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GRANDE CIRCO para gente

Voltadas ao público adulto, montagens

contemporâneas das artes circenses repercutem questões de gênero, racismo, pluralidade de corpos e pautas ambientais

Vestida de gorila, a artista Rafaela Azevedo tem lotado teatros no Rio de Janeiro (RJ) desde novembro de 2022, com sua versão da Monga (ou Konga, para os cariocas). No monólogo King Kong Fran, uma palhaça subverte o padrão feminino imposto ao longo de séculos, falando sobre sexualidade, assédio e outros temas tabus. “Faço uma inversão com o público: trato todos os homens como se fossem mulheres, enquanto eu sou o ‘macho da história’. Gero constrangimento na plateia masculina, mas as mulheres riem, aplaudem e se sentem finalmente vingadas”, descreve.

Até os anos 1990, segundo Rafaela, as mulheres não costumavam ser palhaças. Só havia dois lugares para elas no circo: a idealização ou o medo. O papel da perfeição ficava com a equilibrista ou a contorcionista, enquanto o da aberração pertencia à mulher barbada. “Me inspirei na teoria King Kong, da escritora francesa Virginie Despentes. Ela diz que somos ensinadas a não reagir, a perdoar sempre, a assumir que a culpa é nossa. Mas a mulher tem poder e deve reagir. Ela escreve, e eu atuo, para as que não estão no ‘mercado de boas moças’”, explica a artista, que, neste mês, apresentase na programação do CIRCOS –Festival Internacional Sesc de Circo [Leia mais em Bravo, bravo!].

Assim como Rafaela, artistas de circo têm levado aos picadeiros, palcos e praças temas sensíveis da atualidade, utilizando-se da diversidade e da ludicidade dessa linguagem artística para promover reflexões, com foco no público adulto. São montagens que abordam discussões da pauta contemporânea, como o papel da mulher na sociedade, a diversidade de corpos, a luta antirracista e as temáticas ambientais e de sustentabilidade.

A discussão de gênero é o foco do espetáculo protagonizado por Rafaela, que também tem a participação de outras 15 pessoas, quase todas mulheres – com exceção do codiretor e codramaturgo Pedro Brício. “Ao fim do espetáculo, faço um bate-papo com o público, e os homens dizem que sentem medo de mim durante uma hora. Eu respondo que isso é o que nós, mulheres, vivemos o tempo todo. Peço, então, para que enxerguem nossa realidade e virem nossos aliados”, afirma.

Bel Toledo, do Circo de Ébanos, em cena do espetáculo Fio Forte, que discute, por meio de acrobacias, a inclusão de corpos negros na arte circense.

P S Pela Diversidade

O circo contemporâneo traz outros enredos a fim de despertar reflexões e mudanças de comportamento no público adulto. No trabalho da artista catarinense Emeli Barossi, por exemplo, estão em pauta a acessibilidade e o capacitismo. Com a perna direita menor e mais fina, e calçando num pé um sapato tamanho 35 e no outro, 30 – por conta de uma malformação congênita chamada hemimelia fibular – ela apresenta o espetáculo solo Circo de los Pies, da La Luna Cia. de Teatro. Sua palhaça Asmeline (nome que surgiu da ideia de “As Emelis”, ou seja, das múltiplas figuras que habitam seu corpo) leva ao picadeiro os palhaços Pezão e Pezinho, cada um com seu nariz vermelho. O primeiro é caracterizado como forte, elegante e multi-instrumentista, enquanto o segundo é pequeno, corajoso, revolucionário e com aptidão para a mágica.

“Quis criar algo a partir da minha assimetria, que trouxesse o corpo como ferramenta. Sempre tive essa relação de pessoalizar as pernas, mas não enxergava a diferença como potência – agora sim. A acessibilidade também faz parte da dramaturgia: a voz da audiodescrição conversa comigo. É como se fosse um raio-X que me olha de fora e vai narrando as cenas, não só para o público surdo. Isso ocorre de forma poética, mais preocupada em trazer sensações do que descrever”, detalha. Além disso, as intérpretes de Libras são guias que também interagem com Asmeline.

Quem vê Emeli no palco não imagina que, desde seu nascimento, a jovem já passou por 13 cirurgias para alongar a perna direita em 13 centímetros, o que a tornou a primeira pessoa no Brasil a concluir esse tratamento. “O circo é um lugar onde me sinto bem, onde tenho coragem para fazer o que, no dia a dia, tenho medo. Acredito que devemos ocupar os espaços que são nossos por direito”, avalia. Ao final do espetáculo, Asmeline, Pezão e Pezinho fazem um número em tecido acrobático, no qual seus pés finalmente conseguem voar.

LGBTQIAPN+ E IDENTIDADES

Intitulado Cuir – Couro, o espetáculo belga encenado pelo dançarino contemporâneo e professor de ioga Gilles Polet e pelo ginasta Arno Ferrera (que também assina a direção artística) investiga as identidades LGBTQIAPN+ ao discutir a relação entre dois homens e suas questões envolvendo as masculinidades, a virilidade e o poder. O figurino de ambos é inspirado em arreios de couro, como os usados por cavalos – daí o título do espetáculo. Mas a palavra cuir (couro, em francês) também é o termo latino para queer, amplificando os significados do trabalho. Em cena, os artistas manipulam o corpo um do outro, numa luta consensual coreografada por acrobacias.

Outro espetáculo que, além de cativar esteticamente, também sensibiliza para questões socioculturais, é Colibri – Uma Fábula Circense Latino-americana , do coletivo Um Café da Manhã. A montagem inclui a artista trans Eliara Queiroz, reunindo artistas do Brasil, México, Peru e Colômbia. Em pauta, o decolonialismo e as identidades latino-americanas: cada técnica circense é relacionada a diferentes mitos e à história de formação desses povos.

“Batizamos de Colibri porque esse pássaro é o único que voa para frente e para trás, numa simbologia de olharmos para o futuro e para o passado ao mesmo tempo”, explica a fundadora do coletivo, Ana Coll.

Ela conta que os 12 artistas em cena são corporalmente distintos. “A estética, porém, não é o que nos motiva, e sim as técnicas e temáticas com que nos expressamos e comunicamos.

Sempre dialogamos com esse circo para adultos, embora as crianças compreendam outras camadas que estão ali. Elas interagem de outra maneira, e as reações também ocorrem em momentos diferentes. Buscamos o risco, o surpreendente, o extraordinário”, revela Ana, que no espetáculo realiza números aéreos, de dança e mastro chinês.

Corpos Negros

Especialista em circo há mais de 30 anos, Bel Toledo é uma das fundadoras do Circo de Ébanos, primeira companhia de artistas circenses negros do país, criada em 2007 como um projeto social para incluir profissionais pretos e pardos (vindos sobretudo das periferias paulistanas). Hoje, a companhia conta com oito artistas, que estreiam neste mês o espetáculo Fio Forte . “Esse trabalho tem uma pegada mais contemporânea e um número aéreo e coletivo multicordas. O nome vem dessa demonstração de força e união entre os integrantes”, explica a produtora, que já foi presidente da Cooperativa Brasileira de Circo e diretora do Picadeiro Circo Escola, em Osasco (SP).

Para a pesquisadora, esse processo de inclusão de corpos e temas diversos na arte está acontecendo em todas as linguagens contemporâneas, quebrando paradigmas. “O circo, em sua origem, pertencia a um universo familiar, muito tradicional, mas há cerca de duas décadas estamos respirando novos ares, ficando mais plurais e transparentes. Nossa narrativa se ampliou. Hoje não precisamos mais bater de porta em porta atrás de trabalho, há uma demanda que vem até nós. Estamos vivendo este momento profícuo para o circo, que só tende a se fortalecer e se expandir em todo o mundo”, finaliza Bel Toledo.