. Era luxo desconhecido. Mas meus motivos foram outros. Tive muito. Educação sempre foi prioridade. Mas eles só podiam dar o que tinham. Daí a foto. Não é ilustração do texto. Mas é história em luz. Mês de setembro comentei do livro [Quase memória, de Carlos Heitor Cony] pro meu pai. Não sei por que, mas a ideia de um filho receber encomen-

da surpresa de seu pai, parecia um pouco com a gente. Meu livro veio com a capa arranhada. Chegou outro pelos Correios. ’Esse arranhado vou dar para alguém‘. ‘Me dê‘, disse ele como que cobrando uma dívida que nem existia. Agora, vez ou outra, ele comenta algo sobre o livro com a minha mãe (que escuta fingindo interesse só pela empolgação dele). Dia desses ele me veio com essa: ‘O pai dele até parece comigo‘. Silencioso, observo meu pai desligando a TV, pegando o livro; indo se sentar na cadeira de balanço, na área, e pegando o livro. Não preciso nem dizer o quando essa imagem me emociona.”

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LEIA DEPOIS DE LER

Spoiler!

Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Aqui, mensalmente, um dos colunistas do nosso blog - taglivros.com.br/blog - irá produzir um texto especialmente para você analisar de forma mais complexa a obra.

Crônica melancólica de um mundo perdido Sérgio Rodrigues

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rideshead, mansão campestre de uma família católica da aristocracia britânica, é mais que cenário. Corporifica um suntuoso estilo de vida que já está condenado à extinção quando suas portas se abrem para receber o jovem Charles Ryder, estudante de classe média com ambições artísticas que vai se tornar pintor profissional. Narrador da história, que conta como exercício de memória depois que a Segunda Guerra Mundial revirou aquele mundo de pernas para o ar, Ryder é um alpinista social clássico. Ao mesmo tempo em que se mantém distante em sua frieza analí-

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tica dos costumes dos ricos, envolve-se profundamente com os Flyte. O envolvimento é amoroso – primeiro com o belo e atormentado Sebastian, seu colega em Oxford, num caso homossexual bem menos que velado (embora tampouco explícito), e anos mais tarde com sua igualmente bela irmã Julia. Retorno a Brideshead é, antes de mais nada, um romanção no sentido pleno da palavra. Mais do que contar uma história, a narrativa dá forma a um mundo completo de ideias, imagens e sensações onde o leitor vira uma espécie de habitante invisível, um voyeur guloso


LEIA DEPOIS DE LER

que já não quer ir embora. Evelyn Waugh (1903-1966) é um narrador sagaz e um estilista que, em seus melhores momentos, produz parágrafos perfeitos em que nada poderia ser dito de outra forma. Acontece que Waugh não era apenas um escritor de imenso talento. Era um escritor de imenso talento que tinha, como se diz hoje, uma agenda clara. Convertido ao catolicismo aos 27 anos, ultraconservador em política, estética e costumes, conduziu a festança romanesca – e repleta de deliciosos “pecados” – de seu livro mais famoso a um final redentor e pio que só os católicos mais fervorosos deixarão de considerar inverossímil. O problema não é a religiosidade em si, embora ela seja de conciliação difícil com o laicismo inato do mais prosaico dos gêneros literários. Grave é o modo esquemático e forçado como ela se introduz para tingir de tragédia uma história de amor. Graham Greene, outro inglês católico que gostava de falar de Deus em seus livros, foi mais feliz ao abordar uma renúncia amorosa semelhante em Fim de caso.

Se a fé do autor o leva a perder a mão no final, o mesmo não se pode dizer de seu ultraconservadorismo. Desconfortável em seu próprio tempo, inimigo da arte moderna, nacionalista, saudosista e misantropo, Waugh foi, por isso mesmo, um cantor inspirado da juventude perdida, retratista mordaz de tipos humanos e cronista sensível de um mundo, o da velha aristocracia britânica, que se fazia em pedaços no período entreguerras.

Satirista famoso, aqui ele conteve a veia cômica como nunca – embora não tenha aberto mão dela por completo, ainda bem. O tom predominante no livro é de profunda melancolia pelo que se perdeu, pelo que está sempre se perdendo. Ninguém precisa compartilhar do passadismo do autor para se render ao poder de sua arte.

Não se trata de um problema pequeno, mas convém deixar claro que isso passa longe de invalidar Retorno a Brideshead. Como eu disse, o livro é um romanção impressionante antes de mais nada.

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A PRÓXIMA INDICAÇÃO

A

O curador de fevereiro Alberto Manguel

Sua indicação para o mês de fevereiro nos leva para o deserto

“É um retrato profundo da nossa humanidade, onde quer que nos encontremos. Especialmente hoje, quando os conflitos são cotidianos, essa obra afirma a possibilidade de convivência”

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da antiga Pérsia, em um território situado entre as sagradas cidades de Meca e Medina. Nove personagens de culturas completamente distintas têm seus destinos entrelaçados por meio de um objeto misterioso, capaz de transformar a vida de cada um deles. Com uma narrativa poética, em tom de fábula, este livro lançou ao redor do mundo o nome de sua autora, cuja obra já foi comparada às primeiras publicações do celebrado escritor Salman Rushdie.

Greg Salibian

Argentino naturalizado canadense, Alberto Manguel é um dos mais destacados historiadores culturais da atualidade. Ensaísta, editor, tradutor e romancista, chamou a atenção da crítica literária mundial pela primeira vez com o best-seller Uma história da leitura (1996). Além dos mais de quarenta livros publicados, contribui regularmente para jornais e revistas do mundo inteiro.


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“De todos os animais selvagens, o homem jovem é o mais difícil de domar.” – Platão


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