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Conhecimento Prรกtico

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EDITORIAL

O beijo da

MORTE Q

uem nunca flertou com a possibilidade do próprio fim? Angústia, medo, tristeza, paz ou felicidade, qual desses sentimentos tomou sua alma e por alguns instantes cessou todo o “sopro de vida” que até então conduziam seus dias? Real e inevitável, ela se faz presente e provoca em todos nós, por meio do insistente hábito que temos de contar o tempo, a necessidade de trilhar objetivos delineados não pelo desejo de viver, mas pela negação e fuga do beijo da morte dado na face dos justos e injustos sem o menor julgamento. Na reportagem de capa desta edição, o jornalista Marcelo Galli faz um panorama de como a filosofia trata a morte em suas diversas possibilidades. Suicídio ou fatalidade, Epicuro, Boff, Foucault, Nietzsche e muitos outros são evocados para traçar como a filosofia encara o último ato da peça que encenamos em vida. Durante a história, filósofos e poetas citaram a morte com extrema sabedoria ou de maneira inusitada, como Jean-Paul Sartre que disse "morte? não penso nisso", já Cícero achava que "filosofar é aprender a morrer" e ainda acrescentou "o medo da morte é o que define a vida humana neste canto do planeta, no momento presente”. Um exercício interessante ou não, aprofunde seus conhecimentos sobre esse difícil tema e leia diversos artigos e matérias com o melhor que um debate intelectual sério e balizado com ótimas referências pode oferecer. Boa leitura!

Os editores

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% CARTAS $

www.fullcase.com.br | (11) 5081 6965 filosofia@fullcase.com.br Editores: Edgar Melo – MTB 47.499 Karina Alméri – MTB 45.403 Diretor de arte: Angel Fragallo Reportagem: Marcelo Galli Revisão: Cristiane Garcia Fotos: Maurício Barroso Diagramação: Gilberto Duobles, Samuel Moreno e Rodrigo R. Matias Colaboradores: Antônio Joaquim Severino, Bianca Marques Póvoa, Daniel Rodrigues Aurélio, Guerreiro Parmezam, Isabella Meneses, José Fernandes P. Júnior, José Valmir Dantas de Andrade, Samir Thomaz

!

As matérias, os artigos e as colunas aqui publicadas são de responsabilidade de seus respectivos autores; suas opiniões não refletem necessariamente as da editora e seus editores.

@ [ NOVAS NECESSIDADES ] Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma resolução aprovando a inclusão de cinco novas matérias na grade de estudos para o ingresso na carreira de juiz (Magistratura) e, uma dessas matérias é a Filosofia do Direito, que tem como escopo abordar temas relevantes como justiça, propriedade, liberdade, igualdade e a função do direito na sociedade. Neste diapasão, fica a indagação, até que ponto este ramo do direito pode ajudar no desenrolar das celeumas jurídicas e nas relações da sociedade e do judiciário? Um tema atual que poderia ser abordado com mais clareza para os leitores da Filosofia.” Karina da Cruz, advogada, Taubaté – SP

[ GRANDE NOME ] eonardo Boff, filósofo de peso e que está fixado no cenário nacional e mundial como uns dos grandes filósofos do final do século 20, merece ser abordado como tema nesta revista especializada, pois já levantou assuntos polêmicos em suas teses como o livro “Igreja: Carisma e Poder” (1984), que lhe rendeu um processo

pela Sagrada Congregação para a defesa da Fé, dentre inúmeras outras teses que mudaram a concepção em diversas áreas da filosofia com a autoria de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Ecologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.” Henrique M. de Souza, estudante de jornalismo, São Paulo – SP

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Entre em contato com a gente. Envie suas críticas e sugestões para filosofia@fullcase.com.br

DIREÇÃO COMERCIAL Fabyana Desidério CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR BRASIL: (011) 3855-2175 atendimento@escalaeducacional.com.br ASSESSORIA DE IMPRENSA Iara Filardi Tel.: (11) 3855-2201 (ramal 392) iara.filardi@escalaeducacional.com.br Av. Profª Ida Kolb, 551 – Casa Verde CEP 02518-000 – São Paulo/SP Tel.: (11) 3855-2201 Fax: (11) 3855-2189 Edição nº 17, ISSN 977-1808-8961-17 Distribuição com exclusividade para todo o Brasil, Fernando Chinaglia Distribuidora S.A. Rua Teodoro da Silva, 907 – (21) 3879-7766. Números anteriores podem ser solicitados ao seu jornaleiro ou na Central de Atendimento ao Leitor (11) 3855-2175 ou pelo site www.escalaeducacional.com.br ao preço do último número, acrescido dos custos de postagem. Disk Banca: Sr. jornaleiro, a distribuidora Fernando Chinaglia atenderá os pedidos de números anteriores enquanto houver estoque. IMPRESSÃO Oceano Ind. Gráfica (11) 4446-7000

FILOSOFIA

IMPRESSÃO E ACABAMENTO Oceano Indústria Gráfica Ltda.

Queremos ouvir sua opinião. Mande sua mensagem com críticas, comentários e sugestões sobre a revista. Por questão de espaço e clareza, nos reservamos o direito de publicar resumos das cartas enviadas.

Nós temos uma ótima impressão do futuro

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[ HOMEM MÁQUINA ] ntes de iniciar meu pedido a esta ilustre revista, gostaria de parabenizar o trabalho realizado, pois nos tempos modernos encontramos dificuldades em assimilar a evolução tecnológica ocorrida no final do século XX e início do século XXI, e a filosofia é a ciência que busca entender esta estreita relação entre o homem e a máquina. Neste gancho, me sinto na liberdade, como leitora, de sugerir uma ampla reportagem que fale acerca do impacto da robótica nas relações humanas na visão filosófica, pois existem estudos científicos que afirmam que até a metade do século XXI os robôs serão capazes de se aproximarem da inteligência humana, o que é um dado alarmante sobre como as relações humanas serão travadas daqui pra frente. ” Regina T. Salgado, estudante de sociologia, Rio de Janeiro – RJ

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Ensaio Vilão do cotidiano de inúmeras pessoas que vivem nas grandes cidades em todo o mundo, o “tempo” é decodificado pelo professor Guerreiro Parmezam em um artigo inédito.

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Análise A globalização trouxe à tona ideais presentes nos primórdios da idade moderna, mesmo com intermitentes crises, uma proposta de ligação universal entre os indivíduos resiste fortemente.

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Capa Filósofos desenham a relação humana com o imprescindível fim e mostram como o sentimento envolto pela questão da morte move ou deturpa a existência do homem.

Grosso Modo Acompanhe e entenda o impasse entre a filosofia e a psicanálise, já que uma pretende esclarecer o homem pela razão e consciência de seus atos e a outra caminha via o desejo e a irracionalidade.

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! Esta edição segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

06 Entrevista | Paulo Henrique Fernandes Silveira

20 Artigo | Popcorn na caverna de Platão

60 Filosofoteca

10 Almanaque

22 Em Debate | Eles querem mais. Muito mais

64 Ideias | O sofrimento dos filósofos

14 Ponto de Vista | Crítica de Sartre ao culto à dor

48 Outro Enfoque | Antonio Gramsci em foco

66 Retratos | Antônio Joaquim Severino

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Lápis, papel e muito debate

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esde o momento que o ensino da filosofia passou a fazer parte da vida dos jovens estudantes brasileiros, o panorama atual das salas de aula espalhadas pelo País mudou e abriu novas possibilidades para professores. || por Karina Alméri e Edgar Melo

É comum encontrarmos professores, pedagogos e especialistas das diversas áreas do ensino criticarem a falta de percepção e senso crítico dos alunos que têm no ensino público sua única fonte para contextualizar a realidade de seu cotidiano. Retiradas do currículo obrigatório do ensino médio durante o regime militar (1964-1985) e substituídas por educação moral e cívica e OSPB, a sociologia e a filosofia voltaram com força total. Agora, Platão, Nietzsche e Bobbio dividem espaço com as matérias e temas convencionais e com as novas mídias sociais e aparelhos eletrônicos que fazem a cabeça dos jovens. Para falar dessa evolução e, principalmente, do impacto da filosofia na vida dos alunos de ensino médio escalamos o doutor em Filosofia Antiga pela USP, professor e orientador do programa de mestrado da Universidade São Judas Tadeu e da Escola Nacional Florestan Fernandes, ex-professor do ensino Fundamental e Médio da Escola Carandá, Paulo Henrique Fernandes Silveira.

Nesta entrevista, o professor é enfático em lembrar Epicuro: “nunca é cedo demais, nem nunca é tarde demais para filosofar”. LEIA A SEGUIR OS PRINCIPAIS TRECHOS DA ENTREVISTA: CONHECIMENTO PRÁTICO FILOSOFIA y Do ponto de vista filosófico, o que é educação? Paulo Henrique Fernandes Silveira z Não há “um único” ponto de vista filosófico. Felizmente, como analisa Olgária Matos a no livro “Filosofia – a polifonia da razão, filosofia e educação”, a diversidade de discursos e de vozes é uma característica da filosofia ocidental. Mesmo entre os antigos, havia muitas maneiras de se pensar a educação ou a formação das pessoas, o que os gregos chamam de paideia. No clássico: Paideia – a formação do homem grego, Werner Jaeger mostra como, nas diversas concepções do termo, a paideia expressa um ininterrupto processo de transformação do

a Olgária Matos

Professora de Filosofia Política do Departamento de Filosofia da FFLCHUSP e autora, entre outros, de “Os Arcanos do Inteiramente Outro: A Escola de Frankfurt, a Melancolia e a Revolução” (Brasiliense). O livro citado pelo entrevistado “Filosofia – a polifonia da razão, filosofia e educação” enfatiza que o propósito da filosofia tem muito a ver com a educação, pois são ambas as formadoras do ser humano. Enfrentam as mesmas indagações. Propõem respostas para os enigmas da vida e da história. Assim, sem a filosofia, talvez a educação não tivesse sentido. Conhecimento Prático

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Não me lembro se aprendi isso com Olgária Matos ou com Marilena Chauí, mas a paideia relacionase com o brincar, em grego: paizō.

Maurício Barroso

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homem. Para os gregos, a educação estava ligada às ideias de liberdade e de felicidade. A alegoria da caverna, livro VII da República de Platão a, ilustra esse movimento de libertação dos hábitos e dos preconceitos arraigados na sociedade.

a República de Platão

O mais reconhecido e famigerado dos trabalhos que Platão escreveu lançou as bases da cultura ocidental. A República é uma das obras obrigatórias e lembrada como determinante para a formação dos novos filósofos. Por mais de dois mil anos, tem sido a pedra angular da reflexão política e filosófica do homem.

CP FILOSOFIA y Em que a filosofia pode contribuir para formação dos alunos? Paulo Henrique Fernandes Silveira z Na obra “Fedro”, Platão sugere a necessidade de uma certa ousadia do aluno. Afinal, se a filosofia nos ensina a pensar por conta própria, até o mestre deve ser “traído” em algum momento. Não me lembro se aprendi isso com Olgária Matos ou com Marilena Chauí, mas a paideia relaciona-se com o brincar, em grego: paizō. A brincadeira é uma forma de aprendermos a trocar de papel com aqueles que admiramos, até passarmos a pensar sozinhos. Ao comentar o livro de Jaeger, o filósofo Martin Heidegger acrescenta que a paideia é um exercício de amor à humanidade, como se de tanto atravessarmos os caminhos pensados pelos outros, aprendêssemos a entender aqueles que escolhemos e os que não escolhemos seguir.

CP FILOSOFIA y Qual o objetivo do ensino de filosofia para crianças? Paulo Henrique Fernandes Silveira z Nunca é cedo demais, nem nunca é tarde demais para filosofar, diz Epicuro, como nunca é cedo ou tarde para procurarmos a felicidade. Alguns textos de filosofia não são leituras indicadas para um garoto ou uma garota de colégio, bastam os clássicos da literatura que o vestibular os obrigam a ler. Preocupado com essa questão, o americano Matthew Lipman idealizou um interessante método pedagógico, em muitos pontos, como defende o professor da Unicamp René Silveira, semelhante ao de Paulo Freire. Segundo Lipman, o objetivo do ensino de filosofia para crianças é instigar a reflexão e o diálogo entre os alunos. Para tanto, não é preciso ler a “Crítica da Razão Pura” de Kant ou as “Meditações Metafísicas” de Descartes. CP FILOSOFIA y Até onde podemos caminhar com a filosofia e as crianças em uma escola? Paulo Henrique Fernandes Silveira z Pode-se discutir com os alunos uma notícia de jornal que instigue o diálogo sobre os limites da razão ou a abrangência da

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a Bronx

dúvida. A sala de aula se transformaria em uma “comunidade de investigação”, onde o mestre não é o porta-voz do conhecimento, mas o articulador do debate. A ideia original de Lipman é que a capacidade de dialogar, ou seja, de saber ouvir e de expressar as ideias, é uma ferramenta fundamental para a filosofia. Por outro lado, se bem me lembro das aulas do professor Celso Favareto, na Faculdade de Educação da USP, há um grande risco de que o método de Lipman possa criar uma imagem simplista da filosofia, e que convide todos a serem filósofos, sem passar pela árdua tarefa de ler e de compreender as complexas teorias filosóficas. Mais ou menos como os jovens alunos que adoram rabiscar versos poéticos, mas não se interessam muito por Drummond ou Bandeira. De todo modo, retomando a tese de Olgária Matos, que Celso Favareto coloca em prática em suas aulas, a proposta de Lipman insere-se na polifonia filosófica e indica uma alternativa para um problema sério: a dificuldade cada vez maior que as pessoas têm em ser tolerantes umas com as outras e de reconhecerem a importância e o prazer do diálogo.

CP FILOSOFIA y Como você vê um aluno que não aprendeu a refletir? Paulo Henrique Fernandes Silveira z A pessoa que não enfrenta a paideia, diria Platão, fica presa ao cárcere da mediocridade. Numa versão dos gibis de Maurício de Souza, o homem da caverna passa o tempo vendo TV e comentando sobre a vida alheia. Além de ter uma vida besta, aquele que não sabe brincar de mudar de papel se coloca como senhor absoluto de todos os julgamentos, um tirano dos outros e de si mesmo. Estimulando o diálogo e a reflexão, a escola contribui para uma formação mais humanista.

Bairro de Nova York conhecido por ter sido o lugar onde nasceu o hip hop e a salsa. Nos primeiros anos do século 20, abrigou os mais diversos imigrantes como irlandeses, alemães, italianos e judeus do Leste Europeu. Todos procuravam aluguel barato e oportunidade. Durante os anos de 1970 foi marcado pela violência e conflitos étnicos e raciais.

CP FILOSOFIA y Quais danos intelectuais isso pode gerar para um estudante? Paulo Henrique Fernandes Silveira z Talvez esse aluno não se transforme em um bem sucedido homem de negócios. Mas certamente ele tem grandes chances de se fazer um adulto criativo e inquieto, sempre buscando desafios, como Lipman, que abdicou de uma posição importante na Universidade de Columbia para ensinar crianças da periferia do Bronx aa pensar e a dialogar.  Conhecimento Prático

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ALMANAQUE

O que é?

Filosofia Clínica

De acordo com a Associação Paulista de Filosofia Clínica (Apafic), trata-se de uma terapia fundamentada em métodos filosóficos, partindo das questões, da história e do modo de vida de quem a procura, para juntos construírem conceitos e encontrarem caminhos que auxiliem a lidar com as dúvidas.

www.filosofiaclinica.com.br Site oficial do Instituto Packter

Conheça alguns links que

www.appa.edu Site da American Philosophical Practitioners Association

podem te ajudar a entrar nesse universo:

www.apafic.com.br Site da Associação Paulista de Filosofia Clínica www.abafic.com.br Site da Associação Baiana de Filosofia Clínica www.aficmg.com Site da Associação Mineira de Filosofia Clínica

O retorno! Para entender mais

Carro-chefe fico está de volta. só lo Fi fé Ca o os m O fa ento promove CPFL Cultura, o ev ios e angúsda ão aç m ra og pr da anse jetivo de debater os encontros com o ob sociedade contemporânea, tendo na tias dos indivíduos icas fundamentais a psicanálise e a ór te s cia ên fer re analmente em como s são realizados sem ba, Santos, ro nt co en s O a. fi so roca filo pinas, São Paulo, So Caxias do Sul, Cam o. As gravações de alguns dos enet Bauru e Ribeirão Pr séries de programas que vão ao ar a em ig or o dã s TVs educativas contro São Paulo, e outras de documende , ra ltu Cu TV la o pe subsidiar a realizaçã pelo Brasil, além de os audiovisuais. ut tários e outros prod , acesse e a programação Informações sobr ltura.com.br www.cpflcu

FRASES

MITOS

Uma das histórias que cercam o filósofo Diógenes é que ele teria sido feito prisioneiro por piratas. Comprado como escravo, seu dono teria ficado tão impressionado com a inteligência de Diógenes que confiou a ele a administração de seus bens e a educação de seus filhos. Outra lenda diz que Diógenes teria morrido no mesmo dia em que Alexandre, O Grande, morreu na Babilônia.

ZAP

REDE FECHADA

Não há fatos, só interpretações.

CABEÇA ABERTA

Nietzche

Uma vida não questionada não merece ser vivida.”

Platão

Confira no Canal Brasil o programa Zoombido. Toda semana, o cantor e compositor Paulinho Moska recebe personalidades da música brasileira para desvendar, entre acordes e canções, o misterioso universo da criação musical.

5 CURIOSIDADES

MARX NA CABEÇA morreu em Londres, mais

precisamente em 14 de março

de 1883.

Marx contou com grande ajuda financeira de seu amigo Engels.

Mesmo tendo estudado na

Universidade de Berlin, Marx não gostava da

cidade.

Somente 3 dos 6 filhos que Marx teve com sua esposa Jenny

sobreviveram.

Descendente de rabinos, a

mãe de Marx se chamava Enriqueta Pressburg.

Divulgação

Karl Marx

COLABORE COM ESTA SEÇÃO: envie suas curiosidades ou dúvidas ligadas à Filosofia. Escreva para filosofia@fullcase.com.br

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CONHECIMEN

BIOGRAFIA

IA? as VOCÊs dasSesAcoB las socrátic

PITÁGORAS

o: São fundadore conhecidas sã quais as mais as d s, re 69); o -3 en 49 m ides (4 ndada por Eucl fu a, ar eg M de .c. 445); » A escola r Antístenes (n po a ad nd fu , ca » A escola cíni ica ou hedonista, fundada por » A escola cirena ipo (n.c. 425); Arist

Importante matemático e filósofo grego, Pitágoras nasceu no ano de 570 a.C. na ilha de Samos, na região da Ásia Menor (Magna Grécia). Marcada por lendas e mistérios, sua história é rica em acontecimentos. Basicamente, sua influência científica e filosófica veio por meio dos filósofos gregos Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes.

»7

HISTÓRIA

PENSAMENTOS:

• Todas as coisas são números.

• Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e tudo fazer bem.

• Aquele que fala semeia; aquele que escuta recolhe. • A melhor maneira que o homem dispõe para se • Não é livre quem não aperfeiçoar, é aproximarconsegue ter domínio se de Deus. sobre si. • Educai as crianças e não será preciso punir os homens.

» LONGEVIDADE

• Ajuda teus semelhantes a levantar a carga, mas não a carregues.

¦

A morte dos filósofos

• Sêneca morreu com 71 anos. • Demócrito atingiu o recorde de 109 anos. • Pitágoras, Solon e Platão viveram até os 80 anos.

+ INFORMAÇÃO

Divulgação

ORIGEM

TO

As cartas de Sêneca ao seu discípulo Lucílio,, redigidas em meados do primeiro século d.C. são uma síntese dos ideais do pensador, influenciado pela escola estóica, e refletem sobre as contradições da condição humana, relevando questionamentos universais que acompanham a sociedade até os tempos atuais. As cartas de Sêneca situam-se na tradição do gênero epistolar, distinguem-se das cartas comuns pela aproximação com a crônica histórica.

PARA LEMBRAR O escritor francês Michel Eyquem de Montaigne (15331592) é considerado o inventor do gênero literário ensaio – um texto breve, entre o poético e o didático, menos formal que o tratado, que expõe ideias, críticas e reflexões morais e filosóficas a respeito de determinado tema.

+ INFORMAÇÃO

PASSANDO A LIMPO

O argelino Albert Camus (1913-1960), ganhador do Nobel de Literatura de 1957, era um entusiasta do futebol, tanto que foi goleiro da seleção universitária, onde se graduou em filosofia. Em visita ao Brasil em 1949, uma das primeiras coisas que fez foi pedir aos seus anfitriões que o levassem para assistir a uma partida de futebol, tão impressionado que ficou com o amor pelo esporte que percebeu no País. Camus teve de desistir do futebol ao se descobrir tuberculoso, doença que o atormentou durante o resto de sua vida, mas que não o matou — Camus morreu num acidente de automóvel, na França.

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Crítica de Sartre ao

culto à dor Filósofo avalia a histórica condição humana diante da imposição da sociedade em enaltecer a morte contrapondo com o sentimento de vida em suas diversas relações de prazer e apelos morais que tratam o indivíduo como objetivo. || por José Valmir Dantas de Andrade

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O homem traz em si a santidade e o pe cado Lutando no seu íntimo Sem que nenhum dos dois prevaleça O homem tolo se põe a lutar por um lad o Até perceber Que golpeia e sente a dor Ele é o alvo da própria violência Só então vê Que às vezes o covarde é o que não mata Que às vezes é o infiel que não trai Às vezes benfeitor é quem maltrata Nen huma doutrina mais me satisfaz Nen huma mais. (Bi Ribeiro e Herbert Vianna)

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E

ntre a dor e o sofrimento e a vida como uma construção artística, prazerosa e felicitante, aqueles levam uma larga vantagem sobre esta. Tendo como referência o pensamento de Jean-Paul Sartre a é certo afirmar que o homem é movido por dois tipos de ek-stases: o ek-stase que nos joga no ser-Em-si e o que nos engaja no não ser. O ocidente desenvolveu a teologia sacrifical da negação da vida em suas dimensões físicas e ontológicas, há um ek-stase em sacrificar, depois cultuar aquilo que sacrificamos. É a teoria da culpabilidade, típica ao masoquismo a e ao sadismo a. É incrível como a dor provoca fascínio no ser humano. Há mesmo, um verdadeiro êxtase à dor e ao sofrimento/ sacrifício. Vivemos em uma sociedade necrófila, ciclotímica e que prescinde à liberdade. Nesta sociedade, na qual há dor e vilania, há audiência nos programas e tramas televisivas. É lugar comum você ouvir uma pessoa alienada se julgando culpada, e, ai de quem não assim se sentir! É uma sociedade de sadismo e masoquismo.

a Jean-Paul Sartre

Divulgação Antônio Scarpinett

Sartre dialoga com a teoria crítica na medida em que se coloca como pensador da cultura ao longo dos turbulentos anos 1960. O filósofo e escritor francês, nascido em 1905 e falecido em 1980, tornou-se uma espécie de entidade no que se refere à reflexão intelectual do período marcado por críticas à indústria da cultura, assim como em sua análise do culto à dor pregado pela sociedade, assim acabou gerando uma geração de filósofos altamente influenciados por seu trabalho.

a Masoquismo

O escritor Leopold von Sacher-Masoch, que nasceu em 1836 na região do leste europeu, ganhou notoriedade por relatar em suas obras, por meio de diversos personagens, como era possível obter prazer mesmo sendo agredido e subjugado. O próprio termo masoquismo vem do sobrenome Masoch. Foi no livro Psychopathia Sexualis (publicado em 1886) que o doutor Richard von Krafft-Ebing criou o termo masoquismo para designar o que ele definiu como perversão sexual.

FAsCínIo Sartre afirma em seu tratado de Fenomenologia Ontológica, O Ser e o Nada que “o masoquismo, tal como o sadismo, é assunção da culpabilidade. Sou culpado, com efeito, pelo simples fato de que sou objeto. Culpado frente a mim mesmo, posto que consinto em minha alienação absoluta; culpado frente ao outro, pois dou-lhe a ocasião de ser culpado, ou seja, de abortar a minha liberdade enquanto tal. O masoquismo é uma tentativa, não de fascinar o outro por minha objetividade, mas de fazer com que eu mesmo me fascine por minha objetividade para o outro, ou seja, fazer com que eu me constitua como um objeto pelo outro, de tal modo que apreenda não teticamente minha subjetividade como um nada, em presença do Em-si que represento aos olhos do outro. O masoquismo caracteriza-se como uma espécie de vertigem: não a vertigem ante o princípio da rocha e terra, mas frente ao abismo da subjetividade do outro.” O masoquismo é, portanto, um princípio do fracasso. A tese central de Sartre sobre o masoquismo é a de que é um culto ao fracasso, um

vício, uma alienação. O sujeito alienado abre mão da sua subjetividade, e torna-se um ser simpático à opressão e ao opressor. Por exemplo: o papa é uma figura que vive de braços dados com o capitalismo que leva mais de um bilhão de pessoas a viverem na mais completa penúria em todo o mundo, mas a figura religiosa desse homem é idolatratada, justamente por estas vítimas, os pobres da África e da América Latina, justamente onde se encontra o maior contingente de miseráveis. O princípio da alienação, do não ser, não se desenvolveria em uma sociedade sem duas coisas básicas: o consentimento à minha alienação e a objetificação do outro. Em suma: a manipulação do ser humano e sua subjetividade num processo de niilismo. Outro objeto de análise para mensurar o comportamento do homem, usado por Sartre, é o sadismo, uma forma de infiltrar a minha dor no outro. prAZer e ÓdIo O sadismo é, partindo deste pressuposto, um patos, uma patologia. Não foi por um acaso que durante anos, e, quiçá ainda hoje, os masoquistas eram canonizados pela Igreja Católica. Sartre (495) o define da seguinte forma: “O sadismo é uma paixão, secura e obstinação. É obstinação porque é um estado de um Para-si que se capta como comprometido e persiste em seu compromisso sem ter clara consciência do objeto que se propôs nem lembrança precisa do valor que atribuiu a esse compromisso. É secura porque aparece quando o desejo foi esvaziado de sua turvação. O sádico recupera seu corpo enquanto totalidade sintética e centro de ação; recolocou-se na figura perpétua de sua própria faticidade; faz experiência de si mesmo frente ao outro enquanto pura transcendência; tem à turvação para si mesmo e considera-a um estado humilhante; pode até ocorrer, simplesmente, que não consiga realizá-la em si mesmo. Na medida que obstina-se friamente é ao mesmo tempo obstinação e secura, o sádico é um apaixonado. Seu objetivo é, tal qual o desejo, captar e subjugar o outro, não somente enquanto Outro-objeto, mas enquanto pura transcendência encarnada. Mas, no sadismo, a ênfase é dada à apropriação instrumental do Outro-encarnado. Esse momento do sadismo

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a Sadismo

O escritor francês do século 19 Marquês de Sade originou e promoveu a expressão “sadismo” para o todo o mundo. Por meio de seus livros, entre eles, “A Filosofia na Alcova”, Sade relatou as mais diversas perversões sexuais humanas baseadas no ato de provocar a dor e a humilhação no outro. De acordo com especialistas, o foco parafílico do sadismo sexual envolve apenas atos reais. Com início na vida adulta, as fantasias sádicas também podem surgir na infância.

na sexualidade, com efeito, é aquele em que o Para-si encarnado transcende sua encarnação a fim de apropriar-se da encarnação do Outro. Assim, o sadismo é a negação do ser encarnado e fuga de toda faticidade, e, ao mesmo tempo, empenho para apoderar-se da faticidade do outro. (...) O sadismo é um esforço para encarnar o outro pela violência, e esta encarnação “à força” já deve ser apropriação do outro.” As citações de Sartre foram longas, pelo simples objetivo de fazer uma contextualização do culto à dor, à opressão e à antivida cultivadas no Ocidente cristão. Somos frutos de uma filosofia grego-socrática que prescindia dos prazeres em prol da razão e, paralela à esta, a filosofia epicurista a do culto ao prazer e à vida; somos filhos da moral judaica, do culto ao sacrifício e, da moral romana com o culto ao prazer; do lado grego o deus prazer é Dionísio, do lado romano é Baco. O judaís-

mo acabou por ter mais influencia no nosso meio, pelo menos é o que afirma Nietzsche a. Prova disso é o que a mídia faz na semana da páscoa católica. a Filosofia Epicurista

Apenas objetos Ao assistir os noticiários da televisão na quinta e sexta-feira santa, percebi que, todos os telejornais praticamente destinaram todas as suas pautas a veicular o sacrifício cristão. O culto à dor e ao sofrimento foi a temática monopolizante das emissoras. A TV Brasil, no seu telejornal noturno, o Repórter Brasil, dedicou a edição de sexta-feira, 10 de abril deste ano, quase que exclusivamente às encenações de sacrifícios. A figura de um homem ensanguentado era exibida como instrumento de deleite. Havia lugares onde as pessoas praticavam o silício, uma prática medieval de autoflagelo; neste tipo de autoflagelo, algumas pesso-

Formada a partir do pensamento de Epicuro, filósofo grego nascido cerca de 300 anos a.C., esta Escola de pensamento foi muito além da investigação filosófica, já que promovia debates em torno da vida em comum, alicerçados no desenvolvimento da amizade e da virtude. Hermarco de Mitilene é seu sucessor direto, Metrodoro e Timócrates de Lâmpsaco foram seus principais discípulos. Uma das principais correntes da Escola era colocar a ética no cento de suas atividades.

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a Nietzsche

O filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844. Apaixonado por música foi professor universitário, carreira que começou a ser arruinada após a publicação de seu primeiro livro “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música” (1872). Anos depois começaria a publicar as obras que fariam dele um mito, entre eles, “Humano, Demasiado Humano”, “Assim Falou Zaratustra” e “O Anticristo”. Nietzsche morreu em 1900, após viver 11 anos avassaladores de loucura.

a Schopenhauer

Pertencente a corrente irracionalista, Arthur Schopenhauer foi um filósofo alemão do século 19. Extremamente pessimista em relação ao processo de desenvolvimento do mundo, descreve o desejo, ou seja, a vontade como algo superior e básico entre as forças da natureza. Para ele, a vontade ilimitada agrega uma postura de insaciabilidade, o que poderia gerar muitos conflitos e sofrimento ao homem. Entre suas principais obras estão “Die Welt als Wille and Vorstellung” ou “O Mundo como vontade e representação” (1819) e “Parerga e Paraliponema” (1851).

as se chicoteiam, em um ritual que, segundo a crença, redime as pessoas dos pecados. E, na maioria das vezes, o que as pessoas chamam de pecado é o uso natural da sexualidade. Há, nisto, uma negação total da vida no seu sentido natural. Nas Filipinas, chega-se ao absurdo de sacrificar pessoas tal como Jesus foi crucificado. Tudo seria hilariante se de fato a nossa sociedade não fosse realmente uma sociedade antivida como ela é. Ali, infelizmente, o que há é uma teatralização da cultura sacrifical do nosso mundo objetificante. Em uma sociedade como essa, queimar um índio vivo é visto como normal, porque se está queimando um objeto; o ato bárbaro de arrastar uma criança pelas ruas da cidade despersonaliza e despersonalizante é visto, por quem assim o fez, como normal, afinal, encaram eles que estão arrastando um objeto. É uma ideologia da dominação e da alienação. É arte do culto ao nada, uma forma de resignação ao sistema que sacrifica milhões de vidas. Já não sabemos o que mata mais, se é o trânsito, a fome ou a guerra. É como afirma Schopenhauer a, a forma de resignar-me diante do meu sofrimento é vendo a dor do outro, porque há sofrimento no outro maior do que em mim. Na verdade é uma forma de levar a banalização e aceitação da provocação da dor. Existe a dor em mim, eu a transfiro para o outro. “É a arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê”.

Atraídos pela morte É incrível como o culto à dor atrai; como a mídia e até mesmo os veículos que são fervorosos defensores da secularização do Estado e da imprensa são atraídos pelo ápice da dor. Na semana em que a Igreja celebra a morte de Cristo, a frequência nos templos aumenta significativamente. Seria por que nós estamos vivendo em uma sociedade de morte ou por que o homem é naturalmente atraído pela dor e a morte? A Igreja tem um discurso em defesa da vida, mas é pura retórica. Se formos contar as vidas que essa instituição já ceifou por suas próprias mãos, serão milhões e milhões; se formos contar as vidas ceifadas com a sua conivência, seriam muitos milhões mais; e, quiçá a Igreja ainda continua ceifando vidas. Quando ela se intromete nas políticas de planejamento familiar, está é agindo contra a vida; só no Brasil, são mais 40 mil mortes por ano, de jovens que nascem e, somente iniciam suas vidas, são ceifados pela situação de desumanidade instalada no meio em que vivem. As pesquisas com células-tronco é uma esperança de vida e de melhores condições para milhões de pessoas, no entanto, a Igreja, uma instituição sádica e masoquista, tem se colocado contra essas pesquisas. É como diz Sartre, é uma forma de encarnar-se no outro e apropriar-se do outro para fazer este sofrer, só porque ela cultua a dor. n

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% ARTIGO $

Popcorn na caverna de

Platão O cinema é simplesmente um prosaico momento de prazer ou um momento de aprofundamento das questões humanas? por Samir Thomaz*

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“Log o vário e s t a ouvid lidos s s os no ão inter d a c a entre vern ior som d meado a, o mil s pelo mast ho sen igado do .”

A

cena era banal. Aliás, demasiada banal, resvalando para o prosaico. Mas desatou em mim uma enfiada de reflexões sobre a sociedade moderna que não pude evitar. A reflexão filosófica não escolhe hora nem lugar para se manifestar. Tampouco escolhe objeto. Basta o lampejo da percepção de algo que nos pareça fora do lugar, ou em contradição com alguma ordem lógica abstrata, no mundo ou em nós mesmos, para que nossos mecanismos sensoriais se mobilizem, alheios à nossa vontade. Eu estava no cinema, na semipenumbra que antecede o início de uma sessão. Dir-seia uma versão moderna da caverna de Platão, com seu teatro de sombras feito de pessoas procurando o melhor lugar para se sentar. Eis que entra um casal de namorados e se senta duas fileiras adiante. O ângulo perfeito para uma observação involuntária, uma vez que as poltronas são dispostas em acentuado declive. O rapaz segura um pacote de pipoca do tipo “jumbo” e um copo de refrigerante. Assim que se acomodam, passam a comer a pipoca e a compartilhar o canudinho do copo, provocando no ambiente os estalidos característicos do pacote sendo manuseado. A sessão está para começar. O teatro de sombras vai se tornando rarefeito de vultos em busca do melhor ângulo diante da tela. A pipoca, percebo agora, não é privilégio do ca-

sal que eu perscrutara há pouco. Logo vários estalidos são ouvidos no interior da caverna, entremeados pelo som do milho sendo mastigado. A antessala perfeita para o entretenimento, uma das facetas que o cinema assumiu no século XX. A julgar pela disposição do público, é de se esperar que o filme seja alguma comédia nonsense, do tipo “Se eu Fosse Você” ou algum blockbuster vertiginoso, no melhor estilo “Titanic” ou “Parque dos Dinossauros”. Mas também pode ser algo na linha “Sexta-feira 13”, ou “A hora do Espanto”. O filme era “Milk – A Voz da Liberdade”, do diretor Gus Van Sant a, com Sean Pean interpretando Harvey Milk, o ativista dos direitos civis dos homossexuais nos anos 1970, o primeiro gay a ser eleito para um cargo público no conservador Estado da Califórnia. A história, baseada em fatos reais, é barra muito pesada. Descreve a crua realidade dos gays daquela região, com seus conflitos existenciais e sua militância. Um drama que, de certo modo, ainda se arrasta pelos dias de hoje. Nada que recomendasse a festiva cacofonia das pipocas sendo mastigadas ou dos saquinhos sendo amassados, alguns deixados à sorrelfa no assento, enquanto os créditos finais deslizavam na tela. Saí do cinema conjecturando se aquilo era reflexão filosófica ou ranhetice da minha parte. Desconfio que não era ranhetice. n

a Gus Van Sant

Mesmo sendo a terra da grande indústria do cinema, o diretor de cinema em destaque é marcado por sua luta no mercado independente, já que com filmes bastante polêmicos que abordam temas com uso de drogas, prostituição e homossexualismo, Sant é figura destacada por transformar e debater de maneira concreta os principais dilemas da sociedade moderna. Alguns filmes de Gus Van Sant: • Elephant (2003) Direção • O Império (do Besteirol) Contra-Ataca (2001) Elenco • Psicose (Psycho, 1998) Direção • Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997)Direção • Kids (1995) Produtor executivo • Garotos de Programa (My Own Privarte Idaho, 1991) Direção e roteiro

* Samir Thomaz é jornalista, escritor e pós-graduando (Globalização e Cultura) na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp).

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Eles querem mais.

Muito mais “Eles” são os Y, os Yeppies, os Nets – e essas são apenas algumas nomenclaturas usadas para denominar a geração nascida entre, aproximadamente, o fim da década de 1970 e início dos anos 1990. por Isabella Meneses

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e você, leitor dessa revista, tem entre 18 e 30 anos, trabalha, ou pretende trabalhar em uma empresa, seja ela grande, média ou pequena, certamente será enquadrado em uma dessas “divisões”. Os departamentos de recursos humanos estão se esforçando para identificar quais os tipos de funcionários têm e quais querem ter. Tudo isso acontece porque o mercado parece ter mudado – e realmente mudou. As pessoas, os novos empregados não são mais os mesmos, e há necessidade de aprender a lidar com esses grupos recentes, que, ao longo dessa reportagem, terão suas características reveladas. Antes disso, é importante que se conheça os antecessores dessa nova geração. Tudo começa com os chamados baby boomers, homens e mulheres nascidos no período entre o pós 2ª Guerra Mundial e o início dos anos 1960. Depois deles, chega a Geração X, com indivíduos de até 1977 e, então, surgem essas pessoas que estão colocando profissionais experientes em relações humanas dentro das empresas para pensar: a chamada Geração Y ou Net. Divisões É possível ainda verificar a existência de subdivisões; de diferentes grupos que se formam por terem características semelhantes bem mais acentuadas, como é o caso dos Yuppies a (Young Urban Professionals), comuns aos anos 1980, e os Yeppies (Young Experimental Perfection Seekers) dos tempos atuais. Todos esses nomes diferentes podem fazer você se perguntar por que isso acontece. O professor e Doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, Thomaz Wood Jr. responde: há a necessidade de caracterização de “tipos ideais”. “Tipos ideais são idealizações construídas a partir do agrupamento de alguns traços. São similares a arquétipos”, explica ele. Os baby boomers estão mais acostumados ao trabalho árduo, sem mesmo ter férias; os X são adeptos a construírem uma estabilidade passo a passo, com certa qualidade de vida; e os Y tornaram-se famosos pelo oposto – a impaciência e a necessidade de conquistar tudo nesse exato momento. Querem escalar a montanha do sucesso com rapidez.

Essas características são consideradas básicas e, de certa forma, ilustram os grupos que as têm. Isso facilita “a compreensão das mudanças comportamentais de épocas diferentes. Elas [as nomenclaturas] servem como marcas no tempo, dividindo gerações em espaços”, considera o Mestre em Administração de Empresas pela University of Oklahoma, nos Estados Unidos, e também professor da FGV, Alexandre Freire, Para um dos professores do Programa de Mestrado em Ciências Contábeis na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ex-Chairman & CEO da Ernest & Young na América do Sul, Julio Sergio Cardozo, toda essa diferenciação é uma “constatação antropológica e como tal deve ser estudada”. É exatamente esse estudo que tem sido feito nos mais diversos departamentos de recursos humanos.

“Tipos ideais são idealizações construídas a partir do agrupamento de alguns traços. São similares a arquétipos.” Tradições e rivalidades Nessas pesquisas, tem-se descoberto que há uma boa dose de rivalidade entre os geralmente bem posicionados baby boomers, os funcionários mais estáveis geração X e os iniciantes Y. E essa “rixa” não deixa de ser algo de extrema naturalidade, já que tudo o que é novo causa certo incômodo no que é tradicional. Até mesmo a Rainha Francesa Maria Antonieta sofreu nas mãos da geração mais velha da corte ao permitir que homens e mulheres comessem juntos, como foi relatado na obra “Maria Antonieta. Biografia” a, escrita por Antonia Fraser (Ed. Record, 2006).

a Yuppies

Charlie Sheen ilustra bem o que é ser um Yuppie no filme “Wall Street – Poder e Cobiça”, de Oliver Stone (1987), um corretor trabalhando no mercado de ações, nos anos 80, com seu consumismo desenfreado e sem se importar com a ética para conseguir melhores negócios e mais dinheiro.

a “Maria Antonieta,

Biografia” O livro de Antonia Fraser traz belas imagens sobre a vida da Rainha que foi decapitada; conta também como a crueldade podia ser natural naquele período.

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“Pressa, impaciência e a luta pelo ganho rápido. A geração Y opera na velocidade da internet banda larga e é muito melhor preparada para viver em um mundo cada vez mais globalizado.”

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As características dos Y que mais incomodam seus “precursores” são a falta de comprometimento e iniciativa, e o excesso de confiança e mimo, que entre outras coisas faz com que percam um pouco das noções de hierarquia – dentro de uma empresa, certo atrevimento juvenil pode não soar como “gracinha”, como soaria em casa. Cardozo indica quais são as notáveis diferenças dessas gerações: “pressa, impaciência e a luta pelo ganho rápido. A geração Y opera na velocidade da Internet banda larga e é muito melhor preparada para viver em um mundo cada vez mais globalizado”. Freire pondera que as decisões tomadas por eles são mais rápidas, mas, muitas vezes, resolvidas sem que todas as variáveis tenham sido analisadas ou sem a posse de todas as informações necessárias. O medo da substituição e do desemprego é o centro do desentendimento entre gerações, afinal, os boomers estão aposentando-se e os Y, chegando com força total para competir com os X por melhores salários e posições. O filme “Em boa companhia” (In good company, 2004), de Paul Weitz, mostra exatamente essa situação com certa graça típica cinemática e sem descartar o drama inerente a esse acontecimento. O roteiro conta a história de um executivo de 51 anos, bem sucedido, vivido por Dennis Quaid, que vê seu cargo sendo tomado por um jovem publicitário de 26 anos (Thopher Grace), que toma atitudes completamente fora dos padrões anteriores com os seus brinquedinhos tecnológicos, os gadgets. Papai, me leva ao shopping? Mercadologicamente falando – tratando-se de consumo – todas as peculiaridades intrínsecas ao comportamento de um indivíduo Y são intensamente valiosas. Os Yeppies, filhos dos Yuppies, foram criados em bases estritamente consumistas e hoje buscam novas identidades e entregam-se totalmente ao não comprometimento, ao ponto de não haver fidelidade ideológica nem com aquilo que consomem. De seus pais – também consumidores ávidos, mas acostumados com o trabalho, com qualidade e luxo – herdaram essa sede, mas sempre tiveram tudo com facilidade e acabam por não dar valor a nada, alegando que não

sentem-se completos ou preenchidos. Se compram um livro, a leitura é superficial; se gostam de uma banda, é só até que outra apareça com algo mais empolgante; a moda é descartável; os aparelhos tecnológicos tornam-se obsoletos de semestre em semestre. Assim é a vida da maioria desses jovens, que realmente não veem como se apegar firmemente a qualquer coisa, já que o mercado sempre impõe novidades tentadoras, e nunca tiveram alguém que os ensinasse a resistir a elas, a não ceder. Em entrevista à revista Shopping Centers (2006), Luli Radfahrer, PhD em Comunicação Digital pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA – USP), explica que “a geração atual vive em um ambiente claramente pós-moderno, ou seja, fluido e fragmentado, em que, da moda à sexualidade, do trabalho à música, não há referência sólida para absolutamente nada. Mesmo assim, ela foi educada segundo valores do século passado, em que todas as coisas eram caracterizáveis, rotuláveis e classificáveis”. Apesar de tudo isso, a geração Y não é composta apenas de características negativas. A capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo dá respaldo às diversas funções que podem ser assumidas. A pressa pode ser tomada como agilidade e o recebimento de grande quantidade de informações substitui a total alienação de outras gerações. Outro ponto positivo está ligado à intimidade dos Y com as novas tecnologias. Don Tapscott, conhecido no mundo da gestão, é autor do livro “Growing up digital – the rise of the Net Generation” (Ed. McGraw-Hill), e em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, argumenta que “os jovens de hoje são a primeira geração a amadurecer na era digital”. Devido a isso, esses iniciantes no mercado de trabalho não temem os avanços tecnológicos, como fazem seus pais. Alexandre Freire exemplifica: “os boomers comunicavam-se através de cartas, participavam de torneios presenciais, pesquisaram pela [Enciclopédia] Barsa a e escreviam a mão seus resultados em um caderno”. Dentro das empresas, o setor de comunicação interna mostra bem essas discrepâncias. Enquanto os Y gostam e aprovam soluções virtuais, os X preferem uma simples conference

a [Enciclopédia] Barsa

O conjunto de livros foi lançado em 1964 como a primeira enciclopédia escrita na língua portuguesa. Hoje ela pertence à Ed. Planeta e, além dos livros, tem CDROM e site – www.barsa.com

a Plural e talvez caótico

“Plural, mas não caótico” é um texto do pensador Alfredo Bosi, publicado no livro “Cultura Brasileira”, de 1987. O texto trata da pluralidade harmoniosa da cultura brasileira e de seus povos, dada por sua colonização e por fatores externos.

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call e os baby boomers ainda são mais adeptos às reuniões pessoais, padrão esse indicado pelas, respectivamente, sócia e diretora da KPMG no Brasil na área de Assessoria em Gestão de Recursos Humanos, Patrícia Molino e Lorene Carvalho. Para que todos demonstrem bons rendimentos, as empresas precisam, em primeiro lugar, identificar, com urgência, como beneficiarem-se dos valores de cada geração. Depois, é necessário que se faça um trabalho de motivação com cada “grupo”, já que seus desejos são bem diferenciados, mas também é importante que se saiba que todos, sem exceções, querem sentir-se “fazendo a diferença”. Thomaz Wood aponta que, apesar de as tendências associadas ao surgimento dos Y serem interessantes, falta muito para entendê-las – “por ora me parecem que foram apenas percebidas”, atesta. Já Cardozo é um pouco mais radical e para ele as políticas utilizadas por profissionais de RH são “pasteurizadas”, eles ainda “desconhecem ou ignoram que existem mais de duas gerações convivendo no mesmo ambiente de trabalho”, contrapõe. Esse é um dos motivos do desperdício de talentos, o outro é a “miopia e arrogância dos executivos”, apunhala o Professor.

Plural e talvez caótico a Todos esses termos e caracterizações têm sempre que passar por análises profundas com a ciência de que nada pode ser generalizado. Por mais semelhantes que as pessoas possam parecer, todas têm qualidades muito particulares. Mesmo que os nomes, os signos aplicados, tenham seus valores, como reafirma Wood, nada pode ser visto como algo definitivo. Vive-se em uma sociedade plural (que, às vezes não deixa de ser caótica). Quando o ser humano está em pauta, não há verdades absolutas. Aqui “estamos falando de algo fluido, não de lotes de pessoas, como se fossem produzidas em bateladas e jogadas em ambientes homogêneos. Em suma, falar em geração X, Y ou Z é um reducionismo”, conclui o professor. Para as empresas, substituir a mão de obra afirmando, como a canção, que “daqui pra frente tudo vai ser diferente” pode ser um grande erro, já que por mais que se queira mudanças radicais, as tradições anteriores sempre tem a ensinar. As diferenças devem ser reconhecidas e ajustadas. Para lidar com elas basta um pouco mais de tolerância e menos hipocrisia, afinal, se você não tem entre 18 e 30 anos, já os teve; e se os tem, certamente um dia terá 50. n

“(...) estamos falando de algo fluido, não de lotes de pessoas, como se fossem produzidas em bateladas e jogadas em ambientes homogêneos.”

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bom fim Até a hora

do

Amedrontadora, mas motor da ação também, a morte pode ser o elemento para enfrentar a vida de maneira filosófica. || por Marcelo Galli

fado é a alma do português. A voz lamuriosa acompanhada das cordas da guitarra lusa cantam os encantos e desencantos da vida. De origem latina, a palavra que nomeia o gênero mais conhecido da terra de Cabral significa "destino" (fatum). O fim do homem seria, por assim dizer, a morte, a certeza única desde a hora da sua concepção, e foi um escritor português quem em romance exemplificou o que sua ausência talvez poderia provocar na dinâmica natural da vida. Em "As Intermitências da Morte" (Companhia das Letras, 2005), a morte simplesmente desiste de acabar com a vida no dia primeiro de um Ano Novo, esconde a foice e assiste ao espetáculo do teatro humano sem a cortina do ato final; uma legião de moribundos começa a habitar as cidades, o desespero de não ter um ponto final inquieta os sujeitos. "No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amos-

tra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio a levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada", escreve o ganhador do prêmio Nobel. cicLo FataL Apesar de ser uma realidade biológica, a morte foi interpretada a de várias maneiras ao longo da história humana, variando de cultura para cultura, de costumes ou tradições, tendo sempre em vista o valor que é atribuído à vida como seu contraponto, com direito até de ganhar uma personificação que data do período medieval na figura de uma caveira que com sua capa e foice assusta os homens, ou a ser chamada pelo poeta pernambucano Manuel Bandeira de a mais "indesejável das gentes". E não somente ela própria, mas situações do cotidiano que são simbolizadas como um final, ou encerramento de um ciclo ou etapa. Conhecimento Prático

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a Suicídio

No filme espanhol “Mar Adentro” (2004), dirigido pelo chileno Alejandro Amenábar, a eutanásia é colocada em debate. Até que ponto tem-se direito de pôr fim à nossa vida ou os sujeitos são senhores de si mesmos nesse aspecto? A legislação em muitos países, como na Espanha e no Brasil, criminaliza o chamado suicídio assistido. A película retrata a história real de Ramón Sampedro, que viveu tetraplégico por mais de 30 anos, e que com a ajuda da sua amiga, Ramona Maneiro, se mata em 1998.

a Interpretada

O mundo das artes se apropriou da morte como alegoria das suas criações. Uma obra célebre é a pintura “O triunfo da morte”, de Pieter Brueghel (o Velho), de 1562, exposta no Museu do Prado, em Madrid.

O teólogo e pensador brasileiro Leonardo Boff lembra que "o sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. E o sentido que damos à vida é o sentido que damos à morte. O sentido que damos à vida está ligado a uma totalidade maior que se chama cultura. Por isso há tantos sentidos de vida quantas culturas humanas existem". O filósofo José de Anchieta Corrêa, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de Minas Gerais (UFMG), lembra que a morte dos homens não era um tema que a disciplina se propunha a pensar nos seus primórdios. A guinada temática, porém, acontece em um momento de profundas transformações, e é durante o século XVIII, na França da Revolução Burguesa, que Montesquieu, em uma realidade laica e mundana após anos de dominação do pensamento religioso, reconhece que "filosofar é aprender a morrer". Mesmo assim, lembra Corrêa, no seu livro "Morte" (Editora Globo, 2008), “a filosofia ainda levará muito tempo para reconhecer a finitude e a mortalidade como os aspectos mais universais da condição humana”. Isso aconteceu porque por muito tempo a morte foi negada, principalmente na Filosofia Antiga, por expressar o vazio, o nada, pode-se assim dizer. Para Epicuro (341-270 a.C), o seu pensamento não suscita nos homens nem afeto ou sentimento (de dor ou prazer), sendo para o sábio um não objeto de interesse ou atenção. É célebre a frase dele, segundo a qual "quando a morte existe, nós não mais existimos".

Mudança de pensamento É no século XIX, na esteira das transformações provocadas pela Revolução Industrial, a saber, a urbanização e a primazia do avanço da tecnologia e da ciência como reguladoras do funcionamento das vidas e máquinas que se aglomeravam e ocupavam o espaço no interior das fábricas nas grandes cidades europeias, que o poder sobre a vida e a morte dos homens passa das mãos da religião para a sociedade secularizada. E também começa a ser vista de outra maneira pela intelectualidade. É o biopoder do qual Michel Foucault (1922-1984) fala em seus escritos, do controle do sujeito que a modernidade traz consigo. E o esforço desse poder de afastar cada vez mais da realidade humana a morte em um processo de higienização constante. E Nietzsche (1844-1900) é a expressão desse novo tempo, ou melhor, a sua antítese e crítica de uma renovada percepção da vida e dos valores daquele período, ou da tentativa de "transvalorizá-los", para usar um termo utilizado por ele mesmo. E relativiza a experiência na tentativa de fundar uma nova moral, que até então era dominada pelos valores cristãos, sendo a morte também ou o fim ressimbolizados na doutrina do "eterno retorno" e que implica um "sim" à vida como ela é. Uma das mais destacadas especialistas da obra do alemão, Scarlett Marton, no livro "A transvaloração dos valores" (Editora Moderna, 2006), explica essa nova concepção diante da

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a Vida dinâmica

vida que pulsa: "em vez de esperar que um poder transcendente justifique o mundo, o homem tem de dar sentido à própria vida; em vez de aguardar que venham redimi-lo, deve amar cada instante como ele é. E não há afirmação maior da existência que a afirmação de que tudo retorna sem cessar". A morte, grosso modo e lato sensu, vai ser sempre associada a um aspecto negativo, valorada como algo menor e que deve ser evitada a qualquer custo, não importando a situação. É a afirmação da infinitude de relacionamentos amorosos, por exemplo, ou da ingênua certeza da estabilidade do emprego. É a negação de que a vida é dinâmica a, de que as pessoas mudam, morrem e renascem, de que a vida é feita de fases, cada qual com a sua angústia e alegria. E que essas transformações são a essência da condição humana, a existência desnudada e pura diante do ponteiro do relógio

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que não cessa de caminhar até o próximo minuto, até a hora seguinte.

O teólogo Leonardo Boff explica que para os índios bororos do Mato Grosso a vida é soberana, mortos e vivos estão sempre juntos. As pessoas que morreram são consideradas apenas invisíveis. “Por isso morrer não é nenhuma desgraça. É só passagem para o outro lado da mesma vida”, disse. Por outro lado, para os ocidentais modernos, a vida é tudo e a morte é ruína.

Aceitação Na visão de Boff, morrer não é caminhar para um fim-limite, mas sim peregrinar para um fim-meta. "Nós não vivemos para morrer. Nós morremos para ressuscitar. Para viver

Morte e cultura A criação de um imaginário sobre a morte vai muito além da influência religiosa e combina elementos de vários aspectos da cultura, segundo Marcos Fleury de Oliveira, psicólogo e organizador do livro “Reflexões sobre a morte no Brasil” (Editora Paulus, 2005). Ele cita as diferenças entre dois países de forte tradição católica, como são o México e o Brasil. No País, pouco foi assimilado das tradições indígenas na principal corrente religiosa local. “Por aqui tememos a morte, as caveiras são símbolo de morte e tragédia”, explica. Em contraste, continua Fleury de Oliveira, no México a maior festa popular nacional é justamente o Dia de Muertos. “Por lá a tradição indígena é incomparavelmente marcante e bastante sincretizada com a tradição cristã”, acrescenta.

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a Imortalidade

No texto “O desespero humano”, Soren Kierkegaard argumenta que na linguagem humana a morte é o fim de tudo, sendo que enquanto houver vida haverá esperança. No entanto, o filósofo dinamarquês diz que, para o cristão, a morte não representa o “fim de tudo”, e nem sequer “um simples episódio perdido na realidade única que é vida eterna”. Para ele, segundo a concepção cristã, a morte implica infinitamente mais esperança do que a vida comporta, até mesmo quando saúde e força transbordam.

Sobrevivente O momento de sobreviver é o momento do poder. O horror ante a visão da morte desfaz-se em satisfação pelo fato de não se ser morto. Este jaz, ao passo que o sobrevivente permanece em pé. É, pois, como se anteriormente tivesse

mais e melhor", diz. Isto é, a morte, o fim, é, ao contrário do que se pode pensá-la ou lamentá-lo, é o nascimento de um novo homem, a perspectiva de mais vida. "Morrer assim é uma benção da vida. Não morrer é condenar-se a ter sede sem nunca poder encontrar a água borbulhante. Ter fome e jamais poder saciarse. Ser botão e nunca jamais poder desabrochar. Ser botão desabrochado e não poder, nunca mais, amadurecer, perfumar e alegrar todo o universo". No século XX, o fantasma de duas guerras mundiais e o horror do holocausto e das bombas atômicas, levaram o homem contemporâneo de volta para perto da morte. E levaramno a pensá-la, a refletir sobre sua influência na vida dos sujeitos. E opôs dois grandes filósofos, Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Martin Heidegger (1889-1976). Estudioso do tempo, sendo a sua mais célebre obra intitulada "O ser e o tempo", Heidegger acredita que é pela angústia da

havido uma luta, e o próprio sobrevivente houvesse abatido o morto. Em se tratando de sobreviver, todos são inimigos de todos; comparado a esse triunfo elementar, toda dor é pequena. Importante é, contudo, que o sobrevivente se defronte sozinho com o morto ou os mortos.

morte que o homem conhece sua verdade, isto é, tanto do seu próprio fim quanto do período que antecede o suspiro final, já que só o homem morre, os animais perecem ou acabam, pontua Corrêa, ao comentar a concepção sobre o fenômeno do filósofo alemão e precursor da corrente de pensamento conhecida como "Humanismo". De acordo com Heidegger, "desde que o homem nasce ele já está pronto, ou bastante velho, para morrer". Em um sentido amplo, lê Corrêa, no verdadeiro homem, no ser autêntico, não deve existir o desejo de imortalidade a, pois morrer é a possibilidade mais extrema do homem, seu modo próprio de ser-no-mundo. "É preciso, pois, parar de se esquivar diante da ideia de morte, cessar de fazer de conta que ela não existe e assumir tal ato corajosa e honestamente", escreve Corrêa. Em outras palavras, além de tirar da morte o valor negativo, o que Heidegger defende é a responsabilidade dos sujeitos diante da "velha

Ele se vê sozinho, sente-se sozinho, e, no que diz respeito ao poder que esse momento lhe confere, não é lícito esquecer jamais que tal poder deriva dessa sua unicidade, e somente dela. Todos os desígnios humanos com vistas à imortalidade contêm algo de ânsia de sobreviver.

Não se quer apenas existir para sempre: quer-se existir quando outros já não mais existirem. Cada um quer ser o mais velho e sabê-lo: e quando ele próprio não mais existir, hão de conhecer-lhe o nome. Trecho de “Massa e poder”, de Elias Canetti (Companhia das Letras, 2005)

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CAPA

Problema filosófico O suicídio pode ser uma opção, e o pensador francês Albert Camus defende no seu ensaio “O mito de Sísifo” que pôr ou não fim à própria existência é a questão filosófica mais importante para os sujeitos. Diante do absurdo do mundo, da vida e da condição humana, exemplificada no mito grego que leva para cima do monte uma pedra que depois desce morro abaixo eternamente, o homem se vê diante da escolha que pode acabar com o absurdo que pode ser a vida.

senhora" e o que aqueles fazem para tentar transpô-la em vida. Por outro lado, Sartre vai falar que a morte, longe de ser uma possibilidade, é a "negação das minhas possibilidades", um muro que antepõe o homem com o seu potencial de exercer a liberdade individual. No texto "O ser e o nada", diz o francês sobre esse 'muro': "a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido". Assim, lembra Sartre, tornamo-nos responsáveis por nossas mortes, tanto quanto pela vida. "Responsável, não pelo fenômeno empírico e contingente de meu trespasse, mas por esse caráter de finitude que faz com que minha vida, como minha morte, seja minha", acrescenta.

Panorama Em sociedades como a brasileira, que a violência, tão característica do seu cotidiano, nas cidades e campos, com relatos de assassinatos quase todos os dias, estes elementos provocam forte influência sobre a relação “vida” e “morte”. Segundo Marcos Fleury de Oliveira, psicólogo e organizador do livro "Reflexões sobre a morte no Brasil" (Editora Paulus, 2005), o fenômeno descrito é denominado de 'banalização da morte’. Na visão de Corrêa, a morte hoje não é mais que palavra ou notícia difundida nos meios de comunicação. "Todas essas mortes que acontecem todos os dias são mortes dos outros, no geral, anônimos desconhecidos". Prova da banalização, o filósofo ressalta que as imagens das mortes nas estradas, nas guerras (inclusive a do tráfico), entre outras, são intercaladas nos noticiários com resultados do futebol e "com informes do sem-número de escândalos na economia e na política, no governo e judiciário". Hoje, lembra Fleury de Oliveira, nem os médicos, considerados os "guardiães" da vida, não têm mais dimensão do que esta seja, e ainda menos propriamente da morte. “A vida é um bip e a morte é uma sirene, não vão muito além disso", explica. "Quando um paciente morre, o médico quer sair fora e se puder, chama o psiquiatra ou o psicólogo para conversar com a família", acrescenta. O avanço da medicina e dos aparatos tecnológicos e seu reflexo na melhora da qualida-

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a Elipse

de de vida e aumento da expectativa de vida das pessoas fez com que se criasse um certo mito de imortalidade, tendo em vista a morte estar cada vez mais distante da realidade do cidadão das grandes cidades industrializadas e conectadas à sociedade da informação. A morte, por outro lado, embora seja uma certeza, torna-se "acidente de percurso". Tendo em vista esse contexto, o psicólogo recorda de uma carpideira profissional que encontrou um bom mercado para trabalhar em São Paulo, ironicamente a cidade mais moderna e que carrega aparentemente menos traços de cultura tradicional do País. O trabalho dela, além de chorar em velório, "era explicar a morte de parentes para crianças pequenas, levar gente medrosa ao cemitério, limpar tumbas e, acredite, chamada para explicar para um namorado inconsolável que aquele amor 'morreu'". Todos contra todos Na concepção de Boff, a vida, analisada aqui em um sentido amplo, abarcando tudo o que dela é característica, não pode ser identificada como um círculo, mas sim uma elipse a. Por isso, o amor também pode perecer, e as amizades, embora ainda jogue entre os amigos seus laços, não encontram naqueles as mesmas pessoas do início do relacionamento. Isso ocorre porque o ser humano é uma totalidade inserida ecologicamente dentro de outra totalidade maior, que é o universo à nossa volta.

Os estóicos, explica Boff, atentavam para aquela realidade no lema "membra sumus corporis magni", que quer dizer que somos membros de um grande corpo. “Tudo ocorre dentro de um imenso processo de evolução. Nesse processo tudo vem regido pelo equilíbrio entre a vida e a morte. A morte não vem de fora. Ela se encontra instalada dentro de cada ser”, explica. Assim, a filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), em seu romance “Todos os homens são mortais”, de l946, demonstra o absurdo de uma vida mortal como a nossa ser imortalizada. E argumenta que esta condição seria um “inferno”. “Nada deste mundo satisfaz a estrutura do desejo que habita famintamente o ser humano insaciável”, acrescenta Boff. “De pouco valem os mil estratagemas de prolongamento da vida. Chega o momento em que, mesmo a pessoa mais velha do mundo, tem que morrer”, acrescenta o teólogo. Apesar da discussão de que a morte traria ao homem um esclarecimento da sua condição, e que esta teria um impacto de como ele viveria o período, não é a garantia de que sua vida seria digamos “bem vivida” e compartilhada de forma pacífica e mais igualitária em relação aos seus pares. A filósofa Márcia Tiburi, no seu “Filosofia em comum” (Editora Record, 2008), faz o seguinte questionamento acerca do tema. “Desde quando a mortalidade nos torna lúcidos? Ou ela nos torna cada vez mais irracionais e bárbaros em perpétua guerra de todos contra todos?” n

No “Último dia de um condenado à morte”, o francês Victor Hugo relata o cotidiano de um prisioneiro que espera pelo seu momento para subir no cadafalso, durante a monarquia dos Bourbon na França do século 19. E critica a pena de morte então vigente naquele regime. “Dizem que não é nada, que não se sente dor, que é um fim suave, que a morte assim é bastante simplificada. E esta agonia de seis semanas e este estertor de um dia inteiro”, reflete o condenado. No texto, Hugo lembra os leitores da condenação sem apelação de todos os homens, afinal somos todos condenados à morte.

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O tempo do tempo Uma das perguntas mais sinistras que recebo de meus alunos ou, pior ainda, de alguma pessoa próxima me deixa em pânico tamanha sua simplicidade em vivenciá-la e sua dificuldade em compreendê-la: o que é o tempo? || por professor Guerreiro Parmezam

O

simpático escritor Millôr Fernandes a um dia

definiu o tempo como uma das pouquíssimas coisas que todos (os seres vivos?) dividem por igual. Achei uma demonstração muito feliz de como classificá-lo. Mas independentemente da dificuldade em teorizálo, há ainda a questão de que a cada época o tentamos compreendê-lo de forma diferente. Percebemos nossa vida sob as coordenadas do tempo. Não seria exagero afirmar que todo produto da raça humana e — por que não? — de toda natureza nada mais é do que uma colagem de instantes por cima de instantes, sem necessariamente que se acumule nada, o que deixa o perfil da existência das coisas sempre com uma boa dose de incerteza. Nos nossos tempos Certa vez, o centenário antropólogo Claude

Lévi-Strauss a pôs em xeque a questão da

relação tempo/evolução e, por tabela, a noção ocidental de progresso. Realmente, nossas experiências acumuladas parecem se organizar de forma horizontal, se é que se organizam. De qualquer forma, nós, ocidentais, descrevemos a existência como parte de uma fração etária relacionada sempre a uma época e a uma cultura. “No meu tempo...” é a expressão prefixa de frase mais comum que ouvimos quando as pessoas falam de seu próprio passado. E é tão comum o passado das pessoas ser propositadamente mitificado… Ele é visto, frequentemente, como um momento de superação ou como o refúgio de uma felicidade efêmera. O futuro parece que deixou de ser o lugar natural onde habitam os sonhos. Tamanha ilusão temos sobre nossa relação pessoal com o tempo e a perspectiva da felicidade que buscamos, atualmente, tentar (somente tentar) adiar de qualquer forma o Conhecimento Prático

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a Millôr Fernandes

Considerado o “senhor das palavras”, o escritor e humorista também já foi roteirista, ilustrador, dramaturgo, compositor e ator. Nascido no Rio de Janeiro da década de 1920. Millôr começou a trabalhar na revista O Cruzeiro com apenas 13 anos. Escreveu mais de 50 livros, 15 peças e 100 traduções de dramas, tragédias e comédias.

futuro. Não seria pelos mistérios que o cercam e, sim, pelas certezas que ele agrega: a velhice, a morte dos entes queridos e a gradativa perda da capacidade de adaptação a um mundo que insiste em mudar. Atualmente, parece que não estamos totalmente em paz com o “nosso” tempo. Mas será que sempre foi assim? História viva O tempo, até a consagração do capitalismo no século XIX, era geminado às divindades. Essa relação entre as eras e os deuses, embora carnal, jamais significou um entendi-

mento comum entre o tempo e a história. Os gregos antigos, tão generosos nas concepções divinas, sempre expuseram a configuração de deuses diferentes para cada assunto: Cronos e Clio que, cá entre nós, até formariam um belo casal, estariam fadados a um conturbado divórcio titânico. Enquanto Cronos era frio, metódico e implacavelmente cruel, Clio era doce, caprichosa e imprevisível. Ah! Que bela metáfora! Nas sociedades ditas primitivas, mais comumente ligadas à pré-história, o tempo não correspondia a essa relação de instantes sobrepostos, de começo, meio e fim. A visão

a Claude Lévi-Strauss

Um dos mais nobres e respeitados pesquisadores da antropologia do século 20. No livro “Tristes Trópicos” (1955), o pensador registra diversos momentos do interior brasileiro de 1935 e 1939 e de muitos povos indígenas de boa parte da América do Sul. Lévi-Strauss avalia que o ser humano é basicamente uma espécie passageira que deixará poucos traços de sua história após sua extinção.

a Santíssima Trindade

É o termo que define as bases da doutrina Cristã em todo o mundo. Ela estabelece que “A Trindade” significa a unidade do Deus único, já que há Três “Pessoas” (Pai, Filho e o Espírito Santo) agindo. Estes são três figuras totalmente distintas uma da outra.

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que aqueles homens tinham de sua existência estava ligada a ciclos naturais e, portanto, a vida não era linear. Calendários — ainda não existentes — eram perfeitamente substituídos pela interação dos homens com as estações do ano e estas, nas culturas ágrafas, não possuíam uma relação de nascer e morrer e, sim, de revezamento. Portanto, o tempo era circular e imutavelmente congelado. Interessante deveria ser reviver a perspectiva de se relacionar com um tempo que não passa e, sim, assiste a tudo passar por ele. O tempo escatológico Além das cidades, da escrita e do Estado, certamente outro marco fundador do advento da civilização seria a noção de um tempo linear, embora bastante diferente do nosso. O tempo escatológico. Em evidente coerência com sistemas teocráticos, o tempo, desde as primeiras civilizações da história até o período medieval, era o habitat natural dos deuses. Afinal de contas, a única coisa que os cristãos fizeram, com rara eficiência similar na história, foi subtrair todas as divindades ocidentais para que se estabelecesse apenas uma: a Santíssima Trindade a. A partir da grande crise do século III do Império Romano, o tempo dos Homens passou a ser entendido do Gênesis ao Apocalipse. Não é à toa que o calendário medieval era todo dividido em dias santos e, vez ou outra, surgia um monge que atestava determinar qual seria realmente o sinal do Juízo Final. Assim, o Final dos Tempos fora declarado em eventos pontuais desde então: as invasões bárbaras, o Ano Mil, as Cruzadas e a Peste Negra. Hereges, muçulmanos e judeus, ou seja, subversivos da religião dominante, são os verdadeiros mártires do calendário ocidental, organizado definitivamente pelo Papa Gregório XIII, no último quartel do século XVI, e adotado pela maioria das nações atualmente. Não foi por acaso que nosso atual calendário foi formatado sob as luzes do Renascimento Cultural a. Não foi o primeiro, mas certamente foi o mais reluzente sinal de racionalidade de uma era que durou mil anos e foi caracterizada pelo po-

der umbilicado entre uma nobreza guerreira e uma nobreza religiosa fundamentalista. A afirmação do calendário gregoriano nada mais foi do que o resultado direto, surgido de um fenômeno anterior e profundamente interessante em virtude de seu potencial revolucionário na área cultural: a adoção do relógio mecânico nas cidades medievais, fato ocorrido a partir do século XIII. Tempo e produção A revitalização do comércio e das manufaturas urbanas no início da Baixa Idade Média fez brotar uma nova sociedade no caule das raízes estamentais do período. Desse processo, visto com cautela pela Igreja, nascem os sinais que promovem as primeiras relações de tempo/produção, embora substancialmente limitadas pelo perfil corporativo dos produtores e pelos valores coletivistas da época. Ainda assim, uma irresistível tendência. Durante o Racionalismo do século XVII, o Criador começa a ser separado dos fenômenos naturais. Newton e Descartes são os arquétipos dessa nova concepção. A física, por meio dos alicerces da matemática, fundamenta os fenômenos naturais de forma mecânica, precisa e se configura nos argumentos de uma divindade engenheira. Dessa forma, o tempo começou a se livrar dos grilhões de um ente superior, mas ainda assim não deixou de ser escatológico, pois o próprio Newton previu o fim do mundo. Foi somente no século XVIII, durante o Iluminismo a, que a ideia do Apocalipse pareceu dar seus primeiros sinais de erosão. Primeiro o tempo e agora, também, a história passaram a ser usurpados pelo Homem. Nobres e clérigos perderam, literalmente, a cabeça. Não é à toa que o calendário da Primeira República Francesa, surgida dentro de uma atmosfera revolucionária, laicizou profundamente o tempo. A primeira Revolução Industrial, ocorrida no último quartel também do século XVIII, determinou a moderna relação do famoso “time is money!”. O tempo agora passou a ser entendido pelo coeficiente de produção industrial. A vida das pessoas, principalmente a dos operários, passou a se

a Renascimento Cultural

Período entre os séculos XV e XVI em que a produção artística e científica na Europa estava em efervescência. A valorização da cultura greco-romana, a qualificação da inteligência, conhecimento e dom artístico do ser humano, além do homem ser colocado com centro dos interesses (antropocentrismo), em detrimento ao teocentrismo da Idade Média, são marcos do Renascimento.

a Iluminismo

Assista ao filme Danton – o processo da revolução (1982). Nessa obra clássica sobre a revolução francesa, você acompanhará o período do “terror”, quando a radicalização revolucionária dos jacobinos encabeçada por Robespierre inicia um violento processo político com expurgos, manipulação de julgamentos e uma rotina de execuções pela guilhotina. Danton, líder revolucionário, critica os rumos do movimento, tornando-se mais uma vítima do terror instalado por Robespierre.

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organizar com a finalidade de atender às necessidades fabris. A infância, ou melhor dizendo à época, somente a primeira infância é vista como preparação, aprendizagem. A adolescência, ainda não reconhecida pelos conceitos do período, ou comumente antes mesmo disso, a época de um trabalho que somente findará no instante em que a decadência física humana determinará o colapso produtivo. O ócio, componente preponderante para que se estabeleça uma relação de deleite com o tempo, é profundamente condenado. Finalmente, o tempo, que antes desse fenômeno econômico-social era contado em estações, eras ou no máximo anos, passa a ser entendido em horas, determinadas pela barulhenta velocidade das engrenagens. Tempo do progresso O tempo escatológico se laiciza no curso do século XIX. Marx simultaneamente solapa, com seu materialismo histórico, o tempo bíblico (moribundo desde a teoria darwinista) como também o recém-criado tempo hegeliano. Os messias de suas noções de salvação seriam agora caracterizados por bandeiras vermelhas e discursos revolucionários e o seu paraíso seria entendido por meio de um coletivismo econômico. O Éden era o comunismo e nele a história findaria sua longa marcha. Vale lembrar que sua tese de “mais-valia” a explora, acima de tudo, as relações do tempo. O século XIX termina com a clássica frase de Nietzsche conclamando a morte de Deus. O Homem, por si só, não precisaria mais daquilo que não seria explicável pelo prisma da racionalidade. Finalmente, ele tornara-se auto-suficiente. Em tudo. E o tempo agora era o tempo do progresso. O século XX, não importando em qual sistema produtivo qualquer sociedade estivesse inserida, assistiu a um profundo fracionamento do tempo em uma louca corrida pela produção de bens e de metas. Desde a Revolução Tecnológica da Segunda Revolução Industrial, tudo passara a se tornar mais rápido, mais curto e menor. Os relógios são miniaturizados, popularizados e

se tornam uma coleira onipresente no pulso das pessoas, surgindo, assim, novas formas de percebermos o tempo ao redor de nós mesmos: momentos, instantes, segundos. Paradoxalmente, enquanto as noções de tempo são fragmentadas, a expectativa da vida se multiplica. Será que começamos a viver mais somente para produzirmos e consumirmos mais coisas ao longo de nossa existência? Os manuais de administração contemporânea falam insistentemente em “otimização”. As propagandas, em “forever young”. As linhas de montagem, em centésimos de segundo. Os restaurantes, em comida rápida. Vivemos em uma overdose intensa de números digitais relacionáveis a objetos que, definitivamente, desaprendemos a necessidade da paciência. A espera nos agride. Brilhantemente, o filósofo Mário Sergio Cortella chamou-me a atenção quando analisou que a nossa atual relação com o tempo é regressivo, afinal, para nós, sempre falta tantos minutos para alguma coisa… E estamos sempre correndo, atrasados e neuróticos. Ao considerarmos deselegante questionarmos alguém sobre sua idade, teríamos hoje uma relação conflitante com o tempo? Não há dúvidas que o tentamos repeli-lo, principalmente no desenrolar da vida adulta, por meio de academias, maquiagens, arsenais sintéticos e intervenções cirúrgicas. Tornamos nossas crianças miniadultos precoces por meio de agendas massacrantes e erotizações doentias e nossos adultos travestidos, ridiculamente, de adolescentes mimados e narcisistas. Tentamos, em vão, pela via estética, usurparmos o tempo do tempo. Que tal, por alguns dias (só dá pra ser nas férias), de preferência longe de algum grande centro urbano, guardarmos os relógios nas gavetas e novamente revivermos a perspectiva de deixarmos o ciclo da vida ditar nosso ritmo? A fome ditar nosso apetite? O sono ditar nossa noite? A libido ditar o contato do amor? Pois é, talvez sermos atemporais seja a melhor forma de curtirmos o tempo e, como nossos antepassados faziam há séculos e séculos, vivermos em paz com ele. n

a “mais-valia”

Marx chamou de maisvalia a diferença entre o valor adicionado pelos trabalhadores (incorporado às mercadorias produzidas) e o salário que recebem. A mais-valia definida desta maneira é em tudo semelhante ao trabalho gratuito que escravos ou servos entregavam a seus senhores. É uma forma disfarçada de transferência de um excedente para a classe dominante. A mais-valia é a base para os lucros, os juros das aplicações financeiras e para todas as formas de rendimentos vinculados à propriedade. A apropriação da mais-valia é o fundamento da divisão das classes sociais no capitalismo. Fonte: João Machado Economista, professor da PUC/RJ membro da Direção Nacional do PSOL.

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Globalização além da crise

A ideia de um mundo interligado remonta ao início da idade moderna e tem resistido às crises estruturais por que passou o planeta desde esse período, incluindo a atual. || por Samir Thomaz*

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o âmbito da filosofia política, poucos conceitos têm gerado tanta controvérsia nos últimos anos como o conceito de globalização. Filósofos de todas as matizes, entre os quais se destaca Jürgen Habermas a, têm debatido o assunto na imprensa e nas universidades em busca de uma síntese que possa abranger o fenômeno sem ambiguidades. Uma tarefa inglória. Objeto de críticas à direita e à esquerda do espectro político, confundida com a ideia de ocidentalização (ou americanização) do mundo ou ainda, com a ideia do próprio capitalismo neoliberal, conectada às novíssimas tecnologias da informação e inserida em um contexto que exacerba o aspecto mutidimensional do tempo e do espaço, a globalização parece ter sido o objeto de uma afirmação do escritor e helenista inglês, R.W. Livingstone (1880-1960), para quem “um grande perigo do mundo moderno é nossa suscetibilidade às ideias gerais que pairam à nossa volta, densas como bacilos, no ar, as quais passam tantas vezes por nossos lábios

e são tão influentes em nossas vidas que nós a usamos irrefletidamente, sem ter analisado o que realmente queremos dizer com elas”. A frase do escritor britânico, no entanto, é de 1916. Já a globalização, até mesmo suas origens são objeto de calorosas discussões na academia e no espaço público. Talvez em razão dessa presença ubíqua e por vezes opressora na vida das pessoas, a globalização tem sido vítima das mentalidades mais díspares que se cria em torno dela. Mentalidades que por vezes pecam pela falta absoluta de correspondência com a realidade, resvalando para uma explícita mistificação ou pelo exagero puro e simples acerca de aspectos cuja concretude vem sendo posta em questão, senão pelo crivo da análise dos especialistas, em última instância pela ação sempre reparadora do tempo. Tão despropositado quanto afirmar, por exemplo, que a globalização tende a uniformizar as culturas e identidades do planeta (o que o ensaísta norte-americano chamou de “darwinismo com anabolizantes”) ou que se trata de um eufemismo para a americanização

a Jürgen Habermas

O pensador foi o responsável por introduzir um novo espectro sobre as relações entre a linguagem e a sociedade. Tendo publicado em 1981 sua obra mais importante, “Teoria da Ação Comunicativa”, Habermas abordou as ciências sociais por meio de outros livros, entre eles, “Conhecimento e Interesse”, lançado em 1968.

* Samir Thomaz é jornalista, escritor e pós-graduando (Globalização e Cultura) na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp).

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análise

a Francis Fukuyama

Em seu livro “O fim da História e o Último Homem”, Fukuyama apresenta elementos que sugerem a presença de duas poderosas forças na história humana. A uma chama “a lógica da ciência moderna”, a outra “a luta pelo reconhecimento”. A primeira impele o homem a preencher o horizonte cada vez mais vasto de desejos pelo processo econômico racional; a segunda é, de acordo com Fukuyama (e Hegel), nada menos que o próprio “motor da história”.

do mundo, é sustentar a tese da desglobalização, termo cunhado recentemente (em janeiro de 2009) pelo primeiro-ministro britânico Gordon Brown, segundo o qual a crise por que passa o mercado mundial, com seu rastro de protecionismo comercial e xenofobia, seria o canto do cisne da globalização. Como a definição de globalização está intrinsecamente associada a outros conceitoschave do mundo contemporâneo (como o neoliberalismo, a sociedade pós-industrial, a democracia liberal, o pós-modernismo, a congruência das novas tecnologias da informação, a emergência das minorias étnico-identitárias e sexuais), seria temerário, como fez o premiê inglês, afirmar de forma tão peremptória que toda essa gama de processos, erigida como o corolário de décadas de vicissitudes políticoeconômicas e já tão amalgamada nos vários setores da sociedade, vá capitular de forma absoluta diante de uma crise que está apenas no começo e cujas consequências, para o bem e para o mal, são ainda imprevisíveis. O meio termo Esse parece o caminho mais aconselhável para avaliar uma época em que raramente se verificam mudanças abruptas no plano estrutural – a própria crise não nasceu de um dia para o outro, mas se prenunciava há alguns

anos, e não se pode dizer que a eleição de Barack Obama seja um indicador de mudança radical, seja no plano político, econômico ou sociocultural, não obstante a criação também equivocada da expressão “era pós-racial” pelo simples fato de o presidente ser negro. O economista e filósofo norte-americano, professor da Universidade John Hopkins, Francis Fukuyama a, criador de outra tese que sofreu as ranhuras do tempo (a ousada premissa do “fim da história”), se encaixa na parcela de analistas que têm optado por uma posição menos heterodoxa. Escaldado com o relativo fiasco de sua teoria e agora adepto de “profecias” mais cautelosas, Fukuyama afirma que a crise representa não o fim do capitalismo, mas apenas mais um ciclo da economia e da história em que a tônica será a intervenção do Estado. Sua opinião guarda analogia com o que pensa sobre o mesmo assunto a experiente colunista do jornal Folha de S.Paulo, Eliane Cantanhêde: “a crise serve como freio de arrumação, com duas consequências que começam a ficar evidentes: maior protecionismo econômico (com os países mais voltados para dentro deles próprios) e maior “nacionalismo” (o que tende a descambar para a xenofobia, com os nacionais liberando seus demônios racistas e preconceituosos contra africanos, asiáticos e indígenas latino-americanos, por exemplo)”.

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Filosofia: Conhecimento Prático (FCP) Em que momento da História, aproximadamente, podemos situar o início da Globalização? José William Vesentini (JWV) Existe uma “mundialização” do capitalismo desde o século XV, processo que alguns denominam “ocidentalização do mundo”. E existe algo diferente, ou pelo menos específico, que se iniciou em meados dos anos 1970 e se expandiu nos anos 1980 (principalmente no seu final, com a crise terminal do mundo socialista), que podemos chamar de globalização. Diferente não no sentido de ser o oposto da mundialização. É apenas uma certa continuação desta, um novo momento no qual o tempo foi acelerado. FCP: O que tem de diferente este “novo momento”? JWV: Vários aspectos. Cabe destacar sua ligação com a chamada revolução técnico-científica ou terceira revolução industrial, que de fato foi desencadeada a partir dos anos 1970, embora alguns poucos autores a situem – a meu ver, de forma equivocada – no pós-guerra, no pós-1945.

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Esta nova revolução industrial – da informática, da robótica, das telecomunicações, da química fina, das indústrias de novos materiais, da microeletrônica e da biotecnologia, em especial a engenharia genética – possibilitou a globalização na medida em que uniu a informática com as telecomunicações, criando as redes de computadores.

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análise

A globalização era um processo inevitável, pela evolução da tecnologia, das comunicações, dos meios de transporte, do sistema bancário.”

a ‘historiografia

dos Annales’ Movimento surgido na França, em 1929, juntamente com a revista Annales, é considerada por alguns autores como a mais importante agitação que culminou naquilo que posteriormente seria chamado de Nova História.

Novos caminhos Mas se a crise mundial é recente, pelo menos em seus aspectos mais trágicos e explícitos, a polêmica em torno dos caminhos e descaminhos da globalização – e portanto de sua pouca ou grande vulnerabilidade a crises conjunturais – assume contornos históricos e epistemológicos e remonta ao tempo em que as caravelas de Cristóvão Colombo singraram por mares inóspitos até chegar à América, o que depõe contra a premissa de Gordon Brown de que uma era de desglobalização estaria a caminho. Quando muito, o que o premiê britânico propõe é mais um daqueles termos que vão alimentar a especulação midiática e pôr fogo no debate, mas que na prática pouco contributo agrega ao que realmente interessa – como foi a tese de Fukuyana sobre a famigerada tese do “fim da história”. O professor do departamento de geografia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de vários livros didáticos de geografia, José William Vesentini, que tem demonstrado fecundo interesse pelo assunto por meio de artigos na imprensa, livros e participação em debates, explica a controvérsia fazendo uma incursão genealógica sobre a polêmica: “para os franceses, orgulhosos da sua ‘historiografia dos Annales’ a, que desde as primeiras décadas do século passado estudava a expansão mundial do capitalismo, a globalização (que eles preferem denominar mundialização) inicia-se no final do século XV e no século XVI com a expansão marítimo-comercial europeia

e seus desdobramentos (descoberta do caminho marítimo para as Índias, colonização das Américas, etc.), em especial com a criação pela primeira vez na história de um mercado planetário. Já o termo globalização é mais recente, é dos anos 1980 e ligado mais a economistas e outros cientistas sociais norte-americanos e britânicos”. Vesentini considera pertinentes os dois pontos de vista, cada um na sua perspectiva, e não crê que eles sejam antagônicos, e sim de certa forma complementares. Outro aspecto a realçar, oposto à tese aventada pelo chanceler inglês, diz respeito à inevitabilidade da globalização como processo cujo encadeamento envolve microprocessos que já vinham se elaborando com inegável consistência dentro da estrutura maior do que se convencionou chamar de globalização. Nisso acredita Eliane Cantanhêde: “A globalização era um processo inevitável, pela evolução da tecnologia, das comunicações, dos meios de transporte, do sistema bancário”. O que não significa que a jornalista, ao realçar o determinismo da dinâmica global nos últimos anos, isente todo o processo de problemas estruturais graves: “O problema é que a globalização veio ‘por cima’, mas chegou ‘embaixo’ de forma perversa: aumentou muito, sim, o fluxo migratório e até de turismo entre os países, mas os pobres continuaram sendo tão pobres e os ricos, tão ricos. E o fluxo migratório apenas engrossou as fileiras dos faxineiros, garçons, lixeiros e empregados domésticos que o mundo pobre envia para o mundo rico”. n

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FCP: O surgimento do conceito de Globalização estaria então relacionado diretamente à confluência das novas tecnologias digitais, dos anos 1970 para cá? JWV: Até a primeira crise do petróleo, de 1973, ainda vivíamos no mundo do pós-guerra, na produção fordista, ou seja, na segunda revolução industrial, aquela dos automóveis, da petroquímica e das indústrias siderúrgicas, mecânicas e metalúrgicas. Essa crise possibilitou ou favoreceu o investimento em novas tecnologias, que só se popularizaram de fato a partir dos anos 1980. Quase todas as tecnologias que hoje identificamos com essa nova revolução industrial, a terceira, e com a globalização, sua irmã gêmea, foram geradas nos anos 1950, 60 ou 70: a invenção do computador, as fibras ópticas, os incontáveis satélites para comunicações no espaço, a produção flexível ou pós-fordista, etc. Contudo, foi apenas a partir do final dos anos 1970 que elas se expandiram, passaram a se tornar mais populares e importantes, substituindo as que já existiam, isto é, os fios de cobre na telefonia, os poucos cabos transoceânicos de comunicações (e com reduzida capacidade de transmissão de dados), os poucos satélites no espaço (que eram mais para uso militar do que para comunicações). FCP: A internet veio sedimentar esse processo? JWV: As novas tecnologias sem dúvida que possibilitaram a globalização, mas esta por sua vez as expandiu de forma acelerada. É quase uma redundância afirmar que sem a globalização, sem a crescente e maciça interdependência entre todas as economias, sem a chamada “abertura dos mercados nacionais”, não teriam ocorrido os enormes investimentos – que permitiram um barateamento e um aperfeiçoamento – nos computadores e nas suas redes, nos telefones celulares, na televisão digital e interativa, nos cartões de crédito, etc. Em suma, uma coisa impulsiona a outra. Temos que pensar aqui em termos do paradigma da complexidade, no qual não há causas e efeitos mecânicos e sim encadeamento de processos em que um se transforma no outro, onde eles se combinam e se multiplicam. FCP: Em que medida a Globalização está afetando as identidades culturais? JWV: Quanto às identidades culturais, temos que

analisar uma por uma. Não creio que dê para generalizar e tampouco afirmar que existe uma “macdonaldização do mundo”, como apregoam alguns, com todos os povos passando a comer hambúrguer e a beber coca-cola, vestir jeans, ouvir rock e assistir apenas a filmes de Hollywood. Isso é bobagem. Assim como a influência norteamericana se expandiu – e provavelmente já atingiu o seu apogeu, o que significa que agora vive um momento de declínio, mesmo que este dure décadas – também ocorreu uma enorme mudança na sua própria cultura com a incorporação de valores afro-americanos, latinos, “orientais”, etc. E muitas culturas nacionais ou regionais reagem à ocidentalização (termo bem melhor do que americanização ou macdonaldização) reafirmando e reforçando os seus valores: basta ver os exemplos da Índia e principalmente do mundo muçulmano. FCP: Haveria uma imagem que poderia sintetizar o que é a globalização? JWV: O historiador Paul Kennedy afirma que a melhor imagem da globalização é a de uma pessoa comum que de repente foi parar a milhares de quilômetros de distância da sua cidade natal e vai encontrar em vários lugares um caixa eletrônico 24h no qual vai inserir seu cartão bancário e retirar certa quantidade de dinheiro na moeda do país onde se encontra. Como assinala Kennedy, existe por trás dessa operação aparentemente simples (mas que não era possível antes do final dos anos 1970) redes de computadores, conectados por fibras ópticas e/ou por satélites de comunicações, que em milésimos de segundos calculam quanto dinheiro essa pessoa tem em sua conta bancária no país X, transferem isso para a moeda do país Y, onde a pessoa está, e se o saldo for suficiente ela recebe a quantidade de dinheiro que solicitou. Temos aí a presença da revolução técnico-científica (fibras ópticas, satélites, cabos transoceânicos, computadores...) e temos o elemento essencial da globalização que é o chamado “encolhimento do mundo”, a rápida e intensa interdependência entre todos os lugares, todas as economias, todas as culturas, o notável crescimento das trocas de bens e serviços entre praticamente todos os países, do turismo internacional, do mercado financeiro global (que hoje conhece uma profunda crise e provavelmente vai ser repensado, embora não restringido), etc.

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Gramsci em foco Influente até os dias de hoje, na vegue na teoria e práxis direto da vida em cárc ere de um dos pensadores esquerdistas mais im portantes do século passado. || por Daniel Rodrigues Aurélio

A

utor de teses renovadoras do pensamento marxista-leninista, o jornalista, escritor, teórico e político italiano Antonio Gramsci a nasceu em Ales, na Sardenha, no dia 22 de janeiro de 1891. Quarto dos sete filhos do casal Francesco e Giuseppina, passou a infância num lar pequeno-burguês, cujos bens foram dilapidados, sobretudo, após a prisão do pai em agosto de 1898. Francesco era diretor do Registro de Imóveis de Sordogno e foi condenado em outubro de 1900 por peculato e outros delitos administrativos. Para sobreviver, Giuseppina vendeu as terras que recebera de herança e regressou com os filhos para Ghilarza, sua comuna natal. Apelidado de il Gobbo (o Corcunda), em virtude de uma enfermidade nos ossos que o acompanhava desde criança, Gramsci

obteve em 1911 uma bolsa de estudos na reputada Universidade de Turim, na região do Piemonte. Sede de fábricas e montadoras do porte da Fiat, a cidade de Turim vivia um acelerado processo de desenvolvimento urbano e industrial. As ideias anarquistas e socialistas fervilhavam no caldeirão de panfletos e manifestações, de modo que o envolvimento do estudante com os focos de agitação popular e sindical era presumível: Gramsci frequentou reuniões de grupos socialistas até se filiar ao Partido Socialista Italiano (PSI). Entre 1917 e 1920, Gramsci esteve à frente de duas greves gerais e diversos atos de contestação à ordem. Mas o talento de escritor e analista político foi a sua principal contribuição para a causa, evidenciada pelos artigos publicados nos jornais L ´Avanti, L´A città futura, Il Grido del Popolo e o L ´Ordine Nuovo, esse último editado por ele e Palmiro Togliatti. Conhecimento Prático

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a Gramsci

De acordo com algumas fontes, a data correta de nascimento é 23 de janeiro de 1891. Na ilha da Sardenha, o aniversário de Gramsci tem sido comemorado anualmente, durante uma semana, com eventos e mostras em homenagem ao teórico e político.

O núcleo dessa gazeta (Togliatti, Gramsci, Angelo Tasca) aliou-se à facção Comunista Abstencionista liderada por Amadeo Bordiga, constituindo uma dissidência no seio do PSI. Durante a assembleia dos socialistas em Livorno, o grupo decidiu se desligar da agremiação para fundar, em 21 de janeiro de 1921, o Partido Comunista Italiano (PCI). A GRANDE LUTA No decorrer de sua história, o PCI será reconhecido como expoente do Eurocomunismo, pretensa alternativa europeia aos descaminhos do reformismo social-democrata e da ditadura stalinista. Contudo, antes desse aggiornamento doutrinário, o PCI estabeleceu laços estreitos com o Comitê Central do PC russo. Numa das estadas no país de Lênin (na condição de delegado do partido na executiva da Internacional Comunista), Gramsci conheceu a violinista Giulia Schucht, com quem se casou e teve dois filhos, Delio e Giuliano. Nas eleições de 1924, Gramsci foi eleito deputado pelo Veneto, mas seu mandato parlamentar durou cerca de dois anos. A presença comunista no poder legislativo afrontava o governo fascista de Benito Mussolini, instituído em 1922. Em 8 de novembro de 1926, il Gobbo foi preso e conduzido ao presídio de Regina Coeli. Àquela altura dos acontecimentos, o PCI já atuava na clandestinidade. O deputado proscrito recebeu, então, duas sentenças

Nas eleições de 1924, Gramsci foi eleito deputado pelo Veneto, mas seu mandato parlamentar durou cerca de dois anos.

A presença comunista no poder legislativo afrontava o governo fascista de Benito Mussolini, instituído em 1922.

condenatórias: a cinco anos de detenção na ilha de Ustica, pena dilatada em seguida para vinte anos, a ser cumprida na penitenciária de Turi, na província de Bari. Reunidos em trinta e três cadernos, seus manuscritos políticos, doutrinários e historiográficos foram produzidos sob a vigilância de policiais e carceireiros. Esses escritos, compilados, resultarão nos Cadernos do Cárcere. Doente e alquebrado pelos anos de cárcere, foi libertado pelas autoridades. Não lhe restava muito tempo: Antonio Gramsci faleceu em Roma, em 27 de abril de 1937. TRAJETÓRIA E MILITÂNCIA Antonio Gramsci amalgamou boa parte do ideário – e imaginário – das esquerdas do século 20. Sua teoria e práxis, ao mesmo tempo estratégica e crítica da ortodoxia, emergiu da necessidade de se buscar respostas, dentro da perspectiva marxista-leninista, para uma série de eventos da época: as diretrizes do comunismo pós-revolução russa de 1917; a Primeira Guerra Mundial [1914-1918]; a crise econômica deflagrada pelo crash da Bolsa de Nova York; e a ascensão na Europa de gover-

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nos autoritários de extremadireita – principalmente na Itália. Excluir da pauta aquele conturbado contexto histórico é nublar a compreensão dos escritos gramscianos. A obra de Gramsci se insere em duas tradições do pensamento político: a dos teóricos políticos de raízes italianas, cujo pratriarca é Nicolau Maquiavel (Niccolò Machiavelli), coadjuvado por Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto, Benedetto Croce e Norberto Bobbio; e a do nominado “marxismo ocidental”, contraponto ao, nas palavras de Herbert Marcuse, “marxismo soviético”. Seguindo as pegadas de Considerações sobre o marxismo ocidental (Brasiliense, 1999), livro do historiador marxista Perry Anderson, incluem-se nesse nada homogêneo e consensual leque de pensadores Georg Luckàcs, Louis Althusser e a teoria crítica da Escola de Frankfurt. As duas mencionadas “localizações” na história das ideias ajuda a lançar um olhar mais abrangente sobre o seu legado. Embora mais próximo das propostas de Lênin do que, digamos, dos frankfurtianos, o pensamento gramsciano teve um efeito libertador para os intérpretes “heterodoxos” de Marx. E a fecunda teoria política da Itália se abastece mesmo de “uma laboriosa interlocução entre a produção intelectual e política, sobretudo já no século XX, com o diálogo entre liberais e marxistas”, conforme aponta o sociólogo Francisco de Oliveira em um ensaio de O silêncio dos intelectuais (Companhia das Letras, 2006). Sobre o assunto, destaca-se Ensaio sobre Ciência Política na Itália (UnB, 2002) de Norberto Bobbio. PENSAMENTO E AÇÃO Os cadernos de Gramsci acabaram salvos por iniciativa da cunhada Tatiana Schucht e do economista Piero Sraffa. Os editores da obra foram os membros do PCI Felice Platone e Palmiro Togliatti, responsáveis pela organização dos cadernos no formato de seis volumes temáticos, publicados a partir de 1947-48.

Os Cadernos do Cárcere (Quaderni di Carcere) apresentam as teses gramscianas centrais de hegemonia, intelectual orgânico e Moderno Príncipe. O conceito de hegemonia alçou Gramsci ao panteão teórico das esquerdas. Segundo o autor, por hegemonia entende-se o movimento articulado - o bloco histórico formado pela estrutura e a superestrutura - que organiza e dinamiza esse “Estado ampliado” a (sociedade civil e sociedade política) na direção e planejamento das disputas políticas. O conceito parece exercer um duplo papel na concepção gramsciana: 1) denunciar os instrumentos empregados pela “hegemonia burguesa” e 2) estabelecer uma estratégia eficaz para o triunfo das classes trabalhadoras, supostamente representadas pelo partido. Na leitura proposta por Gramsci, a sociedade é um organismo complexo e relacional, que não pode ser totalmente explicado em termos de um determinismo econômico mecanicista, como propugnado pelo marxismo ortodoxo. Ele não negava a mais-valia, a luta de classes, o materialismo histórico, o fim do “Estado burguês”, mas tentava mostrar o impacto poderoso de fatores morais, culturais e ideológicos nos processos sociais. Uma hegemonia, em suma, não se concretiza “apenas” com a posse dos meios de produção; a luta se dá também no campo ideológico. Gramsci, que credita à Lenin os princípios gerais da hegemonia, deve ter lido com atenção a seguinte passagem de A ideologia alemã, de Marx e Engels: “a classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual” (pág. 48, edição da Martins Fontes). Ele pegou o gancho dos antecessores, centralizou e ampliou a abordagem. O argumento sobre a hegemonia determina, de facto, as coordenadas para a conquista do poder. A educação, por exemplo,

a “Estado ampliado”

O termo “Estado ampliado” costuma ser atribuido à filósofa francesa Christine Buci-Gluksmann, professora da Universidade Paris VIII e autora do estudo crítico Gramsci et l’État, de 1975.

Os intelectuais são divididos por Gramsci em duas categorias:

O intelectual orgânico vinculado ou alinhado a uma “consciência de classe”. E intelectual tradicional, herança da constituição histórica anterior.

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a Theodor W. Adorno

A dobradinha GramsciAdorno virou lugar comum acadêmico. Paradigma de crítica cultural. Mas existem distinções claras entre os autores. Eles não falavam a mesma língua no tocante aos usos do marxismo. Enquanto Gramsci seguia na toada “teoria e práxis”, numa relação fundamentalmente política com o marxismo, o filósofo frankfurtiano trabalhava noções como a de “fetichismo da mercadoria”, privilegiando a substância teórica.

serve de fulcro para a conscientização e formação de elites técnicas e dirigentes no interior da classe trabalhadora. O intelectual, para Gramsci, tem uma função gerencial e de difusão ideológica no organismo, seja no aparelho burocrático do partido, seja nas instituições e centros irradiadores de cultura e ideologia. Nesse sentido, todo homem é potencialmente um intelectual, não por erudição e beletrismo, mas porque é capaz de assumir uma posição organizadora na sociedade. Os intelectuais são divididos por Gramsci em duas categorias: o intelectual orgânico vinculado ou alinhado a uma “consciência de classe”, e o intelectual tradicional, herança da constituição histórica anterior. A pergunta não quer calar: essa classificação não bateria de frente com a idealização do intelectual combativo e inquieto à moda Emile Zola? Ora, no horizonte gramsciano – a

luta cultural na sociedade de classes - o engajamento exige disciplina e ação política, implicando em escolhas revolucionárias ou conservadoras. Recusa-se assim a decantada “independência” do intelectual, uma “força autônoma” ainda que participante de um movimento político-doutrinário. Na briga pela hegemonia, os intelectuais orgânicos procuram absorver os tradicionais num processo em que o conhecimento se subordina à ação social. Pensando na realidade política brasileira, podemos supor que a revista Teoria e Debate e a Fundação Perseu Abramo, pertencentes ao Partido dos Trabalhadores, cumprem a sua missão gramsciana de catequizar outros intelectuais, que catequizarão lideranças de sindicatos e movimentos sociais, e estes haverão de mesclar o saber técnico e ideológico a sua práxis já testada e maturada no cotidiano social e do traba-

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lho, em greves e embates reivindicatórios. Gramsci caiu como uma luva no discurso anticapitalista e anti-imperialista da esquerda universitária. Aliás, pencas de livros ainda hoje recorrem, no intuito de atacar o “império estadunidense”, ao cruzamento da hegemonia com a “industrial cultural”, conceito de Theodor W. Adorno a. A “Invasão Cultural Norte-Americana”, por sinal título de um livro didático de Julia Falivene Alves (Moderna, 1988), sedimentaria a sua hegemonia cultural por meio da indústria do espetáculo e dos valores consumistas dos EUA, expressos na moda, na música, no cinema e na TV. CONTUNDÊNCIA Outra celebrada tese de Gramsci é o do Moderno Príncipe. De acordo com o autor, o personalismo principesco descrito por Maquiavel cede espaço para a sociedade política, o partido, quer dizer, a classe trabalhadora que se aglutinaria no partido e em entidades correlacionadas, os “agentes da transformação”. Esse ente coletivo assemelha-se ao centralismo democrático leninista, apesar de Gramsci pretender zonas de interpretação, mediação e adaptação da doutrina partidária aos anseios classistas e sociais. Antonio Gramsci foi e é criticado à direita e à esquerda. Os liberais consideram seus escritos um amaciamento da ânsia centralizadora das esquerdas. Hegemonia e Moderno Príncipe, argumentam, são engodos, artifícios para a tomada do poder, e o tal “intelectual orgânico” não passa de um servo reprodutor da doutrina partidária. Há quem aponte para a “esquerdização” dos departamentos de informação, conhecimento e inteligência como indícios de que a tática não estaria sepultada. À esquerda, Perry Anderson, em As antinomias de Gramsci (antinomia é um sinônimo elegante de contradição), acredita que Gramsci superestima a hegemonia, ao passo que a historiografia das esquerdas o julga um stalinista em vários momentos – sobretudo pela posição pró-Stalin ante Trotsky – ainda que os defensores de Gramsci apontem-no como um seguidor de Lenin, de postura reticente às medidas stalinistas. A queda do muro de Berlim e a derroca-

BIBLIOGRAFIA Cadernos do Cárcere (vol 1 a 6)

Antonio Gramsci (Civilização Brasileira, 1999 a 2002)

Cartas do Cárcere (vol. 1 e 2)

Antonio Gramsci (Civilização Brasileira, 2005)

Escritos Políticos (vol. 1 e 2)

Antonio Gramsci (Civilização Brasileira, 2004)

Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil Norberto Bobbio (Paz e Terra, 1999)

Gramsci _ um estudo sobre seu pensamento político Carlos Nelson Brasileira, 1999)

Coutinho

(Civilização

Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário Mario Maestri e Luigi (Expressão Popular, 2007)

Candreva

Gramsci e a Revolução

Lincoln Secco (Alameda Editorial, 2006)

da da URSS foram decretados os atestados de óbito do socialismo/comunismo pelos adeptos da democracia liberal. Mas será que a obra de Antonio Gramsci ficou soterrada e esquecida nos escombros do “socialismo real”? Para muitos, não. Seu pensamento continua a compor uma teorização marxista que, na tensão de divergências e aproximações, sobrevive nas ideias de Slavoj Zizek, István Mészáros e outros tantos marxistas contemporâneos.  Conhecimento Prático

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o homem desejante

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De um lado, a filosofia busca explicar o homem pela razão, pela cognição e pela consciência. De outro, a psicanálise resgata o sujeito do desejo, da irracionalidade e do inconsciente. || por José Valmir Dantas de Andrade Conhecimento Prático

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m motorista grita, xinga e se irrita com o trânsito. Um passageiro tem uma crise de pânico quando o avião levanta voo. O marido mata a mulher em um acesso de ciúme. Um expectador chora compulsivamente durante o espetáculo musical. A irritação domina o motorista. A crise de pânico domina o passageiro. O ciúme domina o marido. O choro domina o expectador. Esta força "dominadora e incontrolável" que impulsiona ações, sensações, comportamentos e sintomas e que toma de assalto a humanidade, cotidianamente, possui um determinismo para além de qualquer racionalização possível. Foi investigando essa força que, no alvorecer do século XX, Sigmund Freud chocou o mundo ao declarar que o homem não era senhor de sua própria consciência. Se formos pesquisar as origens do conceito de inconsciente, veremos que ele é muito anterior à psicanálise. Filósofos e teóricos de diversas procedências há muito já o haviam descrito. Mas foi Freud que forjou "O Inconsciente" com I maiúsculo e deu a ele lugar específico e privilegiado no psiquismo humano, por meio de uma concepção sistemática. Filósofos o descreveram. Freud mergulhou nele. A partir do estudo das repressões patogênicas e de outras manifestações psíquicas, a psicanálise foi vasculhar, a partir da escuta clínica, os meandros do que Freud chamou inicialmente de um "mental inconsciente". De acordo com ele, os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos. "No tocante à neurose, a realidade psíquica é de maior importância que a realidade material", afirma ele em seu "Um Estudo Autobiográfico", de 1925. Bases distintas Antes, porém, Schopenhauer já havia defendido a supremacia do instinto sobre a razão humana. O filósofo desenvolveu o conceito com base em reflexões e formulações teóricas; Freud, a partir da observação empírica de seus pacientes. Ambos estudaram a mesma subjetividade humana, mas a partir de diferentes premissas e perspectivas. Em várias passagens

da obra de Freud é possível identificar o que seria o legado de grandes pensadores que parecem ter deixado uma herança intelectual à sua teoria, apesar de ele próprio, em muitos momentos, negar tal influência. Santo Agostinho acreditava na existência de uma vontade interior que contradiz a si mesma. Platão citava Eros e defendia a existência de um conhecimento que provém da imaginação e dos sonhos. A partir do final do século XIX, Sigmund Freud começa a construir o seu pensamento por meio de premissas como o inconsciente, a sexualidade e a interpretação dos sonhos. O diálogo entre filosofia e psicanálise parece inegável. E, realmente, há vários momentos em que as duas ciências parecem muito próximas. Mas também há pontos de inevitável distanciamento. Ainda em seu Estudo Autobiográfico, Freud procura esclarecer que o pensamento filosófico não teria tido influência direta na formulação da teoria psicanalítica. "O alto grau em que a psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer não deve ser remetido à minha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde em minha vida", afirma, destacando que as neuroses foram o primeiro e, por muito tempo, constituíram o único ponto de seu interesse. Em suas últimas obras, Freud fez diversas referências à ênfase que Schopenhauer dava à sexualidade, apesar de não nominá-lo diretamente. Em "O Mundo como Vontade e Representação", o filósofo alemão debate o caráter da paixão sexual que, segundo ele, é o ponto central da vontade de viver e, consequentemente, a concentração de todo desejo. "Ela é a causa da guerra e o fim da paz, a base do que é sério e o alvo da zombaria, a inexaurível fonte do espírito, a chave para todas as alusões e o significado de todas as insinuações misteriosas (....) e somente essa tendência perpetua e mantém unida toda a existência fenomênica", diz Schopenhauer no capítulo XLII de" A Vida da Espécie". Ele foi o primeiro filósofo a defender que a irracionalidade preponderaria sobre a razão e a inteligência humanas. A dimensão que o alemão dá à importância do impulso sexual para a vida do homem encontra paralelo na teoria de Freud, já que aquilo que o pai da psicanálise chamou

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de sexualidade também está longe de se resumir à união sexual ou ao prazer genital. Freud procurou demonstrar em seus estudos que os componentes sexuais, passíveis de ser desviados para outros interesses, efetuam as contribuições mais importantes às realizações culturais do indivíduo e da sociedade. Aí há também muita semelhança com Eros, do Banquete de Platão. Quanto a Nietzsche - que parece ter sido o filósofo que mais contribuiu para a construção da teoria psicanalítica, no que se refere às questões relacionadas ao inconsciente e às forças (pulsões) que movem o ser humano - Freud declara tê-lo evitado durante muito tempo a fim de manter a mente "desimpedida". No entanto, dizia que ele foi o filósofo cujas conjecturas e intuições concordam, da forma mais surpreendente, com os laboriosos achados da psicanálise. Afirma, também, ter seguido o pensador alemão Gustav Theodor Fechner (1801-1887) em muitos pontos importantes. Ele teria influenciado Freud no desenvolvimento do princípio da constância a e na fundamentação do conceito de topografia mental a. Subjetividade humana Nenhum homem, por mais genial que seja, desenvolve seu pensamento à margem do saber coletivo. Todo salto criativo e original vem necessariamente alavancado, em alguma medida, pelo legado histórico do conhecimento humano, cumulativo e em contínua expansão. Com Freud, certamente não foi diferente. Antes dele, filósofos, pensadores, escritores e poetas intuíram e desenvolveram ideias para

conceitos que o pai da psicanálise interpretou com genialidade visionária e abordou sob perspectivas inéditas. O sofrimento humano, o inconsciente, a sexualidade, as pulsões. Todos já haviam sido tema de preocupação e de investigação filosófica. Mas foi Freud que cruzou a fronteira do que poderíamos chamar de "uma forma de pensar o sofrimento" para "uma forma de tratar o sofrimento". Os filósofos se limitaram a formular conceitos. Freud criou um método terapêutico que mistura ciência, medicina e filosofia. É com base nessa simbiose entre método científico, prática clínica e pensamento filosófico que a psicanálise aventura-se pelos labirintos da mente a fim de decifrá-la. Freud dedicou sua vida à ciência que pretendia, por meio da interpretação da subjetividade humana, aliviar o sofrimento psíquico do homem e descortinar aquilo que de mais obscuro lhe habita a alma. Apesar de negar a influência de determinados pensadores sobre sua obra, em muitos momentos fica clara a ascendência que alguns filósofos tiveram sobre seu pensamento, como Emmanuel Kant. As ideias do pensador alemão teriam contribuído para a construção da metapsicologia freudiana. Mesmo em aspectos não referidos diretamente, teve um papel de muita importância, principalmente no que se refere a uma subjetividade que se constitui por meio de um movimento interno e que faz com que o sujeito seja sempre um fenômeno, uma aparência para si mesmo, de modo que aquilo que o constitui em sua base sempre ficará desconhecido em algum grau.

a Princípio da constância

Esse princípio foi formulado por Freud e baseia-se na hipótese de que o aparelho psíquico se esforça para manter constantes seus níveis de excitação, a fim de se livrar da tensão desagradável, preservando o prazer. A teoria se assemelha à “tendência no sentido da estabilidade”, princípio defendido por Fechner em relação aos sentimentos de prazer e desprazer.

a Topografia mental

A topografia mental de Freud descreve os sistemas constituintes da mente. Em 1923, em sua “Segunda Tópica”, ele propôs a Teoria Estrutural, segundo a qual o sistema psíquico seria composto por três instâncias distintas: Id, Ego e Superego.

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tenha ido buscar aí inspiração para sua obra. Mas não se pode negar a afinidade entre o que pregava o famoso templo grego e o que buscava o homem que "descobriu" o inconsciente. Mas nem só da fonte da filosofia bebeu Freud. A literatura – arte que, segundo a psicanálise, mais traduziria o inconsciente – foi também, sem dúvida, uma grande inspiração. Para desenvolver um dos mais conhecidos conceitos psicanalíticos – o Complexo de Édipo – Freud foi buscar elementos no ano 496 a. C., quando o famoso dramaturgo grego Sófocles escreveu uma de suas mais famosas tragédias. Nela, Édipo mata o pai para casar-se com a própria mãe. Ao longo de seus estudos sobre o inconsciente e com base em observações clínicas, Freud transpõe a ficção e traz para a realidade uma nova forma de explicar o homem, seus desejos e as repressões que estariam no cerne das neuroses.

a Oráculo de Delfos

Situado na Grécia, no que foi a antiga cidade chamada Delfos, o Oráculo de Delfos era dedicado a Apolo e centrado em um grande templo, ao qual se dirigiam os antigos gregos para levar suas questões aos deuses.

Encontro Outra influência filosófica ao pensamento freudiano vem da fenomenologia hegeliana, que compreende a subjetividade a partir de diversas figuras que se sucedem dialeticamente. A verdade não seria um dado, mas o resultado de um processo dialético, conceito próximo à hipótese do determinismo psíquico de Freud. Para a psicanálise freudiana, os fatos e ocorrências da infância são determinantes para a formação do sujeito e seguem, no decorrer da vida, uma trajetória de ressignificações que avança dentro de uma lógica psíquica. Porém esta jornada da humanidade pelo entendimento acerca de si próprio remonta os séculos. No distante ano de 650 a.C., a inscrição na entrada do Oráculo de Delfos a - "Conhece-te a ti mesmo" - já anunciava a aventura a ser empreendida pelo homem em intrincados e complexos caminhos: a busca por si próprio. Não é possível afirmar que Freud, assim como fez o filósofo Sócrates,

Mero coadjuvante Com base em duas hipóteses fundamentais: a existência do inconsciente e o determinismo psíquico, a psicanálise tirou do homem o centro de sua consciência e colocou-o como coadjuvante de uma cena em que o irracional (desejo) prepondera. Por meio da observação e dos estudos a partir da experiência com centenas de pacientes, Freud falou da existência de um "estranho" que habita em todos nós. A partir desse momento, o inconsciente deixa de ser somente uma pequena porção indecifrável da consciência, deixa de ser uma descrição filosófica e assume o comando de uma realidade psíquica em que o homem não é mais dono de si mesmo. A clínica freudiana - investigação empírica, situada no campo da ciência e com a qual a filosofia não tem nenhum compromisso ultrapassa os conceitos teóricos e se aventura a sondar os obscuros labirintos da mente humana. Assim, a "invenção" da psicanálise, ao mesmo tempo em que revela traços de uma ascendência filosófica inescapável, por outro representa um salto conceitual e científico de proporções revolucionárias. O homem que pensa e o homem que deseja se encontram e se despedem na curva da subjetividade humana. n

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A filosofia vista de vários ângulos DA REDAÇÃO

RESENHA DO MÊS

Platão em busca dos enigmas do prazer

O

que é o prazer? Qual

AS AMBIGUIDADES DO PRAZER: ENSAIO SOBRE O PRAZER NA FILOSOFIA DE PLATÃO. Franciso Bravo COLEÇÃO: PHILOSOPHICA EDITORA PAULUS 480 págs

é seu lugar na vida humana? É o prazer a causa do desejo ou, ao contrário, o desejo a causa do prazer? Questionamentos relevantes sobre o prazer na filosofia de Platão suscitaram uma série de artigos do autor Franciso Bravo, que, reunidos, constituem o ensaio “As ambiguidades do prazer: ensaio sobre o prazer na filosofia de Platão”. De acordo com o autor, “Platão avança em direção à essência do prazer por meio de diferentes níveis do conhecimento: antes de abordá-lo no propriamente ontológico, que é o da definição propriamente dita, ele a situa nos planos físico, fisiológico e psicológico. É o caminho que seguiremos na determinação da natureza do prazer”, explica Bravo. Na obra, aspectos do prazer são considerados na cultura grega, e esta como uma cultura do prazer. Já a semântica do prazer é outro tema analisado pelo autor, assim como o ser do prazer nas esferas: físicas, fisiológicas, psicológicas, ontológicas e por fim, epistemológicas. Prazer e vida humana sob a ótica do hedonismo de Sócrates em Protágoras e o diálogo de Filebo: prazer e bem supremo são outros motes aplicados por Francisco Bravo no livro.

“As ambiguidades do prazer: ensaio sobre o prazer na filosofia de Platão” delimita, entre demais aspectos, no último capítulo “Leis: prazer, educação e virtude”, que “O prazer e a dor são as fontes que a natureza deu livre curso. Se extrairmos delas como se deve, isto é, em conformidade com a razão, o resultado final da experiência com elas é a felicidade. Do contrário, nossa sorte é a infelicidade. Por tudo isso, Platão a acredita que a maior ignorância do homem está no desacordo entre seus sentimentos de prazer e dor e o seu juízo racional”.

Sobre o projeto O livro faz parte da coleção Philosophica, da Editora Paulus, coordenada por Rachel Gazolla, autora de “Cosmologias: Cinco ensaios sobre a Filosofia da Natureza”, pertencente à mesma coleção.

Sobre o autor Francisco Bravo é doutor em Filosofia pela Universidade de Paris (Sorbonne). É professor de filosofia grega na Universidade Central da Venezuela e publicou, entre outros livros, “Teoría platónica de la definición” (1987, 2ª ed. 2002), “Introducción a la filosofía de Platón” (1990) e “Estudios de filosofía griega” (2001).

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LIVRO • LANÇAMENTOS

A TEIA DO CONHECIMENTO – FÉ, CIÊNCIA E TRANSDISCIPLINARIDADE Orgs.: Ana Maria Tepedino e Alessandro Rocha Coleção: Estudos da Religião EDITORA PAULUS 304 págs

Com uma sistematizada e profunda reflexão sobre as oportunidades colocadas à vivência da fé em sua relação com a ciência, o livro “A teia do conhecimento - Fé, ciência e transdisciplinaridade”, é uma mostra de como esse desafio vem sendo enfrentado. Nos textos organizados pelos teólogos Ana Maria Tepedino e Alessandro Rodrigues Rocha, os especialistas deixam clara a preocupação em criar canais de diálogo com a cultura contemporânea, em estabelecer espaços de debate na abordagem, na linguagem, nas temáticas, na epistemologia do conhecimento e no diálogo com as demais ciências. Comentário da Editora:

“A tendência monocêntrica, característica mais marcante nesta pós-modernidade, é gradativamente substituída por perspectivas policêntricas, em que as várias disciplinas bailam juntas numa dinâmica relacional”.

CARTAS SOBRE A HIPERMODERNIDADE Sebastien Charles EDITORA BARCAROLLA 200 págs

O autor parte da crítica à ideia de pós-modernidade, que caracterizou a nova fisionomia das sociedades ocidentais modernas a partir do fim dos anos 1970, marcada pela falência das grandes utopias e pelo desenvolvimento de uma nova cultura individualista centrada no presente, que privilegia a autonomia individual, o consumismo, o hedonismo. Com o advento da globalização e das novas tecnologias da informação, reconfigurou-se a ideia de presente, com a incorporação das trocas econômicas e simbólicas em tempo real e um sentimento de imediatismo que tornou os indivíduos menos pacientes e alérgicos à perda de tempo.

ARTE E FILOSOFIA NO IDEALISMO ALEMÃO Vários autores Orgs.: Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé EDITORA BARCAROLLA 194 págs

A arte, os movimentos que envolvem sua criação, seus limites e seu suposto fim e o papel do julgamento e da subjetividade diante de uma manifestação artística são preocupações que atravessaram séculos e fronteiras e ainda instigam todas as reflexões sobre a produção contemporânea ou nas grandes obras ocidentais de todos os tempos. “Arte e Filosofia no Idealismo Alemão” busca localizar o “contexto multifacetado de influências e afluências” que caracterizaram o movimento, colocando o leitor em contato com reflexões essenciais e relevantes ainda hoje.

Comentário da Editora:

Comentário da Editora:

“Segundo o filósofo, essa valorização do presente, embora justa, está defasada com a ideia de pós-modernidade, quando se indicava o desaparecimento da modernidade”.

“Os ensaios que compõem o livro foram originalmente escritos para palestras ministradas no colóquio internacional “Estética no Idealismo Alemão”, realizado no departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP)”.

FILOSOFIA – UM GUIA PARA INICIANTES Jenny Teichman e Katherine C. Evans EDITORA MADRAS 288 págs

Esta obra tem sido utilizada como referência para estudantes universitários em muitos países, pois apresenta aos leitores a maioria ou grande parte dos temas estudados em faculdades e universidades de Filosofia. O conteúdo abordado vai além de Ética e Metafísica - áreas que geralmente fazem parte do cotidiano da sala de aula - pois contém seções dedicadas à filosofia da ciência, à teoria política, ao feminismo, à lógica e ao sentido da vida. Alguns dos assuntos aqui apresentados foram adaptados de tópicos discutidos em cursos na Universidade de Cambridge, porém as autoras tiveram o cuidado de adaptar a linguagem para que as ideias se tornassem acessíveis até mesmo às pessoas que nunca tiveram contato com a Filosofia. Comentário da Editora:

“O leitor terá acesso também a apêndices que apresentam os grandes filósofos da História e a Filosofia no século XX e nos dias atuais”.

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CINEMA • LANÇAMENTOS

Ninguém sabe o duro que ele deu

Simonal - Ninguém sabe o duro que dei traça a trajetória impressio-

NINGUÉM SABE O DURO QUE DEI

Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal Gênero: Documentário Coprodução: Globo Filmes www.simonal.com

Comentário do diretor:

“A ideia era tornar o filme o mais pop possível, deixálo agregador. O documentário já é, por si só, um formato cinematográfico complicado, o público já é naturalmente avesso a ele.” Calvito Leal

nante do ex-cabo de exército, que reinou soberano e acabou condenado ao ostracismo por um delito que jurava inocência. Por meio de depoimentos de amigos, inimigos e, principalmente, de imagens das exuberantes performances do grande artista, o filme mostra também as respostas que nunca apareceram. Simonal era informante da ditadura? Era favorável aos militantes? Ou seu maior crime foi ser negro, milionário, símbolo sexual em um país e em uma época em que existia muito racismo? O Simonal musical Em comum, havia o fato de terem começado carreira sob os auspícios do agitador Carlos Imperial e um passado de ligações com a bossa nova – de repente, quando se chega ao final dos anos 1960, lá estão os dois, Wilson Simonal e Roberto Carlos, como os donos do pedaço, vendendo discos aos milhões e lotando estádios como nenhum outro artista da música brasileira. Mas se Roberto acabaria dando a semente para a formação de um movimento de rock, eminentemente branco, no país,

Simonal foi o capítulo 1 de uma espécie de black music com sabor tropical. Tim Maia, Cassiano, Banda Black Rio, Sandra de Sá, Cláudio Zoli, Ed Motta, Paula Lima, todo mundo passou pela porta aberta do cantor de invejável inflexão jazzística (Sarah Vaughan que o diga!) e incomparável ginga. A série de LPs Alegria, Alegria, iniciada por Simonal em 1967, apresentou uma das criações de Imperial, a Pilantragem, que o cantor representou melhor do que ninguém. Um passo além do samba esquema novo de Jorge Ben, rumo às paradas de sucesso e às pistas quentes das boates. A dance music brazuca por excelência. Basta ouvir a gravação de “Nem Vem que Não Tem” (composição de Carlos Imperial, que até Brigitte Bardot cantou depois, em francês) para entender porque Simonal era o cara: malandragem total na inflexão meio rap dos versos, suingando no balanço do piano de Cezar Mariano (o futuro César Camargo Mariano, então líder do grupo Som Três) e de uma base de baixo, bateria, guitarra e sopros bem próxima daquela soul music de sucesso da época, de Otis Redding e Aretha Franklin.

Divulgação

Em uma época de talentos eternos e revolucionários, Wilson Simonal brilhou como ninguém e inovou como poucos. Juntando qualidade, carisma, simpatia, suingue, charme, sensualidade e muito talento, ele se tornou a sensação do Brasil e ainda conquistou o público internacional. De repente tudo acabou. Boatos, acusações, mistérios, patrulhas e perseguições. O que aconteceu com Wilson Simonal?

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DVD • LANÇAMENTOS

A raça humana em perigo

O DIA EM QUE A TERRA PAROU

(The Day The Earth Stood Still) Direção: Scott Derrickson Elenco: Keanu Reeves (Klaatu); Jennifer Connely (Helen Benson); Kathy Bates (Regina Jackson); Jaden Smith (Jacob Benson) Gênero: Ficção Duração: 103 minutos

Ação épica e efeitos especiais de última geração sacodem o planeta nesta emocionante reinvenção do clássico da ficção científica: O dia em que a Terra parou. Keanu Reeves interpreta Klaatu, um ser extraterrestre, cuja chegada à Terra desencadeia uma série de eventos inevitáveis que ameaçam toda a raça humana. Numa tentativa desesperada de salvar a humanidade, governos e cientistas apressam-se para desvendar o mistério por trás da chegada do visitante. Quando uma mulher (Jennifer Connelly) e seu jovem enteado se veem envolvidos no plano do alienígena, eles se tornam a única esperança contra a aniquilação apocalíptica do mundo. Extras: Comentário em áudio do roteirista David Scarpa, Cenas Excluídas, Reimaginando “O Dia”, Libertando Gort; Olhando para os céus: Em busca de vida extraterrestre, O dia em que a Terra era “verde”, Galeria de Fotos.

Troca de identidades

Divulgação

SE EU FOSSE VOCÊ 2

Direção: Daniel Filho Elenco: Tony Ramos, Gloria Pires, Marcos Paulo, Chico Anysio, Ary Fontoura Gênero: Ficção Duração: 98 minutos

Com direção do renomado Daniel Filho, o longa conta com um elenco de atores consagrados como Tony Ramos, Gloria Pires e Marcos Paulo. Se eu Fosse Você 2 foi a comédia mais vista dos últimos anos e recebeu elogios da crítica e do público. Alguns anos após a primeira experiência de troca de corpos, Claudio (Tony Ramos) e Helena (Gloria Pires) voltam a ter conflitos corriqueiros. Mas dessa vez, as briguinhas levam a algo mais sério - tão sério que eles resolvem se separar. Mais uma vez, o destino intervém na vida do casal antes que seja tarde demais. Quando vão formalizar sua separação, trocam novamente de corpos. Para piorar a situação, descobrem que Bia (Isabelle Drummond), agora com 18 anos, vai se casar, e que serão avós. Já acostumados com o fenômeno, resolvem sumir durante quatro dias - o tempo que levou para destrocarem de corpos na primeira vez. Mas dessa vez, chega o quarto dia e nada acontece. Qualquer que seja a razão, a troca não ocorre e o desespero bate à porta do casal. Agora, precisam descobrir como voltar ao normal para continuar com suas vidas independentes um do outro.  Conhecimento Prático

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O sofrimento

dos filósofos Reflexões em torno da constante retórica que encontramos nos preâmbulos da dor humana por José Fernandes P. Júnior*

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ia desses um amigo meu ao notarme meio cabisbaixo deduziu aquele meu momento da seguinte maneira: “Não sabia que os filósofos sofriam”. Degustei suas palavras com o tempero do silêncio. No entanto, aquela sua dedução levou-me a ponderar sobre o sofrimento dos filósofos. E por lógica, só pelo fato de refletir sobre a questão, automaticamente estou a constatar que, realmente, os filósofos sofrem ou sofreram. Daí, devemos dar razão a Publio Terêncio, poeta romano, quando disse que “nada do que é humano me estranho”. Ora, refletir sobre o sofrimento é antes de tudo fazer uma pausa na vida e tentar descobrir porque a felicidade nos abandonou. Foi-se a felicidade, veio o sofrimento. Assim, quando Sêneca, em “Cartas a Lucílio”, afirmou que “os homens considerados felizes são, na verdade, os mais infelizes”, quis realmente afirmar que podemos disfarçar o sofrimento, mas não negar sua existência. Em resposta ao meu amigo, poderia ter lhe feito as seguintes perguntas: O que dizer de Sócrates, sofrendo a ansiedade da morte, após ter bebido cicuta? E mesmo do “maldito” Maquiavel quando torturado e exilado de sua terra devido a perseguições políticas? Que dizer de Schopenhauer, ofuscado por Hegel e esquecido de todos seus compatriotas? De Kierkegaard, quando sua amada Regine Olsen o rejeitou e, também, foi ridicularizado na Dinamarca? E até mesmo do estóico

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Sêneca exilado em Córsega por cerca de dez anos? (creio não ser necessário falar de mártires como Giordano Bruno para demonstrar que até mesmo os filósofos sofrem). O certo é, conforme Eric Fromm, que “o homem é o único animal cuja existência é um problema”, e o seu existir muitas vezes é por sofrimentos, perturbações e desassossegos que o deixa sem sentido – é aí que a vida perde a graça. Quando o sofrimento chega na soleira da vida humana, o ser humano se revela frágil frente ao seu novo estado. Se era alegre, fica triste; se perdeu a pessoa que amava, fica como um barco à deriva; se perdeu a saúde ao ser atacado por uma doença maligna, fica debilitado; enfim, o sofrimento atinge o ser humano por meio de suas multifaces – doença, morte, solidão, rejeição, desprezo... Tudo isso gera no ser humano alguma ponta de sofrer. Haveria algum antídoto para combater ou curar o sofrimento? A ciência sempre procura soluções para cura de doenças; mesmo àquelas que são incuráveis, busca um paliativo para aliviar os sofrimentos do paciente. O “senso-comum” por sua vez – quando o sofrer é psicológico, empírico-sentimental – não hesita em usar o chavão-clichê: “o tempo é o melhor remédio” ou “o tempo a tudo cura”. Será? O tratamento dado pela filosofia é diferente, vejamos como alguns de nossos filósofos enfrentam o problema. Sócrates, ao sentir que seu julgamento resultaria numa condenação injusta, adverte: “Pois bem, senhores juízes, vós também deveis estar dispostos à esperança em relação à morte, pensando somente isso, que nenhum mal pode atingir o homem reto nem em vida nem depois de morto (...)”. Sócrates presume que deveria cumprir uma pena capital injusta, mas encara a situação corajosa e resignadamente, pois sabia que o desespero não aliviaria em nada sua dor. Sofrer além do sofrimento é agravar a situação. O certo é que Sócrates enfrentaria o sofrimento resultante de uma condenação injusta e, consequentemente, a morte como um mártir. Suas últimas e memoráveis palavras, após tomar o veneno, foram: “É chegada a hora de partir: eu para a morte e vós para a vida. Quem de nós encontrará o melhor destino só Deus sabe”. Os estóicos (gr.: Stoa) resumiam o viver neste mundo com uma fórmula simples, mas severamente cruel no seu cumprimento, qual seja, “suporta e renuncia” (sustine et abstine). Assim,

qualquer espécie de sofrimento deveria ser tido como algo que o destino nos tivesse preparado e, por isso, debalde seria a preocupação inútil que roubava a paz e perturbava o espírito. Para os Estóicos, como também para Epicureus e Cínicos, o conceito de ataraxia (do gr.: literalmente significa ausência de inquietação, tranquilidade) fazia parte do caminho de sabedoria que estas Escolas buscavam; isso não significa dizer que esses filósofos não sofriam, mas que viam no sofrimento um exercício de libertação e de busca elevada do espírito. Schopenhauer, por sua vez, dá-nos – como possibilidade transitória de escape do sofrimento – a contemplação do belo artístico. A arte, segundo o autor de o mundo como vontade e representação, traz um alívio para os fardos deste nosso viver, e a música nesse particular tem uma grande importância: “Uma sinfonia de Beethoven descobre-nos uma ordem maravilhosa (...) Depois de ter meditado longamente sobre a essência da música, recomendo o gozo desta arte como a mais deliciosa de todas. Ouvir longas e belas harmonias, é como um banho de espírito purifica de toda a mancha, de tudo que é mau, mesquinho”, diz Schopenhauer. (p. 146, Dores do mundo) Kierkegaard, como alívio e superação do sofrimento recomenda-nos à Fé. Esta é o antídoto para todo o desespero e angústia que perpassam o “eu” humano. Aliás, a fé é na concepção kierkegaardiana o último salto existencial do indivíduo para chegar àquele que pode livrá-lo de todo sofrimento. Talvez tenha sido a fé autêntica em Cristo que fez o filósofo dinamarquês superar os traumas existenciais decisivos de sua vida: o relacionamento frustrado com Regina Olsen e o combate com a igreja de seu tempo. Bom, meu caro amigo, como se vê, os filósofos também sofrem. Mas também procuram superá-lo. E quando preferem resignadamente aceitar sofrer, como fazem ou fizeram os estóicos, na verdade buscam com isso não sofrer ainda mais – esta é a exceção. A regra, bem definida por Lessing, é: “Por que não podemos aguardar tranquilamente a vida futura, como aguardamos o dia de amanhã (...)” . Assim, pois, o ser humano está sempre fugindo daquilo que frustre seus planos e traga tristeza. Mas, quando menos esperamos, a vida arrebata nossa provisória felicidade e deixa-nos todos cabisbaixos. n

*José Fernandes P. Júnior é Graduado em Filosofia; Bacharelando em Direito – Faculdade Projeção-DF; Professor de Filosofia na rede pública do DF

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% RETRATOS $

por Antônio Joaquim Severino*

Do ensino

da Filosofia

O

ensino da Filosofia é imprescindível em todos os níveis e modalidades de escolarização. Obviamente não se trata de erudição filosófica, de domínio de um acervo de informações sobre os filósofos e seus sistemas de pensamento. Trata-se, antes, de contribuir para que os estudantes possam realizar a experiência intelectual do filosofar, adequada para sua faixa etária. A formação humana é o processo do vir-a-ser do homem, graças ao qual ele transita de sua condição de indivíduo puramente natural para a condição de uma pessoa cultural. Processo de humanização que passa necessariamente pelo exercício da subjetividade na qual o conhecimento em geral e a Filosofia, em particular, tem lugar privilegiado, na medida em que ela é aquela modalidade de conhecimento que se destina especificamente a construir o sentido da existência humana, analisando e articulando criticamente todos os subsídios fornecidos pelas demais formas de conhecimento. Na precária trajetória da educação brasileira, o ensino da Filosofia está vivendo um momento promissor, embora tímido. Já tem se tornado uma prática comum a inserção da formação filosófica para as crianças do ensino fundamental. Em 2007, foram

legalmente reintroduzidas no currículo do ensino médio as disciplinas de Filosofia e de Sociologia; no ensino superior, ainda que não de maneira universal, como seria desejável e necessário, muitos cursos de muitas instituições incluem em seus currículos disciplinas filosóficas. Até pela relevância e imprescindibilidade do exercício da reflexão filosófica no seio da cultura, o ensino da filosofia merece um cuidado muito especial, na medida em que é o locus principal de desencadeamento de todo o processo da busca de sentido. Não se trata apenas de se instruir em uma determinada habilidade nem de se apropriar de um acervo de conhecimentos. Trata-se, ao contrário, de se instaurar, de se desenvolver e de amadurecer um estilo de reflexão, um modo de pensar, um jeito especial de fazer atuar a subjetividade. Obviamente, isto tem de ser conquistado por mediações pedagógicas, fazendo-se assim absolutamente imprescindível o ensino. Por isso é preciso que nos posicionemos criticamente contra a ideia de que este refletir surge na transversalidade do aprendizado geral das demais disciplinas de um currículo. Certo, não cabe mesmo fetichizar o currículo, mas mediações específicas precisam estar atuantes para que aprendamos a filosofar. 

Se você tem alguma experiência que queira compartilhar com outros leitores, envie-nos os detalhes no e-mail filosofia@fullcase.com.br

*Antônio Joaquim Severino é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP)

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