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RETRATOS DE UM POVO

A beleza da vida cotidiana do Aglomerado da Serra, em BH, uma das maiores comunidades urbanas do país, pelas lentes de João Mendes e Afonso Pimenta POR LUNA D’ALAMA

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Única cordilheira do Brasil, a Serra do Espinhaço estende-se por mil quilômetros entre os estados de Minas Gerais e Bahia. No limite sul de Belo Horizonte, essa cadeia montanhosa recebe o nome de Serra do Curral, onde, há mais de um século, formou-se o Aglomerado da Serra, uma das maiores comunidades urbanas de Minas Gerais e do país. Composta por oito vilas, consideradas um complexo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a região reúne entre 50 mil pessoas (segundo dados oficiais) e 150 mil (de acordo com lideranças comunitárias). A maioria de seus primeiros habitantes veio do interior mineiro para ajudar na construção da capital, ou em busca de emprego, sem ter onde morar.

Ao longo das últimas duas décadas, o artista visual e curador Guilherme Cunha desenvolve um trabalho social nesse aglomerado periférico, onde descobriu um movimento de 12 fotógrafos que registravam, desde os anos 1960, o dia a dia dos moradores. Essa pesquisa resultou num projeto que deu origem a duas exposições e ao livro fotográfico Memórias da Vila – Histórias dos Moradores da Comunidade da Serra (Circuito, 2016).

Atualmente, Cunha se concentra em dois desses profissionais – João Mendes e Afonso Pimenta – e, a partir de um acervo de 250 mil imagens catalogadas e preservadas, ou restauradas digitalmente, fez uma seleção de 320 para compor a mostra Retratistas do Morro [Leia mais em Da beca ao black]. “Essa história começa com senhoras da comunidade que diziam que seus netos não iriam saber das lutas que elas haviam travado para conquistar tudo o que conseguiram. O primeiro fotógrafo que encontramos, Seu Adão, hoje trabalha como serralheiro, e jogou todo o acervo no lixo uma semana antes da minha visita. Portanto, esse é um trabalho de resgate da tradição oral, de preservação da memória e de luta por igualdade simbólica na representação imagética, pois reflete a realidade de toda uma população [sobretudo negra] que construiu o país, as metrópoles, e que batalha por moradia e direitos fundamentais”, destaca o curador.

Ainda em atividade, na casa dos 70 anos, os fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta (e seus retratados) são as estrelas da exposição e de um documentário homônimo lançado em 2020. Mendes mantém, desde a década de 1970, um estúdio na entrada da comunidade, onde Pimenta trabalhou como seu assistente por alguns anos. Enquanto o primeiro se dedicou a retratos, o segundo focou no “corpo a corpo”, como ele mesmo define: ir até as pessoas para clicá-las em aniversários, batizados, festas de 15 anos, casamentos, desfiles e bailes black

“Foi a mãe do João quem lhe pediu para me dar um emprego de ajudante, ao me ver em má companhia na rua. Eu lavava as fotos, cortava, colocava para secar. Trabalhei também como gari por mais de uma década, mas a fotografia sempre esteve impregnada em mim”, conta Pimenta, nascido em São Pedro do Suaçuí (MG). “Estou aposentado há 17 anos e ainda fotografo, mas bem menos, porque o celular chegou e abocanhou boa parte da minha clientela. Já participei de exposições e é uma satisfação saber que meu trabalho está sendo reconhecido, pois eu pensava que ficaria restrito aos becos da comunidade”, completa.

Natural de Iapu (MG), no Vale do Rio Doce, João Mendes está na profissão há quase cinco décadas – três dessas dedicadas a fotografar alunos de beca ao fim da pré-escola. “Comecei em 1965, ainda adolescente, na cidade de Ipatinga (MG). Tenho clientes de várias gerações e não pretendo parar, estou firme e forte”, diz. Para o curador Guilherme Cunha, a história do Brasil é um espaço cheio de vazios, com grandes distorções. “O simples ato de não se preservar um material é capaz de provocar o seu desaparecimento. Portanto, a memória precisa de um esforço coletivo de conservação, de um empenho tão amplo e diverso quanto a multiplicidade de populações que existem neste país. Temos que cuidar do nosso lastro simbólico, dos elementos (imagens, signos e patrimônios) que nos representam”, finaliza.

Série Retratos em Estúdio, fotos de João Mendes. Da esquerda para a direita, na primeira linha: Pelé (1978), Sem título (1970) e Retrato do João Batista Cruz "Joãozinho do açougue" (1979); na segunda linha: Retrato da Fátima (1979), Retrato de João Cardoso (1979) e Retrato de Sônia Cristina da Silva (1979); na terceira linha: Sem título (1970), Sem título (1970) e Sem título (1979).