ancestrais conduziu à contundente interpretação acerca da própria origem da cidade, pois tanto na abordagem estritamente materialista quanto na cultural, historiadores validam a hipótese historicamente construída de que a cidade dos mortos precedeu a cidade dos vivos. Penso ser interessante sublinhar que essa primeira definição desse lugar fixo conduz ao segundo polo mencionado por Mumford. Se por um lado estava garantido o repouso, por outro se estabelece o movimento baseado na permanente peregrinação cerimonial que percorria o espaço entre a cidade dos vivos e a cidade dos mortos. Esse movimento pendular entre um e outro lugar comprova a coexistência permanente entre corpo e cidade na criação dessa organização original da vida humana.
Uma empreitada de tal dimensão contou com todo conhecimento adquirido e acumulado pela existência humana até aquele período inaugural, e sempre sob comando de seus próprios corpos traduzidos em pensamento, habilidade e força. O corpo foi o móvel propulsor para a realização da obra – a cidade.
A observação das primeiras estruturas urbanas e a conjugação cidade e corpo conduz a mais uma dualidade, tão essencial quanto a anterior, cuja integração é um dos atributos vitais da organização da vida humana no interior das cidades. Enquanto obra humana, a criação da cidade se distinguiu de todas as demais formas de arranjos que a precedeu pela criação de outros dois recintos bem definidos, e bem delimitados espacialmente, cuja integração, poderíamos dizer dialética, esteve presente desde a sua origem – o espaço público e o espaço privado. Tanto quanto no par movimento/repouso, aqui também o corpo do cidadão possui uma integral centralidade. Pois, enquanto no espaço público o corpo expressa os valores da vida coletiva, no espaço privado ele abriga sua intimidade. A criação de um dentro e de um fora, tendo o corpo como objeto central, representou uma revolução na organização da vida humana. O antropólogo e historiador inglês Richard Sennett faz uma distinção entre esses dois lugares nos quais se situam as atividades da vida cotidiana. Ele afirma:
“[...] ambos [espaços] se situam no interior de uma ‘única molécula’ [a cidade], sendo o espaço privado uma condição humana e o espaço público uma criação humana. Essa bela distinção acena para a vivência dos dois lugares, nos quais o corpo é o centro da expressão, tanto de uma como de outra. Longe de se apresentarem em oposição, apresentam-se como uma relação indivisa. De um lado aprimora-se o cidadão, de outro, o indivíduo”.
Observando sob todos os ângulos e vertentes teóricas que a história da cidade, desde sua origem, ainda como aldeia permanente, até sua versão atual – a metrópole contemporânea –experimentamos a presença do vínculo originário entre cidade e corpo que se apresenta de forma muito efetiva. Os momentos de rompimento desse vínculo foram todos marcantes pela sua disfuncionalidade. Autores de diversas áreas do conhecimento percorreram essas distinções buscando esclarecer seus conteúdos. Escolho aqui não um nome, mas um momento histórico que pode ser reconhecido como seminal: o humanismo renascentista italiano, mais especificamente nos séculos 14 e 15 quando foi elaborado o conceito teórico da cidade ideal. Considerado uma síntese de pensamento sobre a cidade, tal conceito foi interpretado posteriormente como um marco no interior do processo de ruptura ente cidade e corpo. Trago a cidade ideal do Renascimento apenas para marcar um aspecto que considero importante para o aprofundamento do nosso tema, que é a inevitável conexão entre cidade e corpo
Na conjugação entre o pensamento teórico e a expressão e a representação visual elaborada pelo humanismo renascentista, quando cidade e corpo foram associados de maneira renovadora, delinearam-se duas perspectivas não apenas distintas, mas com resultados opostos. A ordem geométrica, principal sustentação do pensamento racional, retirada precisamente das medidas do corpo humano, traduzia o objetivo dos tratadistas da “perfeita proporcionalidade” na reflexão entre as medidas físicas dos corpos e as possíveis organizações materiais da cidade. O tema foi abordado em tratados que constituíram um conjunto de textos de grande envergadura intelectual sobre as regras e normas que deveriam reger a criação das cidades. Esses documentos deveriam ser a base orientadora para todas as construções: monumentos urbanos, templos, ruas, casas, sistema viário, pontes e tudo mais que fosse objeto de projeto. A escala humana, resultado de cálculos matemáticos e de proporções geométricas precisas, ganhou reflexões expressas em textos e desenhos primorosos. Embora se tratasse da produção de ideias-imagem nas quais se exaltavam as proporções de um corpo humano fruto de uma total idealização, o mais famoso sendo o Homem Vitruviano, calculado e desenhado por Leonardo da Vinci no final do século 15, o objetivo era propor um padrão humano que possibilitasse o estabelecimento harmonioso, em termos físicos, entre o cidadão e todos os projetos e artefatos que o cercavam. Muitas análises dessa questão apontam nesse procedimento um conhecimento racional, acompanhado de uma busca inconveniente do cidadão padrão.
Simultaneamente, em uma proposta oriunda das mesmas premissas de racionalidade ditadas pelo Renascimento italiano do século 15, é desenvolvido o conceito da cidade ideal, apresentado em três magníficos painéis de madeira onde se observa um conjunto de edifícios urbanos, compostos por diversas ordens arquitetônicas reconhecíveis, harmoniosamente organizados pela utilização de um instrumento recém-criado: a perspectiva. Partindo de um ponto de fuga central, definido por uma edificação circular, provavelmente um monumento sagrado, organiza-se geometricamente um amplo contexto urbano, também denominado naquele momento paisagem urbana. O amplo semicírculo no qual os edifícios se colocam lado a lado tem no seu primeiro plano uma praça ampla, cujo piso geométrico enfatiza a rígida geometria na distribuição dos edifícios.
Os três painéis, apesar de distinções bastante interpretadas por historiadores e críticos, apresentam uma surpreendente e intencional ausência de qualquer referência humana. Nasce aí uma questão maior que desde a formulação e representação da cidade ideal é objeto de muito debate e muita pesquisa. As análises convergem para leituras que enxergam no conceito e na sua representação – a cidade ideal – a expressão de uma dura materialidade na qual o conhecimento racional e a habilidade construtiva e visual são fruto de valores estritamente urbanos e arquitetônicos, nos quais imperara de maneira severa a lei da ordem. A presença humana, fosse ela coletiva ou individual, representaria uma ameaça à ordem estabelecida, cuja presença instauraria uma indesejável desordem.
Fica patente que a formulação da cidade ideal do Renascimento assentada numa organização urbana monumental contraria o próprio princípio do humanismo renascentista, que afirma ser o homem “a medida de todas as coisas”. O amálgama entre corpo e cidade, diante das premissas utilizadas para a proposta da cidade ideal desaparece, cedendo