Othon Bastos Ator celebra carreira longeva com retorno ao teatro
Encruzilhadas Carla Akotirene aponta caminhos contra múltiplas opressões
Circo expandido Diversidade de corpos e temas ressignificam a arte
Sociobioeconomia Povos originários nos ensinam sobre sustentabilidade
EM 14 UNIDADES DO SESC E SEIS ESPAÇOS PÚBLICOS DA CIDADE DE SÃO PAULO
14 Bis, 24 de Maio, Avenida Paulista, Belenzinho, Bom Retiro, Carmo, Consolação, Galeria (futura unidade), Ipiranga, Interlagos, Pinheiros, Pompeia, Santana e Vila Mariana.
Bulevar do Rádio, Centro de Memória do Circo, Museu do Ipiranga, Parque da Independência, Praça da Sé e Theatro Municipal.
CAPA: Espetáculo circense Ancrage, da companhia senegalesa SenCirk, em cartaz dias 9 e 10/8, no Sesc Belenzinho. No palco, a montagem questiona a relação dos humanos com a natureza, por vezes desconectada e conflituosa. A obra foi criada pela SenCirk, primeira companhia circense do Senegal, fundada em 2006 por Modou Fata Touré, figura emblemática do circo africano contemporâneo. O espetáculo integra a programação da 8ª edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, realizado de 8 a 24/8 em 14 unidades do Sesc São Paulo. Mais informações em www.sescsp.org.br/circos
Crédito: José Caldeira
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Presença que transforma
A valorização das relações humanas, a promoção do bem-estar coletivo e a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores do comércio, serviços e turismo, assim como a de seus familiares e da sociedade em geral, constituem o foco principal das iniciativas do Sesc – Serviço Social do Comércio.
APP Sesc São Paulo para tablets e celulares
Legendas Acessibilidade
Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.
Desde 1946, a instituição marca presença na vida de seus públicos por meio de centros culturais e esportivos distribuídos pelo estado e, em consonância com as demandas contemporâneas, também pelo meio digital, ultrapassando barreiras físicas.
O compromisso cultural do Sesc permanece sólido há quase oito décadas, guiando suas ações e ampliando continuamente seu impacto. A entidade busca proporcionar vivências enriquecedoras e diversificadas, promovendo o intercâmbio de ideias, o desenvolvimento de repertórios e o acesso ao novo. Isso se concretiza em sua atuação constante nas áreas de cultura, lazer, turismo, esportes, saúde e alimentação, por meio de programas itinerantes e colaborações com outras instituições.
Como agente ativo e observador das transformações sociais e culturais ao longo dos anos, o Sesc São Paulo tem no cuidado e no relacionamento com seus públicos um compromisso permanente e essencial.
Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo
A coragem no risco
Equilíbrio e ousadia caminham lado a lado nas artes circenses. Um desafiar-se que faz da persistência e da repetição o caminho para a virtuose. No circo, o erro é uma constante, assumido como parte de um processo que envolve coragem, abnegação e confiança. No picadeiro, no palco ou nas ruas, a arte do circo tem o risco calculado como uma premissa e não deixa de se configurar, alegoricamente, como um reflexo poético da própria vida.
Em suas manifestações contemporâneas, assume novas roupagens e narrativas, criando uma ideia de circo expandido que já não cabe somente à tenda clássica nem se restringe ao universo das infâncias. Números e performances executados com maestria por artistas são também um meio para comunicar, pela linguagem corporal, questões que perpassam o tempo presente, com suas alegrias, angústias e incertezas.
Reportagem desta edição da Revista E propõe uma reflexão sobre o circo contemporâneo, suas múltiplas vertentes e caminhos, a partir das histórias de quem protagoniza essa arte. Relatos reveladores de quem ousa experimentar e, desse modo, surpreender e encantar. Boa leitura!
Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC
Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina
Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.
Adauto Fernando Perin, Adriana Martins Dias, Alberto Silva Cerri, Aline Ribenboim, Ana Paula Verissimo Souza, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andreia Pereira Lima, Antonio Carlos F Barbosa, Carina Silva Donaires Figueira, Carla Romano Sampaio Antunes, Carolina Vidal Ferreira, Cassio Renato de Lima, Cinthya de Rezende Martins, Clovis Ribeiro de Carvalho, Cristina Berti Ribeiro, Daniela Paiva Borges, Eliani Hypolito de Souza, Elisangela Sena Moreira, Emily Fonseca de Souza, Felipe Campagna de Gaspari, Felipe Veiga do Nascimento, Flavio Aquistapace Martins, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Custodio Farcetta, Gabriella Pereira Rocha, Giulia Maria de Campos Manocchi, Giuliano Jorge Magalhaes da Silva, Glaucio de Souza Santos, Gleiceane Conceição Nascimento, Gloria Rodrigues Ramos, Heloisa Pinto Ururahy, Henrique Vizeu Winkaler, Isabela Egea Lisboa Lacerda, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivy Granata Delalibera, Janete Bergonci, Jean Guilherme Paz, Joao Carlos Doescher Fernandes, José Gonçalves da Silva Junior, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Juliana Grotti Vidal Torres, Juliana Neves dos Santos, Leandro Aparecido Pereira, Lilian Vieira Ambar, Marcelo Baradel, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Michel Enrique dos Santos, Milena Ostan da Luz, Mirele Carolina Ribeiro Correa, Monique Mendonça dos Santos, Natalie Ferraz Kaminski, Paco Sampaio, Patricia Silva dos Santos, Priscila dos Santos Dias, Rafael Lima Peixoto, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Sandra Ribeiro Alves, Sidenia Freire Pereira, Tania Regina da Silva, Tatiana Amaral Sanches Ferreira, Tayna Guimarães Vieira de Oliveira, Thais Ferreira Rodrigues, Thays Cabette Barbosa Alves, Vinicius da Silva Souza, Viviane Machado Lemos, William Galvão de Souza.
Coordenação-Geral: Ricardo Gentil
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Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Estúdio Thema (Marcio Freitas e Thea Severino) • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Nilton Fukuda • Repórteres: Ana Cristina Pinho, Diego Olivares, Luna D'Alama, Manuela Ferreira, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó, Marina Pereira e Rachel Sciré • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Marina Pereira, Marcel Verrumo e Rachel Sciré • Propaganda: Edmar Júnior, Jefferson Santanielo, Julia Parpulov e Vitor Penteado • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Beatriz Esteves Gomes, Celia Hanashiro, Humberto Mota, Ian Herman, Luiz Felipe Santiago, Leandro Henrique da Silva Vicente e Wendell de Lima Vieira • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Cleber Paes e Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago
Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488).
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social
Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios. Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS). Fale conosco: revistae@sescsp.org.br
Entre os destaques de agosto, Sesc São Paulo promove diálogos entre culturas e difusão artística com atividades na programação da Temporada França-Brasil 2025
Assistente social e pesquisadora, Carla Akotirene analisa como marcadores sociais produzem desigualdades no Brasil e aponta caminhos para o enfrentamento das opressões
Além da lona e do nariz vermelho, o circo abarca diferentes protagonistas, temáticas e corpos reforçando a sincronia dessa arte com as questões da contemporaneidade
Saberes de povos originários reforçam como a sociobioeconomia pode contribuir com a promoção do desenvolvimento sustentável
A universalidade das canções que fizeram de Candeia, compositor, cantor, fundador do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba, baluarte da música brasileira
Exposição transforma o Sesc Vila Mariana em um jardim com 21 esculturas que compõem, originalmente, o acervo do Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque Ibirapuera
dossiê entrevista circo bio gráfica sustentabilidade
Niltom Fukuda (Entrevista e Gráfica); Acervo Selma Candeia (Bio)
Artigos de Elizângela Baré e Fernando Gabeira apontam para diálogos entre ciências e saberes tradicionais diante dos desafios que a tecnologia ancestral enfrenta
Diretor e roteirista do filme Homem com H e do viral Tapa na Pantera, Esmir Filho fala sobre intensidade e sensorialidade que permeiam suas obras
Bethânia Pires Amaro (conto) e Catarina Bessell (ilustrações)
em pauta encontros inéditos
Aos 92 anos, o ator Othon Bastos celebra a vida e mais de 70 anos de trajetória artística com retorno ao palco, na peça Não me entrego, não!
Conheça cinco lugares em São Paulo para assistir a apresentações musicais e teatrais antes do pôr do sol
Layana Peres de Castro
7 a 10 de agosto de 2025 | Sesc Pinheiros
Saiba mais em: sescsp.org.br/forumprecop
A 30ª edição da Conferência das Nações
Unidas sobre as Mudanças Climáticas será realizada em novembro na cidade de Belém, capital do Pará, e colocará o Brasil e a Amazônia no centro do debate climático.
Neste momento histórico, o fórum
Movimentos pela Regeneração - em direção à COP30 apresenta uma série de debates, ações educativas e culturais que reforçam o compromisso do Sesc com a sociobiodiversidade e a construção da cidadania.
Com a participação de:
Amanda Costa Jovem internacionalista e ativista climática
Ana Catalina Suárez Peña
Diretora Sênior de Estratégia e Inovação da Global Foodbanking Network
André Baniwa
Consultor em Medicinas
Indígenas na Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde
Cristine Takuá
Educadora, artesã e pensadora do povo Maxakali
Guilherme Simões
Secretário Nacional de Periferias no Ministério das Cidades
Jorge Abrahão
Diretor Presidente no Instituto Cidades Sustentáveis
Kinyapiler Johnson González
Comarca Indígena Guna Yala (Panamá)
Marcio Astrini
Diretor Executivo do Observatório do Clima
Miguel de Barros
Sociólogo e diretor da ONG Tiniguena (Guiné Bissau)
Nilson Gabas Junior
Diretor do Museu
Paraense Emilio Goeldi
Paulo Artaxo
Professor do Instituto de Física da USP, especialista em mudanças climáticas globais
Susana Muhamad
Cientista política colombiana, ambientalista, ex-ministra do Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável da Colômbia; Ex-presidenta da COP16
Entre outras pessoas convidadas
Em Lady Tempestade, a atriz Andrea Beltrão interpreta A., uma mulher que recebe os diários da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003), responsável pela defesa de centenas de presos no Nordeste, durante a ditadura militar (1964-1985). Em cena, ao lado do filho Chico Beltrão, que assina a criação e a operação da trilha sonora, a atriz conduz os espectadores em um mergulho no passado para explorar a importância da memória e da luta por justiça. Com dramaturgia de Sílvia Gomez e direção de Yara de Novaes, o espetáculo ficou em cartaz no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, entre os dias 30/5 e 6/7.
Matheus
José Maria
em cena
DOSSIÊ
Last Supper (2013), obra da artista e fotógrafa sul-africana Lebohang Kganye faz parte de exposição no Sesc Pompeia.
Temporada França-Brasil 2025
Sesc São Paulo promove diálogos entre culturas e a difusão artística em programação com mais de 20 atividades nas unidades da capital e do interior
De agosto a dezembro, é realizada a Temporada França-Brasil 2025, acordo entre os governos dos dois países para a promoção de um conjunto de ações que celebram os 200 anos de suas relações diplomáticas, com atividades em 15 cidades brasileiras. O Sesc São Paulo integra a programação com atividades nas áreas de artes visuais, teatro, música, dança, literatura, circo, cinema, sustentabilidade e direitos humanos.
De acordo com o Diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclécio Massaro Galina, a iniciativa bilateral expressa valores fundamentais para a instituição, como a diversidade de expressões, o intercâmbio cultural e a colaboração entre indivíduos, instituições e países. “Com essa significativa participação na Temporada França-Brasil, o Sesc São Paulo fortalece
sua atuação como agente de difusão artística e plataforma de diálogo entre culturas, promovendo o acesso à arte e ao conhecimento por meio de experiências plurais, inovadoras e transformadoras junto à França”, afirma.
A abertura oficial da Temporada em São Paulo é realizada no Sesc Pompeia com duas ações. A exposição “O Poder de Minhas Mãos”, reunião de artistas contemporâneas africanas e afro-diaspóricas, tem visitação a partir de 24/8, domingo – uma parceria com o Musée d’Art Moderne de Paris e Paris Muséees. No Teatro da unidade, nos dias 23 e 24/8, o Concerto Brasil-França apresenta orquestra formada especialmente para a ocasião, reunindo músicos franceses, brasileiros e africanos, com curadoria e participação de Lucas Santtana. No repertório, releituras de
clássicos do cancioneiro brasileiro e francês, além de músicas dos artistas.
No mesmo final de semana, o espetáculo Les voyages, do Collectif Cie XY, que também integra o CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, ocupa o Parque da Independência, transformando-o em um palco de experimentações acrobáticas imprevisíveis.
Ainda entre os destaques da programação, estão as exposições FITE - Bienal Têxtil de Clermont-Ferrand, no Sesc Pinheiros, com abertura no dia 24/8; e O Mundo Segundo a I.A., a partir de 27/11 no Sesc Campinas, que reafirma a parceria longeva do Sesc com o centro de arte Jeu de Paume.
Confira a programação completa em: sescsp.org.br/francabrasil2025
DOSSIÊ
A versatilidade do violão e a influência inovadora da luteria dão o tom do primeiro episódio da série Movimento Violão, que estreia neste mês no SescTV.
FOCO NO VIOLÃO
A nova temporada da série Movimento Violão chega ao SescTV. Com direção geral e artística de Paulo Martelli e direção audiovisual de Flavio N. Rodrigues, oito episódios exibem concertos com grandes violonistas, explorando as diversas vertentes e potencialidades do instrumento na música erudita e popular. O primeiro episódio, “A luteria inovadora de Samuel Carvalho”, tem participação de Martelli e Juliana Oliveira,
Comida saudável na ZN
Os visitantes do Sesc Casa Verde já podem desfrutar de almoços saudáveis, brasileiros e contemporâneos na Comedoria/ Restaurante da unidade. O cardápio estimula uma alimentação adequada e saudável, e é composto por saladas, prato principal (à base de carne ou vegetariano), guarnição, arroz (branco e integral) e feijão. Há, também, complementos: fruta, doce e sucos, que podem ser
também violonista, que recebem o luthier (artesão especializado na construção, reparação e ajuste de instrumentos musicais de cordas) Samuel Carvalho, e os violonistas Fabio Lima e Robson Miguel. O repertório eclético do episódio evidencia a versatilidade do instrumento e a influência da inovação na luteria. Estreia em 29/8, sexta, às 20h. Assista aos episódios e leia mais em sesctv.org.br/movimentoviolao
Letras senegalesas
adquiridos à parte. Inicialmente, o restaurante funciona de terça a domingo, das 11h30 às 15h. Para almoçar, o visitante compra presencialmente a refeição, a partir do horário de abertura da unidade, para o consumo no próprio dia, conforme disponibilidade de horário. Na ambientação do espaço, há um mural da artista Giulia Bianchi. Mais informações em sescsp.org.br/comedorias
Ecoando epistemologias africanas aos leitores brasileiros, as Edições Sesc São Paulo e a editora Zahar lançam duas novas obras pela Coleção Biblioteca Africana. A primeira, Com a palavra, as pretas, da antropóloga senegalesa Awa Thiam, é um título fundador do feminismo negro francófono, que apresenta relatos de experiências, desafios e lutas das mulheres negras, além de abordar a tripla opressão vivenciada por essa população (gênero, classe e raça). Também é lançada Civilização ou barbárie, que reúne décadas de investigação do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986). O livro aborda os fundamentos históricos da civilização africana e a afirmação da identidade negra. Apresentada em 2024, a Coleção Biblioteca Africana reúne títulos não ficcionais sobre temas filosóficos, experiências políticas, crítica literária e de arte, história e teoria social, e em seu conselho de orientação, estão: Kabengele Munanga, Edson Lopes Cardoso, Sueli Carneiro, Tiganá Santana e Luciane Ramos-Silva. Os dois lançamentos promovem a diversidade linguística e cultural da África, suas formas de organização política, matrizes científicas, filosóficas e espirituais. Leia mais em sescsp.org.br/edicoes
Alex Ribeiro
Festejar o Direito à Cultura
No mês que marca a luta por direitos e cidadania da população em situação de rua, será realizado o Festival Pop Rua - População em Situação de Rua e o Direito à Cultura, entre os dias 28 e 30/8. Idealizado em parceria com movimentos sociais, agentes culturais e instituições atuantes na cidade de São Paulo, o festival é uma realização do Sesc São Paulo e do Museu da
Língua Portuguesa. Ele celebra a arte e a cultura, promovendo e ampliando o acesso da população em situação de rua aos equipamentos culturais, a partir de ações de sensibilização, formação e fruição. As atividades ocupam o território da Luz, passando pelo Sesc Bom Retiro, Museu da Língua Portuguesa e arredores. Confira a programação em sescsp.org.br/festivalpoprua
Entre 28 e 30/8, Festival Pop Rua celebra a arte e a cultura, promovendo e ampliando o acesso da população em situação de rua aos equipamentos culturais.
Dia 1/8 começa a 76ª edição da Copa Sesc, competição gratuita voltada aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo. Desde 1949, a iniciativa reafirma a relevância do esporte para o desenvolvimento humano e social. Neste ano, mais de 30 unidades do Sesc promovem uma intensa agenda de competições esportivas, com cerca de 40 modalidades, em diversos formatos, até o mês de dezembro. Também haverá a Conexão Esportiva, projeto com quatro modalidades disputadas entre
unidades: futsal, beach tennis, basquete 3×3 e, pela primeira vez, maratona aquática. A ação integra o Programa de Relacionamento com Empresas do Sesc e contribui para ampliar o acesso ao lazer e à difusão da prática de atividades físico-esportivas, promovendo a socialização, o convívio social e o trabalho em equipe, além de fortalecer o desenvolvimento integral da comunidade e contribuir para a melhoria da qualidade de vida. Leia mais e veja a relação das unidades participantes em sescsp.org.br/copasesc
Laura Rosenthal
COPA DOS TRABALHADORES
FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA
A Credencial Plena do Sesc é um benefício gratuito para pessoas com registro em carteira, que são estagiárias, temporárias, se aposentaram ou estão desempregadas há até dois anos em empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes familiares. Com a Credencial Plena você tem acesso prioritário e descontos na programação e serviços pagos do Sesc.
Qual é a validade da Credencial Plena?
A Credencial Plena tem validade de até 2 anos - para estagiários a validade da Credencial corresponde ao período de vigência do estágio e para desempregados a validade é de até 24 meses após a baixa na carteira de trabalho.
Como fazer a Credencial Plena?
On-line pelo aplicativo
Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento.sescsp.org.br Se preferir, nesses mesmos canais, é possível agendar horários para realização desses serviços presencialmente, nas Centrais de Atendimento das unidades.
Quem pode ser dependente na Credencial Plena?
• Cônjuge ou companheiro
• Filhos, enteados, irmãos e netos até 20 anos ou até 24 anos, se estudantes
• Pai e mãe
• Padrasto e madrasta
• Avôs e avós
Relacionamento com Empresas
É o programa que facilita o acesso ao credenciamento dos funcionários das empresas parceiras dos ramos do comércio de bens, serviços e turismo. Nessa parceria, além do credenciamento, os aproximamos de nossa vasta programação e serviços. Saiba mais em sescsp.org.br/empresas
Acesse o texto "Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc"
Ricardo Ferreira
Em Atlas da IA , Kate Crawford revela os impactos ocultos da inteligência artificial para quem quer entender o que está por trás desse sistema que redefine nosso presente e molda o nosso futuro.
entrevista
Ser encruzilhada
Assistente social e pesquisadora de antirracismo e feminismos negros, Carla Akotirene analisa como marcadores sociais produzem desigualdades no Brasil e aponta caminhos para o enfrentamento das opressões
POR ANA CRISTINA PINHO
FOTOS NILTON FUKUDA
OBrasil se acostumou a narrativas que negam o racismo estrutural, justificando desigualdades como fruto do mérito individual ou de uma falha pessoal. A contundente conclusão é da assistente social e pesquisadora de antirracismo e feminismos negros, Carla Akotirene, para quem essa é uma estratégia histórica para o apagamento das contribuições africana e indígena na constituição da identidade nacional.
Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Akotirene tem se firmado como uma das vozes mais presentes nos estudos sobre as violências institucionais que incidem sobre as mulheres negras. A partir de pesquisas sobre temas como feminismo negro, racismo estrutural, equidade de gênero e interseccionalidade, investiga como sistemas de opressão operam na política, na justiça, no sistema prisional e na própria academia.
Seu primeiro livro, O que é interseccionalidade? (Jandaíra, 2019), integra a Coleção Feminismos Plurais, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro. A partir do conceito cunhado por Kimberlé Crenshaw, jurista afro-estadunidense, a obra permite compreender como a intersecção de diferentes marcadores sociais (gênero, classe, raça, idade etc.) resulta
na sobreposição de opressões que atingem determinados grupos, como as mulheres negras, produzindo desigualdades sociais. Para Akotirene, interseccionalidade não é um modismo acadêmico, mas um instrumento de sobrevivência. “As mulheres negras não apenas enfrentam o racismo, mas a combinação de opressões que define quem pode ter direitos e quem segue marginalizado”, explica.
Em Ó pa í, prezada! – Racismo e sexismo institucionais tomando bonde nas penitenciárias femininas de Salvador (Jandaíra, 2020), ela analisa dados sobre a ausência de políticas públicas de gênero e raça para mulheres encarceradas. Sua mais recente publicação, É fragrante fojado dôtor vossa excelência (Civilização Brasileira, 2024), aborda a fabricação de flagrantes contra a população negra e o racismo presente nas audiências de custódia. O judiciário, segundo ela, não é um campo neutro: opera a serviço de um sistema que criminaliza a pobreza. “Se há presunção de inocência no Brasil, ela não é para nós”, afirma.
Nesta Entrevista, Carla Akotirene relembra sua trajetória, explica o conceito de interseccionalidade e compartilha tecnologias de enfrentamento ao racismo, refletindo sobre as violências que sustentam as desigualdades no Brasil e as estratégias para desmantelá-las.
Como sua formação familiar moldou a sua consciência política?
Sou filha de dona Célia e do seu Carlos. Sempre tenho dificuldades de falar de minha mãe, porque o próprio racismo produziu em mim um tipo de feminilidade que pode ter atacado minha mãe diversas vezes, uma vez que ele também afeta essas relações entre mães e filhas. Eu sempre tive vergonha de minha mãe. Uma mulher negra, retinta, casada com Carlinhos Negrão, um homem preto, técnico de segurança. Família toda preta. E o que eu tinha de entendimento ali, com dona Célia, era de que ela não era digna de amor porque meu pai tinha outra companheira, perto de casa. Então, eu sempre quis ser Zezé, a mulher branca, apresentada socialmente, de cabelos lisos. A mulher bonita e que painho achava que merecia todos os cuidados.
Havia outros fatores que afastaram sua mãe da possibilidade de ser uma referência para você? Cresci sem reconhecer a questão racial como algo central. Eu queria muito “dar certo”, mas não queria estar ancorada na história dos meus pais. Eu questionava minha mãe e dizia: “olha pra isso aqui, não tem nem televisão”. Eu tinha que assistir ao programa da Xuxa na casa da vizinha e, quando Xuxa abria o programa mostrando frutas, uma abundância que eu não via dentro da minha casa, eu cobrava tudo isso de minha mãe. Hoje, eu vejo que a culpa disso é do racismo, de não agradecer pelo alimento, pelas vezes que a camisa da escola estava atrás da geladeira para secar e ir no dia seguinte, porque só tinha uma. Só com o movimento negro fui entender a importância do que meus pais me deram.
O movimento negro me convidou a amar minha mãe, acreditar que ela era uma figura de conhecimento, de intelectualidade, uma vez que ele questiona a noção de que o conhecimento está só nos espaços acadêmicos
E como foi seu encontro com o movimento negro?
O movimento negro me convidou a amar minha mãe, acreditar que ela era uma figura de conhecimento, de intelectualidade, uma vez que ele questiona a noção de que o conhecimento só está nos espaços acadêmicos. Não. Até porque as nossas mães, com um salário-mínimo, conseguem sustentar uma família inteira, conseguem produzir resistência dentro da comunidade. A gente vem de uma matriz filosófica que ensina a colocar água no feijão para render, para servir outras pessoas. A gente vem de uma rede de afeto que, para a vizinha fazer faxina, a gente passa o olho nas crianças. O movimento negro me deu formação política, o entendimento da estrutura do racismo e a percepção de que o lugar onde minha mãe foi colocada não é o lugar de uma mulher fracassada, mas o lugar de uma mulher que está dando certo socialmente, porque ela não desistiu de mim nem de me ver vencendo na vida. Tanto que sou a primeira pessoa da minha família a ter um emprego público, a ingressar no ensino superior e a fazer mestrado e doutorado.
Foi o seu despertar racial?
Eu já tinha trabalhado como cordeira nos blocos de Carnaval, de segurança também. Conheci Jorge Washington, ator do Bando de Teatro Olodum, que sempre me convocava para ir ao teatro assistir à Cabaré da raça, Ó Paí ó, todos esses espetáculos antirracistas, mas eu nunca ia. Já com 23 ou 24 anos, tentando ter uma identidade racial, fui com ele para o ensaio do Ilê Aiyê, no bairro do Curuzú. E lá, junto com outras pessoas influentes da luta antirracista, uma mulher se incomodou comigo porque, para ela, era uma ofensa uma pessoa com a minha pigmentação não ter nada de relevante para falar em termos antirracistas.
Mais tarde, quais foram suas influências para esse letramento racial e enfrentamento ao racismo?
Luiza Barros, que foi minha chefa na Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial na Bahia. Ela me chamou bastante atenção porque eu vim do movimento de juventude, onde só pensava em violência policial, extermínio de jovens negros, e eu não mencionava nada em relação às mulheres encarceradas ou vítimas de estupro. Ou sobre a legalização do aborto, sobre a forma como a gente apoia as pautas que atingem majoritariamente homens negros, mas também precisamos constrangê-los a apoiar as pautas que são nossas. Luiza Barros propôs esse desafio de entender que as estruturas estão articuladas. Então, não adiantaria só falar de racismo sem entender o etarismo, o adultocentrismo, a luta contra a opressão. Luiza Barros fez com que eu percebesse que o feminismo negro é um projeto intelectual que não quer eliminar apenas uma opressão, mas entender que essas opressões são conjuntas e se estendem a outros grupos que vivem a identidade de maneira diversa. Então, ela teve uma importância muito grande para mim, além de minha mãe, de Vilma Reis, Lélia Gonzalez (1935-1994), Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento (1942-1995), Neusa Santos Souza (1948-2008) e tantas outras.
Como o racismo e o sexismo se articulam na experiência das mulheres negras no Brasil?
Lélia Gonzalez já trouxe essa revelação para nós: a gente entende que o Brasil é fruto de um estupro colonial, estupro de indígenas e de africanas. Então, é o racismo e o sexismo ali, se intercambiando, mostrando que a sociedade pariu uma identidade na qual a pele é negra, mas ao mesmo tempo é bronzeada, o cabelo é cacheado, mas ao mesmo tempo tem a silhueta indígena. O sexismo aparece até de maneira idílica. A dimensão de gênero em relação ao que
entrevista
A gente recupera a nossa comunicação dando comida ao dono da nossa encruzilhada.
Alimentar a nossa encruzilhada é alimentar o que precisa de acolhimento teórico, epistemológico e filosófico.
Você olha para raça, gênero, classe, território, religiosidade e faz uma análise interseccional. O que é interseccionalidade e como foi o seu processo de construção desse olhar crítico?
É uma encruzilhada discursiva. Uma avenida com várias outras se cruzando. Esse cruzamento de avenidas que não se separam é a interseccionalidade. Eu, Carla, sou uma encruzilhada, pois não consigo separar dessa avenida o fato de ser mulher, negra, nordestina, de religião de matriz africana e em termos metafóricos, há uma tendência a hierarquizar quem vem primeiro. Então, a interseccionalidade é uma sensibilidade analítica exatamente para não criar hierarquias em relação às identidades, uma vez que uma fortalece a outra. Se dou as costas para uma avenida, se impeço o trânsito ou essa articulação, eu deixo de olhar com atenção para a outra. Quem propôs a interseccionalidade foi uma jurista estadunidense chamada Kimberlé Crenshaw, em 1989. Ela sistematizou a experiência das mulheres negras em denunciar que existe racismo, mas também capitalismo, patriarcado, capacitismo e, nesse sentido, a construção de uma sociedade onde os direitos humanos sejam valorizados olha com atenção para todas as avenidas, todas as encruzilhadas.
foi submetido às mulheres negras dentro do processo da colonialidade permanece até hoje no trabalho doméstico, no qual sofremos abuso sexual, porque a mão de obra negra está nesse lugar. Mas, além de mão de obra, ela está suscetível a sofrer abuso sexual, assédio, violação de seus próprios direitos. Isso é sexismo, porque somos nós dentro dessa experiência de fundação da colonialidade, na qual foram as mulheres negras que tiveram seus filhos vendidos. A gente até reivindica que quer ter filhos vivos, não quer filhos desaparecidos, nem quer que a experiência do cuidado com a criança seja tirada porque a gente está fazendo faxina na casa de alguém, ou porque quando a gente chega em casa, a criança já está dormindo. Isso é experiência de raça e gênero encontradas ali, por conta da condição, também, de classe em que fomos colocadas. Uma condição de trabalho permanente feito para mulheres negras. Então, na cultura brasileira, o racismo e o sexismo andam juntos porque você vive a sua condição de raça através do seu corpo sexuado, e você vive a sua condição de gênero a partir da raça, nesse lugar da mulata, como a Lélia Gonzalez trouxe para nós e que a Patrícia Hill Collins chamou de “imagem de controle”, o lugar da nanny, da mãe preta, da mulata, da atleta sexual. Tudo isso é racismo sexista, patriarcal e indissociado um do outro.
E sobre a discussão sobre o termo e conceito “parditude”? Como você vê o lugar das mulheres pardas no movimento negro? Eu não gosto do termo. Para mim, é uma experiência recente, geracional, de rede social, no intuito de criar visibilidade para as pessoas que estão fazendo isso, desconsiderando o esforço do movimento negro ao mostrar que nem todo negro tem a cor. O próprio Steve Biko ao dizer que ser negro não é questão de pigmentação, o próprio Ilê Aiyê cantando que ser negro não é questão de pigmentação, já demonstraram suficientemente que fomos vítimas de um processo de embranquecimento da população, mas que as raízes afrocêntricas e indígenas permanecem aqui. Então, eu vejo que pessoas negras de pele clara são lidas como pardas e que, dentro das políticas públicas, pretos e pardos, formam a população negra, ainda que em alguns territórios, como o Norte, a gente saiba da identidade indígena, que também foi vítima de apagamento. Mas sendo uma militante do movimento negro, trabalho dentro das construções de políticas de promoção da igualdade racial, criadas pelo movimento negro. Pretos e pardos formam a população negra e foi graças a essa junção que a gente conseguiu políticas de promoção da igualdade racial como cotas para ingresso na universidade e políticas de saúde, por exemplo. Se eu retirar o pardo da identidade negra, a gente só fica com
Há também a dimensão, a partir do ponto de vista do pensamento negro, do empoderamento coletivo, no sentido de não apenas se organizar enquanto identidade política, mas numa política de identidade que olha para todos e todas
10,2% da população [segundo dados do último Censo do IBGE], que é da minha cor de pele. Quando o racismo vem, ele vem para os negros indistintamente da cor da pele, mas quando o colorismo vem, ele vem inclusive acionado no sentido de promover maior distanciamento para as pessoas retintas. Então, dizer que a cor da pele não é um marcador é de uma irresponsabilidade terrível, é tirar a experiência parda do lugar que o movimento negro criou exatamente para trabalhar no âmbito das políticas públicas.
Quais são as tecnologias que a gente pode acessar para enfrentar o racismo e se fortalecer na prática?
Existem várias, mas é preciso entender que há níveis diferentes para lidar com o racismo. Muitas de nós nem percebem que a situação é racista. Eu, por exemplo, já devo ter vivido muitas situações, no entanto, quando outras mulheres, inclusive brancas, me sinalizaram que foi racismo, eu não quis aceitar. Porque quem estava discriminando a minha entrada era um homem negro – é porteiro, é segurança. Então, com medo daquele homem negro ser demitido, preferi deixar tudo na condição de gênero e esquecer que eu estava sendo discriminada por raça, já que aquele trabalhador não estava representando a si mesmo, mas sim, a instituição que o preparou. Quando recebo uma demanda de racismo, antes de promover uma discussão nesse sentido, reparo na instituição que deveria ter preparado o porteiro para entender que ele não pode ser preconceituoso.
A responsabilidade é institucional também, e não só daquele trabalhador que foi construído do ponto de vista histórico. A gente tem que denunciar, combater e se organizar em termos de saúde. Ana Elisabete Aparecida Pinto diz que racismo implica humilhação, às vezes você não consegue nem responder à situação racista, porque se sente humilhado, adoecido e sem conseguir colocar para fora as sensações de adestramento promovidas no seu corpo. Há também a dimensão, a partir do ponto de vista do pensamento negro, do empoderamento coletivo, no sentido de não apenas se organizar enquanto identidade política, mas numa política de identidade que olha para todos e todas. A rede da minha família não olha somente para mim, eu preciso olhar para o meu irmão e estimular que ele volte a estudar, por exemplo.
O que representa a popularização e o alcance do legado de mulheres negras precursoras em diferentes campos do saber, no Brasil, como Dandara dos Palmares e Carolina Maria de Jesus? Essas mulheres e muitas outras são fundamentais para a construção de um ponto de vista antiepistemicida. Epistemicídio, conceito também trabalhado por Sueli Carneiro, que tem relação com o apagamento das nossas narrativas. Quando a gente fala de Dandara (1654-1694), a gente está abrindo mão de falar apenas de uma dimensão masculina, de falar de Zumbi dos Palmares (1655-1695), como se ele tivesse feito tudo sozinho, como se não houvesse Dandara e Acotirene, uma sacerdotisa do Quilombo de Palmares. As ações quilombolas eram guiadas por uma mulher mais velha e isso é apagado da história oficial, que é racista e machista. A libertação dos escravizados protagonizada por escravizados é marcada pela ação de uma mulher branca, a princesa Isabel (1846-1921), sempre nessa tentativa de criar heróis, heroínas individuais e não como fruto de um esforço coletivo. Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é importante até na denúncia em relação ao capitalismo, estrutura que coloca a gente na condição de fome, de apagamento de nossas autorias, uma vez que a sua forma de escrever foi desautorizada, pois ela não escrevia na língua do colonizador. Lélia Gonzalez chamou nossa atenção para isso, na dimensão do pretuguês. Temos uma herança bantu, africana, uma forma de falar que nem sempre vai colocar as palavras no plural, que vai trocar o “l” pelo “r”, uma vez que esse “l” não faz parte da comunicação bantu. Como a história não conta isso para a gente, a nossa tendência é achar nossa mãe ignorante, e que a nossa avó não fala direito.
Como, então, resgatar o poder da palavra?
Entendendo que alguns silêncios estão comunicando que houve o apagamento da nossa história, do nosso ponto de vista. A gente não precisa falar o tempo inteiro, mas a gente não pode ser silenciada. A gente recupera a nossa comunicação dando comida ao dono da nossa encruzilhada. Alimentar a nossa encruzilhada é alimentar o que precisa de acolhimento teórico, epistemológico e filosófico. Voltando às avenidas da interseccionalidade, alimentar somente a avenida da raça nos impede, por exemplo, de olhar para o gênero e perceber que o Brasil é o quinto país no mundo que mais mata mulheres.
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25.9 ------5.10.2025
CIRCO expandido
Seja no picadeiro, nas ruas ou no teatro, a arte circense encanta diferentes públicos a partir de uma diversidade de temas, linguagens, corpos e gerações de brincantes
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Na língua zulu, a palavra moya que dá nome ao espetáculo da Zip Zap Circus (África do Sul), significa “sopro vital” sentido que permeia a montagem, que celebra o papel transformador do circo. 25 | e circo
No começo da década de 1990, quando a artista Cibele Mateus tinha apenas cinco anos, um carro de som passou pelo bairro Parque Imigrantes, no município paulista de São Bernardo do Campo, anunciando a chegada do circo. Com ele, trapezistas, malabaristas, palhaços e outros saltimbancos chamaram a atenção da menina. Havia, também, uma atração especial: Angélica. Finalmente, Cibele veria ao vivo e em cores a apresentadora e cantora favorita da televisão. No final, ao lado das irmãs, a menina percebeu que se tratava apenas de uma sósia que “parecia mais a nossa vizinha Sandra, só que com o cabelo pintado de loiro”, descreveu.
Mesmo assim, o arrebatamento foi instantâneo. “Esse circo mambembe do qual não sei o nome, feito de gente com a cara da nossa vizinha, gente negra mestiça, indígena, cigana, deficiente, trans... essa gente da chamada classe popular, é esse circo que caminha pelas estradas encantando os mais diversos cafundós dos Brasis, incorporando em suas apresentações, além de virtuosismos milenares do circo, o chamariz popular do momento”, definiu a artista no catálogo para o CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo [leia mais no boxe Respeitável público!], em que apresentará, neste mês, o espetáculo Vermelho, branco e preto
Eis o circo, senhoras e senhores: uma arte multifacetada e, por que não, tão enigmática quanto a sala dos espelhos, onde nos perdemos e nos encontramos simultaneamente. Um espaço que – com ou sem lona e picadeiro – é capaz de surpreender, espantar e fazer gargalhar crianças, jovens, adultos e idosos. Um território onde podem confluir dança, teatro, música, trapézio, malabarismo, contorcionismo, palhaçaria e tantas outras linguagens artísticas. Cada qual à sua maneira, em diferentes tamanhos, o circo abraça uma diversidade de temas, corpos, raças e gêneros, numa estrutura ora simples ora pomposa, mas sempre focada em surpreender o público.
PRIMEIRO ATO
Na corda bamba, o nascimento do circo oscila entre divergências e concordâncias. Historiadores afirmam que as expressões artísticas que hoje compõem o circo nasceram há milhares de anos nas mais diferentes culturas. No Egito antigo, por exemplo, na tumba de Beni Hasan, há uma pintura de mulheres malabaristas, contudo não podemos afirmar que já havia circo ou que ele foi, porventura, frequentado por Cleópatra. Isso porque o circo moderno, tal qual o conhecemos, foi inaugurado no século 18, quando o cavaleiro inglês Philip Astley (1742-1814) reuniu atletas equestres de origem militar e companhias itinerantes, cujos artistas eram chamados de saltimbancos e praticavam acrobacias e funambulismo (o exercício de andar no alto, de uma ponta a outra, sobre um arame) em espaços públicos.
As apresentações aconteciam em um único espaço, numa pista circular – daí a derivação da palavra “circo”.
No Brasil, os primeiros grupos circenses vindos do exterior chegaram no século 19 e passaram a se apresentar em espaços públicos ou em locais cobertos improvisados. Até o século 20, a arte circense era realizada em ruas, feiras, tendas e mesmo em espaços teatrais, ou seja, não somente sob as lonas. Ao longo dos séculos, em constante transformação, o circo foi se adaptando aos lugares de sua itinerância para, então, interpretar, em suas múltiplas expressões, os desejos, sonhos, injustiças e desafios da sociedade. Desde o princípio, o circo sincroniza-se ora com o passado, ora com o presente.
“O circo de lona, de picadeiro, palhaço, trapezista, bailarina, pipoca, maçã do amor, ele existe ainda. E que bom. Tem mais de 500 circos de lona circulando pelo Brasil. Desde aqueles pequeninos – uma família com quatro ou cinco pessoas e mais dois ou três artistas –, até gigantes. Ao mesmo tempo, a gente tem companhias de uma, duas, três, quatro pessoas que circulam nos centros urbanos, nos teatros… Ou seja, existem outras formas de se produzir circo que são
predominaram na cena circense.
coexistentes”, explica Marco Bortoleto, professor doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Circo (Circus). Portanto, “o circo na contemporaneidade é a coexistência de formatos e modelos diversos, incluindo os mais clássicos”, complementa o pesquisador.
OFÍCIO BRINCANTE
Atriz, diretora e educadora social, Cibele Mateus viu seu mundo virar de ponta-cabeça depois da passagem do “circo de lona montado num terreno baldio em São Bernardo”. Aos 14 anos, ingressou em sua iniciação artística e, logo depois, teve seu primeiro encontro com a Commedia dell'Arte, espécie de teatro popular que surgiu na Itália em meados do século 15, que conta com personagens fixos, uso de máscaras e apresentações com música, dança, acrobacias e diálogos. “Eu fui capturada por esse imaginário da Commedia dell'Arte, desse artista mambembe que vai aonde o povo está e que faz de
tudo: é acrobata, ator, produtor, dança, canta. Então, fiquei por muito tempo, e ainda hoje, perseguindo esse ideal do artista completo”, conta Mateus.
Em paralelo, fez oficinas de danças brasileiras e se encontrou nas manifestações populares, quando conheceu a Companhia Mundu Rodá, de Juliana Pardo e Alício Amaral. Foi nesse momento que teve o primeiro contato com o cavalo-marinho, brincadeira popular da Zona da Mata Norte de Pernambuco, que iria mudar a rota de sua carreira. Enquanto isso, com a Companhia As Marias, que havia fundado, se dedicou ao teatro de rua e já apresentava suas divergências com a Commedia dell'Arte. “Eu, enquanto mulher negra, sempre estava ali fazendo os papéis dos servos: Ragonda, Brighella, Arlecchino. Isso começou ainda sem tanta consciência racial, mas me incomodava. Fiquei na companhia até 2017”, recorda.
Ao questionar os papeis da Commedia dell'Arte, Cibele Mateus passou a investigar quem seriam os intérpretes populares brasileiros. A partir daí, começou sua busca
Há 24 anos, a Troupe Guezá trabalha com diferentes corpos e gêneros contrariando estigmas que historicamente
Mateus Tropo
A artista e educadora Cibele Mateus no espetáculo Vermelho branco e preto, como o personagem Mateus, inspirado na figura homônima do cavalo-marinho e do reisado, e no Benedito, do mamulengo.
pelos brinquedos populares. Numa residência artística com o grupo Mundu Rodá, foi apresentada a Mestre Martelo, reconhecido há 45 anos pelo personagem Mateus, no Cavalo Marinho Estrela de Ouro, da Zona da Mata pernambucana. Depois de muita pesquisa e prática, a atriz foi brincar de Mateus em 2014, instruída pelo mestre. Desde então, é essa figura cômica que pinta o rosto de carvão, que ela leva aos palcos, ruas e outros espaços. “Eu não sou o Mateus da tradição, porque não brinco num grupo de tradição e hoje, o Mateus que eu brinco, ele tem, lógico, uma raiz e uma inspiração maior no cavalo marinho, mas também faço meu percurso buscando outras manifestações dessa cara preta: tem o Mateus, do reisado, tem o próprio Benedito, do mamulengo e outras figuras cômicas dentro desse guarda-chuva. Eu acho muito importante, e o circo está aberto, como sempre esteve, a receber outras comicidades que não necessariamente precisam ser chamadas de palhaços para poder estar nesse lugar”, explica.
Imersa em tantas referências, Cibele Mateus acredita que são essas particularidades que definem o circo no Brasil. “Acho que a característica desse nosso circo se dá pela nossa formação: somos um povo ancorado nessa terra, que é indígena, e é da diáspora negra, por conta da escravização. A maioria da população é preta e parda. Então, esse circo vai ter características dessa mestiçagem. Por exemplo, a gente vê a palhaçaria que é feita no Norte e no Nordeste, não só a palhaçaria como as outras técnicas também, e elas carregam muito mais forte esse lugar da cultura afro-brasileira, afro-indígena”, observa a atriz, que está organizando, junto a Odília Nunes, o livro Mateus de uma vida inteira, sobre o Mestre Martelo.
Ao refletir sobre o circo na contemporaneidade, a atriz, que nos últimos anos também vem dirigindo espetáculos circenses, observa que além de uma preocupação com as raízes culturais, os artistas brasileiros investigam seus próprios temas. “Estou dirigindo, agora, uma artista do Tocantins, de Taquaruçu, que a avó foi quebradeira de coco de babaçu. Então, ela está trazendo essa história do coco de babaçu dentro da palhaçaria dela e construindo um solo para falar sobre essas mulheres quebradeiras de coco. Assim, os temas vão variando e são muito condizentes com o seu território, com a sua cultura, com o seu gênero, com a sua raça. Eu acho que é um pouco esse caminho – a gente tem a necessidade de falar sobre as nossas questões”, define.
DE MÃO A MÃO
Você já ouviu falar da mulher-macaco? Famosa atração circense do século 19, a mexicana Júlia Pastrana (1834-1960), que sofria de hipertricose, uma doença que faz nascer pelos grossos e escuros por todo o corpo, foi explorada e exposta pelo circo como uma “aberração”. A atriz Jéssica Teixeira levou essa história ao palco em Monga, premiado monólogo que fez temporada no Sesc São Paulo em 2024, e que retoma a discussão na atualidade. Mulheres com corpos fora de um determinado padrão estético, como Pastrana, entravam no critério “exótico”, fosse pelo peso, pela altura ou por outras características. Graças à passagem do tempo, revoluções sociais e culturais se encarregaram, aos poucos, de mudar essa realidade.
Para a acrobata Rubia Neiva, de 47 anos, o preconceito com seu corpo “fora dos padrões” para compor uma pirâmide humana lhe causou espanto e revolta. “Tinha esse lugar do homem musculoso sempre embaixo, e em cima, aquela mulher com corpo infantil. Na minha época, havia mulheres que faziam esse lugar de 'portora' [o portô é o artista que segura ou sustenta outro, seja no solo ou em aparelhos aéreos, permitindo que este realize movimentos acrobáticos], de quem está na base na técnica chamada mão a mão. Mas as mulheres que estavam nessa posição eram vistas como algo 'exótico', como a figura da 'mulher barbada'. Ou seja, não eram corpos respeitados", conta.
Filha de mãe advogada e pai engenheiro, foi no encontro com o circo, ainda criança, em oficinas no Tendal da Lapa, na zona Oeste de São Paulo, que Rubia encontrou sua expressão. Até que em sua formação, na França, com o mestre húngaro Guezá, passou por uma reviravolta. “Eu sempre fui um corpo desrespeitado no circo. Eu era muito pesada para ficar em cima ou muito leve para ficar embaixo. E aí, ele me trouxe a possibilidade de ficar no meio, que está em cima e embaixo também [porque outra pessoa pode vir por cima na pirâmide]. Foi aí que eu comecei a descobrir, no meu corpo, essas possibilidades”, recorda. Depois da passagem pela França, Rubia criou a Troupe Guezá, que ganhou o nome de seu mestre e a referência à “troupe” em francês, também como homenagem.
Há 24 anos, o coletivo acrobático é composto por diferentes corpos e gêneros, um chamado natural para a sua fundadora, que encontrou na diversidade a grande força do grupo. “Hoje em dia, com essa
No espetáculo Vetus Venustas, da companhia Cíclicus, o diretor e fundador argentino-espanhol Leandro Mendoza constrói uma ponte entre gerações.
circo
mudança, a gente já enxerga todos esses corpos –mulheres, não binários, trans – como corpos que são pertencentes, que podem fazer o que eles quiserem com as suas adaptações. As pessoas foram chegando porque a gente ia trazendo sempre essa questão do respeito aos corpos. Então, o que sinto de diferença nesses 24 anos é que, assim como a sociedade, o circo foi evoluindo”, observa Rubia, que leva o espetáculo Corp+s, neste mês, ao CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo [leia mais no boxe Respeitável público!]
A atriz e educadora Cibele Mateus acrescenta que o circo ainda colocava nesse lugar de “exótico” pessoas com deficiências e pessoas negras. “Hoje, virou-se uma chave nesse lugar de a pessoa contar a sua história, ter o seu lugar de fala. Isso é muito importante e o circo está sempre se movendo conforme a sociedade se move. A gente tem espetáculos com pessoas trans falando sobre as questões de gênero, pessoas falando sobre questões de raça, enfim, o feminismo está dentro do circo, também, nesse lugar da palhaçaria feminina, que sempre foi muito masculina e hoje se percebe outro tipo de comicidade, que afirma esse território”, constata.
ENTRE GERAÇÕES
Num sótão, onde se guardam objetos velhos, empoeirados, obsoletos, descartáveis, surgem personagens reclusos em caixas, até então esquecidas.
A partir daí, a reativação de uma memória coletiva e o retorno à vida cênica refutam: há, sim, vida, valor e sentido naquilo que foi descartado. Neste cenário, desenrola-se o espetáculo Vetus Venustas [em tradução livre, Beleza Antiga] da companhia Cíclicus, fundada pelo diretor argentino-espanhol e dramaturgo Leandro Mendoza. Também em cartaz no CIRCOS, o projeto artístico, que mescla acrobacia, trapézio e outras expressões, nasceu da necessidade de uma reflexão sobre a velhice no mundo do circo contemporâneo.
Para isso, o processo de criação baseou-se em pesquisas, trocas de relatos, trabalho físico e questionamentos levantados entre os membros do coletivo. Das indagações, surgiram temas como medo, cuidado, valor e fragilidade. Segundo o diretor, não se trata apenas de um espetáculo, mas de uma experiência para seus criadores. Para Mendoza, além de uma crítica ao destino dado a esses corpos – exilados de suas próprias trajetórias –, Vetus Venustas também constrói
uma ponte entre duas gerações no palco: afinal, não pode haver presente ou futuro sem memória.
“Do ponto de vista da prática artística, o projeto levanta questões sobre como repensar os formatos cênicos para integrar a diversidade etária, como adaptar os processos criativos para incorporar diferentes ritmos e necessidades e como romper com o paradigma do novo como único valor estético. Também sugere uma redefinição do conceito de profissionalismo: ser profissional não é apenas ser ágil ou jovem, mas ter uma trajetória, um saber situado, uma perspectiva construída ao longo dos anos”, escreve o diretor no catálogo do festival.
Mendoza acrescenta, ainda, que o espetáculo é uma aposta na criação coletiva entre gerações. “E é, sobretudo, uma advertência de que a arte não pertence apenas ao presente imediato, mas também àqueles que a construíram, viveram e continuam sustentando com seus corpos, suas histórias e suas memórias.” Ao final, o circo na contemporaneidade mostra-se capaz de abarcar desejos e contradições humanas sem nunca se encaixar num modelo único.
Como aquela serpente de plástico, que salta de uma pequena caixa e nos prega uma peça, a arte do riso, do risco, do imprevisível, da poesia, do susto... é também a arte de todos. “O circo é tudo isso ao mesmo tempo. Olha que maravilha. Ele não elimina modelos anteriores para gerar modelos atuais. Você vai ter um show de drag queen no circo, ao mesmo tempo em que tem um palhaço nos moldes do século 19 circulando. Isso é bonito”, celebra Marco Bortoleto.
RESPEITÁVEL PÚBLICO!
CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo reúne 40 espetáculos nacionais e internacionais, instalações, ações formativas e outras atividades para todas as idades
De 8 a 24 de agosto, o Sesc São Paulo realiza a oitava edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo. A iniciativa busca, desde sua origem, em 2013, consolidar a linguagem circense nas ações da instituição, como um espaço de difusão dessa arte milenar e de reflexão para a construção e pensamento do circo no país. Nesta edição, a curadoria se baseia em aspectos como: diversidade cultural, técnica e geográfica; o envelhecimento dos corpos circenses; o circo enquanto ferramenta de desenvolvimento de território e lugar de memória, resistência e encanto. Na programação, distribuída em 14 unidades do Sesc São Paulo e em espaços públicos da capital paulista, serão 40 espetáculos de grupos nacionais e internacionais em diferentes formatos.
“O CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo transforma o picadeiro em arena de resistência poética, onde o encantamento é um ato político. Ao reunir corpos em vertigem, vozes dissidentes, em diferentes fases da vida e estéticas plurais, o festival afirma a arte circense como uma linguagem viva que desafia o colapso cotidiano. Ressignificando espaços e imaginários, o festival convida o público a um pacto de sensibilidade e reinvenção coletiva. Assim, o Sesc aprofunda sua ação
cultural, fortalece sua missão de provocar encontros, ampliar horizontes e pulsar futuros possíveis”, explica Marina Zan, que integra a equipe da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.
Confira destaques da programação:
VILA MARIANA
Moya - Zip Zap Circus África do Sul
Em zulu, a palavra moya significa “espírito”, “alma”, “sopro vital”, o que torna uma pessoa única e capaz de se (re)construir. Inspirada nesse conceito, a montagem reúne acrobacias, malabarismos aéreos, trapézio, dança e outras linguagens para celebrar a história de Jacobus Claassen, conhecido como Trompie, que viveu nas ruas da Cidade do Cabo até encontrar refúgio e propósito na escola de circo social da Zip Zap Circus. Dias 8, 9 e 10/8. Sexta e sábado, às 20h. Domingo, às 18h.
14 BIS
Vivência Infantil: Banho de Diversão Brasil
Essa vivência lúdica e sensorial criada pela atriz Patty Pantaleão, voltada ao público infantil, transforma o banho em um momento encantado, com espuma, bolhas gigantes e desafios mágicos. Dias 9 e 10/8. Sábado e domingo, às 10h30.
Adriano Escanhuela
para ver no sesc / circo
Em uma grande celebração, com lona de circo sobre o palco, projeções de vídeo e música ao vivo, o espetáculo MinaCorpo Multidão homenageia a historiadora Ermínia “Mina” Silva (1954-2023), da quarta geração de uma família circense.
GALERIA
Ponto de Partida - Travessia
Portugal/Brasil
O espetáculo, criado e interpretado por Jessica Lane, é um projeto de investigação artística circense contemporânea sobre o tema e a técnica do funambulismo, que consiste em caminhar sobre um arame ou uma corda em uma posição elevada, provando equilíbrio. Em que medida a contemplação da arte nos afeta? Dias 18 e 19/8. Segunda e terça, às 12h e às 16h30.
PINHEIROS
Mina - Corpo Multidão Brasil
Em uma grande celebração, com lona de circo sobre o palco, projeções de vídeo e música ao vivo, o espetáculo é um tributo à Ermínia “Mina” Silva (1954-2023), escritora, historiadora, da quarta geração de uma família circense e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Circo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A montagem reúne 37 artistas mulheres e de gêneros dissidentes em números de malabarismo, acrobacia, palhaçaria, mágica, aéreos e de equilíbrio, acompanhados por uma banda. Dias 22 e 23/8. Sexta e sábado, às 20h.
Saiba mais em sescsp.org.br/circos
Ao lado do compositor e cantor Cartola (1908-1980), Candeia em apresentação com o grupo Os Originais do Samba, na década de 1970.
Incandescente PRESENÇA
A genialidade criativa de Candeia, cantor e compositor que elevou a voz pela valorização do samba
POR MANUELA FERREIRA
Enquanto preparava seu segundo disco, Cartola II, de 1976, o cantor e compositor Agenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), recebeu uma sugestão do seu produtor, o jornalista e escritor Juarez Barroso (1934-1976): o sambista deveria dedicar uma das faixas para uma composição entregue dias antes a Barroso. Uma letra escrita sob medida para o poeta do morro. Ela sintetizava o sentimento de busca interior e a necessidade de se reencontrar e foi assinada pelo cantor e compositor Antônio Candeia Filho, Candeia (1935-1978). Já respeitado na cena musical como compositor de sambas-enredos e de partido-alto, Candeia era um amigo próximo de Barroso. Certo dia, o jornalista lhe confidenciou o delicado momento pessoal que atravessava. Como resposta, surgiu “Preciso me encontrar”, um clássico da música brasileira, cuja beleza dos versos transcende a experiência individual para alcançar um significado universal.
Encantado com a composição, Cartola decidiu gravá-la numa interpretação que popularizou e consagrou ainda mais Candeia entre os grandes nomes da música brasileira. “Foi uma trajetória curta, mas intensa. Meu pai nunca esteve só, eram muitos parceiros e amigos desde o início. Ele nunca fez nada sozinho na música. Tinha uma visão muito crítica, mas sempre se voltava para o coletivo e para o reconhecimento da cultura do samba”, explica a cantora Selma Candeia, filha do compositor. Antes, Candeia já havia lançado três discos-solo e participado de diversas coletâneas – dele, a cantora Clara Nunes (1942-1983) gravou “Sindorerê”, de 1974, e no ano seguinte, um de seus maiores sucessos, “O mar serenou”.
MEU TERREIRO, MINHA MORADA
Era 1953 quando Candeia compôs, aos 17 anos, seu primeiro samba-enredo vencedor para a Portela – “Seis datas magnas” –, em parceria com Altair Marinho e incentivado pelo pai, Antônio Candeia, tipógrafo e flautista. Antes mesmo de seu nascimento, o ritmo ditava as reuniões na casa onde cresceu o compositor, no bairro de Oswaldo Cruz, na zona Norte do Rio de Janeiro (RJ). Os encontros resultaram na criação do bloco carnavalesco Vai Como Pode, uma das denominações que a azul e branco teve até ser batizada Portela, em 1935.
Rodeado de músicos, Candeia aprendia a tocar cavaquinho, violão e pandeiro enquanto frequentava a escola e os compromissos da Igreja Católica, uma exigência da mãe, Maria Candeia. Os aniversários do garoto eram comemorados com roda de samba. Já na juventude, ele se interessou por capoeira, jongo, maculelê e candomblé.
Ainda na Portela, a colaboração com o compositor Waldir de Souza, mais conhecido como Waldir 59 (1927-2015), trouxe prestígio à dupla. Uma delas, “Festas juninas em fevereiro” (1955), posicionou a escola em terceiro lugar na competição.
O VERSO E A LEI
Atemporais, as composições de Candeia compõem o repertório de artistas como Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Teresa Cristina, Ney Matogrosso e Marisa Monte.
Já em 1957, a parceria originou “Legados de D. João VI”, que levou a Portela ao título de campeã. Para celebrar os 400 anos do Rio de Janeiro, em 1965, eles compuseram “Histórias e tradições do Rio Quatrocentão”, que levou a Portela ao terceiro lugar no carnaval daquele ano. Sem abandonar a música, Candeia ingressou na Polícia Civil, aos 22 anos, como investigador, em busca da estabilidade financeira. Logo ganharia fama de “durão”. Era início da década de 1960, e ele, paralelamente, participava do movimento de renovação do samba, impulsionado pelo Centro Popular de Cultura (CPC) em conjunto com a União Nacional dos Estudantes (UNE).
Nesse período, ao lado dos cantores e compositores Picolino da Portela e Casquinha (1922-2018), organizou o grupo Mensageiros do Samba que, a partir de 1964, passou a se apresentar no Zicartola, histórico restaurante que funcionou no Centro do Rio e era comandado por Cartola e a esposa, Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica (1913-2003). Porém, na saída de uma festa, em 13 de dezembro de 1965, a vida de Candeia mudou drasticamente. Durante uma briga de trânsito, Candeia atirou nos pneus de um caminhão. O motorista reagiu,
Acervo
Selma
Candeia
Eu
sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens. Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor.
Sintetizo um mundo mágico. Candeia (1935-1978)
disparando contra Candeia e atingindo sua medula óssea, paralisando seus movimentos da cintura para baixo. Tinha 30 anos e havia sido aprovado em um concurso para oficial de justiça, mas a condição que se seguiu o obrigou a abandonar os planos.
EM TRONO DE REI
Aposentado por invalidez, enfrentou uma profunda depressão e, após o incidente, não queria ser visto ou fotografado usando cadeira de rodas. “Os primeiros anos foram difíceis. Com o tempo, ele voltou a ter autonomia e até dirigia o próprio carro, por exemplo. Ele foi revivendo, reabrindo nossa casa para os amigos”, lembra a filha. Mergulhado na música, Candeia passou a se dedicar integralmente ao samba. Em 1970, lançou Candeia , disco com doze composições de sua autoria, incluindo “Dia da Graça”, reconhecido como uma das mais significativas homenagens à Portela. No ano seguinte, gravou o álbum Raiz , que traz os sambas “Minhas madrugadas”, em parceria com Paulinho da Viola, e “De qualquer maneira”. Nesta última canção, ele usou a imagem da cadeira de rodas como uma metáfora de um rei em seu trono.
Já em 1975, Candeia finalizou seu terceiro álbum solo, Samba de roda, no qual interpretou composições próprias, além de diversos cantos populares de rodas de capoeira, pontos de jongo e de candomblé, cantos populares de domínio público, como “Capoeira: Ai, Haydê”, “Paranauê” e “Maculelê: Sou eu, sou eu”. Ainda naquele ano, com a criação do grupo Partido em 5, ao lado de Casquinha (Otto Enrique Trepte), Joãozinho da Pecadora (João de Souza Barros), Wilson Moreira, Anézio do Cavaco (Anézio Tavares da Silva) e Velha da Portela (Euzébio do Nascimento), foi lançado o álbum Partido em 5, dedicado ao partido-alto, que recriava o ambiente de uma roda de samba, por exemplo, sem interrupções entre as faixas. A cada novo trabalho, refletia sobre suas vivências, a luta contra o preconceito racial e a defesa da cultura afro-brasileira. “As pessoas dividem as músicas dele em dois momentos: o Candeia em pé, momento em que ele era o compositor da Portela e tinha profissão de policial, e a hora em que ele começou a sentar naquela cadeira e não levantar mais. Era a música do Candeia em pé e a música do Candeia sentado. E as pessoas sabiam qual era de uma época e da outra. Dizem que a do Candeia sentado era mais triste”, afirmou o compositor Paulo César Pinheiro, em depoimento para o documentário Candeia (2018), dirigido pelo cineasta Luiz Antônio Pilar.
VOZES DESCONTENTES
Insatisfeito com a comercialização dos desfiles das escolas de samba, incluindo a Portela que, a seu ver, promoviam o afastamento das camadas populares, que deram origem à tradição dos desfiles, Candeia tomou uma iniciativa. Em 8 de dezembro de 1975, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, ao lado de outros compositores, como Nei Lopes, Wilson Moreira (1936-2018) e Darcy do Jongo (1932-2001). A fundação se respaldou no manifesto crítico assinado pelo compositor, condenando as mudanças que havia observado nas agremiações, seja em termos de samba-enredo, alegorias e fantasias, até a presença de destaques e o tamanho das alas. Na época, a publicação foi ignorada pelas diretorias das agremiações carnavalescas.
“Eu sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens. Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor. Sintetizo um mundo mágico”, escreveu Candeia na carta de intenções do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. As cores da escola foram escolhidas por ele, cada uma carregando um significado: o dourado, representando o ouro e uma homenagem à Oxum (orixá cultuada pelas religiões de matrizes africanas, símbolo da riqueza, fertilidade e beleza); o branco, simbolizando a paz e a pureza; e o lilás, cor que Candeia associava à beleza floral e à representação da África. O símbolo adotado foi uma palmeira, em tributo ao icônico Quilombo de Palmares. Hoje a agremiação é administrada por Selma Candeia e funciona como centro cultural voltado a atividades artísticas e sociais.
MAR DE MEMÓRIAS
Em 1978, as ideias compartilhadas por Candeia naquela carta de intenções foram aprofundadas e publicadas no livro Escola de Samba – A árvore que esqueceu a raiz, em parceria com o professor e escritor Isnard de Araújo (1939-2017). No mesmo ano, lançou o disco Axé! Gente amiga do samba, seu trabalho de maior reconhecimento. Um seleto grupo de artistas abrilhantou o álbum, incluindo a tradicional Velha Guarda da Portela, e as cantoras Dona Ivone Lara (1921-2018) e Clementina de Jesus (1901-1987). Na bateria, o toque especial de Wilson das Neves (1936-2017). A gravação foi marcada por uma batalha contra o estado de saúde debilitado do artista, com instantes de capacidade e outros de vulnerabilidades, nos quais era auxiliado pela esposa, Leonilda, e pelo produtor João de Aquino (1945-2022).
Candeia faleceu em 16 de novembro de 1978, aos 43 anos, vítima de uma infecção renal, antes que o disco chegasse ao público. Atemporais, suas composições fazem parte do repertório de artistas como Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Teresa Cristina, Ney Matogrosso e Marisa Monte. O artista foi tema, ainda, do espetáculo musical É samba na veia, é Candeia , encenado pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona em 2008. “Ficamos mais de 10 anos sem ouvir as canções do meu pai. Voltei ao [Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba] Quilombo apenas em 1998. Embora, antes da partida, ele tenha me dito para cuidar de sua obra, também tivemos que renascer para manter esse legado vivo. Hoje meus netos sentem orgulho quando reconhecem o sobrenome que eles têm”, arremata Selma Candeia.
Meu pai nunca esteve só, eram muitos parceiros e amigos desde o início. Ele nunca fez nada sozinho na música. Tinha uma visão muito crítica, mas sempre se voltava para o coletivo e para o reconhecimento da cultura do samba.
Selma Candeia, filha do músico
para ver no sesc / bio
NA CADÊNCIA DO SAMBA
Em álbuns, shows e outras atividades, público pode vivenciar a diversidade desse gênero musical
O samba é celebrado em diferentes ações do Sesc São Paulo. Além de destaque em shows, espetáculos e outras atividades que compõem a programação das unidades, também é tema de álbuns do Selo Sesc. Entre alguns, o álbum Guerreira (2015), no qual a escritora Esmeralda Ortiz interpreta músicas sobre o poder transformador do gênero e apresenta a faixa “Saudação a mestre Candeia”, pot-pourri de canções que saúdam o compositor, com “Benguelê” (Gastão Viana e Pixinguinha),
“Olha a hora Maria” (Candeia) e “Quem Mandou Duvidar” (Padeirinho e Jorge Luiz). Confira alguns discos e documentário dedicados à história do samba:
SELO SESC
Tia Cida dos Terreiros (2013) Produzido pelo Quinteto em Branco e Preto, o primeiro disco da sambista Tia Cida traz no repertório a tradição e o contemporâneo. Entre os compositores escolhidos, Bororó (1898-1986), Orestes Barbosa (1893-1966) e Candeia (1935-1978).
Viver Gonzaguinha (2023)
A obra de Gonzaguinha (1945-1991) recebe homenagem nesse álbum protagonizado pelo sambista Sombrinha, um dos criadores do Fundo de Quintal, acompanhado pelas participações de Martinho da Vila, Elba Ramalho, Criolo, Larissa Luz, Vidal Assis, Yvisson Pessoa e Zélia Duncan.
Ouça os álbuns nas plataformas de streaming. Mais informações em sescsp.org.br/selosesc
SESCTV
Clementina (2019)
Neste documentário dirigido por Ana Rieper, acompanhamos uma viagem visual e sonora pelas músicas e história da sambista Clementina de Jesus (1901-1987). Com a participação de Nei Lopes, Alcione, entre outros. Assista em: sesctv.org.br/doc
A sambista Clementina de Jesus em desfile ao lado de Candeia.
No Sesc Vila Mariana, exposição convida o público a passear entre 21 esculturas que compõem o acervo do Jardim do Museu de Arte Moderna, no Parque Ibirapuera
UMAPONTEENTRE JARDINS
POR RACHEL SCIRÉ
FOTOS NILTON FUKUDA
As irmãs (1966), de Alfredo Ceschiatti.
Entre a distração e o encantamento, os passos de quem caminha por um jardim são um convite para descobertas. A experiência se expande quando, neste território, obras de arte provocam a contemplação. No Jardim de Esculturas do Museu de Arte Moderna, localizado no Parque Ibirapuera, em São Paulo, o público que passeia, se exercita, frequenta ou brinca no parque mais visitado do país é surpreendido por encontros que aproximam a vida da arte. Essa também é a vocação das unidades do Sesc São Paulo, que criam oportunidades de experimentação e fruição artística no cotidiano dos seus frequentadores. É natural, portanto, que essas propostas germinassem na exposição Jardim do MAM no Sesc, inaugurada em 14 de maio, no Sesc Vila Mariana, uma correalização do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Sesc São Paulo.
A história do Jardim de Esculturas do MAM remonta à presença do Museu de Arte Moderna no Ibirapuera. Desde a inauguração de sua sede no parque, em 1969, o museu se empenhou na constituição de um “Jardim de Esculturas”. Na década de 1980, uma reforma instaurou a fachada de vidro característica do local, propiciando que os espaços do museu se comunicassem com as áreas externas. A inauguração oficial do Jardim do MAM se deu em 1993, quando a organização curatorial se consolidou, obras foram reposicionadas e o espaço entre a Oca, o pavilhão da Bienal e o MAM recebeu paisagismo assinado por Roberto Burle Marx (1909-1994), em parceria com Haruyoshi Ono (1943-2017).
Na Praça Externa do Sesc Vila Mariana, a ideia de jardim foi recriada por meio das estruturas que apresentam as obras, conforme conta Cauê Alves, que assina a curadoria junto a Gabriela Gotoda. “A expografia tem uma beleza própria, que atrai o público. Não é uma exposição que simplesmente dispõe esculturas no chão”, explica Alves, ao destacar os painéis horizontais, inspirados em formas orgânicas, e as plataformas coloridas, que remetem ao modernismo do paisagista. “Sem trazer plantas, tentamos apresentar um pouco do pensamento de Burle Marx para o Jardim do MAM no Sesc. A proposta é uma reencenação do Jardim do MAM por meio de uma representação arquitetônica”, complementa o curador.
Em “ilhas”, de diferentes alturas, a expografia evoca a topografia do Parque Ibirapuera e os caminhos trilhados por britas, pedriscos e gramados, que conduzem os visitantes até as obras. Já as cores e as formas das bases onde as peças foram sobreposicionadas são inspiradas em desenhos e pinturas de Burle Marx presentes em um estudo de 1938 para o jardim do Palácio Gustavo Capanema, que projeta uma área delimitada por contornos sinuosos e representa diferentes espécies vegetais com uma variedade de manchas coloridas, também sinuosas.
A seleção de 21 trabalhos, dos 19 artistas que compõem a exposição, inclui obras que integram, ou já integraram, o conjunto em exposição no Jardim de Esculturas do Parque Ibirapuera e obras da coleção do MAM. A curadoria buscou a diversidade de suportes, como ferro, madeira, bronze, além de materiais não usuais na escultura. Também contemplou a variedade de artistas, técnicas e procedimentos. Há desde escultores que partem de blocos de pedra e retiram o excesso de matéria, como na obra Sem título (1977) de Haroldo Barroso (1935-1989), até aqueles que moldam uma matéria abstrata, por exemplo, Escultura (1973), de Felícia Leiner (1904-1996).
Os diferentes modos de entender a escultura foram pautados pela curadoria. Entre os artistas que buscaram outros procedimentos escultóricos, está Amilcar de Castro (1920-2002), presente com a Sem título (1971), em que o autor parte de uma chapa de ferro plana e realiza uma operação de
corte e dobra, encontrando um equilíbrio. Mais do que isso, tira a escultura de um pedestal, isolada. “O artista coloca a sua peça no espaço de um modo que a relação com o público seja mais direta. O público está no mesmo nível da obra e vice-versa. A obra se abre para essa relação”, explica o curador.
De acordo com Alves, há obras que sequer podem ser chamadas de esculturas, como O telhado (1998), de Marepe, instalação de madeira com telhas de barro, que provoca o público a reparar nos procedimentos e técnicas, como a origem da própria arquitetura e a produção artesanal. “O critério foi tentar oferecer um panorama geral, porque o Jardim do MAM é assim, ele nunca foi construído em torno de um tema, mas buscando a diversidade”, ressalta.
Atualmente, apesar da reforma na marquise do Parque Ibirapuera, o Jardim do MAM continua aberto para visitação. Como explica o curador, a coleção presente no jardim está sempre em transformação a partir do acervo e de novas obras. “Essa ligação entre o Parque Ibirapuera e o Sesc Vila Mariana, pela proximidade, é muito positiva porque o público pode, de algum modo, visitar ambos. Não é uma caminhada tão distante”, convida o curador.
VILA MARIANA
Jardim do MAM no Sesc
Até 31/8. Terça a sexta, das 10h às 20h. Sábado, das 10h às 20h30. Domingo e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS. Mais informações em sescsp.org.br/o-jardim-do-mam-no-sesc
Escultura Pedra torcida (1985), de Hisao Ohara, no primeiro plano. Ao fundo, instalação de madeira com telhas de barro, O telhado (1998), de Marepe.
Escultura II (1975), de Mari Yoshimoto.
Sem título (1977), de Haroldo Barroso, e ao fundo, Sem título (2000), de Rubens Mano.
Atleta em descanso (1976), de Bruno Giorgi, e ao fundo, Veado (1984), de Ottone Zorlini.
gráfica
Sem título (2000), de Márcia Pastore.
Estrutura vermelha (1981), de Emanoel Araújo.
Escultura (1973), de Felícia Leiner.
Intervenção na árvore (1974), de Roberto Moriconi.
Aparador (1991), de Eliane Prolik.
TEMPORADA FRANÇA-BRASIL 2025
O Sesc São Paulo integra a Temporada França-Brasil 2025 com uma programação que celebra o intercâmbio cultural entre os dois países e a arte em suas múltiplas formas.
Saiba mais em sescsp.org.br/francabrasil2025
Programação de Abertura
23 e 24 de agosto de 2025
Exposição O Poder de Minhas Mãos
Mostra de mulheres artistas africanas, afrodiaspóricas e brasileiras. Curadoria de Odile Burlureaux (França), Suzana Sousa (Angola) e Aline Albuquerque (Brasil).
Exposição organizada em colaboração com o Musée d'Art Moderne.
23.8. Sábado, às 13h
Sesc Pompeia
Espetáculo
Les Voyages
Com Collectif XY. Experiência artística circense concebida para o espaço público. Reúne acrobatas que farão um percurso pelo bairro, proporcionando ao público aventuras ligadas ao ato de ‘carregar’ e ‘ser carregado’.
23 e 24. Sábado e domingo, às 15h
Parque da Independência
Exposição
Play - FITE - Bienal Têxtil de ClermontFerrand
Com curadoria e realização de HS_Projects, Musée D'Art
Roger-Quilliot, Musée Bargoin e Sesc São Paulo, a exposição celebra o inesperado e o extraordinário nas criações têxteis e sua cadeia produtiva.
24.8. Domingo, às 13h
Sesc Pinheiros
Espetáculo
Concerto Brasil-França
Direção musical de Lucas Santtana e participação de Anaïs Rosso, Celia Wa, Cherif Soumano, La Mal Coiffée, Lucas Santtana, Lucy Alves, Nicolas Krassik, Sthé Araújo e Tainara Takua.
23.8. Sábado, às 20h
24.8. Domingo, às 18h
Sesc Pompeia
SOCIOBIODIVERSIDADE Economias da
A importância de modelos de produção baseados na ética, na diversificação de culturas e no respeito aos ciclos naturais
POR LUNA D’ALAMA
Opovo indígena Baniwa habita a região amazônica do Brasil, da Colômbia e da Venezuela, somando mais de 17 mil indivíduos – desses, cerca de sete mil vivem no território brasileiro. Esse é uma das 27 etnias que vivem na região do noroeste amazônico, um sistema regional multilinguístico marcado por uma extensa rede de trocas, envolvendo práticas agrícolas, pesqueiras, artesanais e rituais. Segundo André Baniwa, líder e empreendedor social nascido na Terra Indígena Alto Rio Negro, não há uma palavra em sua língua para designar a biodiversidade, mas que o termo kaawiperi hiemakape nainaawaka nomeia “os diferentes seres vivos que convivem entre si”, incluindo humanos, animais, árvores, rios e montanhas, entre outros. “Os territórios dos povos originários
sempre foram soberanos, prósperos e fartos em termos de sustentabilidade, alimentação, manejo, conhecimentos e tecnologias ancestrais. A escassez veio por fatores externos”, explica.
Para o líder indígena, seu povo entende que é possível viver com aquilo que é suficiente, sem ganância, nem monoculturas. “Muitas técnicas e tecnologias consideradas ‘primitivas’ são avançadas justamente porque não desmatam nem poluem. Hoje, tecnologias ditas ‘modernas’ têm impactado negativamente o meio ambiente, com alto consumo de água, uso exaustivo do solo e de outros recursos naturais”, destaca. Ex-vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi) e ex-vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira (AM), ele acredita que os indígenas têm muito a ensinar, se
a sociedade quiser aprender. “Não estamos preocupados em dominar o mundo nem pressionamos a floresta. É preciso mudar a forma de produzir conhecimento e mercadorias, abandonar práticas e heranças coloniais”, reforça.
DA DIVERSIDADE À ECONOMIA
Em junho de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou o decreto nº 12.044 para instituir a Estratégia Nacional de Bioeconomia, modelo de desenvolvimento econômico e produtivo baseado em valores como ética, justiça, inclusão e sustentabilidade ambiental, que busca promover economias de povos indígenas, agricultores familiares e comunidades tradicionais (ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, caiçaras, ciganos etc.).
sustentabilidade
Para entender a bioeconomia – ou melhor, a sociobioeconomia –, é preciso compreender, primeiro, o que é a sociobiodiversidade. De acordo com Jeferson “Camarão” Straatmann, doutor em engenharia de produção pela Universidade de São Paulo (USP), e analista sênior em economias da sociobiodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA), o termo “sócio” foi acrescido por instituições, organizações e especialistas porque a diversidade biológica do planeta está intimamente ligada à intervenção e à domesticação feitas pela espécie humana.
“Hoje, nada se desenvolve sozinho, de forma desagregada do ser humano, mas como consequência do nosso manejo. Seja no caso do pinhão (araucária), da erva-mate, do pequi, da castanha-do-pará ou do açaí, há uma relação que envolve a seleção de variedades de plantas, algo que passa pelas propriedades e pela utilidade delas – seja para alimentação, medicina ou construção”, detalha Straatmann. As florestas, segundo o especialista, são uma grande “roça” dos povos indígenas, que adotam sistemas rotativos de culturas, com possibilidade de recuperação das regiões após o uso – e, consequentemente, a existência de solos mais férteis. “Uma floresta intocada é um mito. Todo espaço no Brasil já foi ocupado e usado em algum momento, seja para caça, pesca ou coleta. Todas essas variedades formam, portanto, o nosso patrimônio genético”, acrescenta.
É a partir desse pensamento e desses conceitos que surgiu a sociobioeconomia, o que o analista do ISA diferencia da bioeconomia, que contempla biocombustíveis, plantações em larga escala de eucalipto, monoculturas de
cacau e açaí, por exemplo. “Na sociobioeconomia, que os povos indígenas e 28 comunidades tradicionais reconhecidas oficialmente no país desenvolvem, valorizamos escalas de produção menores, sistemas agrícolas tradicionais, a diversidade de espécies, as sazonalidades (estações do ano e períodos de seca ou cheia dos rios), a ética, a cultura, os conhecimentos ancestrais e as relações sociais”, elenca Straatmann. Segundo o especialista, este ano completa uma década da promulgação da Lei da Biodiversidade (nº 13.123/2015), que prevê que todo acesso ao patrimônio genético do país e o desenvolvimento tecnológico decorrente dele tenham repartição justa de valores e retorno às comunidades de origem.
A sociobioeconomia está presente em uma ampla gama de atividades produtivas, que vai de alimentos a fármacos, passando por cosméticos, moda e vestuário, utensílios de borracha, tintas e restauração de áreas degradadas. “Economia não é matemática, uma ciência exata. Trata-se de uma ciência social, baseando-se em culturas e políticas. Na sociobioeconomia, corpos e natureza estão interconectados, atualizam-se e se modificam”, analisa o paraense Straatmann, que mora no Recife (PE) e atua na “Terra do Meio”, região localizada entre os rios Xingu e Iriri, em Altamira (PA).
Na lógica desse modelo, nenhuma espécie é pressionada ou destruída. “A consequência dessa interação é mais floresta, com maior biodiversidade. O que a região Norte precisa para desenvolver melhor sua sociobioeconomia são políticas públicas de proteção e demarcação de terras indígenas e territórios tradicionais, seguro-safra [ação do
governo federal para garantir renda mínima aos agricultores familiares em caso de perda da safra devido a condições climáticas], mais acesso a crédito, água, transporte etc.”, ressalta Straatmann. O analista do ISA pontua, ainda, que produtos da sociobiodiversidade têm como característica a produção em baixo volume e a alta variedade; por isso, podem ser menos competitivos no mercado. Porém, não é possível olhar para as economias da floresta apenas sob a perspectiva de produtos e preços, mas também de serviços, conhecimentos e inovação. “A sociobioeconomia é a economia da fartura, da existência, da resistência, e não da subsistência. Como dizia Nêgo Bispo (1959-2023), é a economia do envolvimento. Porque, se o desenvolvimento, com a partícula ‘des’, tira o envolvimento das pessoas entre si e com a natureza, a alternativa é o envolvimento, a conexão, de forma respeitosa e com marcos legais”, pondera.
PONTAS CONECTADAS
Todos os biomas podem ter sua própria sociobioeconomia, no entanto, a Amazônia e o ecossistema da floresta são especialmente favoráveis à diversidade de modos de vida e de produção. Para a bióloga Patrícia Andrade Machado, coordenadora de articulação territorial da organização não governamental Imaflora, as economias da floresta abrangem inúmeras possibilidades de relações e maneiras de fazer. “Passam muito pela cultura oral, pelo ensino familiar, pela transmissão de conhecimentos. Um estudo do MapBiomas Brasil, iniciativa que reúne universidades, ONGs e
empresas de tecnologia, mostra a perda de apenas 1% de vegetação nativa dentro de terras indígenas nos últimos 38 anos, contra 17% em propriedades privadas”, diz.
Criado em 1995, no contexto da Rio-92, o Imaflora alia produção com conservação em cadeias agropecuárias, florestais e da sociobioeconomia. Há dez anos, em parceria com o ISA, idealizou a rede Origens Brasil, que conecta povos indígenas e populações tradicionais com empresas de todo o país, fomentando diálogos em rede para questões complexas. Hoje, já são mais de 4.500 pessoas produtoras, 79 etnias indígenas e 41 empresas cadastradas.
A rede Origens Brasil garante a rastreabilidade dos produtos e insumos provenientes das comunidades e, por meio de um selo, o consumidor pode conhecer a história dos produtores e comprovar que determinado item respeita a sociobiodiversidade da sua região de origem. Cerca de cem produtos (como castanhas, pimenta, cumaru, babaçu, pirarucu, óleos, manteigas
vegetais e artesanatos) têm esse selo hoje. “Analisamos o nível de organização das comunidades, sua capacidade produtiva, e conferimos visibilidade a elas para que possam manter relações éticas de longo prazo. Por outro lado, as empresas obtêm garantia de origem, rastreabilidade, e contribuem para a conservação da Amazônia”, explica. Entre os critérios de comércio ético, Machado cita o preço justo, a transparência e a equidade nas negociações, o respeito ao modo de vida tradicional, a formalização e o diálogo permanente.
Os principais desafios da sociobioeconomia são: a logística das imensas distâncias amazônicas, que precisam ser percorridas de barco ou avião; a falta de políticas públicas e de assistência técnica às comunidades e associações para garantia de direitos (como emissão de nota fiscal e questões contábeis); e a necessidade de fortalecimento institucional das organizações (como capacitações e obtenção de capital de giro). “Os povos indígenas e as populações tradicionais não estão no passado. Inclusive, seus modos
de vida e de produção – pautados em um conhecimento profundo dos ciclos naturais, da biodiversidade e da interdependência entre os seres humanos e a natureza – são a chave para o nosso futuro. Podemos aprender com eles e pôr isso em prática, inclusive nas grandes cidades, seja fazendo uso responsável da água e de outros recursos naturais, ou consumindo produtos que tenham origem na natureza e valorizem os guardiões e as guardiãs da floresta”, enfatiza Machado.
CONCEITOS ANCESTRAIS
Na visão da artesã indígena, agricultora e socióloga pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Elizângela Baré, doutoranda em saúde pública na Universidade de São Paulo (USP), conceitos “modernos” (como sociobiodiversidade, sociobioeconomia, agroecologia, rotação de culturas, sustentabilidade e geração de renda) sempre existiram entre os povos da Terra Indígena Cué-Cué/Marabitanas, no noroeste amazônico, onde ela nasceu e cresceu. “Vivemos com essas concepções no dia a dia, pois elas fazem parte das nossas tradições e preocupações, apenas não as denominamos assim. Buscamos o desenvolvimento, mas não de qualquer jeito, a qualquer custo. A sociobioeconomia, para nós, envolve o saber fazer e a organização coletiva, sempre respeitando a natureza acima de tudo”, conta [leia artigo escrito por Elizângela Baré na seção Em Pauta desta edição].
Filha do pajé Laurindo Baré e ex-coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a socióloga e agricultora
Para a artesã indígena, agricultora e socióloga Elizângela Baré, é preciso reflorestar o modo de pensar e agir em relação aos hábitos de cultivo.
Após a regulamentação da atividade pesqueira e a introdução de um manejo sustentável, foi garantida a captura de pirarucu em quantidades adequadas para a conservação da espécie.
afirma que é preciso “reflorestar” nosso modo de pensar e agir em relação aos hábitos de cultivo. “A produção indígena pode parecer pequena, mas é diversa: tem açaí, cupuaçu, pupunha, tucumã, guaraná, andiroba, buriti etc. Respeitamos os ciclos e as demandas de cada planta. O homem branco quer manejar tudo o tempo todo”, compara. A socióloga indígena se prepara para lançar um livro – intitulado Saberes da sociobio – durante a COP30, em novembro, em Belém (PA). Em coautoria com outras mulheres do Amazonas e do Pará, Elizângela Baré assina um capítulo sobre a contribuição das indígenas do povo Baré para a sociobioeconomia. “Agora estou morando na capital paulista, para fazer o doutorado, e trouxe meu filho mais novo. Dia desses, caiu um galho em um carro e mandaram cortar a árvore inteira. Quando um galho cai na canoa de uma pessoa indígena, entendemos que ocupamos um lugar que não deveríamos, um
espaço que não é nosso. Jamais um indígena derrubaria uma árvore por causa de um único galho que se desprendeu”, salienta.
PIRARUCU A SALVO
Diretora de manejo e desenvolvimento social do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a socióloga Dávila Corrêa mora em Tefé (AM) e trabalha com povos e comunidades tradicionais da região. Ela lembra que, nos anos 1980, o pirarucu – um dos maiores peixes de água doce do mundo, capaz de atingir três metros de comprimento e pesar até 200 quilos – esteve em risco de extinção por conta da pesca predatória. Com a regulamentação da atividade pesqueira e a introdução de um manejo sustentável, houve a recuperação de 600% do estoque da população de pirarucu na Amazônia.
“Hoje, a captura desse peixe é autorizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) entre agosto e novembro, em quantidades consideradas adequadas para garantir a continuidade da espécie. Esse ciclo de boas práticas envolve organização comunitária, interesse coletivo, proteção de lagos e territórios, monitoramento participativo (para contagem do estoque em vida livre) etc.”, destaca Corrêa. De acordo com a especialista, as comunidades devem ser ouvidas, em primeiro lugar. “Precisamos trabalhar junto delas, a partir dos modos de vida locais, com processos e práticas que respeitem a natureza, a cultura e os saberes tradicionais. Os modelos devem ser viáveis e autônomos, e os planos de manejo precisam partir de quem vive nos territórios, sem perder o vínculo com a identidade local e o protagonismo social”, conclui.
Miguel
Monteiro
para ver no sesc / sustentabilidade
RUMO À COP30
A cem dias da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em Belém, o Sesc Pinheiros realiza o Fórum Movimentos pela Regeneração
Entre 7 e 10 de agosto, o Sesc Pinheiros promove o Fórum Movimentos pela Regeneração –Em direção à COP30 que antecede a 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), prevista para ocorrer em Belém (PA), de 10 a 21 de novembro, com a participação de representantes de 198 países. O evento, na capital paulista, também marca o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9/8).
Mais informações em sescsp.org.br/forumprecop
Confira alguns dos destaques da programação:
PINHEIROS
Fórum Movimentos pela Regeneração –Em direção à COP30
Conferência de Abertura: Esperançar diante da emergência climática Resultantes das intervenções humanas sobre os ecossistemas da Terra, as mudanças climáticas afetam diretamente o equilíbrio da vida no planeta em várias dimensões. Como esperançar diante dessas urgências? Com Márcio Astrini (Secretário-executivo do Observatório do Clima) e Susana Muhamad (cientista política colombiana, ambientalista, ex-Ministra do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Colômbia e ex-Presidenta da COP16, a Conferência das Partes
A sociobioeconomia está presente em uma ampla gama de atividades produtivas, que vai de alimentos (como a castanha-do-pará, na foto) a fármacos, incluindo cosméticos, moda e vestuário, utensílios de borracha, tintas e restauração de áreas degradadas.
da Convenção sobre Diversidade Biológica). Com a debatedora Cristina Serra (jornalista, escritora e pesquisadora).
Dia 7/8. Quinta, das 16h30 às 17h30. Teatro Paulo Autran.
Mesa 1 – Resiliência nas cidades: desafios urbanos contemporâneos
Com participação de Guilherme Simões (Secretário Nacional de Periferias no Ministério das Cidades), Sílvia Marcuzzo (jornalista e consultora em comunicação), Ana Catalina Suárez Peña (diretora
sênior de estratégia e inovação da The Global FoodBanking Network).
Mediação da jornalista Cristina Serra.
Dia 7/8. Quinta, das 18h às 20h. Teatro Paulo Autran.
Mesa 4 – A COP na Amazônia e os desafios diante da crise climática mundial
Com presença de Nilson Gabas
Júnior, diretor do Museu Paraense
Emílio Goeldi; da jornalista
Kátia Brasil, cofundadora e editora- executiva da agência Amazônia
Real; e da ambientalista e ativista
Paloma Costa, advogada e ativista climática, assessora no Instituto Socioambiental e cofundadora do coletivo Ciclimáticos.
Mediação: Janaína Pochapski, assessora de Sustentabilidade do Departamento Nacional do Sesc.
Dia 8/8. Sexta, das 16h30 às 18h30. Teatro Paulo Autran.
Mesa 5 – Sociobioeconomia e Povos Indígenas
Com André Baniwa (Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde), Jeferson “Camarão” Straatmann (Instituto Socioambiental) e Kinyapiler Johnson González (poeta, artista e ativista cultural da etnia Gunadule, do Panamá). Mediação da arte-educadora, doutora em educação e professora Naine Terena. Dia 9/8. Sábado, das 10h às 11h30. Teatro Paulo Autran.
Mesa 6 – Que mundo está por vir?
Com Amanda Costa (internacionalista e ativista climática), Miguel de Barros (sociólogo guineense e diretor da ONG Tiniguena) e Paulo Artaxo (físico, pesquisador do IPCC e professor da USP). Mediação da jornalista Maria Zulmira de Souza. Dia 9/8. Sábado, das 12h às 13h30. Teatro Paulo Autran.
CIÊNCIAS E SABERES TRADICIONAIS
Aprimeira vez em que uma classe formada exclusivamente por indígenas se graduou na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) foi em maio deste ano, no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), em São Gabriel da Cachoeira (AM). Em nota, a instituição de ensino superior celebrou: “esse é um marco para a valorização das epistemologias indígenas como base legítima de ciência, cultura e educação, conectando gerações e fortalecendo a autonomia dos povos originários no coração da Amazônia”. A declaração reforça o fato de que os saberes dos povos originários sejam anteriores às ciências produzidas pelas universidades, uma vez que tais conhecimentos acerca da terra, das plantas, dos animais, das estrelas, dos rios, ecossistemas, dentre outros campos, são milenares. O que é recente, no entanto, é a legitimidade científica desses saberes e o respaldo da academia.
“Para enfrentar esse genocídio indígena, nós, como pesquisadores indígenas letrados, estamos sendo os interlocutores das diversidades de saberes tradicionais. (...) Somos uma ferramenta para rabiscar os saberes tradicionais e pôr no papel para que os mesmos possam se conectar com as demais ciências.
Não basta sabermos ler ou escrever, precisamos do saber-fazer”, defende Elizângela Baré, liderança da
Terra Indígena Cué-Cué Marabitanas, em São Gabriel da Cachoeira (AM), licenciada em sociologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutoranda em saúde pública na Universidade de São Paulo (USP).
Esse “saber-fazer”, ferramenta descrita pela socióloga, é aplicado na proteção dos saberes tradicionais diante, por exemplo, da usurpação de tecnologias ancestrais de extração e preparo de sementes e raízes pela indústria farmacêutica. Então, “como garantir que os conhecimentos das sociedades tradicionais sejam respeitados, inclusive recompensados, pelo uso científico em grandes laboratórios farmacêuticos ou de qualquer outra ordem?”, questiona o ex-deputado e jornalista Fernando Gabeira. Para o autor de Democracia tropical: Caderno de um aprendiz (2017), “de modo geral, os conhecimentos tradicionais não são reconhecidos, eles são apropriados sem conhecimento das comunidades”. Além disso, adverte: “as comunidades tradicionais têm muitas dificuldades para ir aos tribunais a fim de garantir os seus direitos. Nem sempre têm conhecimentos adequados para isso, ou recursos para mobilizar advogados”.
Nessa interlocução entre tecnologias ancestrais e ciências, Baré e Gabeira articulam reflexões, análises e preocupações.
Interlocutores dos saberes tradicionais
POR ELIZÂNGELA BARÉ
Esse território que chamamos de Brasil é um país racialmente diverso. De acordo com o Censo de 2022, a população brasileira era de 203,1 milhões de pessoas, das quais 55,5% se identificavam como pardos ou pretos, 43,5% como brancos, 0,8% como indígenas e 0,4% como amarelos. A pequena proporção de indígenas autoidentificados reflete a violação de seus direitos e uma história de genocídio contra vários grupos étnicos.
Quando começo com esse rabisco assim, é para relembrar como fomos alocadas pelo Estado brasileiro, sempre à margem, o que nos causou vulnerabilidade e fez com que diversos povos indígenas fossem silenciados. É no interior disso que se encontra um conjunto de saberes tradicionais – culturas, danças, línguas, artesanatos, mitologias, cantos, hábitos alimentares, plantas medicinais – e a conexão com a Terra.
Para enfrentar o genocídio indígena, nós, como pesquisadores indígenas letrados, estamos sendo os interlocutores das diversidades de saberes tradicionais. Hoje nós somos uma ferramenta para rabiscar os saberes tradicionais e pôr no papel de modo que se conectem com as demais ciências. Não basta sabermos ler ou escrever, precisamos do saber-fazer.
Trago aqui uns dos exemplos sobre os saberes tradicionais do povo a que pertenço, o Baré, das famílias linguísticas Aruak/Arawak. Trata-se do Kariãma/ Cestos de conhecimentos nas literaturas de “Ritual da Moça Nova”, um conjunto de aprendizados dos saberes femininos que acontece por meio da oralidade, portanto, exemplo do saber-fazer. No Kariamã, os mais velhos(as), da nossa comunidade, conhecidos como anciãos(ãs), pajé, parteira, raizeiros(as), são os responsáveis por repassar os saberes e os conhecimentos. Isso ocorre por diversas vozes.
Para mim, isso está nos cestos de conhecimentos que compõem um território que foi invisibilizado pela colonização, apagado pelo capitalismo, mani-
pulado pelo poder. Os cestos de conhecimento podem ser vistos hoje como uma escola viva por não estar entre quatro paredes, nem em laboratórios com ar-condicionado, nem em livros ou em pendrive ou em material didático de uma escola.
Os saberes tradicionais são parte desses cestos de conhecimentos, assim, o mesmo é um conjunto composto por maloca, roça, quintal, caminhos de casarias, rios, lagos, montanhas e florestas. Os professores são os nossos pais, irmãos(ãs) mais velhos, avós, avôs, pajés, parteiras e raizeiros. Para validar os saberes e os conhecimentos, a menina, depois da reclusão, vai praticar o saber-fazer, que ocorrerá por meio dos percursos dos caminhos das roças, nas margens dos rios, ao ticar os peixes, no preparo da plantação das roças, ao confeccionar os artesanatos, no manejo das plantas medicinais, seja dentro da floresta, em frente à sua casa ou no quintal.
Os saberes tradicionais estão vivos nos corpos que compõem o território. Para nós, indígenas, ao manejarmos as roças, revivemos os nossos saberes, da mesma forma quando compartilhamos os conhecimentos sobres plantas medicinais. E quando usamos o benzimento, revivemos as nossas ancestralidades.
As ciências contemporâneas precisam se reorganizar de uma forma circular, para que os saberes tradicionais possam transitar e conectar-se em diversos espaços, assim, de fato, poderemos promover a cura da Terra de uma forma coletiva, na busca de compartilhamentos de saberes e conhecimentos. Para rabiscar sobre os saberes indígenas, trago aqui os especialistas do meu povo, chamados de pajés, porque eles são detentores dos conhecimentos e promovem a cura do corpo, da mente e do território dentro das terras indígenas há milhares de anos, mesmo antes da invasão.
Esses saberes indígenas foram, também, amaldiçoados pela colonização, tentaram unificar tudo na busca de organizar o sonhado “desenvolvimento”.
Hoje a Terra chora, clama e grita por socorro, nela os fenômenos climáticos são assustadores, causando mortes, alagamentos, queimadas, estiagem, provocando um desequilíbrio, deixando todos os povos da humanidade em vulnerabilidade.
Por estarmos no mesmo planeta, precisamos nos reconectar com as nossas ancestralidades e, nesse momento, a mãe Terra é base da nossa conectividade. Precisamos reflorestar a Terra, em especial as mentes humanas, na busca de encontrarmos soluções que organizem a existência do nosso planeta.
Nós, indígenas, sempre estivemos conectados com a mãe Terra.
O relógio é o sol.
A lua nos orienta nas plantações, até mesmo na extração das matérias-primas.
O rio é um nutricionista, nos oferece a diversidade de peixes, que vai nos alimentar o ano inteiro.
A floresta é nosso pomar, composta por uma diversidade de frutas.
A floresta é o campo natural, oferecendo os nossos hábitos alimentares, como animais e as aves.
A floresta é nossa farmácia viva, nela se encontra uma diversidade de plantas medicinais que curam. É um mercado composto por uma diversidade de coisas que podem suprir a necessidade dos povos indígenas. Lá, encontram-se diversidades de matérias-primas, árvores e palhas para construção de casas, canoa, remos, utensílios domésticos, como arumã, panela de cerâmica, peneira, abano, materiais para confeccionar os instrumentos musicais, entre outros. Por isso, que falamos que Terra é mãe: porque ela nos dá o sustento, ela é o útero que dá a vida. Está conectada com nossa existência, nossas ancestralidades estão nesse tapete verde, que são os rios escuros, lagos e montanhas.
Os meus rabiscos indígenas, feitos sobre os saberes tradicionais, nos impulsionam a refletir e desconstruir os pensamentos de como fomos ensinados de que ciência só é feita por meio de métodos escritos. Para os povos indígenas, suas metodologias estão na oralidade e no dia a dia de sua vivência. Somos árvores desconhecidas e, ao morrermos, alimenta-
As ciências contemporâneas precisam se reorganizar de uma forma circular, para que os saberes tradicionais possam transitar e conectar-se em diversos espaços
mos as árvores que estão vivas. As sementes caídas no chão alimentam muitas vezes os humanos e os animais. Elas são conduzidas, e assim renascemos em outro espaço, para que possamos continuar o ciclo da vida.
As ciências e os saberes tradicionais, precisam reconstruir narrativas interculturais, nas quais os corpos, mentes e territórios, possam florescer reflexões e visões para além do que a sociedade nos ensinou. Saber que o rio é vivo. É o sangue da mãe Terra, que é composta por diversos seres vivos.
Já pensou se os animais aquáticos falassem?
O que eles falariam atualmente para nós?
Já pensou se as plantas falassem?
O que elas nos perguntariam?
Já pensou se os oceanos falassem?
O que eles nos questionariam?
São essas reflexões que precisamos fazer quando se fala sobre a ciência e os saberes tradicionais.
Elizângela Baré é uma mulher indígena, artesã, agricultora, mãe, professora, liderança, falante da língua nheengatu e socióloga. Natural da Terra Indígena Cué-Cué/Marabitanas, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Possui licenciatura em sociologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), é apresentadora da rádio Sumaúma, doutoranda em saúde pública na Universidade de São Paulo (USP).
Biopirataria em questão
POR FERNANDO GABEIRA
Convidado para participar de um debate no Sesc Pinheiros, sobre o tema Ciência e Saberes Tradicionais [projeto Sempre um Papo, dia 15 de abril de 2025], não hesitei. Em primeiro lugar, já havia tratado do tema como deputado nos anos 1990. Em segundo, teria de companheira de mesa Elizângela Baré, que tem uma experiência de vida na floresta e agora também na universidade.
Evidentemente que o tema permite uma multiplicidade de focos. O que escolhi, baseado na minha experiência, é mostrar como nem sempre o encontro da ciência com os saberes tradicionais é um encontro bem-intencionado. Refiro-me à questão dos direitos autorais das comunidades. Esse é um problema universal, tratado em várias partes do mundo com muita tensão. Como garantir que os conhecimentos das sociedades tradicionais sejam respeitados, inclusive recompensados, pelo uso científico de grandes laboratórios farmacêuticos ou de qualquer outra ordem?
De modo geral, os conhecimentos tradicionais não são reconhecidos, eles são apropriados sem que as comunidades saibam. Além disso, as comunidades tradicionais têm muitas dificuldades para ir aos tribunais a fim de garantir os seus direitos. Nem sempre têm conhecimentos adequados para isso, ou recursos para mobilizar advogados.
O Brasil aprovou uma legislação sobre o tema em 2015. Na América do Sul, o Peru também se movimentou nesse sentido e a Índia – graças, também, aos esforços da ecofilósofa Vandana Shiva –, suas leis protegem as comunidades tradicionais. Mas o centro do nosso debate é o Brasil. Escolhi o tema “biopirataria” para sintetizar a evolução do problema. É uma expressão moderna que pode ser usada para o roubo não só de conhecimentos tradicionais como também de produtos da floresta, às vezes os dois simultaneamente.
Se compreendermos a biopirataria de uma forma mais ampla, veremos que, de uma certa forma, ela inaugurou a história do Brasil, definindo, inclusive, o nome do país. A extração do pau-brasil foi uma atividade dominante após a chegada dos portugueses, e seu processo de exploração praticamente privou o Brasil dessa árvore. O pau-brasil, como se sabe, era madeira de valor para construção de móveis e até de violinos. Dele, ainda se extraía um corante vermelho para tingir roupas.
Mais tarde, no fim do século 19, o Brasil viveu o ciclo da borracha, que enriqueceu os produtores do Norte do país. A decadência do ciclo foi parcialmente impulsionada pela concorrência asiática. Ela produzia a mesma borracha brasileira graças ao contrabando, pelos ingleses, das sementes da Hevea brasiliensis Importante registrar que fora do Brasil.
Esta sequência de litígios não significa que o encontro da ciência e da tecnologia com o saber comunitário é sempre negativo. Pelo contrário. As possibilidades são imensas, sobretudo no campo medicinal. No início do século 21, ainda como deputado, fui à Suíça questionar na imprensa local um projeto da Novartis de pesquisa de plantas amazônicas. A Novartis é uma gigante no campo farmacêutico, mas naquela época, ainda não tínhamos uma lei regulando o tema. As premissas principais – informação à comunidade e repartição dos benefícios – não foram levados em conta.
Hoje as possibilidades são maiores porque, pelo menos em tese, temos um controle legal. Os abusos do período sem lei foram muito grandes. O Brasil teve que lutar pela recuperação das amostras dos Yanomami. Eles não sabiam que eram objeto de uma pesquisa científica e não aceitariam esta prática, sobretudo sem o seu consentimento.
Alguns outros litígios brasileiros foram parar nas cortes estrangeiras. É o caso do açaí, patenteado por uma empresa japonesa que explorava esse alimento amazônico como se fosse seu. Outro caso rumoroso, no âmbito amazônico: um estadunidense, chamado Loren Miller, patenteou a ayahuasca, uma bebida usada em rituais religiosos. Na verda-
de, a ayuhuasca é uma combinação de duas plantas, ambas nativas, e seu nome vem do quíchua: “aya”, morto, “huasca”, chá. É traduzida como um “chá do espírito”. Essa demanda partiu de comunidades indígenas e pesquisadores, e a patente foi revogada.
Na Índia, tanto a cúrcuma, com suas propriedades cicatrizantes, como a neem, árvore usada como inseticida, foram apropriadas indevidamente. A planta Hoodia gordonii era usada pelo povo San, na África do Sul, como supressor de apetite durante as caçadas. O governo a patenteou para a Pfizer, mas uma grande campanha internacional acabou obrigando a grande empresa a repartir os benefícios por meio de um acordo.
Apesar de todo aparato legal, ainda somos vítimas da biopirataria. Milhares de peixes ornamentais são exportados sem controle e o comércio ilegal de animais é uma das atividades mais lucrativas para o crime organizado na Amazônia, ao lado do garimpo e do tráfico de drogas. Esse deveria ser um problema de interesse planetário. Os animais são transportados clandestinamente em viagens es-
tressantes, e alguns podem trazer vírus desconhecidos para as áreas urbanas. Além da crueldade e do empobrecimento da fauna, o comércio clandestino de animais é um constante perigo de epidemia.
No debate que fizemos no Sesc Pinheiros, não me alonguei nos aspectos positivos do encontro da ciência com o saber tradicional, mas não posso deixar de mencionar que, na vida pessoal, de uma forma singela, fui beneficiado por ele. Uma de minhas filhas nasceu de parto de cócoras, uma prática entre os povos tradicionais. Isto numa maternidade com todo o equipamento moderno para o caso de complicações. Enfim, há um longo caminho para o lado positivo do encontro, desde que possamos, com antecedência, cuidar da proteção do saber tradicional.
Se esse caminho for trilhado, aumentam em muito as possibilidades de um desenvolvimento sustentável na Amazônia, por exemplo. Ali, não se trata apenas de conciliar o conhecimento dos nativos com os da ciência. Grande parte da floresta contém segredos que ainda não foram alcançados pela humanidade. Da mesma forma como no fundo do mar, ainda existem segredos que podem impulsionar o que chamamos de economia azul, uma nova fronteira de descobertas.
Resta apenas transformar a biopirataria como uma fase ultrapassada de nossa história, compartilhando conhecimentos e benefícios para que todos possam compartilhar deles. Embora não seja um tema definido na agenda, muito possivelmente, ele vai aparecer na COP30, reunião internacional que se realizará em novembro, na cidade de Belém (PA), no coração da Amazônia. Muitas comunidades tradicionais, pela primeira vez, estarão presentes e, certamente, vão querer discutir uma nova visão de futuro.
Nem sempre o encontro da ciência com os saberes tradicionais é um encontro bem-intencionado. Refiro-me à questão dos direitos autorais das comunidades.
Fernando Gabeira é jornalista e escritor, autor de 10 livros, entre alguns: O que é isso, companheiro? (1979), Viagem ao coração do Brasil (1994) e Democracia tropical: Caderno de um aprendiz (2017). Atualmente, é colunista do jornal O Globo e comentarista do canal de televisão por assinatura Globo News.
CINEMA pela liberdade
Diretor
e roteirista de Homem com H,
Esmir Filho encontrou em Ney Matogrosso um protagonista das questões que movem seu trabalho desde o início da carreira
POR DIEGO OLIVARES
Avontade de desafiar convenções e de se expressar por meio da arte são os pontos em comum entre o multiartista Ney Matogrosso e o cineasta Esmir Filho, diretor e roteirista de Homem com H, filme que levou mais de 600 mil pessoas às salas de exibição entre a sua estreia, no início de maio, e metade de junho, antes de chegar ao catálogo da plataforma de streaming Netflix. Para contar a história de um dos principais cantores da música brasileira, reconhecido por sua personalidade transgressora, Esmir Filho voltou a temas recorrentes de sua filmografia. “Quando essa história chegou até mim, vi que ela dava continuidade a tudo que eu já tinha falado no audiovisual: pulsão, corpo, desejo, descoberta, afetividade, relação pai e filho”, conta.
Aos 42 anos, o diretor celebra o maior sucesso de sua carreira até hoje. Um caminho que começou a ser pavimentado no início dos anos 2000, quando se formou na Faculdade de Cinema da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e realizou os primeiros curtas-metragens: Alguma coisa assim (2006), que ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes de 2006, e Saliva (2007), indicado para representar o Brasil no Oscar de 2008.
Seu primeiro longa-metragem, Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), foi vencedor do Festival do Rio, em 2009, e selecionado para a competição oficial da Berlinale (Mostra Geração 14+) e do Festival de Locarno. Ganhou prêmios de melhor filme, direção
e crítica nos festivais de Havana, Valdivia, Gramado e Guadalajara, além de ter entrado em cartaz nos cinemas da França, Japão e Portugal. Sempre interessado por diversos formatos, já trabalhou com o streaming, televisão (incluindo a série Filosofia Pop, do SescTV), realizou o espetáculo multimídia Kollwitzstrasse 52 (2012) e é um dos criadores do fenômeno da internet Tapa na Pantera, com a atriz Maria Alice Vergueiro (1935-2020), curta que viralizou no YouTube em 2006.
Neste Encontros, Esmir Filho compartilha suas inquietações e inspirações, além de revelar detalhes sobre o processo criativo de Homem com H. “Cheguei até o Ney dizendo que queria fazer com que as pessoas saíssem do cinema com vontade de viver, inspiradas para poder subverter em defesa da autenticidade delas. Acho que ele se encantou por isso, sabendo que a sua história tinha esse potencial. E aí se aproximou. Eu tinha certeza de que o Ney ia gostar”, orgulha-se.
CONTAR PARA RECONSTRUIR
Tenho uma memória remota do meu pai me contando histórias para dormir. Só que ele começava a contar e eu o parava para reconstruir a história. Ele falava: “O personagem abriu a porta e chegou em uma casa”. Aí eu dizia: “Não, pai, ele não chegou em uma casa, ele abriu a porta e chegou na lua. Conta para mim”. Aí ele continuava: “E daí, chegou na lua, encontrou um amiguinho…”, e eu retrucava: “Não, ele não encontrou um amiguinho, encontrou vários coelhos…”.
Sergio Santoian
Acho que daí veio a minha grande paixão por recriar e reconstruir um mundo para poder dialogar. Porque eu faço cinema para conversar com as pessoas. Os meus filmes são as minhas teses emocionais e sensoriais. É a forma que eu desenvolvi para falar com o público. Lançar ideias, sensações, perguntas.
FACES DA JUVENTUDE
Eu era bastante jovem quando fiz meus primeiros curtas, estava nos meus 20 anos. Acho que era um eu mais puro, no sentido de, realmente, dar voz a uma angústia, a questões da sexualidade. Acho que você percebe que virou um adolescente quando chora sozinho pela primeira vez. Porque a criança não chora sozinha, ela chora perto dos outros, ela quer mostrar ou pedir alguma coisa. Agora, quando você fecha a porta do quarto e chora sozinho, você virou um adolescente. Você toma contato com as suas dores e parece que ninguém te entende. Então, essa descoberta do íntimo sempre me encantou. E eu acho que isso reverberava
no meu cinema: a intensidade e a sensorialidade que eu podia apostar com imagem e som para mostrar essa intensidade do jovem.
PRIMEIRO VIRAL
A gente brinca que o Tapa na Pantera é o vovô do YouTube, porque é o precursor dessa viralização de vídeos. Todo o processo foi muito orgânico. A Maria Alice Vergueiro [atriz (1935-2020)] tinha feito o meu primeiro curta em 16 milímetros, que se chama Ato II Cena 5 (2004). Eu gostava muito dela no teatro, é a dama do teatro brasileiro. Eu, Rafael Gomes e Mariana Bastos [codiretores do curta] fomos à casa da Maria Alice realizar um vídeo, que tinha outro roteiro, para o Festival do Minuto. Mas ela atendeu a gente já com aquela roupa [do Tapa na Pantera] e, enquanto a gente montava a câmera, aquele personagem começou a surgir de uma brincadeira e a gente continuou. Quando a gente enviou o curta para a seleção de festivais, alguém colocou no YouTube. Nós nunca soubemos quem foi. A partir daquele
momento, as pessoas começaram a visualizar, e replicar. Por isso, eu digo que conheci o YouTube por meio do meu próprio curta. E, a partir daí, a gente entendeu, na pele, enquanto autor também, o que era viralizar: era algo que não dependia de nós.
INQUIETAÇÃO COMO INSPIRAÇÃO
Sinto que, como artista, estou sempre com a antena aberta para questões que me afetam. Porque eu acho que, se alguma coisa está me afetando nessa sociedade em que a gente vive, alguém também está inquieto. Você não está sozinho. Isso eu acho que aprendi depois de muito tempo até entender coisas sobre a minha vida íntima. Porque tem um momento ali que a gente cresce achando que algumas coisas só estão acontecendo com a gente. E daí, percebe que não, que os outros também sentem essas mesmas coisas. E que a nossa questão, como ser humano, é a comunicação. Acho que a partir dessas inquietações, quanto mais íntimo, mais universal. Então, acho que tem muito a ver com o estudo,
O diretor Esmir Filho em cena com o ator Jesuíta Barbosa, que interpreta Ney Matogrosso na cinebiografia Homem com H.
EU FAÇO CINEMA PARA CONVERSAR COM AS PESSOAS. OS MEUS FILMES SÃO AS MINHAS TESES EMOCIONAIS E SENSORIAIS. É
A FORMA QUE EU DESENVOLVI PARA FALAR COM O PÚBLICO.
a entrega, a sinceridade com o seu vetor de desejo, com o que você quer falar como criador. A história do Ney Matogrosso é um ótimo exemplo disso. Lembro quando eu estava lendo sua história de vida, ouvindo seus discos, e estava próximo dele, conversando, eu falei: “Espera aí. Essa história é minha também”.
HOMEM COM H
Quando recebi o convite da Paris Filmes para dirigir Homem com H, pensei: se tivesse um artista brasileiro que eu faria a cinebiografia, seria o Ney. Quando essa história chegou até mim, vi que ela dava continuidade a tudo que eu já tinha falado no audiovisual: pulsão, corpo, desejo, descoberta, afetividade, relação pai e filho. Veio o convite com liberdade para criar o roteiro. A primeira coisa que eu fiz foi escutar a discografia do Ney em ordem cronológica, para lembrar a trajetória dele a partir do que ele canta. Aí, li as biografias e o livro Vira-Lata de Raça (2018), que são as memórias escritas pelo próprio Ney. Ele começa esse livro dizendo:
“Eu sempre reagi ao autoritarismo”. Eu achava essa frase muito forte. A partir daí, desenhei o recorte de um filme sobre liberdade. Sobre alguém que inspira liberdade. Precisei entender como ele conquistou essa liberdade, porque ela não foi dada. Nós não nascemos livres. Pelo contrário. Você nasce numa prisão social, cada um com a sua. Então, para você subverter, é necessário passar por muitos obstáculos e lutar por esse ponto de vista autêntico e único. Foi o que o Ney fez.
JESUÍTA EM PERFORMANCE
Os produtores queriam que fosse um filme com apelo para o público e, por isso, queriam um nome conhecido como protagonista. Eu, logo de cara, disse que, entre os atores conhecidos, o Jesuíta (Barbosa) exala o perfume do Ney. Tanto que, quando eu contava que estava escrevendo a cinebiografia do Ney, muita gente já falava que tinha que ser o Jesuíta no papel. Então, já havia um imaginário coletivo. Mas como ele tinha muita coisa do Ney dentro dele, o processo foi muito
gradual. Fizemos uma imersão em livros, entrevistas e conversas com o Ney. Depois, muita preparação de elenco, para ele viver cada situação que o cantor viveu, em sala de ensaio, porque isso diz muito ao corpo do ator. O processo envolveu aulas de canto, preparação de corpo, dança, nutrição para perder quilos e ficar na silhueta. Além de toda a caracterização e figurino. Aí todo mundo fala que o Jesuíta incorporou o Ney. Na verdade, foi muito trabalho, porque esse “incorporar”, esse “transe”, é se soltar ao atingir o domínio da técnica.
DIÁLOGO COM O PÚBLICO
Se a gente fala só com a gente, não se chega a lugar algum. A gente não dialoga e não transforma. O filme do Ney e o Ainda estou aqui (2024) são dois exemplos muito claros de que você pode entrar na história e se sentir na pele do personagem. Você vive aquela história única, que é política e que está falando sobre existência, compreensão e sobre afeto, que conversa com todos. É saber usar a poesia para fazer com que aqueles que não concordam com você te escutem e te aceitem. Então, quero pensar sobre como eu vou falar para me comunicar com todo mundo. Para fisgar a atenção daquela pessoa que está distraída –para não dizer alienada –, mas que é sensível. Nós somos seres humanos, partimos do ponto de partida que somos sensíveis. Então, como atingir essa sensibilidade no espectador do lado de lá? Por meio da poesia.
O cineasta Esmir Filho participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 12 de junho de 2025. A mediação do bate-papo foi de Sidênia Freire, coordenadora de programação do SescTV.
inéditos
MALANDRAGEM
POR BETHÂNIA PIRES AMARO ILUSTRAÇÃO CATARINA BESSELL
Ainda nesta tarde comentei com alguns colegas sobre os perigos de se andar de metrô nesta cidade, especialmente às dezoito horas, quando os trens ficam repletos de malandros que se aproveitam da multidão para empreender seus crimes abjetos. Não sou bobo, se ando incólume há quase duas décadas pela linha vermelha em pleno horário do rush é porque desenvolvi uma série de táticas estratégicas. A primeira eu coloco em prática assim que saio do escritório: confiro o travamento da pasta de documentos e a coloco debaixo do braço, bem rente ao corpo. Quero só ver tentarem me arrancar esta belezinha, seria um espetáculo.
Descendo as escadarias da estação, mantenho uma distância razoável das pessoas ao redor e observo o entorno. Já à parede se escoram uns dois ou três malandros, com bonés ao contrário e mãos no bolso, vigilantes. A segurança já foi melhor por estas partes, hoje em dia um cidadão de bem precisa cuidar pessoalmente do próprio pescoço e dos poucos pertences que o magro salário lhe autoriza. Caminho com pressa, como se dominado por um propósito essencial, até me deparar com o volume de corpos que se afunila frente às catracas. Este é sempre um momento sensível, ante a impossibilidade de averiguar cada um daqueles inúmeros rostos – nestas horas valho-me de minha altura considerável e de meu porte masculino, que, embora pouco musculoso, compensa com determinação as deficiências da força. Estou quase do outro lado quando uma mulher tenta me empurrar, a sabidinha; dou um tranco para o lado até senti-la ceder e se desequilibrar, estatelando-se sobre o piso e abrindo um espaço que atravesso rapidamente, sem olhar para trás.
inéditos
Vou seguindo a corrente que vira à esquerda, um pouco nauseado pelo cheiro de pastéis e pães de queijo que se vendem nos quiosques. Sempre os passo bem à margem, os quiosques nada são além de um reduto de vagabundos, que ali esmolam as moedas do troco suado dos pagantes. Que tantos consigam pular a catraca com esta facilidade é um insulto – com aquele absurdo valor da passagem seria de esperar que tivéssemos algum conforto no trajeto. Olho ao redor, mas não se veem em lugar algum os uniformes pretos dos funcionários do metrô; neste
horário mesmo, quando mais se fazem necessários, é que desaparecem, completamente indiferentes aos sufocos da gente trabalhadora que apenas tenta voltar para casa.
Enfim paro diante do vão, sou o quinto da fileira, o trem chega lotado, nesta espera chegam mais e mais corpos que pressionam sem tréguas as minhas laterais. Avanço devagar, irritado com os malditos fura-filas, os dedos que apertam a pasta já escorregadios e pegajosos. Quando as portas se abrem diante de mim, quase sou
atropelado; embarco não por vontade própria, mas em razão do fluxo de pessoas que me cercam e me impulsionam. Acotovelo-me até os assentos, todos ocupados, mas ao menos ali no meio, longe das portas, consigo respirar com mais tranquilidade. Venho balançando há uns bons dez minutos ao ritmo das frenagens e arrancadas quando vejo entrar o malandro.
Avisto-o assim que cruza as portas: as tatuagens, o nariz perfurado tortíssimo, as calças folgadas que facilitam esconder os produtos dos crimes, caindo por cima de tênis novos demais, claramente roubados. Ando nesta linha há anos, conheço de cara o tipo desses patifes. O pilantra dá um olhar rasteiro para os lados, certamente escolhendo a próxima vítima. Para logo atrás de uma senhora, a tonta nem percebe.
Tento acompanhar seus movimentos, mas a massa de passageiros me bloqueia a visão; ainda assim, o trajeto deve estar sendo proveitoso, porque depois de cinco ou seis estações o sacana ainda está ali, sempre mudando de lugar e se aproximando um pouco mais. Lá pela décima estação ficamos lado a lado, eu que não vou abdicar de minha posição privilegiada por causa deste sacaninha. Ele tenta vir se encostando, fungando com aquele nariz retorcidíssimo, num solavanco eu me distancio e encaro-o ameaçadoramente – o malandro, surpreendido, tem mesmo a pachorra de parecer intimidado, encolhendo-se para longe.
Afinal se aproxima minha estação de destino, vou me apertando pelo corredor, um olho na saída, outro no malandro, mal chegamos e o tratante dá o
bote – aproveita o freio brusco do motorista para se inclinar para trás e tentar me apalpar, como se tivesse tropeçado e buscasse apoio, mas nitidamente atrás da minha carteira, para correr assim que as portas se abrissem. Eu que não lhe darei esse gostinho! Apanho-o logo pela gola da camisa, passo-lhe uma rasteira que o derruba com força no chão e então lhe desfiro um poderoso golpe no meio da cara. O pilantra pede misericórdia, Jesus, eu sou pai de família, já conheço bem as ladainhas desses canalhas, ergo mais uma vez o braço para o segundo soco.
— Quero ver roubar alguém agora, mané!
Saio satisfeito com uma estação de atraso, detrás de mim começam os gritos, o patife uiva que eu lhe quebrei o nariz, até parece, vaso ruim não quebra, e de todo modo mais torto do que já é aquele nariz não poderia ficar.
Bethânia Pires Amaro nasceu em Recife, em 1988, foi criada na Bahia e reside em São Paulo (SP). Seu primeiro livro O ninho (2023), publicado pela editora Record, foi vencedor na categoria contos dos Prêmios SESC e APCA 2023 e Jabuti 2024.
Catarina Bessell nasceu em São Paulo (SP), onde reside, é artista gráfica graduada em Arquitetura e Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). com um master em ilustração pela Fundação Alberto Mondadori, em Milão, na Itália.
FLORIR EM CENA
Depois de mais de 70 anos dedicados a obras de cinema e televisão, o ator Othon Bastos reflete sobre seu retorno ao teatro e o exercício de humanidade
POR MARCEL VERRUMO
FOTOS FERNANDA BALDA
Na coxia do teatro, antes de entrar em cena, o ator Othon Bastos mantém a tradição de pedir proteção divina a cada espetáculo. Assim como preserva sua fé, cultiva a alegria na existência e não hesita em dividir com o público palavras, sorrisos e afetos. Nascido em Tucano (BA), em 1933, há mais de sete décadas o artista mantém-se ativo na dramaturgia brasileira, seja no teatro, no cinema ou na televisão, resistindo às intempéries características de diferentes momentos históricos, aos desafios de se fazer arte e à saudade daqueles que partiram.
Aos 92 anos, Bastos está em cartaz com a peça Não me entrego, não!, escrita e dirigida por Flávio Marinho a partir de memórias e referências reunidas pelo próprio artista. O monólogo já passou pelo Teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis, e pelo teatro do Sesc Taubaté. Nesse momento, segue em temporada por outros estados. Pela atuação, venceu o Prêmio Shell de 2025 como Melhor Ator.
No monólogo, o ator rememora seus mais de 70 anos de carreira, desde a juventude, como figurante em Londres, até a velhice, nos palcos nacionais. Ao compartilhar anedotas, traz à cena a história da arte brasileira, como os bastidores do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha (1939-1981), um clássico do Cinema Novo; e da peça Um grito parado no ar (1973), de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), marco da resistência no período de ditadura militar. Ao vestir-se de si, corporifica títulos que compõem a história cultural do país, evocando artistas que
o inspiram, como Constantin Stanislavski (1863-1938) e Bertolt Brecht (1898-1956), e relembrando amigos com quem dividiu sua jornada.
Neste Depoimento, Othon Bastos expressa suas crenças na arte do teatro e na vida, e ainda revela o desejo de, no tablado, continuar compartilhando amor com as plateias.
teatro
O teatro é a coisa mais importante que existe. A arte de viver, de sonhar. A arte de tudo. Você não pode esquecer essas quatro letras: A-R-T-E. Cada vez que entro em cena, estou aprendendo. Vou dizendo as palavras que quero que sejam ditas. Não escondo. Nesse palco, estou falando de vida, que é o mais importante: viver e aprender a viver. A vida é a felicidade. Não é dinheiro, sucesso. O importante é viver, é dar-se à vida. Vivo de alegria, sou uma pessoa alegre, nasço contente todas as manhãs.
chamado
Eu vinha fazendo cinema e televisão. Um dia, parece que o destino falou comigo: “Você está se esquecendo do teatro. Está longe do teatro há muito tempo: não se esqueça de que você é filho do teatro”. Fui assistir a uma peça [Judy: o arco-íris é aqui], do Flávio [Marinho], e achei o espetáculo lindo. Ele conseguiu unir a atriz com a personagem, a Luciana Braga com a Judy Garland (1922-1969).
Conheço Flávio há mais de 50 anos, quando ele era crítico de teatro. Depois de assistir à peça, eu lhe disse: “Gostaria de fazer um espetáculo. Você escreveria um para mim? Eu não quero nada triste, nada. Quero mostrar um lado que as pessoas não conhecem. Eu quero alegria”.
processo
Entreguei um material para o Flávio, umas 600 páginas com aquilo que penso, que gosto e guardo para mim, como palestras, bate-papos, pensamento de autores. Ele pegou, viu o texto e começou a montar. Um dia, me ligou e disse: “Já estou arrumando tudo, mas uma coisa eu já lhe digo: temos o final do espetáculo. Você tem 91 anos, volta ao teatro depois de 15 ou 20 anos. Este é o gancho: você voltar a fazer teatro com essa energia”.
histórias
Nesse espetáculo [Não me entrego, não!], não estou fazendo a minha biografia. São momentos de minha vida que tive que passar para chegar aonde cheguei. Isso é
o importante do espetáculo: vou buscar a minha vida. No palco, mostro para o público o que sou, o que fiz e como sou. Vou contando não só a minha história, mas a história do teatro e do Brasil. Conto o que é possível ser feito e falado dentro de um espetáculo de uma hora e meia. Aqui, mostro o que vivi. Mostro que fiz o que eu quis fazer. E amei tudo isso.
acreditar
O que eu peço para entrar no palco? Eu só peço energia e amor. Quando estou para entrar em cena, paro e digo: “preciso da proteção de Deus para fazer este espetáculo”. Pronto. É preciso ter fé. Isso é algo que as pessoas estão perdendo. Acreditar mesmo. A palavra fé já é fortíssima.
Você tem que ter isso dentro de si, tem que acreditar em você. Isso é a coisa mais importante. “Eu acredito em mim” é o que você tem que dizer. Eu sei que posso fazer e vou fazer. Tenho uma esperança.
humanidade
Stanislavski [ator e diretor teatral russo] dizia: “um ator deve ser muito mais do que apenas um talento artístico. Ele deve ser uma pessoa repleta de humanidade”. Até inseri essa citação no programa [do espetáculo Não me entrego, não!], porque penso que isso seja da maior importância. Para o ator, só o talento artístico não basta. É preciso ter humanidade. O ator tem que transmitir humanidade para as pessoas. Tenha sempre um diálogo
Othon Bastos no palco em Não me entrego, não!, escrita e dirigida por Flávio Marinho: peça revisita carreira do ator em diferentes contextos da história do Brasil.
consigo. É como dizia o filósofo egípcio Plotino, você tem que ter sempre um momento para fazer uma viagem dentro de si, porque vai encontrar suas respostas lá dentro.
plateias
A cada lugar para onde você leva o teatro, vai haver um público diferente. Você não sabe como será a reação das pessoas, mas, se você leva com todo o afeto, com todo amor, com todo carinho, a plateia vai lhe receber com o mesmo afeto, amor e carinho. O Zé Vasconcelos (1926-2011), um ator maravilhoso e um imitador fantástico, dizia: “Quando estou fazendo um espetáculo, quero que a pessoa já esteja sorrindo quando comprar o ingresso". O público tem que chegar com essa alegria e isso é transmitido para você, que está no palco.
verdade
Não existe coisa mais importante que a verdade. Há pessoas que acham que não houve ditadura no país. Nós, artistas, que estamos aqui, passamos por isso, sofremos, lutamos contra. Penso que isso precisa ser dito. Aconteceu. Isso desperta nas pessoas certa curiosidade: “se ele está dizendo, se passou por isso, nós precisamos saber a verdade”. Pode ser brutal, mas a verdade diz a você: “Isso aconteceu, não é fantasia. Passamos por isso, lutamos, fomos atacados de todas as maneiras, mas nós estamos aqui lutando, dando arte para vocês, dando amor para vocês, dando conhecimento”.
trabalhar
O que eu digo para as novas gerações é que elas não devem desistir, devem fazer aquilo que acham que deve ser feito. Fernando Pessoa (1888-1935)
NO PALCO, MOSTRO PARA O PÚBLICO O QUE SOU, O
QUE FIZ E COMO SOU. VOU CONTANDO NÃO SÓ A MINHA
HISTÓRIA, MAS A HISTÓRIA DO TEATRO E DO BRASIL.
dizia: “Trabalhar é trabalhar-se". Se você está trabalhando, você está se expondo, revelando-se. Para mudar a sociedade, você tem que trabalhar. E talvez no seu trabalho, você consiga transmitir às pessoas uma possibilidade para que elas também possam trabalhar e se transmitir umas para as outras. Acredito que deve haver cada vez mais união. Nós vivemos tempos horríveis, tempos de inglórias, tempo de destruição total. Mas enquanto você tiver forças, tem que lutar.
continuar
Quantas saudades eu tenho das pessoas que já se foram, dos colegas que trabalharam comigo. Eu fiquei, mas eles foram. Acho que Deus ainda não olhou para mim e falou: “tá na hora”. Enquanto Ele disser: “vá fazendo”, eu continuo. Faço com um amor tão grande, com uma vontade tão grande de viver e de transmitir essa vida e esse amor que tenho dentro de mim. Você tem que dar amor para as outras pessoas.
florir
Buda diz que se você plantar uma semente de amor, é você quem irá florescer. Disso, eu penso no verbo florar: eu floro, tu floras, ele flora, nós florimos, vós floris, todos floram. O importante é viver. Com todas as dificuldades, com todas as lutas, tem que viver e ter alegria de viver. Eu estou compartilhando sempre, estou sempre me dando às outras pessoas. E eu acho que é isso que você tem que ser na vida: ser amigo, companheiro, desbravar essa terra e seguir em frente, florir.
Assista a trechos desse Depoimento com o ator Othon Bastos, realizado no Teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis, em abril de 2025.
ALMANAQUE
Antes do sol se pôr
Contemplar o fim de tarde em São Paulo ganha novas cores e tons com apresentações de teatro, música e dança para todos os públicos
POR MARINA PEREIRA
Por que esperar a noite para fazer alguma programação cultural? Quando se pensa em shows ou em espetáculo de teatro e dança, muitas vezes a primeira coisa que vem à cabeça são atividades noturnas, que às vezes encerram muito tarde, talvez até comprometendo a rotina do dia seguinte. Mas como o período vespertino estende-se, geralmente, do meio-dia até o sol desaparecer no horizonte, outras programações dão um novo tom ao crepúsculo.
Além de realizarem espetáculos para o público infantil, que normalmente já acontecem no período da tarde, muitos espaços culturais da cidade têm ampliado a grade de horários para contemplar as tardes com atividades para todos os públicos. É o caso de unidades do Sesc São Paulo, que passam a realizar sessões vespertinas, entre às 15h e às 17h, em programações de circo, teatro e dança. Descubra outros locais e se programe para se divertir e flanar antes do sol se pôr.
Na Casa de Francisca, uma curadoria voltada à diversidade musical e autoral ocupa seus três espaços, Salão, Largo e Porão, com uma programação mensal. Filipe
DANÇA VESPERTINA
Espaço conhecido por acolher expressões artísticas clássicas e contemporâneas, o Theatro Municipal de São Paulo, construção no Centro da cidade, influenciada por teatros de ópera europeus, iniciou suas atividades em setembro de 1911, quando foi aberto para convidados diante de uma multidão deslumbrada com a iluminação espetacular para a época. Pelo seu palco, passaram consagrados nomes da ópera, da música e da dança, como Maria Callas (1923-1977), Camargo Guarnieri (1907-1993),
Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Ella Fitzgerald (1917-1996) e Mikhail Baryshnikov. O Municipal também recebeu um dos principais eventos da história das artes no Brasil, a Semana de Arte Moderna de 1922. Em 2012, foram criadas as instalações da Praça das Artes para abrigar os corpos artísticos, as escolas municipais de música e dança e as múltiplas atividades do Complexo Theatro Municipal. Nas tardes de agosto, destaque para a programação de dança: sábado e domingo, 16 e 17/8, às 17h,
o Balé da Cidade de São Paulo, em parceria com a Orquestra Sinfônica Municipal, apresenta os espetáculos Bioglomerata , que utiliza memórias de danças, gestos e referências para interagir com a música, e Fôlego , que reúne elementos como aglomerações, insistências e ciclos repetitivos refletindo as mudanças contínuas no ambiente.
Theatro Municipal de São Paulo. Rua Conselheiro Crispiniano, 378, Sé, São Paulo – SP. theatromunicipal.org.br
Neste mês, as tardes no Theatro Municipal de São Paulo recebem uma programação especial de dança.
Nilton Fukuda
ALMANAQUE
CLÁSSICOS DURANTE O DIA
Casa da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), patrimônio histórico e ponto turístico da cidade, a Sala São Paulo está sediada no Complexo Cultural Júlio Prestes. Considerada uma das principais salas de concertos do mundo, recebe artistas e grupos nacionais e internacionais durante todo o ano. De estação de trem à sala de concertos, esse equipamento cultural foi inaugurado no dia 9 de julho de 1999, mesma data em que foi tombado como patrimônio histórico pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Como parte da programação de agosto, o maestro Masaaki Suzuki, fundador do Bach Collegium Japan, junto à Osesp, comanda um concerto de repertório clássico, romântico e moderno, passando por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), Ludwig Van Beethoven (1770-1827) e Joseph Haydn (1732-1809), dia 9/8, às 16h30 (além de outros horários). Já no dia 23/8, às 14h30, Zoe Zeniodi, destacada maestra da Grécia, interpreta a música de uma das mais importantes compositoras brasileiras, Marisa Rezende, em sua estreia na Osesp.
Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16, Campos Elíseos, São Paulo – SP. salasaopaulo.art.br
PALACETE MUSICAL
Patrimônio histórico recém-restaurado, o Palacete Teresa, localizado no Centro de São Paulo, abrigou a primeira loja de instrumentos da cidade, a Casa Bevilacqua, a editora de música Irmãos Vitale e a rádio Record, chegando a ser conhecido como “a esquina musical de São Paulo”. Desde 2017, o imóvel abriga a Casa de Francisca, espaço sociocultural e gastronômico, criado em 2006, com uma curadoria voltada à diversidade musical. Em três espaços – Salão, Largo e Porão –, a programação que acontece ao longo do dia contempla artistas com trabalhos autorais, diversidade estética e musical como djs, big bands, orquestras, rodas de samba, bailes, forró, entre outros. Durante os finais de semana, a programação Almoço e música acontece a partir de meiodia no Salão. Já no Largo, são realizadas apresentações musicais gratuitas das 12h à meia noite, de quarta a sábado.
Casa de Francisca / Palacete Teresa. Rua Quintino Bocaiúva, 22 - 1º andar, Sé, São Paulo – SP. casadefrancisca.art.br
Uma das principais salas de concerto do mundo, a Sala São Paulo recebe o maestro japonês Masaaki Suzuki e a maestra grega Zoe Zeniodi junto à Osesp, na programação de agosto.
Reinaugurado há exatamente um ano, o Teatro Cultura Artística realiza concertos e apresentações teatrais em sua programação.
TARDES NO SESC SÃO PAULO
As unidades do Sesc São Paulo ampliaram as ações em artes cênicas com sessões começando entre às 15h e às 17h para espetáculos de teatro, circo e dança. O horário, antes voltado apenas para programações infantis ou grupos agendados, agora integra a programação regular para todos os públicos. A iniciativa visa a ampliar o calendário de apresentações nos espaços e reforça o compromisso da instituição com a democratização cultural, não só pelo valor, mas também pela variedade de horários. Entre os destaques do mês, os espetáculos teatrais Sonho elétrico, em cartaz até 3/8 no Sesc Vila Mariana, Estratagemas desesperados, até 10/8 no Sesc 24 de Maio, e Vermes radiantes, também até 10/8, no Sesc Pompeia, contemplam o horário da tarde.
Confira a programação de cada unidade: sescsp.org.br
PAULICEIA EXPANDIDA
Após um período fechado depois de sofrer um incêndio de grandes proporções em 2008, o Teatro Cultura Artística foi reaberto há exatamente um ano, em agosto de 2024, mantendo-se como um importante marco cultural e arquitetônico brasileiro, recebendo o título de patrimônio cultural. Com 48 metros de comprimento e oito metros de altura, a obra Alegoria das Artes que cobre o segundo e terceiro andares da fachada do edifício é o maior painel concebido pelo artista Di Cavalcanti (1897-1976). Já a Sala de Espetáculos foi redesenhada para abrigar uma programação variada. Com 750 lugares, propicia uma experiência intimista para concertos de música clássica, popular, jazz, espetáculos e atividades educativas. Como parte da programação de agosto, serão celebrados os 200 anos do compositor Johann Strauss II (1825-1899), o célebre “rei da valsa”. Uma de suas obras-primas, a opereta O Morcego, forma de teatro musical que combina canto, diálogo e dança, com uma pegada de humor, fala de vingança com muitos can-cans, valsas e polcas. A apresentação acontece no dia 17/8, às 11h.
Teatro Cultura Artística. Rua Nestor Pestana, 196, Consolação, São Paulo – SP. culturaartistica.org.br
As unidades do Sesc São Paulo ampliam programação cultural no período vespertino, caso do espetáculo Sonho elétrico, em cartaz até 3/8, no Sesc Vila Mariana.
Laura Aidar
Nilton Fukuda
Um circo dentro da gente
O circo entrou na minha vida não pela maneira mais usual e, talvez, romantizada: o circo de lona chegando na cidade trazendo consigo a alegria, a magia e o mistério. Mas teve, sim, sua dose de encantamento. Foi uma amiga que, em 2010, me chamou para fazer uma aula de tecido acrobático numa escola em Barão Geraldo, em Campinas (SP), onde morávamos. Tecido o quê...? Não sabia do que se tratava, mas fui mesmo assim. A palavra “acrobático” havia me seduzido. O lugar era no quintal de uma casinha, com uma lona pequena e alta montada. Das várias sensações que me marcaram nesse dia, a de que mais me lembro foi de nunca ter subido em um lugar tão alto sozinha, literalmente, com minhas próprias mãos (o tecido devia ter uns 10 metros de altura).
O circo se apresentou para mim como uma atividade física intensa e imensamente satisfatória, que fazia, e faz, eu me sentir forte para além da força física. Conheci e pratiquei outras modalidades de aparelhos aéreos, como a lira, trapézio fixo e o trapézio de voos e, desde então, essa parte do universo circense me acompanhou nos caminhos que minha vida tomou.
Na escola onde treino, a amiga, que me convidou para fazer uma aula de tecido, e eu comemoramos nossos aniversários de 40 anos. Compartilhamos o que sentimos e vivemos nessa prática. Todo mundo podia brincar à vontade. E esse brincar é uma das muitas coisas que o circo me ensina. Lembro até hoje que minha reação ao pular na cama elástica pela primeira vez foi de dar risada. Fiquei gargalhando e pulando, feliz.
Outro aprendizado é o de comemorar as pequenas conquistas: um movimento que finalmente consegui fazer com as pernas esticadas, sem dobrar o joelho;
sair da plataforma do trapézio sozinha, sem ninguém me segurando; fazer o truque no meu tempo, sem precisar ouvir os comandos do professor. Mas acredito que o ensinamento mais importante é o de estar presente, vivendo o momento. Pode parecer clichê, mas é real. Para estar lá em cima, no tecido ou no trapézio, é preciso que eu esteja conectada com o que estou fazendo, consciente de cada gesto e intenção.
Em muitos sentidos, sinto que a dinâmica de movimento no trapézio, de voos, tem uma semelhança com os movimentos de mudanças, grandes e pequenas, na vida: estou na plataforma, um lugar estável onde me sinto segura; grito para o portô [função de um acrobata que sustenta ou carrega outro] que estou pronta; ele diz que está pronto; salto, segurando a barra, para executar o truque; o balanço deve ser forte e os movimentos executados no tempo certo; meu objetivo é passar para a mão do portô. Vai ter um momento em que eu vou estar suspensa, não segurando a barra nem a mão do portô, vou estar no ar. Eu treinei o truque e sei o que estou fazendo, mas esses segundos de suspensão sempre dão um frio na barriga. Quando finalmente alcanço as mãos do portô, uma alegria toma conta do meu corpo e da minha mente, e sinto que consegui finalizar algo muito importante. Nas vezes em que eu não alcanço,vou para a rede de segurança. Desço e tomo o caminho de subida para começar tudo de novo. E nesses movimentos, me lembro de Mário Quintana: “Alegria é quando tem um circo dentro do coração da gente”.
Layana Peres de Castro é linguista e cientista social, mestre em políticas públicas de memória. Atua na programação do Sesc Avenida Paulista.